Civilização

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CAMINHO À CIVILIZAÇÃO Uma Incursão ao Pensamento Queirosiano




N

ão poderia imaginar Jacinto o quanto a vida no campo poderia

ser positiva, se não fosse uma viagem para a sua propriedade rural na região serrana de Torges, longe do seu palácio em Lisboa, chamado de Jasmineiro, distante dos objetos dispostos sobre o seu gabinete: a máquina de escrever, o autocopistas, o telégrafo Morse, o telefone. Distante também do seu teatrofone, aparelho usado para a audição de óperas e peças teatrais, no conforto de sua casa. O conto Civilização foi escrito no final do século XIX por Eça de Queiroz, traduz os anseios das mudanças sociopolítico eminentes em seu país: vivenciadas nos tramites para a queda do reinado de D. Manuel II, para a ditadura de João Franco, e finalmente com tomada republicana de 5 de outubro de 1910.




Essa necessidade de mudança é registrada pela própria posição política do autor, enaltecendo um novo momento para Portugal, uma necessidade de renovação cultural, através da literatura, idealizada pela Geração de 70, movimento acadêmico, que propôs um novo “Norte” para os rumos do país, transformando a política e a literatura, introduzindo o Realismo, como vanguarda europeia. Exemplo destas tramitações entre a literatura e a política na época, temos a escolha do primeiro Presidente de Portugal: Teófilo Braga, advogado e escritor, um dos participantes da mesma Geração de Coimbra.




Essa oposição de Eça de Queiroz ao nacionalismo limitado ao campo literário, a sua defesa à necessidade de ação, bem como o seu estímulo a ela, estão patentes em A ilustre casa de Ramires (1897) de Gonçalo Ramires, o último descendente daquela família. Se, nessa obra, Eça pôs em destaque, por um lado, os costumes, as tradições, as fórmulas mentais, as características tradicionais de Portugal – do mesmo modo que fez em As cidades e as serras (FERNANDES, 2003, p. 3).



O conto Civilização foi publicado no Brasil em 1892 pelo Jornal Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. O texto narra com detalhes a vida de conforto e segurança de Jacinto, descrições exatas dos equipamentos e utensílios domésticos pertencentes às elites da época. Em certas passagens, estas tecnologias começam a dar os primeiros sinais de falha e insegurança, representada no momento em que Jacinto resolveu fazer uma demonstração de um dos seus aparelhos, para alguns visitantes. Ele havia gravado a voz do Conselheiro Pinto Porto emitindo a seguinte frase: - “Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século?”. Ao fazer a apresentação do aparelho ao seu pequeno público (formado por parentes do conselheiro) O fonógrafo não parava mais de repetir a mesma fala, repetindo a sentença por toda a noite, assustando os convidados, que “apavorados”, fugiram para fora do Jasmineiro, escondendo-se do eco horrendo deste fantasma tecnológico. Outra passagem que marca esta desconstrução está no momento da narrativa em que o serviçal queima as mão ao tocar na torneira para água aquecida. Estes dois fatos acabam revelando uma atmosfera de inadequação da vida de Jacinto em seu palácio.



Já na passagem em que o personagem se encontra em Torges, o conto começa a trazer eminentes referências aos textos de Virgílio, e da história de Roma, que a intelectualidade portuguesa da época tomava como modelo de civilização a ser seguida:

Virgílio, obviamente escolhido por suas Bucólicas, obra na qual pastores dialogam sobre vários aspectos da vida e vão evoluindo espiritualmente num cenário rústico marcado pelas belezas naturais, orienta o esquema narrativo desenvolvido por Eça em Civilização. As Bucólicas são compostas de dez partes, as Éclogas, e será, sobretudo, a quarta, a que melhor se adequa ao projeto eciano, desenvolvido através de Jacinto. Nessa parte da obra, a mais comentada pela crítica, Virgílio prevê a Idade de Ouro Latina, um período idílico para o Império Romano. (FAHL, 2009, p. 56).



Do conto, originou-se o romance A Cidades e as Serras, último livro escrito por Eça de Queirós, publicado em 1901, relata a mesma trajetória do personagem original, com maiores detalhes da vida de Jacinto, e da sua transformação psicológica. No Romance, a história ocorre em Paris e o campo é representado por Tormes. O nome Jacinto, vem da mitologia Grega, onde assim, traduz a vulnerabilidade do protagonista para a melancolia, uma personalidade marcada pela apatia. Porém o complexo de Jacinto é de natureza não patológico, e o drama do personagem se reflete em suas leituras. Jacinto sofre de abastança, como nos fala o narrador José Fernandes (amigo de Jacinto) que no texto demonstra um olhar de admiração, mas também uma certa elevação filosófica em relação ao retratado, poderia ser lido como uma referência ao Apolo do mesmo mito?



O comportamento de Jacinto parece carregar consigo o estado de espírito melancólico do fin du siécle, já anunciado na lenda que justifica o seu nome. Essa apatia geral tem sua origem na crise da “religião do progresso”. Tal estado de espírito é indicado no texto pelas preferências das leituras do protagonista, tanto Salomão, personagem bíblico, quanto Schopenhauer, filósofo alemão, são portadores do pessimismo experimentado pelo Príncipe da Grãventura (FAHL, 2009, p. 36).



A atmosfera inicial do conto traz como principais referências o discurso filosófico de Arthur Schopenhauer (1788-1860) e Friedrich Nietzsche (1844-1900), que retrata uma visão da decadência da civilização europeia que teria assumido feições definidas a partir da formação do cristianismo Platônico, que um dia evoluiria, modulando-se na cultura ocidental moderna. Quando, no início do conto, são citadas as leituras de Jacinto, temos: de Salomão a Schopenhauer. Os livros organizados de maneira enciclopédica, traziam o conhecimento humano acumulado em séculos. Nas estantes do Jasmineiro: “Vinte e cinco mil volumes, instalados em ébano, magnificamente revestidos de marroquim escarlate”.



O conto se conclui com a aceitação de uma vida mais simples, por parte de Jacinto, como solução para os anseios, Jacinto acaba se “curando” através do trabalho braçal no campo, do casamento com uma rapariga simples de Torges, com a formação de uma prole e com a escolha de novas leituras. Na conclusão ele pede ao amigo que vá ao seu palácio em Lisboa, para buscar lhe outros títulos complementares ao seu acervo, Indicando as publicações: A Vida de Buda, que nos apresenta uma biografia semelhante à do protagonista, onde temos Sidarta Gautama, que nasce príncipe e depois vai viver entre os mais pobres, em busca da espiritualidade.


E o livro O Príncipe da Grã-Ventura, que abandonou seu palácio e as riquezas que o deprimiam para cultuar uma vida mais simples. Jacinto também solicita ao amigo que traga um livro sobre a História da Grécia, certamente vem somar-se à história de Roma, que são dois marcos para a construção da tradição cultural do ocidente. E por fim as obras de São Francisco de Sales, que também abandonou sua vida de fartura para dedicar-se à vida religiosa. Com estas escolhas bibliográficas, Eça propunha, uma República portuguesa centrada na união, na coletividade de um povo, que sua existência se traduzisse em trabalho social, em contraposição ao espírito de aventura das grandes navegações que precederam a história lusitana. Desta forma, tomando como exemplo o pensamento: “Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (Calvino, 1981), percebemos que os códigos deixados por Eça de Queirós ainda podem ser desvendados, discutidos e analisados, o que se torna um verdadeiro estímulo para a sua leitura e (re)descoberta. O autor nos deixa uma completa reflexão dos opostos negativos de cidades superdesenvolvida e também faz críticas a um campo demasiadamente atrasado, bem como propõe um novo sentido urbano e social para Portugal.




REFERÊNCIAS Calvino, 1923-1985. Por que ler os clássicos?, São Paulo, Companhia das Letras, 1993. Durant, Will, 1885-1981. Os grandes filósofos - Schopenhauer - / Will Durant ; tradução de Maria Theresa Miranda. - Rio de Janeiro (RJ) : EDIOURO, [197-]. Fahl, Alana de Oliveira Freitas El. Singularidades narrativas: uma leitura dos contos de Eça de Queirós./ Alana de Oliveira Freitas El Fahl. – Salvador,Ba, 2009. Disponível em:<https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/11453/1/Tese%20Alana%20El%20Fahl.pdf >. Fernandes, Annie Gisele. AS RESPOSTAS DA INTELLIGENTSIA LUSITANA AO PORTUGAL DE FINS DE OITOCENTOS: O NACIONALISMO E O MESSIANISMO LITERÁRIOS. RevistaVia Atlântica. Universidade de São Paulo. 2003. Disponível em:<http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/49740>. Furlan, Stelio. Literatura portuguesa II : 3° período / Stélio Furlan. - Florianópolis, SC : UFSC, 2009. Queiros, Eça de, 1845-1900. A cidade e as serras/ Eça de Queiroz; prefácio de Nelson Palma Travassos.- São Paulo (SP): Clube do Livro, 1977. Queiros, Eça de, 1845-1900. Civilização e outros contos/ Eça de Queiroz: Editora: MODERNA.

Nietzsche, Friedrich Wilhelm,1844-1900. Assim falou Zaratustra /Friedrich Nietzche.- São Paulo (SP) :Martin Claret, 2002.

Schopenhauer, Arthur, 1788-1860. A Arte de escrever / Arthur Schopenhauer ; organizador, tradução, prefácio e notas de Pedro Süssekind. - Título Original: [Uber gelehrsamkeit und gelehrte.] Porto Alegre : L&PM, 2005.



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