Neta de escravos vive na 'Colênia Preta' - 18/11/07

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A CIDADE

Especial

Domingo, 18 de novembro de 2007

DIA DE ZUMBI- 3

Neta de escravos vive na ‘Colônia Preta’ Maria Conceição, 90 anos, vai celebrar, hoje, os 312 anos da morte de Zumbi no distrito de Cruz das Posses, em Sertãozinho FOTOS JOYCE CURY

SIMEI MORAIS

U

ma missa singular, hoje, celebra a Consciência Negra. É na capela do único remanescente da chamada Colônia Preta, formada por ex-escravos de Henrique Dumont, após a Lei Áurea, de 1888. A propriedade localizada na zona rural de Cruz das Posses, em Sertãozinho, foi comprada por Honório Neres Sacramento, ex-escravo do pai de Santos Dumont. “Assim que rompeu a liberdade, seu Dumont deu um vintém para cada negro, e eles compraram tudo aqui”, conta Maria Conceição Roberta Faria, neta de Honório. Ela aponta uma faixa de terra que se estende ao longe. Ainda no início do século passado, a área era ocupada por várias casas, todas de ex-escravos. Só ficou a de sua família. “Uns morreram, outros venderam, e acabou tudo”, diz. Dona Maria vive praticamente com a mesma estrutura deixada pelo avô. Mora na casa erguida por ele, cozinha no fogão a lenha, tira água do poço. Ainda usa banha de porco, guardada no caldeirão, para fazer a comida. Da modernidade, tem televisão e geladeira. Até o sino da igreja tem história. O primeiro veio da fazenda de Henrique Dumont, que era usado para chamar o povo na hora do almoço. “Mas aí rachou, foi para São Paulo e não voltou. Aí o Francisco Schmidt, que vinha aqui às missas, trouxe outro”, relata a proprietária, sobre o presente do “rei do café”. Memória A missa foi instituída por seu avô, antes dela nascer. Ele mesmo construiu a capela, em 1911, e mandou dedicar a São Benedito. “Ele e Nossa senhora da Conceição libertaram da escravidão”, justifica dona Maria, lúcida e simpática com os 90 anos que serão completados em oito de dezembro. Há missa todo terceiro domingo do mês. Mas é em maio que a celebração ganha ares de festa, quando uma multidão de mais de 800 pessoas vai ao culto e à procissão de São Benedito.

Toda a família, que ultrapassa uma centena de pessoas se contar filhos, netos e bisnetos, se engaja na festança. Passam um dia todo amassando rosquinhas e confeitando um bolo de mais de um metro e meio, que normalmente leva a figura do santo negro, no enfeite. Enquanto as mulheres fazem as massas, homens cuidam do forno. E os quitutes são servidos com café e chocolate, depois da missa de maio. “Antes de morrer meu avô pediu para tomarmos conta da igreja. Graças a Deus, eu, meus filhos e meus netos estamos prosseguindo”, comenta dona Maria, que é responsável, ao lado da filha Mamede, por acender a vela principal da missa. “É a principal festa para a família, mais importante que o Natal”, revela Antonio, filho de dona Maria. Até filhos “agregados” se encarregam de continuar as celebrações. É o caso do refratarista Deusdedite de Freitas Ferreira, que não descende de negros, mas de tão amigo, se considera filho de dona Maria, e herdeiro da tradição. “Isso representa muita coisa, quero levar para frente também, depois que ela se for. A gente vai lutar para manter esse lugar, porque ajuda a preservar os valores”, afirma Ferreira, compadre de Antonio. Missa A missa de maio é especial não apenas pela aglomeração de fiéis, comenta o padre Cleber Augusto da Silva, pároco da igreja de Santa Cruz, em Cruz das Posses. “Rezar missa num lugar como esse é uma das coisas mais gostosas, para um padre”, garante. De tanta gente, as pessoas acompanham a cerimônia até embaixo das árvores. “Tem caixa de som lá fora”, cita o padre. Hoje é o dia da missa mensal. E por ser antevéspera do Dia da Consciência Negra, a família imagina que o assunto vai constar no sermão. “No ano passado o padre falou de Zumbi”, recorda Antonio, filho de dona Maria. Padre Cleber diz que provavelmente irá comentar a data, em homenagem a Zumbi dos Palmares, líder quilombola que morreu em defesa da liberdade.

MARIA CONCEIÇÃO NA ANTIGA COLÔNIA DOS EX-ESCRAVOS DE HENRIQUE DUMONT “Só ficou a casa de minha família, muitos morreram”

ANTONIO TOCA O SINO Emoção para comemorar o Dia de Zumbi

IGREJA DA DEVOÇÃO A família e os amigos acompanham Maria

REPRODUÇÃO

MEMÓRIA

“A família de minha mãe veio de Minas a pé, igual boiada”

NO PASSADO Na foto, os avós de dona Maria: muito sofrimento

A família de dona Maria Conceição, de Cruz das Posses, reproduz com orgulho as histórias contadas pela matriarca. Imaginam transformar o local em patrimônio histórico, no futuro. O neto Andrei Albuquerque, de 30 anos, diz que ela sempre resgata os relatos do avô, seu Honório, e dos pais, Lourenço Roberto e Marcelina. “É um orgulho saber da própria história, que isso é um pouco da história também da região e do país”, afirma Albuquerque, professor universitário. E dona Maria emenda os detalhes. “Meu pai ainda nasceu na escravidão. Foi comprado no Rio de Janeiro pelo Henrique Dumont”, diz. Já a família materna veio de Sabará, Minas

Gerais. “Vieram tudo a pé, igual a boiada”. As origens genealógicas de dona Maria refletem a proibição do tráfico internacional negreiro, em 1850. Sem receber escravos do exterior, as fazendas paulistas os “importavam” de outros estados. “Passaram a receber escravos de Minas, da Bahia, do norte fluminense. Eles saíam dos lugares onde a produção econômica estava em baixa, para onde ela se elevava”, explica Carlo Monti, professor de história do Centro Universitário Barão de Mauá. Pajem de Dumont Dona Maria conta que seu avô ajudou a plantar cafezais. Um de seus tios era pagem do menino Alberto Santos Dumont, na fazenda que deu origem à cidade que leva o sobre-

nome do brasileiro que inventou o avião. “Quando o menino queria brincar de cavalinho, meu tio agachava para ele subir nas costas”, diz. A comida era, basicamente, polenta com orapro-nobis, uma planta proteica. “Era servido no cocho. Só no Natal e na sexta-feira santa é que a comida era melhor”, diz a senhora. Dona Maria lembra de assuntos mais sofridos, como os castigos a chicote e arame farpado, e a obrigação sobre moças escravas, que deveriam se deitar com o senhor, antes de namorar com os escravos. “Minha avó e minha tia contavam que apanhavam como cachorro, porque não esperaram para ir com o senhor. Desaforo, né?”, avalia. Na tranqüilidade de seu sítio, ainda conhecido pela

população da cidade como Colônia Preta, dona Maria diz que os tempos já são outros. “Hoje ninguém aceita isso, não. Agora é tudo bastante livre”, afirma. Sem quilombos Apesar dos duros aspectos da escravidão, Antonio, filho de dona Maria, acha que não havia quilombos na região porque os senhores eram mais brandos que os das regiões onde os negros fugiam e formavam as comunidades. A geografia, entretanto, não permitia o surgimento desses espaços na região, aponta Monti. “Não havia grandes extensões de mata nem formação geológica que permitissem o esconderijo”, explica. Os primeiros inventários de senhores com propriedades de escravos, na região, são de 1864.


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