Velhos São Os Trapos

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Velhos S達o Os Trapos

Jo達o Manuel Teixeira Filipe



Velhos s達o os trapos



Jo達o Manuel Teixeira Filipe

Velhos s達o os trapos


FICHA TÉCNICA EDIÇÃO:

João Manuel Teixeira Filipe Velhos são os trapos AUTOR: João Manuel Teixeira Filipe TÍTULO:

PAGINAÇÃO E CAPA:

Sítio do Livro

1.ª EDIÇÃO Maio 2012

LISBOA,

IMPRESSÃO E ACABAMENTO: ISBN:

Publidisa

978-989-20-2856-9 338928/12

DEPÓSITO LEGAL:

© JOÃO M. T. FILIPE PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO

Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt


AOS MEUS AMIGOS



Prefácio Sensibilizado pela deferência, quero agradecer o honroso convite para elaborar o prefácio desta obra, sobre a qual me debrucei modestamente e sem pretensões de crítica literária, apenas como leitor e amante da palavra. Mesmo assim, ainda não atinei com os motivos que levaram o João “Manel” a escolher-me para tamanha empreitada. Por um lado, admito a hipótese de que este gesto se encontre directamente relacionado com a nossa “velha” amizade e por todo um percurso calcorreado, quantas das vezes em comum, fazendo jus ao título de “Velhos são os trapos”. Por outro, também só aceitei porque, como bem sabemos, um “prefácio é aquilo que se escreve depois, imprime-se primeiro e não se lê nem antes nem depois”. Logo, encontro-me em perfeito à vontade e despojado de quaisquer veleidades. Misto de poeta, filósofo, historiador e empreendedor, o João Manuel consegue transmitir às páginas do seu livro o entusiasmo e o génio que se fazem necessários na preservação das velhas amizades e nos valores que regem todo o percurso da uma vida. Tal qual um historiador ou geógrafo


o faria, descreve a região que o viu nascer com pinceladas de cores fortes, poéticas e expressivas, como um paisagista. O livro oferece ao leitor um relato das vicissitudes dessa viagem que é a vida, sem laivos de auto-piedade e consciente do seu próprio valor. Retratando-lhe a alma, põe em devido relevo o ser Benquerido, não somente por ter nascido, morado ou vivido neste “lugar” que sempre teimou não abandonar, mas principalmente por possuir as qualidades da inteligência arguta, hospitalidade franciscana e valentia obstinada. Estou feliz por ti, meu caro amigo. Bem-haja porque: Há quem faça as coisas acontecerem; Há quem veja as coisas acontecerem; Há quem pergunte o que aconteceu. E tu és, sem qualquer dúvida, daqueles que fazem, verdadeiramente, as coisas acontecerem e, como diz o nosso bem conhecido músico e poeta Leonard Cohen, “à medida que se envelhece, vão morrendo os neurónios da ansiedade. A velhice traz serenidade”. Mas…, nós bem o sabemos, “Velhos são os trapos”.

Luís Nabais


Capítulo I — Reencontro

() Perene e esguio, o tempo foge-me por entre os dedos. Descubro-o esgotado nos Natais, degustando as seculares filhoses com os filhos, nora, genro e neto, pela noite dentro à volta das místicas labaredas do madeiro; quiçá nos longos dias de Verão, fruindo das refrescantes e lenitivas sombras dos freixos, guardiões das vítreas águas nos remansos da ribeira, porquanto o esquecimento vai-me diluindo na memória algumas sombras fugidias da figura da Maria. Rebuscando nos velhos arcazes da memória, evoco os tempos de escola e relembro-me dos folguedos de outrora, de quão pulcros eram na sua singeleza, os namoros, os furtos nocturnos que em bandos procurávamos alforrias nas capoeiras ou nos vergéis da aldeia e os amigos. Ah esses malandros, sempre disponíveis, fossem nas peregrinações aos concertos em voga – festival de jazz de Cascais, Vilar de Mouros – eram efectivas romagens, imbuídas de misticismo 11


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e emoção, ou na bola, onde jogos e lugares se disputavam ferozmente, prenhes de emoções e de irracionalidades. Eu, José Manuel Salgueiro, o Botas, da Benquerença (Calhameiro, apelido da aldeia), nunca entendi a verdadeira razão da minha alcunha. Talvez fosse pela minha forma de andar, pachorrenta e arrastadora dos pés na forma do passo ou, quiçá, pelo meu voluntarismo aquando das grandes patuscadas, em fazer o serviço próximo dos garrafões e omitir a preparação dos petiscos. Jogava a guarda-redes, não pela minha altura (1,70m), acredito, pois outros havia bem mais altos, o Pernas, o Pipas ou o Gracioso, mas possivelmente pelo fraco engenho que demonstrava no jogo de campo, assim foi determinada o meu recuo à baliza. A princípio foi pouco seguro, mas por fim lá fui aprendendo a cair e a mergulhar nos pelados e empedrados campos da época. Hoje, um par de pernas anafadas e arqueadas sustentam as minhas bochechas descaídas, demarcadas por um nariz purpúreo e arrebitado, e a adiposidade criada e mantida na pança dá a ilusão do peito descaído. O Pernas, Francisco Mendes Figueira, da Meimoa (Barrigudo, alcunha da povoação), alto (1,90m), era dotado de uma belíssima condição atlética. Tinha uma ligeira curvatura nos ombros, a cabeça inclinada para a frente e mostrava uma determinada saliência entre as omoplatas (marreca). As maçãs do rosto eram proeminentes, tinha um nariz de falcão, queixo fugidio e a maxila inferior descaída, com uns enormes olhos protuberantes negros de azeviche. Era defesa central. Porventura não seria pela sua habilidade, mas essencialmente pelo respeito infringido nas linhas avançadas dos adversários, sendo peça fundamental na estrutura da equipa. 12


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De carácter bonzão entre o grupo, estava sempre de acordo com tudo e com todos, não fazia mal a uma mosca. Hoje vive em França, creio que casado com uma francesa, já há muito tempo que lhe perdi o rasto. O Pipas, Pedro Proença de Pascoais, do Vale de Lobo (Arrepiado, alcunha da povoação), aproximadamente 1,80m, era corpulento e espadaúdo, com braços curtos mas grossos terminando nuns punhos extraordinários. Era de um vigor e tenacidade alarmantes, o cabelo ruivo acentuava-lhe a cor de cenourinha do rosto pintalgado, os olhos de um verde muito claro, descansando sobre um nariz forte e escarlate, alternavam para azul consoante a luminosidade e dos lábios finos e risonhos, prendia um queixo minúsculo mas sólido. A alcunha proveio-lhe talvez pelo excesso de “Pês” no nome, ou, quiçá, pela sua grande apetência por bebidas alcoólicas. Era médio-centro, fazendo assim jus à agressividade que ostentava e tinha um carácter pouco dado a derrotas. Mesmo consumadas, raramente as aceitava. Tinha também um cunho brigão e rezingão, estando quase sempre contra tudo e contra todos. Hoje vive em Lisboa, é solteiro, tendo já visitado várias vezes a prisão por insurreições políticas e sociais, provocadas em bares nocturnos a altas horas da madrugada. Creio tê-lo visto há 10 anos. Estava igual, um eterno descontente. O Gracioso, Paulo de Oliveira Martins dos Três-Povos (Espanhol, alcunha da aldeia), um tudo nada mais alto que eu, era belo de fazer inveja às esculturas de Apolo. Os cabelos compridos, castanhos-claros, projectavam-se em cascata sobre os ombros em caracóis intermináveis, reverberando a luz solar em caleidoscópico. Os olhos largos e lânguidos enfeitiçavam as amantes que cirandavam como loucas em 13


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seu redor. De amplos ombros e peito bem musculado, era sustentado pela cintura excessivamente delgada e as pernas de atleta olímpico. Ganhou a alcunha pela sua formosura. Ponta de lança, parecia passar despercebido nos jogos, mas havia momentos em que fazia com a bola habilidades de trocar os olhos às defesas adversárias. Era também o menos aventureiro do bando, de formação cristista, o único que ia regularmente às manifestações religiosas, todas as manhãs de domingo. Era comedido no consumo de bebidas alcoólicas. Hoje é casado, tem dois filhos, vive em Castelo Branco e é engenheiro ambiental. Vejo-o regularmente. Chamavam-nos “o cocó mais o ranhetas e a menina às facadas”, o que pouco nos incomodava, salvo o Pipas, sempre disposto a estrebuchar, com motivos mais que suficientes para zaragatear. Era normalmente aquietado pelo Pernas.

Acostado ao pecúlio que consegui aforrar durante a minha actividade de empresário independente, porquanto a reforma angariada mal daria “para mandar cantar um cego”, não vivo abastado, mas sobra-me o bastante para resistir até ao fim da “Grande Viagem” que, com a ancianidade, parece-me hoje incrivelmente diminuta. Passo os dias recostado na minha cadeira de balanço, feita com verga de vime da ribeira, encomendada por mim aos cesteiros que em tempos calcorreavam sazonalmente a região. Colocada no meio da varanda, virada para poente e para a serra, contemplo o declinar dos dias coados por entre as agulhas tremeluzentes dos pinheiros até que o corpo me doa e o ânimo se entibie com a investida da noite e a 14


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dispersão das trevas. Então, trôpego e sonâmbulo, recolho-me fantasiando outras manhãs, com análogos pores-do-sol.

Num sublime dia, um carro todo-terreno quedou-se em roncos espasmódicos em frente à entrada principal, de costas para a varanda, voltada a nascente. Trôpego e ensimesmado, fui verificar quem tão freneticamente batia à porta: – Já lá vai! – respondi, apressando-me a descer as escadas interiores. Era o Gracioso. – Paulo? Então como tens passado, rapaz? Dá cá um abraço, pá. – Vou bem, então e tu? – Desde que te reformaste não há quem te ponha os olhos em cima. – Sabes como é, – respondi, – os garotos casaram-se... Onde é que tu queres que eu vá sozinho? – Deixa-te de merdas, – contrapôs o Gracioso, – agora é que tu tens tempo para tudo. E trocando as primeiras impressões, levei o meu amigo até à varanda que fazia simultaneamente de sala de estar, salão de jantar e tantas vezes de quarto de dormir. – Senta-te, põe-te à vontade e conta lá o que te traz por cá? Tenho problemas com o ambiente ou quê? – Manda lixar o ambiente – exclamou o Gracioso. – Sabes quem me telefonou no outro dia? Perante a minha hesitação e alguns suspensos e emotivos instantes depois, respondeu secamente: – O Pernas! – O Pernas? Eh pá! Há quanto tempo o não vejo. 15


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– Nem eu – disse o Gracioso. – Quando ouvi a sua voz, a princípio sumida ao telefone, e me disse que era o Chico, perguntei, ‘Qual Chico?’ – O Pernas! – respondeu o vozeirão. – Mas conta, conta... Ele… vai bem? – interroguei, incrédulo, perante tal notícia. – Eh pá, pelo pouco tempo que estive com ele ao telefone, parece-me que sim, mas segundo afirmou, deve aparecer aí este verão sozinho. – Mas… divorciou-se? – inquiri, querendo saber tudo. – Creio que não, assim ele nada me confidenciou, mas como deves saber a mulher é francesa e não nutre grandes afinidades por terras lusas. Arrisco em afirmar que nunca veio a Portugal e ele deve sentir imensas saudades deste cadinho, e verdade seja dita, também dos amigos de infância, conforme eu deduzi. – Porreiro pá, só falta o Pipas, esse arruaceiro – disse, dando-lhe uma palmada nas costas. – E sabes mais? – continuou o meu amigo entusiasmado com a conversa – Eu vou reformar-me brevemente e, antes que isso aconteça, poderíamos passar uma semana todos juntos na Quinta do Major, no coração da Serra da Malcata. – E… tu consegues isso? – perguntei, tanto ou mais excitado que ele. – Ora ora, consigo tudo enquanto não me reformar e estiver no ICN. Após alguns momentos de silêncio, proporcionados pela minha ida à cozinha a diligenciar uma garrafa de vinho e dois copos, ataquei de novo enquanto vertia o voluptuoso néctar. 16


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– Bom, então tu tratas do assunto da Quinta do Major. Eu tenho o contacto do Pipas e convenço-o a vir. – Sabes como ele é, rezingão, vai-te perguntar o que é que quatro-aves-velhas-e-penadas querem ir fazer para a serra! – Deixa isso comigo, – disse, deliciando-me a degustar o apaladado e generoso tinto, – ele é rabugento, sem dúvida, mas como deves saber, nunca diz que não a nada. E já agora, podemos fazer barulho? – Creio não haver inconveniente. Os bichinhos não se assustam. Mas qual a razão da tua pergunta? – inquiriu o Gracioso. – Isto fica só entre os dois. Eu conheço dois músicos: um trompetista e um saxofonista. Vou convidá-los para nos fazerem um concerto de duas horas, durante a noite, no silêncio da serra. Tu vais ver… será espectacular! Enquanto ordenávamos as ideias que saltavam em turbilhão, fantasiando sobre as suas consequências, convidei o meu amigo para jantar. As horas já iam avançadas, denunciadas pelo crepúsculo que cobreava em tons cada vez mais escuros por detrás de inumeráveis borlas argenteadas, condensadas em partículas de água muito finas que se iam elevando com o rosnar frio da bafagem da serra. Pão, vinho e cabrito assado nas brasas incandescentes, provindas dos tições odoríficos de oliveira que alagavam apinhados dentro da lareira da sala de jantar, portas meias com a varanda, deram-nos alento físico e espiritual para resistirmos e só terminarmos com o eminente alvorecer que precedia o advento de um novo dia. – Ehhhhh pá… ó Zé, já viste as horas? – disse o Gracioso, olhando para o relógio – São quase cinco da matina. 17


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– E qual é o teu problema? Dormes cá. Chefe é chefe, dizes que estiveste em trabalho. Ou melhor, não dizes nada, porque ninguém te vai perguntar patavina. – Isso é no trabalho! Mas em casa, se não vou no mínimo pôr o visto, a Teresa desfaz-me a cabeça em água com milhares de perguntas. Bom, vou-me embora, daqui a uma horita estou em Castelo-Branco e ainda descanso um bocado. – Tu é que sabes! – respondi eu. – Mas será que estás em condições de conduzir? – Se não estou agora, muito pior estarei se ficar até mais tarde, e o jipe, meu velho comparsa de muitas outras farras, ajudar-me-á na viagem. – retorquiu, agasalhando-se para enfrentar a arrefecida brisa matinal. Após um longo abraço lá partiu, acordando o todo-terreno do seu sono metálico em compulsivos regougos, enquanto eu, trôpego pelo vinho e pelo adiantado das horas, recolhi ao quarto para repousar. Após tamanha vigília, só alteei quando o sol fazia o seu percurso descendente.

O medo da morte aguilhoa quase todos os engenhos, sobretudo os mais avelhentados em impressões de lâminas de frio. Tanto se esbatia na minha consciência parecendo diluir-se, porquanto recordando os amigos inventava uma semana de loucos na sua companhia, como era possuído por gigantescas ondas de terror que me ausentavam do meu estado de lucidez, deixando-me afásico e asténico no horror de um falecimento prematuro. Assim ia passando, em espasmos bipolares, os longos dias que intermediavam a data ainda imprecisa da nossa concentração. Entretanto, resolvi telefonar ao Pipas. Os sinais 18


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de espera, emitidos pelo telefone aguardando a ligação, deixavam-me impaciente, deixando-me a carola em absurdas cogitações. – Já teria mudado de telefone? Ter-se-ia perdido em algum aljube e se encontrasse incontactável? – Até que, do outro lado, uma voz grave e imperativa respondeu: – Quem é? – Sou o Zé, da Benquerença. – respondi mais tranquilo, creditando-lhe a voz. – Qual Zé da Benquerença? Zés há muitos! – respigou em tom de provocação. – O Botas, porra! Não te lembras de mim? – O Boooootas! Claro que me lembro de ti, e melhor me recordo dos teus “frangos”, rapaz! Então como vais, o que é que te levou a telefonar? – Cá vou indo, com a cabeça entre as orelhas, e tu ...? A revolta já te passou ou continuas na mesma? – exclamei, tentando com alguma argúcia subjugar a besta. – Tu sabes, é como diz o ditado “quem nasce torto, tarde ou nunca se endireita”... Talvez seja o meu caso. Mas deixemo-nos de lérias, não tens mais nada para me dizer? – Continuas na mesma, sempre apressado e incansavelmente agressivo. Mas continuemos. Na passada semana, o Paulo, engenheiro ambiental em Castelo Branco, veio visitarme... – gargalhadas do outro lado do telefone. – Porque te ris? – respiguei eu, autoritário. – Por nada, continua camarada, sou todo ouvidos. – Se é isto que te faz gracejar aí vai: apanhámos uma cadela do caraças e disse-me que o Pernas vinha a Portugal. Lembras-te dele, com certeza! – Claro que me recordo! Safou-te de muitas, esse grandalhão. – respondeu o Pedro, um pouco mais aquietado. 19


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– Então determinámos falar contigo e com o Chico, que em Agosto vem a Portugal, a fim de passarmos uma semana juntos. Que tal consideras a ideia? – Acho muito bem! Até acho a vossa ideia brilhante. Mas, já agora, onde pensam essas mentes iluminadas passar esses dias? – perguntou irónico o Pipas. – O Gracioso está prestes a reformar-se, e na condição de engenheiro ambiental, consegue, sem qualquer dificuldade, uma estadia na Quinta do Major, no interior da Serra da Malcata. – Muito bem! – retorquiu o meu amigo algo lacónico. – E o que cogitam tão brilhantes intelectos fazer no meio dos barrocos? – Ora, se vier tudo a acontecer como previsto, talvez andemos todos à barrocada, o que te deve agradar imenso! O que dizes? – respiguei, exaltado com o seu comportamento. – Tem calma, muita calma velhote. Com essa idade ainda te sobrevém alguma coisa ruim. – disse o Pipas. E continuando no mesmo tom – vocês decidiram…, está decidido. Eu estarei no Vale de Lobo, no princípio do mês de Agosto e contactar-te-ei nessa altura. – Então, contamos contigo? – disse eu estimulado. – Isso é pergunta que se faça, seu frangueiro do catano? – Então até lá, porta-te bem. Adeus, até ao princípio de Agosto. – Adeus, e não te excites muito. Poisou o auscultador, e eu, respirando fundo, alegrava-me. Instintivamente procurei uma garrafa de bom vinho. Abri-o e brindei com as serranias e o pôr-do-sol, companheiros de longa data, ao meu marcante sucesso, pensando em ligar ao Paulo com a maior das brevidades a contar-lhe o 20


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sucedido e, por fim, contactar os músicos para saber da sua disponibilidade.

No fim da adolescência, depois de ter terminado o ensino secundário, Francisco M. Ferreira foi para França, juntando-se aos pais emigrados desde o final da 2.ª Guerra Mundial e da irmã nascida e criada em terras gaulesas. Alguns anos depois casou com uma francesa, Anne Marie, protestante confessa e enfermeira nos hospitais centrais de Annonay. Com ela teve dois filhos, Laurent e Agnés, já licenciados, um em engenharia e o outro em psicologia. Talvez por dificuldade de comunicação filológica, fosse por um chauvinismo exacerbado, Anne Marie sempre considerou as terras lusas um território menor e de somenos importância, incutindo esta mensagem ao longo dos tempos na prole. O Chico, sem nunca esbater os sentimentos pelo cadinho mais ocidental da Península Ibérica e ter estoicamente mantido a nacionalidade portuguesa perante o desagrado da mulher e dos filhos, nunca foi homem para conflitos, suportando este dilema com alguma naturalidade. Chefe de uma empresa no ramo automóvel, vive no sudeste de França, região que bordeja o Maciço Central de origem vulcânica, irrigado por inúmeras correntes de água mediterrânica, desaguando no Ródano. Nas encostas do rio há inúmeros vergéis: pessegueiros, pereiras e incomensuráveis vinhedos. No interior proliferam o castanheiro e o carvalho por entre muitas e modernas explorações agrícolas. Perto de Annonay, num pequeno planalto e por entre uma profusão de árvores e de cores, adquiriu uma casa setecentista, onde coabita na companhia de Anne Marie. 21


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Certo dia, depois de um telefonema recebido de Portugal, incendiou-se-lhe o espírito só de pensar que voltaria a pisar o solo onde nascera e do qual tantas recordações armazenara nos arcazes da memória. Resolveu falar com a esposa, implorando-lhe a sua companhia na visita a Portugal, alegando ser mais fácil agora para ambos, pois os filhos já estavam arrumados e se encontravam livres de encargos. Mas Anne Marie recusou liminarmente a ideia, afirmando que se não tinha lá ido em nova, não era agora que mudaria a forma de pensar. Então, com toda a calma do mundo o Chico respondeu. – Trés bien, si c’ést ça que tu veux. Moi j´irai quinze jours, et je partirais le quatre du mois d’août. – Fait comme t’a envie, tu n’iras pas un jour m’accuser que j’ai reffusé de te laisser aller en visite à ton petit Portugal. Mais fait attention à tes diabetes, informe tout le monde que va t´entouré des tes problémes, on sais jamais quand il te peux arriver une hipoglicemie. – respondeu Anne Marie, algo perplexa com os ensejos do marido. O Agosto abrolhava flamejante, e tal ansiedade afogueava o espírito do Chico com a apropinquação do dia da partida. Finalmente chegou e, manhã bem cedo, ainda a aurora tardava no rebentamento da alvorada, já o Chico mourejava na preparação do saco de viagem, sem omitir a inseparável cana de pesca, além de um bom stock de garrafas de vinho de origem demarcada das encostas do Ródano: Cotes du Rhône e Saint Joseph e outras pequenas coisas, para ele vitais no gozo de umas “vacanças” há muito tempo desejadas, sem rumo marcado, nada de hotel reservado e prolongado em macilentas e descoradas praias da Cote d’Azur, tampouco cruzeiros enfadonhos e fastidiosos, verdadeiras feiras de 22


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vaidade e presunção burguesa. Umas férias na aldeia, na sua pequena e pacata terra, com os amigos, livre de preconceitos e dando largas a instintos recalcados. Em suma, na desbunda, como outrora. Pé ante pé, dirigiu-se ao quarto e despediu-se com um beijo de Anne-Marie, que ainda dormitava, e um nostálgico à bientôt, que meio endrominhada lhe sussurrou: – Fait bon voyage et ne te oblie pas de tes remmédes, soigne tes diabetes, le jour de la arrivé fait moi un coup de fil. Pegou nas malas e, depois de as arrumar no portabagagem do seu Porsche cinzento metalizado, fez-se à estrada, norteado pela voz feminil e metalizada do GPS, com o pensamento assente de prolongar a viagem pelo tempo necessário, fazendo algumas paragens no percurso, pois a idade a isso aconselhava. Mas nada do previsto se veio a efectivar. A vontade de chegar e as saudades eram tais que o carro parecia voar, calcorreando quilómetros atrás de quilómetros nas pistas bem pavimentadas das auto-estradas. Enfim, Vilar Formoso. O arrazoar da língua entre portugueses, os seus castanheiros velhos e carcomidos pareciam-lhe eternos, os seus carvalhos e as suas oliveiras, os burros as vacas e as galinhas espreitando à beira da estrada, enfim, o seu velho PORTUGAL. Já o sol se poentava quando chegou e abriu os portões da velha casa onde nascera, há muito abandonada e nunca revisitada. Forçou a portada, causando um gemido angustiante nos gonzos sonolentos e entorpecidos por uma já quase eterna quietude e entrou, sentando-se num banco de carvalho, minado e desfeito tanto pelo caruncho como pelas intempéries, em absoluta quietude, gozando a refrescante sombra do freixo que furtivamente ia banhando os 23


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seus ramos nas límpidas águas da antiga cisterna. Assim, ali ficou até que a noite tudo sombreou, e as mortiças luzes da aldeia se reinventaram em tremeluzentes e dourados fios de iluminura.

Abicava enfim o mês de Agosto, febril pela canícula, revisitando a aldeia qual moura encantada numa profusão de mil cores, agora abarrotada de simpáticos veraneantes que, relaxados, desfrutavam dos seus feitiços. A Marta e o Pedro, meus filhos, de férias nas ilhas Canárias, telefonavam-me quase diariamente, questionando-me sobre a minha saúde e bem-estar, ao que eu aproveitava para tagarelar com o meu netinho e chalacear com as suas traquinices. Noutras ocasiões ficava absorto pelas maleitas esporádicas de que era acometido. De resto, a vida escorria com os altos e baixos de tantos outros dias, não fosse a aproximação do tal convénio, articulado entre amigos e marcado para o dia sete. Uma certa manhã, bem cedo, o telefone impaciente e agitado, emitindo sibilos longos e penetrantes, acordou-me em manifesto frenesim. Era o Paulo, comunicando-me que o Chico tinha chegado na noite anterior, reafirmando ter tudo controlado com o ICN no tocante à casa da quinta. Ele chegaria a minha casa sábado de manhã, depois de deixar a mulher e o filho mais novo em Valhelhas, terra natal da esposa e onde habitualmente passavam férias. Sem me fazer mais delongas, peguei no meu velho Land Rover e pus-me ao caminho na direcção da Meimoa. Outrora, os pais do Chico moravam perto do chafariz, como se ia para S. Domingos. Viveria ele lá agora? Era o mais 24


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certo, ia eu congeminando enquanto conduzia! Se tal não acontecesse, alguém mo indicaria. Quando cheguei vi um descomunal veículo de matrícula francesa estacionado em frente da velha casa, antes pertença dos pais do meu amigo. Bati à porta do quintal com força suficiente para me fazer ouvir por toda a propriedade quando, por entre as árvores, alcantilado em duas enormes e avelhentadas gâmbias, um gigante em declínio ia surgindo: chapéu de palha e calções, fazendo conjunto com uma camisola de alças brancas, pondo a descoberto as omoplatas e as clavículas totalmente descarnadas e desmesuradamente salientes. Aproximou-se pelo arvoredo e, especando-se atrás dos portões enferrujados e carcomidos pelo tempo, mirou-me algo interrogativo, rebentando por fim num longo sorriso e levantando os braços esqueléticos, articulando o meu nome: – Olh’o Zé Salgueiro! Aguarda um pouco, grande amigo, que eu abra este monte de ferros oxidados. Com as duas mãos, puxou o portão gemente de eternas intempéries e agrestes vendavais. – Dá cá um abraço, camaradão. Envolveu-me num longo e demorado amplexo e rebocou-me para dentro do quintal para nos protegermos dos abrasivos raios solares. – Ah ganda Chico… há quanto tempo! – exclamei. Enxergámo-nos um ao outro e sorrimos alcandorados nos nossos entardeceres, evocando tempos idos, dos limbos reminiscentes da memória. – Há quanto tempo? – repetiu o Chico, enxergando a minha avultada e desmesurada hidropisia. – Bom, presumo que tu ainda não tenhas almoçado. Assim sendo vens comigo a minha casa e, enquanto desje25


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juamos, pomos a conversa em dia e concertamos as ideias durante a tua estadia em Portugal. – Mas ainda nem desfiz as malas? – Vais ter muito tempo! – disse, peremptório, e ajudei-o a fechar o rabugento portão, convidando-o a entrar no meu vetusto e andrajoso jipe, argumentando ser mais prático e cómodo neste género de quelhas e ruelas do que a sua aprazível e luzidia “espadinha”. A pique num céu intensamente azul, os raios de sol fulminavam o lugar, irisando os arbustos, as giestas, estevas, urze, por entre a fina mas resistente ramagem protectora, e os pinheiros na encosta salpicada de castanheiros de fuste carcomido e consumidos pela idade, num reinado hirto e sonolento descansando das revoltas invernais. Algures, numa lomba entre o povoado e a serra da St.ª Marta, erguia-se isolada a minha casa, modorrando na sua pétrea existência, reverberando a luz do invólucro de xisto aparelhado, com fachada virada para a aldeia e olhos postos na cumeada, tentando ingloriamente o caramanchão reprimir o avanço incontrolado das ervas daninhas sobre o terreiro escaldante. O Chico espantava-se de pasmo com o lugar, rebuscando nas fímbrias do esquecimento lembrança de outros tempos por nós calcorreados. – Ó Zé, lembras-te das patuscadas que fazíamos na fonte da serra, dos coelhos, das galinhas e dos pombos do padre? Como eu me lembro dessas coisas, sobretudo quando estou em França! Sentimentalão e bonzão como sempre, o Pernas, despenhava-se das suas já frágeis canetas com lembranças do seu velho Portugal, enquanto eu acomodava o Land Rover sob as sombras refrescantes da empena da casa. 26


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