Especial Marcello Grassmann_Pág4_A Cidade_18/12/11

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A CIDADE

DOMINGO, 18 DE DEZEMBRO DE 2011

Especial

DONZELAS Uma das mais célebres séries de Grassmann surgiu após um caso de traição e a descoberta de um câncer em Sonya

Sedutor, como todo gênio FOTOS JOYCE CURY / A CIDADE

O medieval Ars Moriendi, ou seja, a Arte de Morrer, e o primor de Schubert marcaram sua obra

RECEITA INFALÍVEL “Ele seduz sem querer, sem fazer força para isso. É da geração de Humphrey Bogart, fatal e despojado”

SIMEI MORAIS simei@jornalacidade.com.br

DOCUMENTO

Uma das mais célebres séries de Grassmann, A Morte e a Donzela, nasceu após um forte abalo no casamento com Sonya, em 1995, quando ele se envolveu num caso extraconjugal. Nos desenhos e gravuras, uma sorrateira morte lisonjeia a moça bela. O nome fora emprestado do quarteto de Schubert, que por sua vez havia musicado o poema homônimo do alemão Matthias Claudios, do século 18. “A morte diz [no texto] ‘me dá tua mão, não tenha medo’”, recita o gravurista. Sonya e Marcello permaneceram casados por 45 anos. Na época do fatídico caso, ele morava e trabalhava em uma chácara em São Lourenço da Serra, na grande São Paulo, enquanto ela pintava no ateliê, na rua Augusta. Os dois se encontravam nos finais de semana. “Às vezes ela nem sabia o que eu estava produzindo”, diz. Foi ele mesmo que contou a ela do caso, que acontecera uns dias antes. Imaginava que a mulher compreendesse, embora não fosse um casamento aberto. Não havia sido planejado, ele conta, foi a outra que tomou a iniciativa e tudo muito rápido. Caprichou também em detalhar o balde de água fria verbal que jogou na moça ainda sobre a cama, mal recomposta do ato. E, para completar o episódio, a amante casual e repentina tentaria o suicídio, nas horas seguintes. A moça era amiga do casal, adestrava cavalos na propriedade ao lado da chácara. Alemã, na faixa dos 20 anos. Toda vez que quebrava alguma coisa na casa onde morava, chamava o vizinho para consertar. Jantava na casa dele constantemente. Na noite em questão, pediu uma bebida alcoólica. A garrafa de vinho caiu da mão dele, os dois limparam o chão e foram assistir a uma sessão de cinema na televisão. Ela virou, começou a desabotoá-lo e ele nunca soube o nome do filme. Grassmann, então com 70 anos, perguntou o que ela pretendia. “Se for dinheiro, eu te dou, você volta para seu país amanhã”, disse, acrescentando que tinha R$ 30 mil guardados no forro da casa. Ela o deixou no instante. No outro dia, um empregado do haras avisou que a gringa tentara se matar com um tiro e deixara um bilhete para Sonya. Ele pensou que sua re-

VIDA E SEXO

Seduzido pela vizinha, contou o caso à mulher, que, dois anos depois, morreu de câncer: sempre a morte

COMO SCHUBERT Música da sedução da morte nomeia obra

COM ZIZI Grassmann fala dela hoje: ‘minha mulher’

ação, a da oferta de grana, pudesse ter sido a causa do pretenso suicídio. Na esperança de remediar a situação, contou tudo para a mulher, que nutria afeição pela alemã. “Sonya gostava dela, até havia comprado um vestido para lhe dar no aniversário.” O casal procurou pela moça para tentar ajudá-la e a encontrou sorridente, com as amigas, em um restaurante. Os dois concluíram que o suicídio era encenação. O caso estaria encerrado. Naqueles dias, entretanto, Sonya se prostrou e Grassmann pensou que era por sua “leviandade”. Para sensibilizá-la, ele insistiu que um amigo médico do Incor forjasse a necessidade de um cateterismo. “Você é um histérico”, diria o cardiologista, que se viu livre apenas depois do procedimento inútil. Sonya se condoeu e nunca soube da armação do cateter. “Era como uma troca”, recorda.

Em seguida, ela foi diagnosticada com câncer em estágio já avançado. Morreu em dois anos. Schubert A composição A Morte e a Donzela já fazia parte das predileções de Grassmann. Em 1978, ele a havia indicado para substituir sua entrevista num documentário sobre sua carreira, feito pelo crítico Olívio Tavares de Araújo. “Eu não quis falar uma palavra. Disse ao Olívio: ‘põe o Schubert e me filma gravando que já está ótimo.’” O tema já havia sido abordado em obras que rondavam o universo que Grassmann estudava, como autodidata. O norueguês Edvard Munch, com quem alguns críticos chegaram a compará-lo, fez uma tela com o mesmo nome. Kubin, a quem ele admirava, fez pinturas e desenhos das Ein Totentanz (danças macabras) no iní-

cio do século passado. O brasileiro Oswaldo Goeldi, amigo de Grassmann, assinou A Balada da Morte em 1944. Todos teriam sido influenciados, de certa forma, pelo Ars Moriendi (a Arte de Morrer, em latim), textos calcados em preceitos cristãos para ensinar à população da Idade Média, devastada pela Peste Negra, como ter uma boa passagem desta para outra, quem sabe, melhor. O conjunto era acompanhado inclusive de onze xilogravuras ilustrando os sentimentos que deveriam ser evocados e evitados pelo moribundo e os futuros enlutados. Hoje o quarteto de Schubert não é seu único predileto, mas os sentimentos lúgubres continuam a tocar. No posto de suas canções favoritas está Gloomy Sunday, conhecida como o hino húngaro dos suicidas. “Tinha de ser um eslavo,

para fazer essa música.” Por que? “Você acha que (Fiódor) Dostoiévski nasceria no Ceará? Tinha de ser um lugar bem frio, com características medievais e pestilentas para poder sofrer”, associa. Zizi Nove anos antes de morrer, Sonya recebeu em seu ateliê a jovem artista Ana Elisa Dias Baptista, a Zizi, então com 24 anos. Zizi foi procurá-la porque, na verdade, queria chegar até Grassmann para mostrar sua produção. “Ele vai gostar do trabalho e dela também”, previra a primeira mulher. A moça mostrou as obras para ele, mas o contato com o mestre estacionou por aí. Eles voltaram a se encontrar seis meses depois do sepultamento de Sonya, em dezembro de 1997. Zizi estava na fazenda da família, em Itu, onde criava cavalos, quando re-

cebeu um telefonema de amigos convidando-a para um almoço em São Lourenço. Saiu de lá na mesma hora, com roupas de montaria e tudo. Grassmann estava à mesa. Dias depois, ele ligou para ela e disse que não a pediu em casamento na ocasião porque havia mais gente ao redor. Dois meses depois, eles já moravam juntos na chácara. “Sou uma mistura de Sonya com a alemã, artista plástica com domadora de cavalos”, brinca Zizi. O casamento, que no início havia chocado familiares dela pela diferença de 39 anos entre os dois, durou oficialmente até alguns meses após uma isquemia que o atingiu, no réveillon de 2007. Os dois asseguram que ficaram com manias demais e a convivência se dificultou. Nesse meio tempo, Zizi foi diagnosticada com bipolaridade. “Estava muito pesado para dois pirados. Concluí que ela deveria aproveitar o tempo e arrumar um marido”, resume ele. Os dois mantêm relação estreita, conversam sobre desde contas a pagar até o projeto de preservação do acervo dele, de que ela cuida em parceria com a Universidade de São Paulo (USP). Na abertura da exposição, no começo do mês, ela o ajudava a receber convidados. E Cello, como ela se refere a ele, ainda a chamava de “minha mulher”, a terceiros que vinham cumprimentá-lo. Zizi parece zelar também pela memória afetiva dele. Ela sabe detalhes até de histórias que os cônjuges tentam esconder da biografia, como a de uma mulher que deixou marido e filho, no Rio de Janeiro, para fugir com o então jovem Grassmann, no final dos anos 40. Ambos teriam se escondido aqui na região, na antiga casa da família na pequena São Simão, onde o artista nasceu. Mas os primos praticamente os expulsaram de lá ao saber do caso, tido como um escândalo para a família, contam os dois, aos risos. Com olhar perdido na grande sala de seu apartamento, Grassmann diz que Zizi é “um apêndice que ficou”. Olha para ela e revela que, vira e mexe, sonha com a chácara de São Lourenço. Nas cenas, vê suas duas mulheres, a búlgara e a brasileira, mexendo nas plantas. “Saint James Infirmary vai ser a história de nossas vidas”, responde Zizi, de imediato. O narrador da canção, um blues baseado no folclore norte-americano que ficou conhecido na voz de Louis Armstrong, conta que chegou ao hospital Saint James, em Londres, e encontrou sua garota estendida numa mesa e ela estava “tão doce, tão lívida, tão distante”. Tão morta. LEIA MAIS NA PÁGINA E6


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