Especial
Domingo, 18 de maio de 2008
A CIDADE
A 15
ANTES DE 13 DE MAIO
Dorothea Francisca, mulher valente Historiador descobre escrava que entrou na Justiça, em Ribeirão Preto, contra os senhores: e isso, em pleno século 19 F.L.PITON
SIMEI MORAIS
D
FERNANDO NOGUEIRA DE PAULA Historiador estuda processos do século 19 em tese de mestrado
orothea Francisca do Nascimento é o que popularmente se chama de “mulher arretada”. Resoluta, ela é autora ou pessoa citada em sete processos judiciais da década de 1880, na Justiça de Ribeirão Preto. Nada incomum, não fosse ela uma escrava. Um pouco da vida de Dorothea e de outros escravos da cidade está sendo descoberto por meio de processos criminais e cíveis que estão no Arquivo Público de Ribeirão. Eles são objeto de estudo do historiador Fernando Nogueira de Paula, mestrando da Unesp de Franca. Ele fez das peças judiciais um meio para desvendar o cotidiano dos escravos e a relação deles com a população na época da abolição, ocorrida há 120 anos.
TUTELA
Voz de escravo não tinha o mesmo valor para a Justiça Os escravos podiam entrar na Justiça, mas juridicamente, eles não tinham o mesmo valor que as pessoas livres, mostra o estudo feito por Fernando Nogueira de Paula. “A iniciativa do processo podia ser deles, mas eles nunca estavam sozinhos, na ação. Havia sem-
P C M A
pre um tutor que assinava por eles”, afirma. Escravos ou ex-escravos eram considerados testemunhas informantes, e não testemunhas juradas, como os demais. “O juiz decidia se considerava a palavra dos escravos ou não”, explica. Para o historiador, o tra-
balho pode jogar luz a uma parte da história ribeirãopretana pouco conhecida, a da presença dos escravos no município. “Muita gente acha que a cidade foi feita só por imigrantes. Há quem se surpreenda que houve escravidão, por aqui; pensam que me refiro aos trabalhado-
res do corte de cana”, relata o mestrando da Unesp. Em 1887, havia 1.379 escravos, dentro de uma população de 10.420 pessoas. Esses 13% de escravos, cita, eram proporcionalmente maiores que os 8% que existiam em cidades como Campinas, Rio Claro e Limeira.
Não era comum escravos irem à Justiça reclamar direitos, mas há, daquela época, pelo menos 70 processos ligados a eles. De Paula ainda não analisou todos, mas diz que a maioria dos documentos refere-se à obtenção da liberdade. Eles mostram como o escravo conseguia se tornar livre: pagando o pecúlio, com dinheiro que ele mesmo juntava, ou por benefício do fundo de emancipação, que distribuía verbas a cada município provenientes da arrecadação de tributos. A maioria dos escravos tornava-se livre por meio dos dois recursos. Dorothea foi um deles. Pagou 135 réis próprios e contou com dinheiro do fundo para pagar seu preço, que era de 900 réis. “Ela pagou um valor considerável, difícil de levantar”, comenta o historiador. O valor de Dorothea era quase um conto de réis (mil réis), quantia significativa se considerar que uma fortuna se fazia com 70 contos de réis, compara De Paula. Os processos, no entanto, não revelam como a ex-escrava conseguiu o dinheiro. “A maioria das mulheres lavava roupas ou vendia frutas”, sugere o pesquisador. O marido dela, João, também entrou na Justiça. Ele moveu ação contra seu senhor, Antonio Beraldo de Azevedo, para requerer seu pecúlio. Alegava que possuía 420 réis em bois para ajudar a comprar sua liberda-
de, mas seu proprietário vendera os animais, sem lhe entregar o dinheiro. O nome de João aparece sem sobrenome, na ação, porque ainda era escravo. Violência Parte dos documentos mostra que a prática da violência, entre os senhores, mesmo prestes a ocorrer a abolição. Foi o caso de Bernardo, de propriedade de Franco Octávio de Moraes. Com marcas e feridas profundas, Bernardo foi parar na delegacia, onde lavrou-se o corpo de delito, em 1883. “Normalmente os senhores ganhavam a causa”, contrapõe o pesquisador. Para ficar com os filhos, Dorothea também entrou na Justiça. Em 1880, ela abriu processo para requerer a guarda de seus quatro filhos menores de oito anos, nascidos após a lei do Ventre Livre. Seu ex-dono recusava-se a entregar os meninos Joaquim, 7, João Baptista, 5, Áurea, 3 e Amélia, 1. “Ele fez de tudo para se vingar da Dorothea, que conseguiu a liberdade”, conta o pesquisador. O juiz ordenou que Antonio Beraldo de Azevedo, o ex-senhor, desse os pequenos a ela. Mas um dos autos o isentava de entregar o mais velho. Dois meses antes da abertura desse processo, o ex-senhor tentava embargar a liberdade da escrava. Mas a Justiça a manteve livre, sem especificar se ela ficou afastada do marido ou do filho mais velho.