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Algumas medidas prioritárias do PENSAARP 2030 - uma visão da ERSAR

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Vera Eiró

Presidente do Conselho de Administração da ERSAR

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Professora UNL (Faculdade de Direito)

Doutorada em Direito Público e especialista em Direito Público e Regulação, é atualmente a Presidente do Conselho de Administração da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) e VicePresidente da WAREG – European Water Regulators. É professora auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, nas áreas de Direito Administrativo e Processual Administrativo, Regulação, Direito dos Contratos Públicos, arbitragem de Direito do Urbanismo e Público. Foi advogada da Linklaters LLP, responsável pela equipa de Direito Público e Regulatório, tendo centrado a sua prática em questões de direito público e regulatório referentes ao contencioso administrativo e à implementação, execução e financiamento de projetos e na aquisição de empresas em setores regulados ou ambientalmente relevantes.

“É fundamental que o Governo (e as autarquias locais) criem as condições para que, a nível político, a gestão da água esteja e se mantenha no topo da agenda política, garantindo unidade de esforços na prossecução dos objetivos para o setor.”

São muitas as medidas elencadas no antecipado Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030 (PENSAARP 2030) para Portugal.

O plano, que ainda aguarda aprovação e publicação, materializa-se em quatro objetivos estratégicos globais (eficácia, eficiência, sustentabilidade e valor acrescentado para a sociedade) que se desdobram em 20 objetivos específicos, estruturados em três níveis de importância relativa.

Não desmerecendo os objetivos menos graduados na sua importância, proponho nas linhas que se seguem, olhar, de forma concisa, para alguns objetivos prioritários do PENSAARP 2030 e detalhar como é que a ERSAR antevê o seu contributo para a respetiva implementação.

Contextualizando o exercício que proponho, relembro o propósito deste plano setorial, objetivo com o qual a ERSAR se alinha: o PENSAARP 2030 define uma abordagem integrada do

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setor da água e procura que os serviços a prestar sejam de excelência, para todos e com contas certas.

Introduzindo desde já o tema deste artigo, sublinho que o PENSAARP 2030 assenta num cenário atual favorável. Em grandes números de 2021 (publicados no RASARP de 2022), existem em Portugal Continental 116,733 km de redes de abastecimento de água que permitem o consumo diário de água na torneira de cerca de 184 litros por habitante. Chegámos à percentagem de 97% de alojamentos servidos por redes de abastecimento de água e de 86% dos lares servidos com redes de saneamento e ETARs e temos, atualmente, cerca de 1,9 milhões de m3 de águas residuais tratadas diariamente. Não pode, assim, deixar de sublinhar-se o desenvolvimento que os serviços de abastecimento de água e de gestão de águas residuais tiveram no nosso país nestas últimas décadas o que se traduz, para além do demais, em qualidade e quantidade de água nas nossas torneiras.

Outro ponto de partida prende-se com a atual (e futura) crise climática. A crise climática é, em rigor, reconduzida a uma crise de água e os riscos climáticos são, também, riscos relacionados com a água e o seu ciclo. Numa palavra, o setor da água terá um papel incontornável na adaptação e mitigação dos efeitos decorrentes das alterações climáticas, por um lado, e será também um dos setores que mais rapidamente irá sentir o impacto do aumento da temperatura, das ondas de calor, das chuvas torrenciais, da ausência de precipitação e dos períodos de seca prolongada, por outro.

Podia selecionar-se outros pontos de partida, mas estes dois (o de uma evolução favorável dos serviços nas últimas três décadas e o de um cenário de condições externas futuras desfavoráveis à evolução dos serviços) serão o mote para os pontos que se seguem.

1. Adaptação dos serviços às alterações climáticas: clima diferente, uma só água, uma gestão necessariamente melhor

Num contexto de escassez de água é necessário tomar opções (por vezes difíceis e impopulares) escolhendo usos de água em detrimento de outros para diminuição da procura. Estas opções são desde logo inevitáveis para proteger e garantir os usos essenciais da água (onde se inclui o consumo humano), pelo que a ERSAR ocupar-se-á, seguramente, em colaborar ativamente na ordenação dos usos da água em Portugal.

E esta ordenação de usos implica, de um ponto de vista macro e inter-setorial, (i) a gestão da água, a nível nacional, de forma consistente e coordenada, independentemente dos usos em causa e da quantidade de água a usar; (ii) a necessidade de medir cabalmente todos os usos de água e (iii) a coordenação das tarifas, que têm de cobrir os custos dos serviços, com um regime de taxas (TRH) que possa

Algumas medidas prioritárias do PENSAARP 2030 - uma visão da ERSAR refletir os custos de escassez e sinalizar a necessidade de poupança de água (quando necessário), numa lógica de circuito económico fechado.

Num cenário intercalado de chuvas torrenciais e de ausência de precipitação, a continuidade, qualidade e segurança dos serviços de abastecimento de água, nesta perspetiva de uma só água, terá, ainda e forçosamente, de assentar em critérios exigentes no que diz respeito a, pelo menos, dois pontos fundamentais: (i) a resiliência das infraestruturas e (ii) a sua eficiência.

Não é demais relembrar a este propósito que é fundamental o investimento na reabilitação de condutas. Atualmente, este investimento regista valores de 0,6 %/ano e 0,2 %/ano na baixa, nos serviços de abastecimento e de saneamento, respetivamente, constituindo um indicador com um dos piores resultados, em anos sucessivos.

Será, por isso, (ainda) mais premente garantir que as entidades que gerem os serviços têm dimensão adequada e uma estrutura técnica capaz de gerir, de implementar, e de operar infraestruturas que terão de ser mais resilientes, o que se alcança, também, através de economias de escala.

Ora, em Portugal Continental, as economias de escala foram em grande parte conseguidas nas entidades gestoras integradas no setor empresarial do Estado, não se tendo atingido uma situação similar para as entidades municipais, em baixa. O número de municípios de pequena dimensão que atualmente gere direta ou indiretamente os serviços em baixa é demasiado; e estes municípios não têm, na sua maioria, infraestruturas resilientes nem um grau de eficiência mínimo (trata-se de cerca de 169 entidades gestoras municipais que prestam serviço de abastecimento de água em baixa e 170 entidades gestoras municipais prestam serviço de saneamento de águas residuais em baixa).

O passado recente tem mostrado que as agregações entre municípios não se conseguem de um dia para o outro nem tão pouco é garantido que se consigam manter, sem os incentivos públicos adequados e sem laços de confiança entre municípios, muito além de um ou dois ciclos eleitorais.

Como caminho para a agregação e para alcançarmos a resiliência e eficiência necessárias importa, pelo menos, garantir e incentivar os municípios que têm mais de 20.000 habitantes (há pelo menos 34 municípios atualmente em gestão direta e com população acima dos 20.000 habitantes) a assumirem uma estrutura mais empresarial (se tornem pelo menos serviços municipalizados) para garantir o início do caminho das contas certas. Este início facilitará o caminho para a agregação municipal ou para, pelo menos, serem estabelecidos protocolos de partilha de recursos, mantendo a individualidade dos municípios.

A ERSAR trabalhará para promover este tipo de iniciativas colaborando na avaliação de viabilidade técnica, económica e social das agregações de escala, na elaboração de cadernos de sensibilização para decisores sobre economias de escala e sobre partilha de recursos entre entidades gestoras e

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no apoio à elaboração de estudos técnicos que avaliem este tipo de soluções.

2. “Melhoria da qualidade da água para abastecimento“ : água em quantidade e de qualidade

Água segura na torneira é um dos objetivos de desenvolvimento sustentável (o ODS6) e desde 2015 que Portugal apresenta valores médios no indicador de água segura de 99% de água segura nas torneiras ligadas aos sistemas de abastecimento público.

Este resultado alcançado é fruto do modelo implementado em Portugal, pela ERSAR e por outras entidades relevantes incluindo as entidades responsáveis pela saúde pública em Portugal (a Direção Geral da Saúde) e o IPAC (no que respeita a certificação dos laboratórios).

Nos próximos anos, será necessário garantir a implementação de um novo regime legal da qualidade da água (o Decreto-Lei n.º 69/2023, de 21 de agosto), mais exigente do que o anterior, que inclui o controlo de qualidade da água assente numa avaliação de risco (desde a origem até à torneira), alteração dos valores paramétricos de natureza analítica (e que garantem o controlo da qualidade da água) e de introdução de novas substâncias que devem ser controladas.

Associado a um novo enquadramento regulamentar da qualidade da água para consumo humano, encontraremos dificuldades acrescidas associadas à escassez de água nalgumas zonas do território nacional. É que a falta de quantidade de água pode também traduzir-se numa menor qualidade da água da origem o que, naturalmente, tornará mais difícil garantir que a água que chega às torneiras é segura e pode ser bebida em segurança.

Por isso, será também uma prioridade da regulação da ERSAR trabalhar com todas as entidades do setor com vista à manutenção do indicador da qualidade da água na torneira, o que implicará um esforço no controlo do cumprimento dos planos de controlo da qualidade da água (os PCQA) e da avaliação de risco, na realização de inspeções aos locais e às diferentes entidades gestoras e, também, na aplicação do regime de contraordenações em vigor.

A qualidade da água será, sem dúvida, mais um vetor que cabalmente justifica a partilha de recursos entre entidades gestoras, a diminuição do número de zonas de abastecimento a garantir a prestação de serviço e, em suma, a necessidade de evoluir de uma forma muito rápida na capacidade técnica de gestão de uma grande parte do território nacional (a mais rural e menos populosa).

A qualidade da água será, pois, mais uma razão para que as entidades gestoras tenham uma gestão mais dedicada aos serviços de água e garantam a mobilização específica de recursos mais especializados para esse efeito, o que depende, não só, mas também, de um apuramento mais correto dos gastos e rendimentos da prestação dos serviços.

3. “Contas certas“ : tarifas certas e consolidação da regulamentação tarifária nas entidades gestoras

Tudo o que se vem de dizer reconduz-nos a um ponto adicional: o da necessidade de garantir a consolidação tarifária nas entidades gestoras.

Esta consolidação deve ser robusta, mas não significa que todos os municípios tenham de ter o mesmo modelo de financiamento.

Aliás, o PENSAARP aponta soluções diferenciadoras que devem ser consideradas.

Por exemplo, para entidades de menor maturidade e/ou de zonas predominantemente rurais, o PENSAARP apresenta a possibilidade de os serviços serem financiados através de subsídios no que importem investimentos essenciais e estruturantes, que privilegiem, em especial, o reforço das entidades gestoras através do aumento de escala (em entidades cuja abrangência territorial permita essas economias de escala através de agregações em baixa) e do aumento do nível de especialização e de assessoria técnica.

Já quanto às entidades de maior maturidade, o PENSAARP aponta para o financiamento dos serviços exclusivamente através de tarifas. Por isso, e nestes casos, os apoios públicos devem ser utilizados como mecanismo de premiação de mérito, de incentivo a projetos de caráter inovador, privilegiando-se projetos que possam ser replicados posteriormente por outras entidades gestoras, por exemplo.

A ERSAR poderá contribuir, tanto num caso como no outro, facultando informação aos decisores da atribuição de financiamento que permita a seleção dos projetos que melhor contribuam para estes objetivos.

Mas naturalmente que, para implementação de um financiamento efetivamente robusto do setor, as contas têm de ser certas e as tarifas também. Por isso, não se antevê como avançar nesse sentido sem que a ERSAR se possa prevalecer de instrumentos mais eficazes de atuação, onde se incluirá, para além dos demais: (i) competência regulamentar em matéria tarifária; (ii) possibilidade de emissão de instruções vinculativas para garantir a sustentabilidade económica dos serviços decorrente da aplicação da Lei das Finanças Locais; (iii) aprovação de um regime sancionatório com instrumentos mais eficazes para garantir que as entidades gestoras adequam os seus comportamentos às regras existentes e (iv) atualização do regime de taxas da ERSAR para assegurar a equidade na aplicação das taxas a todos os regulados e que corresponde à contraprestação do serviço prestado pelo regulador.

4. “Alargamento do âmbito de serviço público no setor“ : vamos falar das águas pluviais?

Nas últimas décadas, foram realizados em Portugal importantes investimentos nos serviços de abastecimento de água e de gestão de águas residuais, que contribuíram determinantemente para a evolução do setor.

Contudo, não tem sido dada a mesma relevância ao serviço de gestão de águas pluviais. Este aspeto é

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relevante, desde logo, porque a adequada gestão de águas pluviais garante mais água em contexto de escassez e um maior controlo dos fenómenos de cheias e inundações em contexto de elevada pluviosidade, permitindo assim suavizar os fenómenos extremos.

O volume de águas pluviais escoado numa zona urbana é muito variável, pois depende do grau de impermeabilização dos solos e da pluviosidade, que pode ser imprevisível e muito variável ao longo do tempo. Por este motivo, e pensando sobretudo no caso de chuva torrencial, as águas pluviais podem prejudicar fortemente o desempenho dos sistemas unitários ou mistos, mas também dos sistemas separativos de águas residuais por via das afluências indevidas.

A lei em vigor permite a inclusão da gestão dos sistemas municipais de águas pluviais no âmbito da atividade das entidades gestoras de sistemas de águas residuais urbanas. A este propósito, as entidades titulares têm seguido diferentes abordagens que passam pela gestão conjunta dos serviços de saneamento de águas residuais urbanas e de águas pluviais (podendo o serviço ser prestado pelo próprio município, por empresas municipais ou concessionárias), ou pela manutenção da gestão de águas pluviais na sua esfera de atuação, sendo o serviço de saneamento de águas residuais prestado por outra entidade.

Na perspetiva da ERSAR, só uma visão conjunta e integrada do ciclo urbano da água poderá permitir uma gestão otimizada dos vários sistemas, potenciando sinergias e oferecendo uma resposta mais adequada aos desafios que se colocam a médio e longo prazo, num cenário de alterações climáticas em que a ocorrência de eventos extremos, como secas e chuvas torrenciais, é cada vez mais frequente.

Nesse sentido, e em linha com a proposta do PENSAARP 2030, o serviço de gestão de águas pluviais deve ser objeto de regulação, com o objetivo de promover a melhoria da eficiência e da eficácia deste serviço, de garantir a sua sustentabilidade financeira e de obter soluções de compromisso do ponto de vista operacional e económico. Apesar da necessidade de clarificação legislativa da intervenção da ERSAR na regulação do serviço de gestão de águas pluviais e de estar ainda em curso a aprovação do PENSAARP 2030, a ERSAR avançou, em 2021, com a inclusão de uma primeira proposta de avaliação do serviço de gestão de águas pluviais na revisão do sistema de avaliação da qualidade de serviço, que resultou na publicação da 4ª geração do mesmo, em dezembro de 2021.

Notas conclusivas possíveis para um plano que aguarda aprovação:

A existência de planos sucessivos para o setor da água tem sido um dos fatores críticos de sucesso para o setor da água em Portugal. O PENSAARP 2030 inclui muitas (e importantes) medidas transversais, essenciais para assegurar o sucesso dos serviços numa década exigente.

A ERSAR dispõe de instrumentos relevantes para apoiar a implementação de muitos dos objetivos do PENSAARP. Todavia, o contexto de que partimos e o contexto que nos espera reclamam a aprovação de

Algumas medidas prioritárias do PENSAARP 2030 - uma visão da ERSAR medidas legislativas de reforço das competências regulatórias da ERSAR e de incorporação, de forma transversal e intersectorial, de critérios de sustentabilidade nos instrumentos de articulação entre o Estado, as autarquias locais e o setor privado que promovam um uso sustentável da água.

É fundamental que o Governo (e as autarquias locais) criem as condições para que, a nível político, a gestão da água esteja e se mantenha no topo da agenda política, garantindo unidade de esforços na prossecução dos objetivos para o setor.

Como tem mesmo de ser.

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