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A CIDADE
Especial
DOMINGO, 18 DE MARÇO DE 2012
VIDA QUE SE MULTIPLICA Como o professor Voltarelli colocou Ribeirão na dianteira de importantes pesquisas internacionais
O GÊNIO DAS CÉLULAS-TRONCO F.L PITON / A CIDADE
O imunologista virou referência mundial no que antes parecia ficção: a cura por meio do próprio organismo
Como as células-tronco abrem novos caminhos As células-tronco são capazes de se dividir, originando outras semelhantes. Essa prerrogativa é o que norteia os tratamentos desenvolvidos pela equipe do professor Voltarelli. Os médicos do HC têm transplantado pacientes com doenças hematológicas malignas e benignas, como a anemia aplástica e a anemia falciforme, ou com patologias autoimunes, como esclerose múltipla, sistêmica ou diabetes mellitus tipo 1. “Em geral, esses resultados produzem cura da doença de base do paciente, como nas doenças hematológicas, ou melhora significativa da qualidade de vida, como nas doenças autoimunes”, expõe.
MEDICINA
60 ANOS SIMEI MORAIS simei@jornalacidade.com.br
O confiante Jó, apesar de ressequido em suas desgraças, dizia que, ao cheiro das águas, o tronco seco tornaria a brotar. Num dos discursos em parábola à multidão, no evangelho de São João, Jesus afirmava que ele era a videira e quem estivesse nele enxertado estaria com Deus. Crenças à parte, duas passagens bíblicas cronologicamente distantes mostram quão antiga é a sabedoria popular de que tudo o que está ligado à cepa tem chances de vingar. A ciência mostra por quê. E não à toa as atualmente badaladas células-tronco têm esse nome. No latim, truncus designa o corpo, a coluna de sustentação. É um tronco, por exemplo, que origina e interliga todas as linhas ferroviárias, transportando a ideia para a logística. Então não seria de espantar a escolha desse nome para as células que se autorreplicam. A primeira ocorrência relatada foi com o canadense James Edgard Till, em 1963, que notou que as células da medula óssea implantadas no baço de um rato – há sempre um roedor marcado para morrer, nas histórias da medicina- se dividiam em várias outras iguais. Hoje, uma instituição de pesquisa que se preze tem algum pé em qualquer trabalho sobre células-tronco. Não há como estar fora delas e querer andar na ponta do conhecimento científico mundial. E a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP/USP) está nesse bonde de percurso global, com uma série de procedimentos pioneiros da equipe do imunologista Júlio Cesar Voltarelli. Cego voltar a enxergar, portador de diabetes tipo 1 largar a muleta da insulina. Parecem relatos bíblicos, mas são novas terapias desenvolvidas no campus ribeirão-pretano, a partir dessas células replicantes. Percurso Formado em 1972 na mesma FMRP, o rio-pretense Voltarelli passou a se incomodar com o assunto na residência que fez no Hospital das Clínicas (HC) do campus. “Cuidava de pacientes com doenças graves no sangue, cuja maioria falecia por falta de tratamentos eficazes”, recorda. Terminada a residência, Voltarelli foi aos Estados Unidos aprender a fazer transplante de células-tronco (TCT), voltou e o implantou no HC. “Hoje, muitas dessas doenças são curadas com esse transplante”, destaca. Como tudo que é novo ou diferente, a proposta de implantar TCT no campus enfrentou dificuldades para seguir adiante. Era preciso convencer os órgãos re-
INSPIRAÇÃO NOS LEITOS Voltarelli se direcionou para os estudos com células-tronco durante a residência, ao acompanhar pacientes graves
EM TORNO DE
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pacientes já se beneficiaram com os transplantes com células-tronco, iniciados por Voltarelli em 1992, em Ribeirão
guladores, como a Comissão Nacional de Ética em Pesquisas (Conep) e a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). “Muitas vezes, os processos são avaliados por pessoas sem formação técnica na área da pesquisa ou com preconceitos contra esse tipo de pesquisa, que exageram nos riscos do transplante ou exigem provas de que o mesmo vai funcionar antes que a pesquisa seja feita”, comenta. Vencidos os obstáculos, em 1992 a equipe de Voltarelli realizou o primeiro transplante de medula óssea (TMO) no HC-RP, em um jovem de São Carlos. “Nós iniciamos os transplantes de medula óssea no interior paulista. Antes,
havia centros de TMO em Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro”, recorda. À época, não existiam hemocentros para fornecer componentes sanguíneos seguros para esses procedimentos e a equipe utilizava material do banco de sangue do HC. Na cidade, o hemocentro foi inaugurado em 1994 e, desde então, tem sido polo de pesquisas em células-tronco. “Graças ao empenho, principalmente, dos professores Dimas Covas e Marco Zago”, diz, sob o rito dos docentes enfatizarem a atuação em equipe. Depois, vieram outros tratamentos pioneiros, como os primeiros TCT’s do Brasil para lupus e esclerose múltipla, em 2002.
CIENTISTAS
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profissionais integram a equipe de Voltarelli nos estudos com células-tronco, na FMRP, instituição que completa 60 anos, em 2012
Em 2005, foi a vez do primeiro TCT brasileiro para tratamento de Esclerose Lateral Amiotrófica. Eles aparecem listados ao lado de outros procedimentos, numa página sobre a evolução dos serviços do HC, na homepage do hospital. Nos últimos anos, o nome de Voltarelli é o mais citado, entre eles. E não somente entre os primeiros procedimentos executados no Brasil. Um deles, em 2004, causou balbúrdia na comunidade científica mundial: o primeiro TCT do planeta para tratamento de diabetes tipo 1 (leia mais nas páginas E4 e E5). Time A equipe que ele comanda possui em torno de 50 pessoas, divididas entre a unidade de TMO do HC e o núcleo de pesquisa básica no Hemocentro. São profissionais de saúde de diferentes formações, incluindo psicólogos, e pós-graduandos de áreas biomédicas. “O profissionais da equipe de TCT receberam formação técnica de institui-
ções nacionais e internacionais, o que foi indispensável para o início e continuidade das atividades de TCT”, afirma. Em todo esse período, o time do doutor Voltarelli já realizou mais de 400 transplantes de medula óssea para doenças do sangue, 150 para patologias autoimunes e 30 infusões intraoculares de células-tronco para combater anomalias da retina. Os estudos com células-tronco criaram uma espécie de know-how que transbordou para outros setores da FMRP, despertando interesse para colaborações em novos protocolos. Voltarelli e oftalmologistas do HC desenvolveram um estudo de injeção intraocular de células da medula óssea em retinose pigmentar, que leva à cegueira. Tiveram melhora funcional em vários pacientes. “Estamos expandindo o estudo para outras doenças oculares, como degeneração macular do idoso e glaucoma”, comenta.
Modus operandi Há vários tipos de TCT e também de células a serem utilizadas. “O tipo de transplante depende das características da doença e da disponibilidade de doador”, explica o cientista. As células podem ser do paciente (autólogo) ou de outra pessoa (alogênico), familiar ou não. A fonte também é diversa. O material pode vir da medula óssea, do cordão umbilical ou do próprio sangue (leia nas páginas E4 e E5). Foi do cordão umbilical de um doador de Louisiana, nos EUA, que o sertanezino Davi, então com seis meses, recebeu TCT, em julho de 2011. Portador de Imunodeficiência Combinada Grave, era a única chance para que não morresse, assim como seus dois irmãos anteriores. “Ele tem se desenvolvido normalmente desde o transplante, muito provavelmente está curado da terrível doença”, comenta Voltarelli.
O Hemocentro pesquisa aspectos básicos das CTs do cordão umbilical, medula óssea e sangue periférico, além do processo de transformar células maduras, como as da pele, em CT indiferenciadas Júlio Cesar Voltarelli 65 anos, imunologista
Na Hematologia, pesquisa-se a participação das CTs no desenvolvimento de doenças malignas, como as leucemias, e no tratamento de doenças em que há falência da medula óssea. Júlio Cesar Voltarelli 65 anos, imunologista
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