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PARTICIPAÇÃO ESPECIAL COM O ESCRITOR JACQUES MAGALHÃES – JAX

O paciente recebe o diagnóstico com serenidade. Viveu bastante, desfrutou de muitas alegrias, sente-se gratificado na justa medida. Lamenta apenas pela esposa, amante e amiga de tantos anos que certamente sofrerá. Somam cinquenta e seis anos de casados, um privilégio, segundo ambos. Praxedes recorda a bela festa que fizeram para celebrar as Bodas de Ouro.

Curioso como a celebração parece haver sido ontem. Conjectura que, quando alguém está feliz, as recordações retornam à memória como se fossem fatos recentes. Por outro lado, quem experimenta a tristeza e a melancolia tende a ver longe, no passado remoto, as lembranças de ocasiões alvissareiras.

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Satisfeito com mais um interessante raciocínio a que che- ga, move os olhos instintivamente à procura da agenda onde tem o hábito de anotar suas meditações. Claro que ela não pode estar ali. Nem ele possui condições de escrever com tantos tubos e penduricalhos em seus braços. Resigna-se em guardar a reflexão e partilhá-la com a mulher logo que se reencontrem. Ela poderá tomar nota e, desde que coincida com tal pensamento, até ajudar a elaborá-lo melhor. Não será a primeira vez que ela colabore com suas anotações... embora possa ser a última, lamenta-se o paciente terminal.

As forças querem abandoná-lo. Praxedes tenta imaginar como será a morte de fato. Supõe que deixará de pensar (talvez sua atividade favorita, que pena!). Se a suposta alma existir, no entanto, que sensação ficará? Terá tempo de perambular pelo ar, avistar os vivos que permanecem? Guardará memórias?

Depara-se com um caminho florido que leva ao alto da encosta. Enquanto sobe, não experimenta cansaço. Ouve música suave durante o percurso, mas sem identificar se seria clássica ou popular. De toda forma, melodia agradável, do gênero que ele aprecia. Ao chegar ao cume, descortina bela paisagem, variada e colorida como certos cenários que viu e coloriu na infância. Pássaros e pessoas sorridentes passeiam pelos arredores. A entrada de uma enfermeira desperta-o. Com que então aquele possível paraíso havia sido mero sonho e ele ainda permanece no mundo dos vivos. Ou dos semimortos. Afinal, sempre lhe parecera que boa parte da humanidade pode classificar-se entre os vivos e os mortos. Fraco do jeito que se encontra, ele passa a integrar essa parcela, meio cá, meio lá.

Volta a sentir sono. Alguns amigos tinham a mania de dizer que a melhor maneira de morrer seria dormindo. Até parecia que haviam tido a experiência para exibir tamanha convicção. Passará ele a dar-lhes razão?

A luz parece diminuir cada vez mais.

Praxedes vê-se em meio ao breu. Tudo escuro e silencioso. Entende serenamente que se aproxima o momento de ir-se.

Despede-se em pensamento da querida esposa e dos melhores amigos. Se, quando criança, demonstrara medo do escuro, agora não. Aquela escuridão contribui para acalmá-lo e preparar-se para o futuro desconhecido. Lembra-se de passadas festas-surpresa em que o ambiente repentinamente se iluminava ao som de risos e aplausos.

Vem a sensação de estar dentro d’água. Sim, seus movimentos, por menores que sejam, agitam o líquido ao seu redor.

A escuridão afigura-se bem familiar. Praxedes passou por isso antes. A água começa a escorrer na direção de pequeno orifício luminoso. À medida que ouve sons indistintos, quase murmúrios, ele percebe o que ocorre. Sua transição para a morte converte-se no caminho do parto. O moribundo em breve irá renascer. Na Natureza, inclusive na natureza humana, nada se perde, tudo se transforma.

Praxedes exulta ante a perspectiva do seu renascimento. Vem-lhe à mente a reflexão do célebre Charles Chaplin de que o ser humano deveria nascer velho e rejuvenescer aos poucos, de modo a vir a aproveitar todo o conhecimento acumulado no auge da energia da mocidade.

Com ele, a história será um tanto diferente, mas igualmente vantajosa, já que ele renascerá com a experiência adquirida na vida que ora se encerra. Aí chega o novo Praxedes, capacitado a desfrutar melhor da próxima existência, graças à sua memória de tantas situações que vivenciou e de tantas pessoas que conheceu. Quem sabe não se animará a exercer outra profissão?

O orifício e a luz exterior aumentam. O bebê sente a pressão forte na cabeça para sair da genitora.

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Após as providências de hábito, o médico coloca o recém-nascido no colo da mãe.

- Vai chamar-se João Luís, ela comunica alegremente.

- Lindo nome, elogia o médico. Levado ao berçário, o menino enfrenta o desafio de estar fora do útero. Sem histórias. Sem memória. Com todo um mundo para descobrir.

Outras histórias do Praxedes, disponíveis em meios virtuais:

Praxedes e o Inseto NãoIdentificado - Revista Literária da Lusofonia 52, jul 2022

Praxedes, sua Empregada e a Ordem Suprema - RL da Lusofonia

26, abr/mai 2017

Pequeno Grande Vigia - Recanto das Letras (autores/JAX), nov 2017

O Ladrão de Escorrega - Revista

Fênix/Logos 30, mar 2018

Em livro:

Nessa Hora Não Dá pra FalarJAX, De Volta a Ibitinema (com novas histórias na bagagem), ed. Astrolábio, 2022.

Participa O Especial Com O Escritor Melch Ades Montenegro

Não pensei que seria tão gratificante escrever sobre a própria vida. Durante estes muitos meses em que primeiro escrevi a mão em cadernos e depois quando consegui “domar” o computador, graças a minha filha Ludmilla, passei a registrar nele minhas recordações, para a 1ª edição.

Quando então passei a “viajar no tempo”. Emoções reais penetraram na minha alma como se tivesse o privilégio de viver novamente minha vida. Consegui neste exercício de escrita registrar, além da infância, peculiaridades que deixaram de existir neste 3º Milênio: tipos de alimentação e bebidas; formas de brincadeiras infantis; músicas, comerciais radiofônicos, pedintes de esmolas; locomoção urbana; vendedores ambulantes e principalmente um mundo sem televisão, celular e internet.

Do ”admirável mundo novo” (*) de agora, prefiro o velho mundo da minha infância: “Da camisa aberto o peito, - Pés descalços, braços nus”(**) solto nas ruas e quintais sentindo no rosto o “vento virgem de poluição”. (***)

(*) Aldous Huxley (**) Casimiro de Abreu (***) Zuleide Duarte.

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