ALMAS FERIDAS - Suzete Fraga

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COLECÇÃO SUI GENERIS

ALMAS FERIDAS


COLECÇÃO SUI GENERIS Obras colectivas: A BÍBLIA DOS PECADORES – Do Génesis ao Apocalipse O BEIJO DO VAMPIRO – Antologia de Contos Vampirescos VENDAVAL DE EMOÇÕES – Antologia de Poesia Lusófona NINGUÉM LEVA A MAL – Antologia de Estórias Carnavalescas SEXTA-FEIRA 13 – Antologia de Contos Assombrosos SALOIOS & CAIPIRAS – Contos, Causos, Lendas e Poesias TORRENTE DE PAIXÕES – Antologia de Poesia Lusófona Obras individuais: AMARGO AMARGAR – Isidro Sousa ALMAS FERIDAS – Suzete Fraga MAR EM MIM – Rosa Marques O PRANTO DO CISNE – Isidro Sousa DECIFRA-ME... OU DEVORO-TE – Guadalupe Navarro


SUZETE FRAGA

ALMAS FERIDAS

EDIÇÕES SUI GENERIS EDITORA EUEDITO PORTUGAL


Textos: © SUZETE FRAGA, 2016 EDIÇÕES SUI GENERIS http://letras-suigeneris.blogspot.pt www.facebook.com/letras.suigeneris letras.suigeneris@gmail.com Título: Almas Feridas Autor: Suzete Fraga Prefácio: Isidro Sousa Revisão e Paginação: Isidro Sousa Capa (design): Pedro Góis Editores: Paulo Lobo e Isidro Sousa 1ª Edição – Outubro 2016 ISBN: 978-989-8856-03-6 Depósito Legal: 417596/16 EDITORA EUEDITO geral@euedito.com www.euedito.com Impressão Print On Demand Liberis

A cópia ilegal viola os direitos dos autores. Os prejudicados somos todos nós. Direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, por quaisquer meios e em qualquer forma, sem a autorização prévia e escrita dos Editores ou Autora. Exceptua-se a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro.


Para dois astros na minha vida: JoĂŁo Filipe Lopes Veloso Sofia Verdelho Lopes



«Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.» FRIEDRICH NIETZSCHE


Esperança vã, sede de vingança, revolta, inércia, luto, amores e desamores... São sentimentos que nos ferem a alma. Quem ficará indiferente?


ACREDITA

Acredita, Tu és capaz. Vais dar dois passos para a frente E às vezes quatro para trás. Mas a vida são dois dias, Por isso, não desistas. Luta com todas as forças E vais ver que conquistas. (Refrão) Acordo de manhã, Para começar a rotina. A vida é curta e eu despacho-me E olho para cima... Para sentir aquela força, Mas Deus não está presente. Então saio porta fora, Seguindo apenas a minha mente. A força que eu demonstro, Por vezes, torna-se dor, Mas eu não baixo a cabeça, Tenho carisma de vencedor.


E eu vou sonhar Porque o mundo é meu. E eu vou voar Porque o limite é o céu. No papel só escrevo Aquilo que penso. E os quilos do que trago na alma São mil vezes o meu peso. Quantas vezes eu caio E o meu coração racha? Vou cair muitas vezes, Mas a cabeça não baixa. E o que eu escrevo aqui, Nesta pequena faixa, É a minha vida, Sem corretor nem borracha. Muitas vezes faço errado, Por vezes, corre mal, Mas ninguém é perfeito, Isto tudo é normal. Acredita, Tu és capaz. Vais dar dois passos para a frente E às vezes quatro para trás. Mas a vida são dois dias, Por isso, não desistas. Luta com todas as forças E vais ver que conquistas. (Refrão) (x2)


Continuo a falar, Quem não sabe que aprenda, Que quem é importante para nós Não morre, vira lenda. A vida faz lembrar Uma gigante colina E que a luta só acaba Quando se chega lá acima. Muitas vezes eu perco? Mas afundo a mágoa. Quantas vezes dou tudo E o tudo e não dá em nada? Quantas vezes chego a casa E sinto a casa fria? E aquilo que me aquece É o calor da família. Quantas vezes eu choro Nesta vida intensa? E apenas desabafo Nas páginas da sebenta. E agora só quero Encontrar a minha saída. E continuar a rimar Porque o sonho comanda a vida. Vou fazer o meu futuro, Da minha própria maneira, Fazendo o meu próprio caminho, Mesmo que o destino não queira.


A vida obriga-nos A dar parte de nós. E eu vou continuar a cantar Até perder a voz! Acredita, Tu és capaz. Vais dar dois passos para a frente E às vezes quatro para trás. Mas a vida são dois dias. Por isso, não desistas. Luta com todas as forças E vais ver que conquistas. (Refrão) (x2) Gabriel Sousa aka LeirBaG


ÍNDICE

Prefácio ............................................................................................................ 15 Até à última gota ............................................................................................ 25 Kayla: sede de vingança ................................................................................. 37 Sombras do passado ...................................................................................... 47 Tentação de Natal .......................................................................................... 59 Invisibilidade ................................................................................................... 69 O chamamento do cipreste .......................................................................... 77 Fora da redoma .............................................................................................. 85 Têxteis: a normalidade da anormalidade .................................................... 93 O preço da máscara ....................................................................................... 99 Toque de fel .................................................................................................. 103 Tortura silenciosa ......................................................................................... 123 Jogo solene .................................................................................................... 139 Década 80: os melhores anos ..................................................................... 145 Vidente, mas pouco ..................................................................................... 151 Outros textos ................................................................................................ 157 Para sempre ................................................................................................... 159 Mariposa ........................................................................................................ 161 Quando chegaste .......................................................................................... 162 Reencontro .................................................................................................... 164 Cegueira irreversível .................................................................................... 165 Avó ................................................................................................................. 167 Brisas de inspiração ..................................................................................... 168 13


Morte ou loucura ......................................................................................... 170 Fica... se puderes .......................................................................................... 173 Declaração de amor ..................................................................................... 174 Vieste! ............................................................................................................ 175 Destino .......................................................................................................... 178 Amor doce .................................................................................................... 179 Foi a altura certa para... ............................................................................... 181 Não ................................................................................................................. 182 Jura eterna ..................................................................................................... 183 Carta de despedida ....................................................................................... 185 Eternamente mãe ......................................................................................... 187 Bom senso ou cobardia? ............................................................................. 189 Agradecimentos ............................................................................................ 191 A autora ......................................................................................................... 193 Edições Sui Generis ..................................................................................... 197

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PREFÁCIO

Uma discreta abordagem através das redes sociais, felicitando-me pela narrativa que eu havia publicado numa obra colectiva de outra editora, na Primavera de 2015, desencadeou uma cumplicidade literária que se consolidaria nos meses subsequentes. A interlocutora interessava-se pela minha obra e eu vislumbrei, rapidamente, que ela não era uma simples leitora assaz curiosa: alimentava, de igual modo, sonhos literários. Encontrámo-nos, meses volvidos, enquanto autores participantes, no mesmo concurso literário e o texto de sua autoria atraiu-me. Desde aí, os meus olhos não mais se desviaram do árduo percurso literário que, ela própria, viria a trilhar. Essa mulher é a autora deste Almas Feridas que se acha nas vossas mãos: Suzete Fraga. No entanto, a luta para singrar no reino das letras por espinhos se modelou. Embora já tivesse vencido o concurso promovido pela Rede Concelhia de Bibliotecas Escolares da Póvoa de Lanhoso no ano lectivo 2011/2012, em que lhe foi atribuído o Prémio do Escalão Público em Geral para maiores de 16 anos, o texto Tortura Silenciosa, que Suzete Fraga apresentou no certame de 2015, deu nas vistas; surpreendeu-me pela positiva e, em simultâneo, pela negativa. Narrava uma estória arrepiante, espantosa, bem ritmada, de uma profundidade incomensurável, que se lia de um fôlego, sem parar. O enredo envolvente transportava para vários cenários, fazendo-nos vibrar e sofrer com a personagem que protagonizava um drama bem real, terrivelmente actual: a violência doméstica e o sentimento de posse. Um tema corrente, pungente, chocante, com um desenlace inesperado, cuja estória relatada, agora compilada neste livro, 15


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alenta, infelizmente, para o ânimo daqueles que dizem que o amor é um passaporte para a loucura, tornando praticamente psicopatas aqueles que amam – ou acham que amam. Contudo, dela se extrai uma lição de vida: temos de cercear impiedosamente os tentáculos destruidores do amor, entre eles todas as formas de violência justificadas em nome ou por causa desse tão nobre sentimento. Embora o conto se apresentasse bem estruturado, bem trabalhado pela capacidade narrativa da autora, com tramas bem encadeadas, cujas peripécias se sucediam até ao clímax, o texto achava-se, na minha perspectiva, um tanto maltratado. Um desleixo que apontei em conversa privada e a própria autora reconheceria uma certa dificuldade nalguns pontos da escrita. Não obstante esse pormenor que poderia ser ultrapassado, mais cedo ou mais tarde, senti-me perante um diamante literário (quase em bruto)... uma autora a ter em conta. A pedra preciosa só precisava ser lapidada. Deixei, nos comentários ao texto, estas palavras: «Os primeiros passos em direcção ao sonho começam bem. Continue a escrever! Continue a aperfeiçoar o que escreveu! Nunca se aborreça de reler os seus textos quantas vezes forem necessárias! Escrever para ser lido requer muito trabalho e você tem capacidade para voar longe.» Críticas negativas, todavia construtivas, que lhe dirigia despertaram-na para a necessidade de adoptar cuidados específicos. E ela logo me pediria para rever textos destinados a outros projectos. Eu revia e continuava a criticar e a sugerir e a alertar. E ela sempre atenta... ansiando tornar o próximo texto menos imperfeito. Nunca questionou a revisão num texto. Ela própria comparava o trabalho que me enviara com o ficheiro (revisto) que lhe era devolvido, buscando identificar pontos de melhoria. Esse profundo interesse surpreendia-me mais ainda, desconcertava-me de um modo positivo; não é comum um autor analisar o trabalho do revisor – geralmente, perguntam o que o revisor fez, como fez, onde fez. Mas ela não. Ela pesquisava por iniciativa própria, estudava minuciosamente o texto revisto, procurando compreender o que deveria melhorar. Um esforço verdadeiramente louvável. Em Agosto de 2015, tornara-se já a minha confidente num universo literário bastante agreste em que todos se conhecem virtualmente mas, 16


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na realidade, quase ninguém sabe quem é quem. Foi a primeira pessoa a ter conhecimento da minha intenção em organizar uma obra colectiva. Quando tornei público o regulamento de A Bíblia dos Pecadores, antologia inaugural da Colecção Sui Generis, ela já era conhecedora da essência desse projecto, no qual participaria com um drama marcante, inspirado no relacionamento dos bíblicos Caim e Abel: Sombras do Passado; assim como enviaria, logo após, Tentação de Natal, um texto mais descontraído adentrando (um pouco) no campo da sensualidade, para a minha segunda obra colectiva. Se Tortura Silenciosa, em que muitas mulheres se revêem na ilusão associada à bondade e ao amor que modificou a vida da protagonista, denuncia o flagelo da violência doméstica, os temas predominantes nestas duas últimas narrativas – igualmente reunidas neste livro – envolvem, respectivamente, relações fraternas assaz perigosas (entre irmãos conflituosos) e o drama do desemprego. À medida que estas (e outras) estórias – todas elas vivas, intensas, reais, plenas de humanidade – chegavam às minhas mãos, verificava que eram contos coesos, estruturados, com personagens planas e modeladas, bem caracterizadas, entrando-se facilmente nas narrativas e nos temas escolhidos, visionando-se cada cena, cada emoção, como se de filmes se tratassem. Apresentando sempre uma escrita (cada vez mais) escorreita e fluida, as tramas narrativas entremeadas de excelentes momentos descritivos destilam uma pluralidade de emoções, de esperanças e, em maior número, de frustrações (caso de Tortura Silenciosa), como resultado de uma violência doméstica execrável e devoradora de seres e de vontades, cujos desenlaces nem sempre são os esperados; mas que prendem o leitor até à última linha. Se eu notava progressos de texto para texto, a autora jamais me questionou sobre a qualidade dos mesmos. Após enviá-los, limitava-se a aguardar uma opinião. Um simples elogio, por mínimo que fosse. Embora a evolução fosse notória, nunca elogiei (até aí) qualquer texto. Receava que ela se acomodasse ao patamar que já atingira – e a caminhada tinha de prosseguir nesse bom ritmo. Justamente por isso, ao invés de lhe transmitir elogios, espicaçava-a, apontando imperfeições a corrigir, arestas a limar, novas dicas a explorar e outros pormenores de suma impor17


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tância que passam imensas vezes despercebidos e requerem atenção redobrada. Como, por exemplo, a questão dos tempos verbais. E ela assimilou rapidamente que: não deve haver oscilações na mesma frase, ou parágrafo; misturar presente e passado requer um domínio absoluto na escrita; não pode deixar pontas soltas numa narrativa bem desenvolvida e todos os factos têm de ficar explicados, por mais suspense que se possa empregar. Mostrava-se atenta às sugestões, aos pormenores mais ínfimos, ansiosa por continuar a enriquecer a bagagem do conhecimento. E a mesma ansiedade sempre presente... uma ansiedade muda, esperando somente um pequenino elogio. Mas a minha opinião, embora de um modo subtil, era favorável e a crítica, ainda que nalgumas vezes negativa, deveras construtiva. Recusava elogiá-la por opção, porque desagradarme-ia vê-la adormecer à sombra da bananeira – sim, receava que tal sucedesse. Num curto espaço de tempo, evoluíra a um ritmo alucinante e as suas asas poderiam voar ainda mais longe. Como, de facto, voaram! Eu sentia que conseguiria mais; muito mais. E conseguiu! Não atingiu a perfeição – nem mentes brilhantes galardoadas com o Prémio Nobel conseguem ser perfeitas. Não obstante, chegou ao ponto de vencer, em Novembro de 2015, um (novo) concurso literário; quiçá mais ambicioso e mais concorrido, em relação ao anterior; desta vez, com uma narrativa bem amadurecida, sagrando-se vencedora, por mérito próprio. Antes de a entidade promotora divulgar os resultados, eu tinha a convicção de que Até à Última Gota... se não vencesse, ficaria, no mínimo, entre os principais classificados. Classificou-se em primeiro lugar. Uma vitória justa. Merecidíssima! De uma autora humilde e dedicada, que tanto penou para atingir esse feito. Só aí me pronunciei – finalmente! – sobre o talento inquestionável de Suzete Fraga. E ela compreendeu o meu silêncio durante toda a sua trajectória, a ausência de elogios enquanto progredia e que estes nem sempre se revelam favoráveis aos melhoramentos. Por vezes, uma crítica negativa, desde que construtiva, é mais benéfica, contribuindo de modo positivo para a nossa felicidade. O conto Até à Última Gota, incluído igualmente neste livro, é outro drama fascinante, deveras viciante, que afecta inúmeras famílias e faz verter uma lágrima rebelde durante a leitura; arrebata da primeira à últi18


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ma linha e devora-se, num misto de raiva e encantamento, de um fôlego. Descreve outra situação recorrente que podia ser banal, porque envolvendo os malefícios do álcool, tanto na ficção como na realidade, há imensas estórias comuns. No entanto, graças ao estilo realista da autora, que enfatiza o aspecto humano e sofredor da protagonista, com nuances de revolta e coragem, usando o diário dentro da narrativa, o texto enriqueceu sobremaneira, relembrando que a escrita é muito mais do que escrever – pode ser também uma viagem ao mais profundo de cada um de nós, uma descoberta pessoal – e resultando numa ficção com muitas verdades lá incluídas, com uma clareza e fluência de ideias que sensibiliza o comum dos mortais. Após triunfar no concurso de 2015, as narrativas sucedem-se. Cada vez mais estimulantes, ousadas, vibrantes. A própria autora, confrontada com o peso da responsabilidade, manteve a preocupação por uma evolução contínua, cujo trabalho tornou a ser reconhecido, noutro certame regional, no início deste ano. E todos os seus textos, reunidos neste volume, passaram-me pelas mãos. Conheço-os como se fossem meus. Revejo-me na maioria deles. Kayla: Sede de Vingança, só para citar um exemplo, concebido para a antologia O Beijo do Vampiro, tem um sabor especial: poderia ter sido escrito por mim. Narra a odisseia de uma vampira sedenta de vingança, escravizada antes de ter sido transformada, com mais de duzentos anos de idade, fazendo que o enredo viaje pelos séculos; a minuciosa pesquisa histórica (escravatura, por exemplo) enriquece a trama, confere-lhe maior credibilidade. Este texto poderia ter sido escrito por mim, todavia, não é o caso. Redigiu-o uma alma sensível e maravilhosa em quem muito me revejo que, independentemente do meio geográfico (bastante limitado) em que se encontra inserida e das adversidades (não poucas) que têm vandalizado (de modo assaz feroz) a sua trajectória literária, muito tem pugnado pela concretização do sonho. À semelhança das suas personagens, a autora de Almas Feridas é uma alma igualmente ferida, num (pequeno) universo editorial que se deseja verdadeiro. Mais honesto. E solidário. Não absorveu influências nefastas nem se permitiu corromper por poderes (menos transparentes) instituídos, tão-pouco se deslumbrou com presentes envenenados ou se deixou 19


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beliscar por situações que raiam o absurdo. A sua integridade, mesmo perante falsidades e enxurradas de ácido contra si disparadas, permaneceu inviolável; as convicções inabaláveis. Mantendo-se autêntica, igual a si mesma e fiel aos seus valores, prefere rejeitar um troféu literário conquistado a duras penas para conservar a dignidade. Abdicar do prémio que ganhara em 2015 (edição gratuita de um livro) revelou-se um acto de coragem. Mas também um grito de revolta. Um grito de liberdade. No entanto, o sonho não esmoreceu. Pelo contrário! As adversidades reforçam desejos. Mesmo remando contra ventos e marés, enfrentando raios e trovões, fazendo das tripas coração, a autora jamais desistiria do seu sonho. Quando resolveu concretizá-lo recorrendo aos próprios meios, eu assumi, com um especial prazer, o apoio incondicional à realização deste sonho há muito sonhado cuja gestação foi verdadeiramente sofrida. A edição de Almas Feridas tornou-se para mim, enquanto editor e amigo solidário, uma questão de honra. Porque a luta é igualmente minha e considero o livro, embora não me pertença, outro dos meus filhos. E ei-lo agora nas vossas mãos! Almas Feridas. O primeiro parto literário de uma autora resiliente cuja vida sempre viveu em meios menos privilegiados, onde impera a escassez de oportunidades. Sendo, também, uma das primeiras obras individuais da Sui Generis, criada no meio de uma forte tempestade, bem turbulenta, que Suzete Fraga ajudou a enfrentar. Almas Feridas é editado na mesma fornada de Amargo Amargar, obra que marca, de modo similar, a realização de outro sonho: da pessoa que redige estas linhas. Dois percursos paralelos, duas lutas sangrentas, duas quimeras realidade tornadas. De mãos dadas. Em simultâneo! Isso demonstra que, havendo força de vontade, tudo se consegue. Basta querer! Haja luta e perseverança! Nunca se desista do objectivo, por mais sombrio que se apresente o horizonte. Há que transformar sonhos em realidade! Porque a esperança é a última que morre – e parar é sinónimo de morrer. Este livro, cujo título reflecte magistralmente os conteúdos, reúne dezenas de textos que a autora escreveu, em duas partes: na primeira, contos destinados a concursos literários e obras colectivas de várias editoras; na segunda, pequenas estórias, autênticos exercícios de literatura, redigidas para campeonatos de escrita criativa em que a autora participou. 20


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Todas as narrativas são criativas e as abordagens geniais, dotadas de veracidade, um realismo que arrepia. Encantam, prendem, deslumbram, emocionam. Envolvem o leitor em aprazíveis e elegantes teias de aranha das quais só se liberta após ter digerido as derradeiras palavras. Tramas marcantes, profundas, diversificadas, que confirmam o real talento e versatilidade de quem as concebeu – um talento enorme, abundante! «São temas cuja fonte é inesgotável, infelizmente», diz a autora. «Não requer pesquisas. Na família, na casa ao lado, na rua mais abaixo, na televisão... basta piscar um olho para surgir uma história. E, claro, nas minhas histórias, posso fazer justiça ou dar o final feliz que raramente acontece na vida real. Por outro lado, tenho uma leve esperança de poder ser uma influência positiva para quem passa por estes dramas.» É um facto: Suzete Fraga possui uma capacidade imensa de expressar emoções através da escrita, de expor assuntos perigosos de uma forma assaz deliciosa, de trabalhar qualquer tema com a beleza das suas palavras. Cada estória é como um filho e todas elas são dignas de serem lidas, quer pelo estilo único e cativante, quer pelos conflitos nos enredos, com temas para temer a vida! Poderia analisar outras narrativas além das que citei, cuja principal característica é sempre a dramaticidade – porque todas as pessoas sofrem; todas as almas são feridas. O Chamamento do Cipreste (texto recheado de superstições envolvendo o sobrenatural) ou Têxteis: A Normalidade da Anormalidade (aventura frenética no local de trabalho, de enlouquecer qualquer ser humano), por exemplo. Privilegiei dar relevo ao percurso nada facilitado da autora, para conseguir furar (também) a muralha de humildade que lhe bafeja o espelho, cujo êxito agradece inclusive às pedras do seu caminho («Por cada calhau que me aparece à frente, surgem sempre dois ou três anjos para o remover»), reservando as emoções ofertadas por cada “devaneio literário” às vossas leituras. Que serão, seguramente, prazenteiras. Isidro Sousa

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Ilustração: Linana 23



ATÉ À ÚLTIMA GOTA

– Abençoe-me, padre, que eu pequei. – Há quanto tempo não te confessas, minha filha? – Não sei... já lá vai algum tempo desde a última vez. – Diz-me, o que te traz por cá? Com o coração apertado, Maria Benedita lá foi desabafando o motivo para tamanho desalento: – Estou cansada... estou mesmo muito cansada. Acho que não sou capaz de renovar os votos no ano que vem, sabe? – O matrimónio requer trabalho, esforço e dedicação contínua. Conseguiste até agora e, após tantos anos, queres deitar tudo a perder? Por cansaço? – É o raio da consulta. Desculpe! É a consulta... já sei o que o médico vai dizer. Não suportarei tal humilhação. Olhando para a quantidade de fiéis à espera da confissão e, apesar de o assunto carecer uma urbanidade especial, o padre optou por abreviar a confissão. Mais rápido que um furacão, arrepiou caminho e recomendou-lhe: – Reza três ave-marias a Nossa Senhora, que ela te ilumine e te dê forças. Vais ver que encontras a solução. Tem fé, minha filha! Não se sabia se por defeito ou qualidade, o certo é que o padre Barnabé era assim mesmo: escravo do relógio, detentor de uma pontualidade cirúrgica. Mais tarde, ficaria a remoer sobre o assunto e haveria de lhe dar a atenção que merecia mas, por agora, era imperativo abreviar as confissões; um compromisso na paróquia vizinha (um funeral) obrigava25


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o a isso. Despachada num abrir e fechar de olhos, Maria Benedita assim fez: recolheu-se a um canto e, depois da oração, canalizou as suas aflições para a imagem de Nossa Senhora das Neves. Se outrora a Senhora respondeu, através de sonhos, que destino o casal romano deveria dar à sua fortuna, podia ser que também a visitasse em sonhos, indicando-lhe um rumo para a sua vida. De olhos postos na Virgem, foi desfolhando, mentalmente, a sua desgraça. Em tempos, considerara-se um chaparro. Um chaparro frondoso, imune às adversidades climatéricas e temporais. Fora uma dessas árvores que proliferavam na planície imensa, sob o calor alentejano. Fora um sobreiro produtivo: dois filhos, o tesouro mais precioso que acalentava a alma em dias de tempestade. Porém, a tempestade tinha vindo a ganhar força e terreno, desde há muito tempo. Formara uma gigantesca bola de neve: uma barreira que a separava do marido – e se havia como derrotar este adamastor, desconhecia a fórmula para o trespassar, para o ferir de morte e salvar o seu casamento. Recordou o juramento «Na saúde e na doença, até que a morte nos separe...» e abanou a cabeça negativamente. Fora um ato tresloucado – a jura de amor eterno. Como manter a palavra se ele tinha outro amor? Um amor poderoso, sedutor, atraente, sublimemente viciante? Se ao menos desistisse da consulta, nem que fosse ao último minuto. Se admitisse a sua paixão por ela, aquela destruidora de lares! Se ela não deturpasse a realidade! Se ela não provocasse paranóia e delírios... Maldita bebida! Essa parceria nefasta devorava corações, sugava vidas, sonhos, esperanças, desejos, vontades... Reduzira um imponente sobreiro a uma mera papoila. Era assim que Maria Benedita se sentia: uma papoila fustigada pelo vento, perdida e indefesa no meio de uma seara ardida. O ópio que tinha para oferecer nunca fizera, nem faria, frente a tal oponente. Faria sentido renovar os votos matrimoniais? Desejaria continuar a brincar ao faz de conta? «Faz de conta que és um alambique, faz de conta que destilas os elementos nocivos, faz de conta que o cheiro a mosto nos lençóis é um perfume caríssimo e inebriante, faz de conta que os 26


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impropérios que te são dirigidos não passam de lamúrias do vento, faz de conta que tens em casa uma raridade de valor incalculável quando, na verdade, não passa duma zurrapa reles!» Fazer de conta também cansava. Cansava fingir que era feliz, cansava calar, cansava ser constantemente magoada, cansava quando as próprias crias sofriam com a obsessão alcoólica. Cansava não ter dinheiro para comida ou material escolar porque as tascas e tabernas tinham prioridade, tiveram sempre prioridade. Sentia-se extenuada de tanto cansaço. Atingira o limite das suas forças e a sua paciência extinguira-se. Aquela consulta seria a última gota. Implorou baixinho: «Não vás... Não queiras saber o resultado dos exames, confia em mim...» Junto ao Alqueva, admirava os milhares de pontinhos brancos que sarapintavam o céu. De uma beleza infinita, a reserva “Dark Sky” sempre fora o seu lugar de eleição para meditar. Uma estrela cadente riscou o célio enegrecido. Seria um sinal? «Corre e não olhes para trás!» Seria isso? Amanhecera mais cedo. Porque haveria o dia de começar mais cedo? Qual era a pressa? Seria ânsia do abismo engoli-la de uma vez por todas? A muito custo, camuflou o mal-estar que estava a sentir; era alvo de uma atenção que não desejava: semblantes acusadores formavam um pelotão de fuzilamento à espera da ordem para disparar, pareciam hienas com a dentição em riste. Ignorou o melhor que pôde, recriminando-se, simultaneamente, pela escolha infeliz dos autocarros da “Rodoviária do Alentejo”, um táxi ter-lhe-ia poupado uma boa dose de constrangimento. O percurso de meia hora, mais coisa menos coisa, permitiu-lhe saborear o seu Alentejo. Quiçá, pela última vez. – Chegámos – avisou Constâncio, arrancando-a da sua despedida secreta, à força. Inspirou fundo para ganhar coragem e deu entrada no hospital de Évora, para a malfadada consulta. «É agora!» Foram atendidos por uma jovem muito simpática, parecia ter sido escolhida a dedo para o cargo. Discreta e de uma sensibilidade para lá do inimaginável, apontou-lhes a pequena sala de espera enquanto entrava 27


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num dos gabinetes. – O Sr. Doutor já vem atendê-los. Aguardem, por favor. Impaciente, Constâncio rompia a sala de tanto andar de um lado para o outro. Sem um pingo de compaixão, apresentava-se visivelmente satisfeito, sádico até. Felizmente, minutos depois, o médico saiu do gabinete e mandou-os entrar. Indicou-lhes o caminho, num gesto cortês. Sobre a secretária repousava o envelope com os exames, os exames que Constâncio reclamava há imensos anos. Cravou os olhos no casal perscrutando as suas expressões faciais, deixou escapar um trejeito com a cabeça, em modo de reprovação, e, após um tortuoso compasso de espera, perguntou: – Têm noção do que estão prestes a descobrir? Querem mesmo avançar com isto? Ambos acenaram positivamente. – Muito bem. Comprove com os seus próprios olhos, Sr. Constâncio. A sua paternidade confirma-se. Parabéns! O veredito foi como um soco na boca do estômago, ele estava convicto de que Pedro e Diana não eram seus filhos, vira-os sempre como bastardos. Tratara-os abaixo de cães, dava muito jeito na hora de sacudir as responsabilidades em detrimento da bebida. Aturdido com a revelação, insistiu numa explicação detalhada e trocada por miúdos. A esposa – mais vermelha do que um tomate maduro – pediu licença para se ausentar, uma vez que já cumprira a sua parte, não fazia mais falta ali. Tinha mesmo de sair mais cedo para marcar uma outra consulta na dermatologista e fazer umas compritas na cidade. Combinou apenas a hora e o local de paragem do autocarro para não se desencontrarem. Imbuída por um sentimento de revolta e algum amor-próprio – o que restou –, telefonou aos filhos a confirmar o plano. Sujeitar-se à confirmação de paternidade foi a última gota. Entrou no primeiro táxi que encontrou e pediu ao taxista que seguisse o mais rapidamente possível para a central das camionetas. À sua espera, já se encontravam os filhos com uma pequena mala de viagem para cada um deles. Preferiam um rumo sem destino a uma vida de cão, dentro da própria casa. Abandonaram aquilo que devia ter sido um lar. Para trás, 28


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ficou a maior parte dos pertences, coisa de pouco préstimo, e um diário – o diário de Maria Benedita.

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Constâncio calcorreava a cidade, de café em café, golada atrás de golada. Quando o nível de bebida superasse a quantidade de sangue, resignar-se-ia a fazer a viagem de regresso a casa. «Aquela vaca vai ver com quantos paus se faz uma canoa. Vai ouvir o dobro do que eu ouvi do médico. Aquele saloio... nem mulher deve ter! Se tivesse, saberia que elas são umas oferecidas. Tudo lhes serve, desde que se mexa. Grande azémola! Já se acha muito macho por ter um canudo! Mais uma palavra e era eu que lho enfiava pelas goelas abaixo...» A ira avolumava-se a cada copo. A ira e a coragem. «Enfiar-lhe o cano da espingarda nas fuças ainda vai ser pouco, a badalhoca!» A planície já se encontrava envolta num manto crepuscular quando Constâncio, num estado deplorável, alcançou a soleira da porta. Um silêncio sepulcral reinava na casa. Não havia uma única luz acesa. Do jantar, nem sinal. Apenas uma espécie de livro em cima da mesa. «Vai um dia à cidade e já me vem com mariquices! O que andas a tramar, ordinária?» Folheou o diário, atabalhoadamente, para se inteirar do conteúdo. Reparou nas datas: umas de há uns vinte anos, outras mais recentes e, a última, do dia anterior. Pôs-se a ler algumas.

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Reguengos de Monsaraz, 13 de novembro de 1991 Querido diário: Não imaginas como lamento ter de usar estas tuas páginas imacula29


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das, manchá-las com o crude do meu desalento. É nas horas mortas, enquanto admiro a quietude estrelar, que a necessidade de desabafar grita mais alto. As palavras tornam-se escassas para exprimir a tristeza que me assola. Hoje, após três meses de casamento, vi-me obrigada a defender o rosto das mãos do meu marido. O prato quebrado ainda jaz no chão da cozinha. Dói! Dói a leviandade com que investiu sobre mim, por uma insignificância. Tudo serve de pretexto para armar confusão; bem sei que à noite não se pode falar com ele, nem tentar chamá-lo à razão. É casmurro demais para reconhecer o estado de embriaguez que sempre o acompanha até casa. Faço-me de rogada para o acompanhar, talvez assim seja mais comedido com a bebida, mas a resposta é sempre a mesma: «O teu lugar é na cozinha e não no meio dos homens.» Parece que beber que nem uma esponja é coisa de macho, confere-lhe a masculinidade imprescindível para ficar bem-visto junto dos comparsas. Como desejo ficar de esperanças! Um filho fá-lo-á correr para casa. Poderá emendar-se por um herdeiro. Quem não quer ser o orgulho do filho? Voltará a ser o homem que eu escolhi... o homem que eu vi mal os nossos olhares colidiram pela primeira vez. Eu sei que sim.

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Reguengos de Monsaraz, 28 de maio de 1994 Querido diário: São três da manhã; estou sozinha com duas crianças de oito meses. Não consigo baixar a febre dos gémeos e o dinheiro que tinha guardado na lata do café sumiu. Vou mudando as toalhas, embebidas em água fresca, à espera que o pai se digne a aparecer. Tanto lhe recomendei! Os bebés precisam de leite e a embalagem do “Cerelac” está a dar as últimas. Maldito! Se entram em convulsão, como da última vez, estou perdida! 30


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Reguengos de Monsaraz, 9 de janeiro de 1999 Querido diário: Dizem que não há nada melhor do que chegar ao fundo do poço. Como? Este poço não tem fundo! Sinto-me em queda livre há tanto tempo que já devo ter atravessado o centro da Terra. A vida insiste numa aprendizagem amarga e rude. Odeio o seu sentido de humor: mordaz, quase maquiavélico. A vida, incomodada com a minha ingenuidade, rasgou-me a vista para o mundo. Quando confundi um coma alcoólico com um desmaio, ela riu-se de mim. Percebi o quão idiota sou. Uma idiota chapada por ter chamado a ambulância a meio da noite, por ter arrancado os meninos da cama e seguido para o hospital, em busca de notícias, temendo o pior. Afinal, um comprimido mágico e estava pronto para outra. A sério?! Pergunto-me: por quanto tempo mais serei a personagem principal desta comédia ridícula? Ser o bobo da corte é algo muito desagradável. Como vou explicar tamanho aparato a estes vizinhos metediços? Tenho medo da coisa que se está a formar dentro de mim. A haver uma repetição da cena... nem que ele morra, acho que não mexo um músculo que seja. É pena, porque eu já fui melhor pessoa do que isto.

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Reguengos de Monsaraz, 13 de dezembro de 2001 Querido diário: Hoje devia ter ido à festinha de Natal dos miúdos. Prometi-lhes! Co31


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mo era à noite, implorei-lhe que, pelo menos uma vez, se abstivesse de beber. De nada serviu. Na hora de sair, podre de bêbado, sem forças para se manter em pé, proibiu-me de pôr os pés fora da porta. Apelei ao bom senso, sem querer entrar em conflitos, mantendo a minha determinação. Não sei onde foi buscar equilíbrio... O certo é que deitou as mãos à caçadeira, carregou-a e fez pontaria à minha cabeça. Estive tão perto de atirar a toalha ao chão! Morrer naquele momento era sinónimo de paraíso. Preferia a morte antecipada a uma repetição dela em vida – porque eu morro todos os dias e todos os dias sou obrigada a renascer. Depois, pensei nas crianças. Que cenário iriam encontrar após a festa? Quem cuidaria delas... isto, se não fossem as próximas a levar chumbo? Engoli a minha determinação com repúdio e vesti, mais uma vez, o fato de submissa: «Seja feita a vossa vontade, meu lorde.» Como desejei que essa paixão lhe corroesse o fígado e o transformasse em papas! Que o dilacerasse tanto como a mim! Vês no que me estou a tornar?

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Reguengos de Monsaraz, 9 de junho de 2008 Querido diário: Pesa-me na alma a praga que um dia roguei. Repeti-a tantas vezes, no meu subconsciente, que acabou por se concretizar. A cor esverdeada do Constâncio não engana, a falência do fígado está iminente. Só um transplante o pode safar. É um turbilhão de sentimentos: por um lado, o dever de estar ao seu lado; por outro lado, a concretizar-se o pior, é o livrar de um peso morto. Talvez Deus me castigue por isto, mas só me vêm à cabeça más recordações: «Estás à espera de outro?», «Esses cães que façam alguma coisa que justifique a comida que engolem!», «Um dia ainda vou descobrir o rafeiro que tanto proteges!» Sabes o que é um vaso Ming? Imagina que eu fui um desses artefac32


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tos... estilhaçada inúmeras vezes. Como se recupera uma peça desfeita? Nem em sonhos me permitiria traí-lo, foi o alfa e o ómega. Os filhos foram e serão a minha sombra constante, sobretudo em dias chuvosos. Como se atreve a enlamear o meu nome, só porque estendo roupa nas traseiras da casa e deixo a porta encostada? Julguei que o silêncio era a melhor resposta, mas sinto algo grandioso a formar-se dentro de mim, algo tão potente e destrutivo como uma arma nuclear. Tenho medo... medo de me tornar um deserto gelado... a Sibéria já esteve mais longe.

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Reguengos de Monsaraz, 3 de fevereiro de 2009 Querido diário: O transplante foi um sucesso! A vida ofereceu-nos uma segunda oportunidade. Trabalhei como uma louca para custear as visitas diárias ao hospital, para que nada lhe faltasse: comidinha caseira, pijamas, jornais... De tanto cuidar dele, esqueci-me de mim. Perdi onze quilos. Onze quilos que ofereço de bom grado, a bem da nossa felicidade. Creio que atingi o fundo do poço, agora é só ganhar impulso. Sinto-me feliz! Um milagre destes acontece por algum motivo... Fui presenteada com um milagre, dá para acreditar? Obrigada, meu Deus!

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Reguengos de Monsaraz, 29 de maio de 2010 Querido diário: Um ano correu após a tormenta... Foi ingenuidade minha acreditar na bonança? Alguém morreu para que ele tivesse a hipótese de ter uma vida 33


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nova. Médicos e enfermeiros armaram-se em deuses para que regressasse do mundo dos mortos, e tudo isto para quê? Para voltar a enfrascar-se até às orelhas, para se sentir imortal. Mais arrogante do que nunca. Esqueceu-se de uma grande virtude: a gratidão! Isto revolta-me até às entranhas. Algures por aí, há uma mãe que chora, uma noiva, um irmão, um amigo, um patrão... Há uma série de pessoas que sofrem com a ausência do seu ente querido. Alguém que, apesar de morto, continua a viver através do meu Constâncio, partiu retalhado por causa de uma amostra de gente. Esse alguém não teve quem o consertasse, não teve uma segunda oportunidade, ao menos que o seu órgão tivesse um destino digno. Um gesto de uma grandeza sobre-humana desta natureza merecia uma divindade e não um vasilhame de cerveja e vinho de quinta categoria. Pessoas assim – ingratas – dão-me nojo. Esgotei a paciência para aquilo a que chamam de doença, dependência, vício ou moléstia. Cobardia, fraqueza, falta de caráter, coisa de gente pobre de espírito... isso, sim!... é a mais pura das verdades. Deus, não permitas que os familiares do dador venham a conhecer este monte de esterco. Que continuem a sonhar que foi por uma boa causa.

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Constâncio ia lendo, avançava várias páginas de uma só vez, sedento de um feito altruísta que tivesse ficado gravado naquelas folhas de papel. Nada. Nem um parágrafo, uns parêntesis, uma sílaba, uma vírgula. Percebeu, finalmente, o ser vazio em que se tornara. Adivinhava o final da história; ainda assim, tinha de ver para crer. A última página, um derradeiro sopro de vida, era dirigida a si. Já não era ao diário confidente, aquele objeto que, durante anos e anos, cumprira uma função que não era sua. Ele é que devia ter ouvido estes desabafos. Devia ter compreen34


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dido, ter sido sensível ao sofrimento que causava à sua família. Era ele! Mas parecia ser tarde demais.

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Reguengos de Monsaraz, 7 de maio de 2015 Meu amor: Percebes agora porque estás sozinho? Travei um combate desigual e perdi. Saí derrotada deste braço de ferro, a bebida levou a melhor. Mas dei luta, não dei? Fica por aqui a nossa história. Cabe-te a ti inventar uma nova, se quiseres. Os meus filhos – aqueles que só foram nossos por breves minutos, os minutos obrigatórios para a sua conceção – sabem onde te encontrar, se tiverem vontade. Duvidares de mim foi a última gota. Saboreia-a até ao fim dos teus dias.

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O néctar dos deuses metamorfoseara-se na maldição dos mortais. E porque não seria maldição se não fosse para dar continuidade, fechou o diário e pensou que amanhã seria um bom dia para deixar de beber. Amanhã...

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ESTE LIVRO TEM 214 PÁGINAS

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