6 minute read

Rito Português: Fundamentos Literários, Míticos e Filosóficos

Por Fernando Casqueira

O Rito Português filia-se numa perspetiva Maçónica inédita e específica que, não descartando a matriz Universalista, reivindica uma autenticidade (Heidegger), em que se evidencia a especificidade e a dinâmica da nossa estrutura profunda, qual SER que flui: o SENDO.

Advertisement

Socorremo-nos de vias alternativas a uma opção meramente historicista, que foram referidas nas vastas referências pretéritas (filosóficas, literárias, poéticas), não racionalizantes, das idiossincrasias, das ideologias ou do psiquismo. São referências fenomenológicas que possibilitam uma hermenêutica (e uma heurística) sobre as coisas, situada para além das barreiras da razão e da consciência, pois existem apenas (ou sobretudo) em estruturas (simbólicas), mentalmente muito plásticas, inerentes à Poesia, Literatura, Filosofia, Artes Plásticas, onde se inscrevem implícitas narrativas oníricas e mitológicas.

“(…) E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia Nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas «daquilo de que os sonhos são feitos». E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal antearremedo, realizar-se-á divinamente (…)”

In “A Nova Poesia Portuguesa no Seu Aspecto Psicológico”, por Fernando Pessoa, publicado em A Águia, nº 12, II série, Abril de 1912.

O Canto, a Poesia, o Teatro, a Literatura e as Artes Plásticas, atualizando os poderes da palavra, dos sons, das imagens, permitem intuir (ou aceder ao limiar), de dimensões de uma realidade, inefável, invisível, situada para além do sensível, do existencial, do experimental e que, no entanto, fazem parte da Realidade, mas não obstante, são liminarmente rejeitadas na ótica historicista racionalista. Aquelas dimensões revestem-se de características mágicas, iniciáticas, sagradas, apontando para a transcendência do Absoluto, conformes à arte real e à ciência sagrada.

Facilmente se compreenderá que estas formas de linguagem, de expressividade, participando embora da historicidade, comportam dimensões trans-históricas, intemporais, universalmente vigentes, mas válidas, integradas na (nossa) paideia específica e inconfundível. Aqui se inscreve também, essa tradição palpável, no conto popular (e noutras modalidades do pensamento expressivo – poesia, arte, literatura, filosofia, etc.), sobre o qual escritores como Teófilo Braga e Moisés Espírito Santo revelaram o potencial energético e estruturante da espiritualidade popular portuguesa, face á dominância unívoca das epistemologias admitidas e à religião oficial do Estado).

É verdade, que estas asserções, são inerentes a todos os povos e culturas, ou seja, à sua herança cultural, à sua linguagem de comunicação e de expressão, referidas a um acervo de palavras com sentido e significado muito próprio e difuso, dificilmente traduzíveis, para outro contexto linguístico, como será o caso da SAUDADE, integrada no nosso RITO.

Muitos dos nossos cultores dessas linguagens intuíram a riqueza inesgotável do nosso imaginário simbólico (sempre em renovação), viajando acronicamente, para lá de cada época, no mito, no arquétipo, na poesia, no conto, etc., enfim, nas vivências dolorosas e saudosas do sagrado. “A imaginação é inclassificável pelos sensos humanos, porque os transcende, e a transcendência supera os valores, para atingir o infinito, o absoluto, o Universo” (Álvaro Ribeiro, 1957).

No contexto do Rito Português, Fernan- do Pessoa deverá ser colocado em evidência (sem demérito para um Camões, Teixeira de Pascoaes, Eça, Antero, e diversos outros), até porque é referido insistentemente nas práticas ritualísticas adotadas nos nossos graus simbólicos e, para além disso, apresenta uma conceção sobre maçonaria e uma teoria da iniciação esotérica (“…Neófito, não há morte”.), alcandorada em paradigma e que subscrevemos. Bem se poderá referir que o mundo esotérico, neopagão, gnóstico, místico do poeta da “MENSAGEM”, defensor corajoso da maçonaria (em período difícil), vinha de par, com profundo conhecimento dos ritos maçónicos, da simbologia, da estrutura progressiva iniciática maçónica, da organização das lojas, da Ars Quatuor Coronatorum, (e outras estruturas) e sobretudo da espiritualidade maçónica.

De notar, em acréscimo, que o poeta, conferia ao Evangelho, conotação com um Tratado de Iniciação maçónica, integrando Magia, Alquimia e Gnose e, em conformidade, referia a Bíblia como um Tratado de Alquimia, escrito em “cifra transcendental”. Por maioria das razões, aquela asserção é compatível com uma conceção da maçonaria fora de uma perceção de univocidade: a maçonaria embora materialmente dividida, considera-se unida espiritualmente e, portanto, igual em toda a parte e “quem tiver as chaves herméticas, em qualquer forma de um ritual encontrará sob mais ou menos véus as mesmas fechaduras”. A articulação entre o Rito Português e a questão identitária, que já do antecedente mereceu as necessárias referências, esclarece os motivos que suportam a nossa opção teórica assentar na perspetiva primordialista na construção do processo identitário. Parece-nos que o psiquismo português veio-se cristalizando num original e vasto complexo mítico-arquetípico, lendário, artístico-cultural, sem o qual torna-se difícil compreender a visão instrumentalista, em detrimento de outras.

O Rito Português é sensível à perspeti- va da existência de uma primordial, vigorosa e antiquíssima Matriz Cultural Indo-Europeia (onde nos inscrevemos), de cunho telúrico, espiritual e natural, cujos importantes resquícios, ainda atualmente, subjazem na cultura popular portuguesa (observáveis em inúmeras manifestações etnográficas e arqueológicas). A Paisagem, em sentido lato, especialmente concebida como os íntimos lugares mágicos da Natureza, em inter-relação espiritual do homem com a “Terra Mãe”, facilmente permite entender o processo construtivo da nossa identidade. Veja-se em o “espírito do lugar” com Alçada Baptista,

Torga, António Quadros ou Pascoaes.

Essa “Terra Mãe”, cedo concebida em Grande Deusa Mãe, refletindo-se nas marcas geográficas e monumentais, constitui reminiscência profunda das origens longínquas, cujo alimento espiritual indicará necessariamente um caminho, uma trajetória, iluminando um futuro saudoso. Acreditamos que “o passado é grávido do futuro” e nessa ótica, tentamos uma aproximação, na consulta em acervos e vestígios do nosso ancestral património cultural, mítico-simbólico, lendário, religioso e espiritual.

Em síntese, o processo identitário sugere a afirmação e a reconstrução do passado no presente, surgindo a história do acontecer, como suporte basilar, e a representação da cultura e seu modelo moral, numa entidade coesa. Assim, o Rito Português recolhe a herança PÁTRIA de Reis e Heróis Fundadores, por vezes de carácter milagroso ou teofânico e, nesse aspeto, o milagre de Ourique deu sentido a uma Nação, doravante investida por Cristo, numa missão ecuménica, que o devir seculos depois fará surgir aos nossos olhos como o MITO do QUINTO IMPÉRIO e o RITO iniciático (portuguesíssimo e ecuménico) da festa do ESPÍRITO SANTO (de raízes Joaquimitas), que os portugueses, levaram de Alenquer (1321) para lugares distantes: Açores, África, India, Brasil, Estados Unidos, Canadá, Hawai, Bermudas.

Nesta conformidade, o Rito Português integra-se na densidade simbólica dos arquétipos (mitologemas) e narrativas míticas (o Mito é o nada que é tudo) que, qual Pedra Angular, irão sustentar coerentemente as suas práticas. Os mitos que a nossa Paideia integra dentro da sua especificidade reportam uma matriz que é comum a diversas culturas, nomeadamente do arco cultural do Atlântico Norte até ao Mediterrâneo Oriental.

Com efeito, Portugal integra um vasto complexo mítico-simbólico com valência ecuménica, não apresentando rutura com a continuidade do antiquíssimo arco cultural atlântico-mediterrânico. Ocupa, segundo dados recentes da antropologia e da arqueologia, posição intermédia, mediadora e axial. Gilbert Durand ao enunciar os mitologemas portugueses reitera a sua implicação desde o Mediterrâneo Oriental até aos mundos Anglo-Saxónico, Germânico e Nórdico. A bacia semântica de Portugal possui, assim, inusitada abrangência e pertinência na sua globalidade, incitando novos questionamentos sobre a eventualidade de uma “missão “, (aludida e abordada por muitos pensadores, embora diferenciados, como, Guilherme Oliveira Martins, Eduardo Lourenço, Dalila Pereira da Costa, Pinharanda Gomes) e que culminará no Império Espiritual, segundo Fernando Pessoa. Para o Rito Português e considerando a “caminhada espiritual” do individuo em direção à Luz, ganha pleno sentido e expressão do poeta ”…partiremos em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus construídas daquilo que os sonhos são feitos…”.

No mesmo sentido, a excessiva coisificação, laicização e perca de sentido do sagrado da civilização Europeia, o seu sentido redutor de progresso, de par com a ideia superlativa de um desenvolvimento confundido com crescimento económico (não esquecendo as crises e outros desequilíbrios) poderia ser colmatada, se essa mesma Europa decidisse embarcar connosco, naquelas naus, em caminhada para aquelas novas Índias do sonho, da paz e da harmonia universal.

“…Até agora incorporamos almas alheias… chegou o momento, porém, (com o RITO PORTUGUÊS) de revelarmos a nossa própria alma”, (Delfim Santos).

O Rito Português que idealizamos, na sua trajetória para a iluminação, indica um caminho ao plano do transcendente, da espiritualidade e do sentimento do sagrado, presente nas origens pré-históricas de um povo, de uma Mátria, de um complexo imaginário cujos fundamentos se inscrevem nos dados da antropologia, da história, do filosófico e do mítico. Afastamo-nos assim de uma excessiva narratividade hegemónica, exclusivamente de tradição judaico-cristã. O RITO PORTUGUÊS, neste passo, aproxima Fernando Pessoa, Gilbert Durand, Lima de Freitas, e outros, parecendo admitir o pressuposto de uma missão ínsita, no devir histórico de Portugal. Apenas lembramos, que, afinal e na opinião de Fernando Pessoa, o “MITO É O NADA QUE É TUDO” (Mensagem-Ulisses), o qual (mito), indicando sempre uma hermenêutica do real e explicando esse mesmo real, acaba por se tornar, também ele próprio, realidade concreta. Nesse questionamento sobre o nosso “NOUS” (atividade intelectual da perceção profunda), tem perfeito cabimento, tendo em conta, os intentos de um saber Maçónico (Maçonaria, Maçonismo, Maçonologia Lusófila?) recuperar e integrar na atualidade, eventuais contributos do riquíssimo e complexo, pensamento filosófico e literário, de Leonardo Coimbra (Criacionismo), de Teixeira de Pascoaes e António Nobre (Saudosismo), Cunha Seixas (Pantiteísmo), Fernando Pessoa (Filosofia da Inquietação e do Saudosismo), Teófilo Braga (Positivismo e Tradicionalismo) e também alguns contributos sobre o “enigma português”, de Cunha Leão ou sobre a polissemia da SAUDADE de Pinharanda Gomes.

This article is from: