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# atualidade Conflito Institucional da Água

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Manuel Moras Engenheiro Civil

Licenciado em Engenharia Civil pela FEUP, Pósgraduado em Gestão de Serviços de Abastecimento de Água pela International Union of Local Autorities que decorreu na Holanda, Alemanha e Hungria, e atualmente aposentado.

De 2017 a 2021 foi Vogal Executivo do Conselho de Administração da Águas do Norte, S.A. De 2013 a 2017 presidiu ao Conselho de Administração da EMARVR – Água e Resíduos de Vila Real, E.M., S.A. De 2002 a 2013 foi Diretor de Infraestruturas da Empresa Águas de Trás-os-Montes e Alto Douro, S.A.

Entre 2000 e 2002 coordenou a Ação Integrada de Base Territorial do Douro – “ON DOURO”, no âmbito do III Quadro Comunitário de Apoio.

Entre 1998 e 2000 foi Administrador Delegado da Associação de Municípios da Terra Quente.

Entre 1990 e 2000 dirigiu o GAT da Terra Quente Transmontana.

Entre 1989 e 1990, ao serviço da CP, dirigiu a 2ª Área de Transportes.

Entre 1988 e 1989 coordenou o Gabinete de Apoio Empresarial do NERVIR.

Entre 1978 e 1988 exerceu atividade no Gabinete de Apoio Técnico do Vale do Douro Norte. É membro sénior da Ordem dos Engenheiros e de diversas instituições.

“O não desenvolvimento da cooperação entre sistemas, a contabilização e faturação dos valores mínimos e das águas pluviais levou ao agravar das já frágeis relações de confiança entre as entidades que gerem a “alta” e a “baixa”, bem como ao aumento da indesejável litigância entre entidades gestoras de um serviço público essencial tão relevante como é o abastecimento de água.”

Na sequência do convite que me foi dirigido pela APDA, tenho o gosto de partilhar um pouco da minha experiência profissional sobre os conflitos institucionais da água.

Aceite o desafio, cumpre esclarecer que as opiniões aqui expressas apenas refletem a minha experiência ao longo de cerca de 12 anos na gestão da, então recentemente criada,

Águas de Trás-os-Montes e Alto Douro, S.A. (ATMAD), seguidos de 3 anos na gestão de uma empresa da “baixa”, a Empresa Municipal de Águas e Resíduos de Vila Real, E.M., S.A. (EMARVR) e de cerca de 4 anos na gestão da Águas do Norte, S.A., já no período pós cisão que recriou a SIMDOURO, S.A. e Águas do Douro e Paiva, S.A.

Como todos os conflitos que nascem da dificuldade em chegar a acordo entre as partes, aqueles que emergem entre as entidades responsáveis pela gestão dos serviços de águas resultam, objetivamente, por um lado da incapacidade de uns para cumprimento dos contratos, e por outro da incompreensão de outros quanto à desadequação das cláusulas contratuais face à realidade do país e das regiões.

Refiro-me à grande disparidade entre a capacitação técnica e de gestão dos sistemas em “alta” criados nas últimas décadas, beneficiando de um quadro institucional e financeiro francamente favorável e os seus clientes, geralmente também acionistas minoritários, entidades em “baixa”, gestoras seculares de sistemas deficitários, herdeiros de infraestruturas obsoletas e tradicionalmente sem capacitação técnica e de gestão.

Muitos dos contratos de fornecimento e recolha estabelecidos entre “alta” e “baixa” não foram objeto de análise suficiente pelas entidades em “baixa”, sem capacidade crítica para o fazerem (algumas afirmam mesmo que tais contratos lhes foram impostos em benefício da região e da solidariedade intermunicipal), só se apercebendo da sua verdadeira dimensão quando os mesmos tiveram impacto na tesouraria do Município.

Dessa falta de esclarecimento a que, em minha opinião, tem tido maior impacto é a que resulta da aplicação da cláusula contratual que confere à “alta” o direito de debitar caudais mínimos, mesmo que estes não tenham sido fornecidos ou recolhidos.

De facto, para assegurar a viabilidade da concessão multimunicipal, como forma da garantir os proveitos das sociedades concessionárias, os contratos exigiam que as entidades em “baixa” consumissem, no caso do fornecimento de água, ou entregassem, no caso da recolha e tratamento de águas residuais, um valor mínimo garantido, sob pena de se não atingido, a concessionária debitava esse valor mínimo.

A título de exemplo, os valores mínimos constantes do contrato de concessão da Águas do Norte após cisão da Águas do Douro e Paiva e SIMDOURO, mereceram um comentário da ERSAR por considerar necessário clarificar o fundamento do cálculo dos valores mínimos. Na realidade não se compreende que sejam debitados mínimos a um determinado Município onde a entidade gestora em “alta” não dispõe de qualquer infraestrutura, não estando por isso criadas as condições para a prestação do serviço.

A este princípio dos valores mínimos acresce a garantia de exclusividade que confere ao concessionário uma dupla garantia e, embora mais pacífica, não deixa de ser politicamente contestada quando respeita a pequenos aglomerados abastecidos por origens locais da confiança dos consumidores. Esta dupla garantia é considerada excessiva, desproporcionada e geradora de conflitos que têm minado a confiança e cooperação entre as partes, sendo estes os aspetos que devem presidir nos contratos desta natureza.

De facto, é incompreensível, se não mesmo intolerável, que instituições públicas (“alta” e “baixa”), que gerem em regime de exclusividade territorial um serviço essencial e que estão obrigadas a uma gestão eficiente e racional dos recursos, ao invés de cooperarem para garantir um melhor e mais sustentável serviço, nas vertentes económica, ambiental e social, consumam recursos e meios na gestão destes conflitos, cujos custos, em última instância, irão ser suportados pelo cliente final.

Se dúvidas há quanto à dimensão do problema, aconselho a consulta dos relatórios e contas das empresas concessionárias dos serviços multimunicipais, principalmente as que operam em territórios de baixa densidade, para constatar que as centenas de milhões de euros que aguardam decisão judicial merecem por parte destas empresas e de quem as tutela, uma melhor atenção ao problema, face a algumas decisões que, na generalidade, tem sido favorável aos Municípios gestores da “baixa”.

Até se pode considerar que a faturação destes caudais mínimos, mesmo que não tenham sido pagos, é um bom ato de gestão, uma vez que são contabilizados como rendimentos nas contas das empresas e rendem juros de mora de cerca de 8 %, (o que é um bom negócio, pois as empesas em “alta” financiavam-se na banca a cerca de 2 % obtendo ganhos de cerca de 6 %). O problema é que, como se tem vindo a constatar pelas últimas decisões judicias, esta não é receita “certa”, mas o problema já recairá em administrações futuras.

Este também é um problema que as entidades gestoras da “baixa” não compreendem pois que aos seus utilizadores em débito são obrigados a cobrar taxas de juro em mora da ordem dos 4 %, enquanto pelo mesmo tipo de serviço público essencial, se faltarem, ser-lhe-ão cobrados juros de cerca de 8 %.

A este conflito acresce, nos serviços de recolha e tratamento de águas residuais, a contabilização dos caudais pluviais.

De facto os contratos de concessão que designarei de primeira geração (até 2010) eram omissos em relação a este fenómeno, ignorando completamente a sua existência. A comunidade científica e técnica reconhecia a existência de caudais de infiltração nas redes de recolha, através das juntas das tubagens e defeitos de construção, mas não as afluências indevidas por ligações de sistemas pluviais a redes de drenagem de águas residuais.

Mais uma vez o problema só tardiamente é detetado e gera conflitos quando a sua contabilização se reflete na tesouraria das entidades gestoras dos sistemas “em baixa”.

À reclamação das entidades em “baixa” para o valor excessivo do tratamento destes serviços que em épocas de precipitação, nalguns casos, mais que quadruplica, a entidade em “alta” refugia-se nos direitos que o contrato de concessão lhe confere e que não pode deixar de faturar os valores contabilizados nos pontos de recolha, geralmente nas ETAR.

Argumenta-se ainda que as infraestruturas da “alta” são recentes e não têm infiltrações, partindo do errado princípio que por serem novas, mesmo que implantadas em leito de cheia, estão imunes a infiltrações e que as da “baixa” são velhas, defeituosas e sujeitas a todas as infiltrações indevidas.

A “baixa” ainda argumenta que o contrato de concessão em vigor não confere ao concessionário da “alta” o direito de debitar caudais pluviais pois que, em todo o clausulado nada se refere quanto a esta contabilização e que dispõe, à entrada das ETAR, descarregadores de tempestades através dos quais pode e deve controlar estas afluência indevidas desviando-as para as linhas de água.

Toda esta argumentação só veio a ter acolhimento nos novos contratos de concessão na fase de agregação de diversos sistema multimunicipais ocorrida em 2015, onde, através de um anexo se define uma “Metodologia para a quantificação dos volumes de águas residuais afluentes às infraestruturas do sistema multimunicipal” procurando contabilizar as infiltrações também nos coletores da “alta”.

A este propósito, a pedido do concedente, o Município de Vila Real teve oportunidade de se pronunciar transmitindo que os volumes de infiltração eram ignorados pela “alta” mas suportados pela “baixa” e que independentemente da metodologia proposta, à falta de estudos e de melhor conhecimento do problema deveria ficar consignado nos contratos a necessidade de cooperação, entre os sistemas, para uma melhor avaliação futura destas ocorrências.

O não desenvolvimento da cooperação entre sistemas, a contabilização e faturação dos valores mínimos e das águas pluviais levou ao agravar das já frágeis relações de confiança entre as entidades que gerem a “alta” e a “baixa”, bem como ao aumento da indesejável litigância entre entidades gestoras de um serviço público essencial tão relevante como é o abastecimento de água.

Parece-me que um maior envolvimento do concedente (Governo) e regulador (ERSAR) na elaboração dos contratos de concessão poderá contribuir para que estes sejam mais justos e equilibrados nos direitos e garantias das partes, pois na realidade, estes são elaborados por uma das partes, a “alta”, limitando-se o concedente e acionista maioritário à sua aceitação e o regulador à emissão de parecer, nem sempre acolhido.

Da experiência na gestão da “baixa” e da necessidade de implementar um processo de controlo de perdas e redução de volumes não faturados resultou alguma conflitualidade com um reduzido número de instituições utilizadoras que habitualmente não pagavam o que consumiam. Curiosamente, os seus representantes enquanto consumidores domésticos cumpriam escrupulosamente as suas obrigações, reivindicando para as entidades que representavam a isenção do seu pagamento.

Na generalidade foi fácil explicar que todos tínhamos que pagar e quando necessário, poderiam recorrer ao sistema de apoio em vigor no Município.

Concluo pois esta minha análise sublinhando que para a eliminação da grande maioria (senão todos) os conflitos existentes neste nosso Cluster da Água, existem apenas dois ingredientes essenciais: bom senso e diálogo. Bom senso na definição e execução dos contratos e diálogo justo e sério na sua execução.

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