A BÍBLIA DOS PECADORES - Do Génesis ao Apocalipse

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COLECÇÃO SUI GENERIS

A BÍBLIA DOS PECADORES DO GÉNESIS AO APOCALIPSE


Colecção Sui Generis A BÍBLIA DOS PECADORES – Do Génesis ao Apocalipse O BEIJO DO VAMPIRO – Antologia de Contos Vampirescos VENDAVAL DE EMOÇÕES – Antologia de Poesia Lusófona


44 AUTORES

A BÍBLIA DOS PECADORES DO GÉNESIS AO APOCALIPSE ANTOLOGIA DE TEXTOS LITERÁRIOS INSPIRADA EM EPISÓDIOS BÍBLICOS Organização e Coordenação ISIDRO SOUSA

EUEDITO


© 2015 ISIDRO SOUSA E EUEDITO http://letras-suigeneris.blogspot.pt www.facebook.com/letras.suigeneris letras.suigeneris@gmail.com Título: A Bíblia dos Pecadores – Do Génesis ao Apocalipse Autor: Vários Autores Organização e Coordenação: Isidro Sousa Revisão e Paginação: Isidro Sousa Capa (design): Pedro Góis Editor: Paulo Lobo 1ª Edição – Dezembro 2015 ISBN: 978-989-20-6291-4 Depósito Legal: 402747/15 © 2015 EUEDITO geral@euedito.com www.euedito.com Impressão Print On Demand Liberis

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Quando o Senhor Deus fez a terra e os céus, não havia arbusto algum pelos campos, nem sequer uma planta germinara ainda, porque o Senhor Deus não tinha feito chover sobre a terra, e não havia homem para a cultivar. Mas da terra elevava-se um vapor que regava toda a superfície. O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo. Depois, o Senhor Deus plantou um jardim no Éden, ao oriente, e nele colocou o homem que havia formado. O Senhor Deus fez desabrochar da terra toda a espécie de árvores agradáveis à vista e de saborosos frutos para comer; a árvore da vida, ao meio do jardim; e as árvores da ciência do bem e do mal. Um rio nascia no Éden e ia regar o jardim, dividindo-se, a seguir, em quatro braços. O nome do primeiro é Pison, rio que rodeia toda a região de Évilat, onde se encontra oiro, oiro puro, sem misturas e também se encontra lá bdélio e ónix. O nome do segundo rio é Gheon, o qual rodeia toda a terra de Cus. O nome do terceiro é Tigre, e corre ao oriente da Assíria. O quarto rio é o Eufrates. O Senhor levou o homem e colocou-o no jardim do Éden para o cultivar e, também, para o guardar. E o Senhor deu esta ordem ao homem: «Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas o da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás». Génesis 2, 5-17


Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas nĂŁo sentiam vergonha. GĂŠnesis 2, 25


A serpente, o mais astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus fizera, disse à mulher: «É verdade ter-vos Deus proibido comer o fruto de alguma árvore do jardim?» A mulher respondeu-lhe: «Podemos comer o fruto das árvores do jardim, mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: «Nunca o deveis comer, nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes, morrereis». A serpente retorquiu à mulher: «Não, não morrereis; mas Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal». Vendo a mulher que o fruto da árvore devia ser bom para comer, pois era de atraente aspecto, e precioso para esclarecer a inteligência, agarrou do fruto, comeu, deu dele a seu marido, que estava junto dela, e ele também comeu. Então, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam nus, prenderam folhas de figueira umas às outras e colocaram-nas como se fossem cinturões, à volta dos rins. Nessa altura, aperceberam-se de que o Senhor Deus percorria o jardim pela frescura do entardecer, e o homem e a sua mulher logo se esconderam do Senhor Deus, por entre o arvoredo do jardim. Mas o Senhor Deus chamou o homem e disse-lhe: «Onde estás?» Ele respondeu: «Ouvi o ruído dos Teus passos no jardim, e, cheio de medo, porque estou nu, escondi-me». O Senhor Deus perguntou: «Quem te disse que estás nu? Comeste, porventura, algum dos frutos da árvore da qual te proibi comer?» O homem respondeu: «A mulher, que trouxeste para junto de mim, ofereceu-me o fruto e eu comi-o». O Senhor Deus perguntou à mulher: «Porque fizeste isso?» A mulher respondeu: «A serpente enganou-me e eu comi».


Então, o Senhor Deus disse à serpente: «Por teres feito isto, serás maldita entre todos os animais domésticos e entre os animais ferozes dos campos. Rastejarás sobre o teu ventre, alimentar-te-ás de terra todos os dias da tua vida. Farei reinar a inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta esmagar-te-á a cabeça, ao tentares mordê-la no calcanhar». Depois, disse à mulher: «Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos hão-de nascer entre dores. Procurarás com paixão a quem serás sujeita, o teu marido». A seguir, disse ao homem: «Porque ouviste as palavras da tua mulher e comeste o fruto da árvore a respeito da qual eu te havia ordenado “Nunca deveis comer o fruto desta árvore”, maldita seja a terra por tua causa. E dela só arrancarás alimento à custa de penoso trabalho, em todos os dias da tua vida. Produzir-te-á espinhos e abrolhos, e comerás a erva dos campos. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de onde foste tirado; porque tu és pó e em pó te hás-de tornar». Génesis 3, 1-19


ÍNDICE Prefácio

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DO ANTIGO TESTAMENTO O mestre Mulher padece... Sombras do passado A violência no mundo No tempo em que as flores sorriam A estátua de sal O fantasma do pai Os infiéis A angústia de Manuela Acredita em mim Tudo por amor Um novo amor Trapalhadas amorosas A tentação de Ivan Sheol

15 21 26 38 40 43 53 57 66 85 104 116 129 138 145

DO NOVO TESTAMENTO A XV geração Como um grão de mostarda

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A pequena grande cruz Cinzento era o diabo e nem o lobo mau o comeu Não te negarei... Ex-umbris ad lucem Barrabás Dezessete Perdoa-me, meu Deus! As fases da Lua Amargura Filho com nome de código Filha da luz A coroa da Jamaica Nova vida Quem nunca pecou? A paixão de Lázaro O beijo de Judas Jesus decide voltar à Terra O evangelho perdido de Barrabás Maria Madalena A recuperação de um andarilho Tenório e Falcão – Saligia O peregrino Os pardais de Jesus A serpente da discórdia A colombiana Sebastian Icarus e a conspiração Luminus Seven O princípio do fim Os autores

174 179 188 199 202 214 220 229 235 237 242 253 257 262 272 275 281 286 293 300 307 320 326 329 341 347 351 363


A BÍBLIA DOS PECADORES

PREFÁCIO

A origem do mal no mundo é um dos problemas mais sérios que o homem se põe a si mesmo. Também ele aparece na Bíblia. A resposta é: não é Deus a causa do mal, como pensavam os persas e outros. A causa dele deve procurar-se nas criaturas. in Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica Missionários Capuchinhos 12ª edição, 1985 (nota 3, pág. 20)

A obra literária que se acha nas vossas mãos revela-se uma Bíblia de pecadores porque as quarenta e quatro narrativas que a compõem foram inspiradas em passagens ou episódios da Sagrada Escritura e a autoria dos textos é da responsabilidade de quarenta e quatro humildes pecadores, o que faz desta antologia A Bíblia dos Pecadores. No desafio difundido nas redes sociais, entre Agosto e Outubro de 2015, informávamos: «O projecto A Bíblia dos Pecadores visa seleccionar textos inéditos inspirados nas histórias da Bíblia para publicar sob a forma de um livro. Do Génesis ao Apocalipse... da tentação de Eva à ressurreição de Cristo, do fratricida Caim às batalhas sangrentas, da fuga de Jacob à libertação de um povo (Moisés), da mulher de Putifar à prostituta arrependida, da escravização de José à glória de governar, das pragas do Egipto à derrota de Golias, do amor entre Jónatas e David às peripécias de Sansão e Dalila, do prenúncio do Messias às parábolas de Jesus, da evangeli11


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zação aos diversos martírios, do dilúvio às previsões apocalípticas... e muitos outros acontecimentos... Sara e Abraão, as irmãs Lia e Raquel, Salomé, Josué, Salomão, cânticos e provérbios, Sodoma e Gomorra, as armadilhas do demónio... Lázaro, João Baptista, José e Maria, os reis Magos, a condenação de Cristo, os apóstolos, os patriarcas, as profecias, o domínio do Império Romano na Terra Santa... eis alguns exemplos de personagens e eventos dentre um vastíssimo manancial que inspirará as mais variadas narrativas.» Todavia, frisávamos: «Não queremos reproduzir as histórias da Bíblia. Pretendemos criar uma “Bíblia de Pecadores” com histórias actuais baseadas em episódios (eventos ou personagens) da Bíblia.» Se bem se lançou o repto, melhor se assimilou a mensagem. Seis dezenas de cartazes exibiram (diariamente) imagens distintas, bastante variadas e por vezes até ousadas, para todos os gostos, inspiradoras de novos enredos, outras histórias de vida, reais ou ficcionadas, em quaisquer épocas ou locais. E ninguém lhes ficou indiferente, nos dois lados do Atlântico! Resultado: quarenta e quatro textos seleccionados, redigidos em diversos géneros literários; da crónica ao conto policial, do drama à comédia, da prosa poética à biografia romanceada, da sátira à ficção científica, da fábula à peça teatral, da tragédia à aventura romântica... um pouco de tudo! Os próprios autores – trinta portugueses e catorze brasileiros – escolheram os temas que desejaram desenvolver, independentemente das suas raças, crenças, orientações sexuais, identidades de género e filosofias de vida. Cada texto inclui (no início) uma citação da Bíblia, nomeadamente do episódio em que é inspirado, e o critério de apresentação dos mesmos baseia-se na ordenação bíblica, a partir das citações designadas. Do Génesis ao Apocalipse. Desse modo, surgem, nas primeiras páginas, as narrações inspiradas no Génesis, e nas derradeiras as tramas apocalípticas. «Foi o que Januário fez. Nu, sozinho no ateliê, ferrou os dentes, levemente, na maçã, tentando entrar no espírito da cena bíblica, anunciadora do conhecimento», eis uma frase reveladora de O Mestre, o conto que principia a nossa colec12


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ção. Nas páginas imediatas, podemos ler as peripécias de uma Eva (ainda sem filhos) ansiosa por resolver a questão da descendência na Terra, conflitos familiares baseados na tragédia de Abel, a ambição desmedida de Babel e uma sátira recheada de humor e malícia aos costumes de Sodoma e Gomorra. Nas tramas inspiradas em episódios dos livros subsequentes (concretamente, do Levítico em diante) abunda uma vastíssima variedade de temas: adultérios e traições, angústias e arrependimentos, a dificuldade em assumir sentimentos ou de lidar com a própria sexualidade, relacionamentos inter-raciais, romantismos genuínos, a vivência do amor entre pessoas do mesmo sexo, desilusões e trapalhadas amorosas, ambições no meio empresarial ou as lutas acirradas pelo Poder, crimes em meios eclesiásticos, reflexões sobre fé, religiões, crenças ou espiritualidade, narrações sobre personalidades históricas, eventos bíblicos reflectidos na actualidade ou a necessidade de uma (nova) intervenção divina na Terra, missões humanitárias, vantagens e benefícios do voluntariado, a defesa dos Direitos Humanos ou a condição feminina em solo africano, reconfortantes diálogos com Deus e (também) sobre a Sagrada Escritura, discriminações sofridas pelos refugiados nos países de acolhimento, a visão do criminoso ante o martírio do inocente, o renascimento de um homicida, façanhas similares às de Robin dos Bosques, histórias de sensualidade e concupiscência, os caminhos mortíferos dos estupefacientes ou a sobrevivência no submundo da droga, as nefastas consequências resultantes do alistamento nas fileiras do Estado Islâmico (onde impera «só fanatismo, ódio e crueldade»), crises de consciência (como a do soldado assassino que deserta, salvando a prisioneira), o flagelo da violência doméstica e a escassez de dinheiro, sátiras ao charlatanismo de seitas ou de individualidades menos transparentes, as Marias Madalenas dos tempos modernos, os beijos de Judas, conspirações e visões apocalípticas. O leitor encontrará todos estes temas ao longo das trezentas e setenta e oito páginas que compõem A Bíblia dos Pecadores. São te13


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mas variadíssimos, escritos por quase meia centena de autores distintos entre si, portugueses e brasileiros, com diferentes sensibilidades, culturas, idades, experiências de vida e estilos. Alguns foram já distinguidos em concursos literários e certames similares, conquistaram prémios e menções honrosas e têm obras individuais editadas, e outros fazem agora a sua estreia no universo das letras; as suas biografias (resumidas) podem ser consultadas no apêndice desta antologia. Deixo, então, ao vosso dispor: A Bíblia dos Pecadores – Do Génesis ao Apocalipse Boas leituras! Isidro Sousa

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O MESTRE Joaquim Bispo

No dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal. (Génesis 3, 5)

– Professor, quando é que nos mostra as suas últimas pinturas? – lançou Gisela, juvenilmente provocadora. – Não as trago para a faculdade, Gisela, que são muito grandes – gracejou o professor de Pintura III – mas terei muito gosto em mostrá-las no ateliê da minha casa de Sintra. Tinha uma daquelas figuras tutelares que impressionam algumas alunas – sobre o alto, barba, cabelo grisalho farto e um pouco revolto – e, sobretudo, dava gosto ouvir as suas aulas. Fora da sala, adornava-lhe as mãos ou o queixo um cachimbo, donde se escapava um aroma de tabaco Mayflower. – E quando é que o professor lá está a pintar? – avançou a aluna, interessada. – Aproveito todas as tardes de sábado. Apareça! A morada vem na lista – disse o professor, a despachar. – Então, posso lá passar no próximo sábado, com o meu namorado? Ele também gosta muito de pintura. É de História d’Arte. – Com certeza, Gisela. Terei muito prazer em vos receber. Até lá! 15


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*** O mestre já tinha esquecido a promessa da aluna, quando ouviu a campainha. – Entrem! – convidou. – Sejam muito bem-vindos. – É o Januário, o meu namorado; Jorge Ávila, o meu professor de Pintura – apresentou Gisela. – Estou um pouco emocionada. Visitar o ateliê de um pintor como o senhor! Cumprimentos feitos, Ávila levou os convidados a visitar o pequeno pavilhão onde pintava e lhe servia de armazém. – Aqui já não tenho nenhuma das minhas obras mais antigas. Iam beber bastante ao neorrealismo. – Nós conhecemos, professor. Estão em todas as obras de referência da pintura do século XX. – Depois vieram essas, com influências das colagens de Matisse; e estas, em cujos traços marotos se adivinha alguma inspiração na fase “minotauromáquica” de Picasso, não acham? Não que eu o reconheça, oficialmente – ironizava o pintor, rindo. – Gosto mais das suas, professor, talvez por serem mais esquemáticas – avaliava Gisela, em tom aprovador. – O Picasso é demasiado explícito para o meu gosto. – Olha aquela, Gisela! – Divertido, Januário apontava para uma tela, onde era evidente um coito sobre um fundo de linhas de projeto de arquitetura. – Nesta zona – continuou Ávila – estão as poucas que restaram da fase neoexpressionista, baseada na mancha e na gestualidade da pincelada. A partir daqui, são coisas muito recentes, quase todas neofigurativas. – Tanto nu, professor! – O nu transmite mais facilmente a essência do Homem ainda não contaminado pela civilização. Além disso, a roupa fixa uma época à cena e impede que a sua mensagem seja vista como um valor intemporal. – Aquela paisagem no cavalete é no que está a trabalhar? – Sim, é um esboço de fundo de Éden para uma série sobre a 16


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Criação – uma encomenda dum particular. Nesta tela, em especial, vou representar Adão e Eva, no momento exato em que Eva já deu uma dentada na maçã e Adão inicia a primeira dentada, isto é, o instante em que “toda a humanidade” acede ao conhecimento que lhe estava vedado – um momento muito especial. A Gisela é que faria uma excelente Eva – o cabelo liso, comprido e louro, os olhos azuis, um certo ar de pureza primordial. – Fazer de modelo para si?... – O tom de suave crítica não evitou um lampejo no olhar de Gisela. – Não me interprete mal. Eu só estava a fazer uma avaliação de conformidade estética. Longe de mim pedir-lhe que pose para mim. – Quanto tempo é que demora a pintar uma tela deste tamanho? – Espero acabá-la em duas ou três tardes de sábado. – Mas, tinha de me despir, não? – Claro, é a Eva; mas os olhos de um artista são como os de um médico – seletivamente focados nas questões técnicas. O que avaliam são perspetivas, linhas de contorno, sombras, tonalidades cromáticas. Mas não quero que se sinta pressionada. – O que achas, Januário? – perguntou Gisela ao namorado. – Se te sentes à vontade... – Eu estou muito segura do meu corpo e, às vezes, tenho fantasias de posar para um grande artista, cujo nome e mestria valorizassem o modelo. Achava piada dar comigo, um dia, na exposição de uma grande galeria. – O Januário não quer experimentar, também? – perguntou o pintor. – Eu preciso de um Adão, e o seu perfil adequa-se ao que eu procuro – cabelo preto, que podemos desgrenhar um pouco, barba... Deixe-a crescer mais! – Eu? – surpreendeu-se Januário. – Eu não sei se tenho coragem. – Não custa nada, é como estar numa praia de nudistas. E ainda ganham uns trocos para a discoteca. A tabela! Mas, como disse à Gisela, estejam à vontade para recusar. Não ficarei contrariado se optarem por não posar para mim. Eu sou pela transparência de 17


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processos e pela liberdade de decisão. Com tal franqueza, os jovens não recearam experimentar uma atividade que, pela peculiaridade e pela aura cultural, os entusiasmava interiormente. Começaram nesse mesmo dia. O pintor colocou-os na posição pretendida: Eva, à direita, estendia o braço e oferecia uma maçã, já mordida, à boca de Adão, que esticava o rosto e lhe ferrava os dentes. O seio direito de Eva mostrava-se generosamente exposto envolvido pelos cabelos; o esquerdo deixava transparecer apenas a sombra rosada da auréola encimada pelo mamilo. Os sexos estavam patentes na sua candura virginal. A cena ressumava uma sensualidade imaculada. *** No sábado seguinte, o casal chegou cedo e autoconfiante. Tinha gostado da experiência, porque a incomodidade própria da exposição fora atenuada com duas paragens para chá e torradas, em que se trocaram ideias sobre questões de verdade e representação. Surpreenderam-se de encontrar na tela o rosto de Ávila, pintado como Deus, no limiar do jardim do Éden. – Por definição, Deus está presente, embora não seja visto – explicou o pintor. – Sabe o que vai acontecer, ou não conhecesse Ele a natureza humana, que espicaçou com a proibição de comer daquele fruto. A pintura ia adiantada. Acreditava-se que podia ser acabada ainda nesse dia. No regresso do primeiro intervalo, porém, Ávila deu sinais de incomodidade. Soltava monossílabos em surdina e fazia alguns curtos gestos de impaciência. – Algum problema, professor? – perguntou Gisela, a quem não escapara a perturbação do pintor. – Eu devia ter previsto isto. Não consigo obter o efeito que quero. – Quer que corrijamos alguma posição? – Não, estão muito bem. Esqueçam! Acho que esta pintura não se vai concluir. Eu já sabia! – Não diga isso, professor! Há alguma coisa que possamos fa18


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zer? – Poder, podem, mas eu não me atrevo, sequer, a falar nisso. Esqueçam! Vamos terminar. – Diga o que precisa, professor, seja o que for. Sem saber é que não podemos ajudá-lo. – Não, não! É impensável. O que eu precisava é que Eva tivesse um orgasmo comigo. Gisela e Januário entreolharam-se silenciosos. O pintor continuou: – Pronto, já disse, mas não é um pedido, muito menos uma proposta. Aliás, estou envergonhadíssimo. Desculpem! Acabou. Vamos ficar por aqui. Ao fim de uns momentos, Gisela quebrou o silêncio só matizado com os sons de Ávila a arrumar os acrílicos e a lavar os pincéis: – Importava-se de explicar, professor? – A questão é de autenticidade, do brilho no olhar, que só se consegue com uma condição física específica, a da excitação sexual orgástica – começou o mestre, após alguns momentos. – Eva soube que a maçã era boa, acabou de experimentar esse prazer. O seu rosto deve refletir esse entusiasmo, um empolgamento que convença o seu companheiro. Adão deve ver no olhar de Eva algo melhor do que o Paraíso. Isso deve transparecer no quadro. Eu preciso de apreender esse brilho, essa centelha de divino que se desprende da alma e brota no olhar, no momento do delírio orgástico. E não o posso apreender, na sua incomensurabilidade, se não estiver, eu próprio, a viver em comunhão essa emoção que nos liga ao supra-humano. A sua compreensão é da área do sensível e não do racional. Se não conseguir transmitir para a tela a transcendência do desejo no seu auge, a banalidade da obra está garantida. Não vou mostrá-la. O mestre calou-se, preparando-se para arrumar a tela. Os jovens olhavam-no, como se esperassem alguma outra conclusão ou estivessem a processar o que tinham ouvido. Depois, Gisela aproximou-se do namorado e conferenciou com ele em surdina: «O que é que achas? Parece-te sincero? O que havemos de fazer?» 19


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«Não sei.» «E se eu fosse para a cama com ele?» «Não sei... Eras capaz?» «Acho que sim. É apenas sexo... E tu, não te importas?» «Hum! É chato! Mas o corpo é teu.» «Não ficas zangado comigo?» «Não... Vai lá.» Comunicaram a decisão ao pintor que recebeu a informação com calma e sisudez. Voltou a colocar a tela no cavalete e pôs os materiais à mão. Ficou um momento a avaliar a tela, depois disse a Januário: – Relaxe um pouco que nós não demoramos. Se quiser, pode voltar a ensaiar a posição e focar-se mentalmente no ato de trincar a maçã. Foi o que Januário fez. Nu, sozinho no ateliê, ferrou os dentes, levemente, na maçã, tentando entrar no espírito da cena bíblica, anunciadora do conhecimento. Revelou-se-lhe, então, o perfeito simbolismo da maçã, ao ouvir os gemidos de prazer que Eva soltava.

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MULHER PADECE... Maria de Fátima Soares

«Gerei um homem com o auxílio do Senhor». (Génesis 4, 1)

Eva nunca superou o facto de ter sido criada a partir de uma costela do seu companheiro homem. No Paraíso, apesar de tudo ser belo e sossegado, sentia-se terrivelmente só, sem alguém do seu género para desabafar “certas coisas” que uma mulher não pode contar a um homem. Adão era um homem pacato. Dado às artes. Habitando no Paraíso com ela, não aproveitava para fazerem um piquenique, nas florestas ou prados do lugar, onde os animais passeavam livres e a erva e as flores convidavam, ou irem uns dias à praia. E se ali existiam praias lindas! Selvagens, com uma extensão a perder de vista, onde nunca teriam problemas em estender uma toalha de parras. O nudismo de ambos seria favorecido com lindos tons de pele, que o sol brilhante, pendurado num céu sempre límpido, lhes traria com agrado. Eva detestava que Adão a ignorasse e passasse boa parte dos seus dias a pintar com pedras em outras rochas, ou a juntar essências recolhidas das cascas das árvores, pétalas e folhas, para misturar em coloridas tintas, que lhe permitiam reproduzir em desenho rudimentar tudo o que se movia ou a sua vista alcançava, com o 21


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pretexto de que deveriam documentar, para os vindouros, toda a riqueza da fauna e flora da época. Todos os lugares e acidentes do terreno. Quando tinham fome, se Eva não o aborrecesse, ele não se decidia a ir caçar ou pescar alguma coisa para comerem. O jantar ou almoço resumia-se a bagas e saladas e, sinceramente, uma mulher não pode fazer tudo. O menu se não varia, é um inferno, e vejamos: quem precisa de dietas eternas quando já nasce abençoado, com um corpo criado à imagem de Deus? Adão zangava-se e não gostava que ela ironizasse. Era pecado! Que o interrompesse. Porque ele era o Homem! Eva revirava os olhos, inconsolável e farta, vingava-se a mudar tudo de sítio, frustrada, por não ver reconhecido o seu esforço sem receber uma crítica. Mas depois das coisas arrumadas, limpas e decidir sobre as refeições, não havia muito mais para fazer. Eva enfadava-se. Cansava-se de lhe dizer que, não havendo método, a vida torna-se um caos e que, no fundo, também precisava de um tempo para si. As regras deviam ser de ambos, mas se ao princípio corria tudo bem, a certa altura Adão deixou mesmo de falar-lhe. De ligar-lhe importância e de ouvi-la, quando uma mulher... tem sempre tanto para dizer! Necessidade da atenção de um homem. Por isso, Eva começava a sentir-se infeliz. O Paraíso seria muito mais agradável se existissem outros homens e, sem dúvida, mais mulheres! Se Deus tivesse criado também outros tipos de infraestruturas para se distraírem, e que esse lazer não fosse o marasmo de sempre... porque ao fim de um certo tempo de habitarmos num lugar, já está tudo visto. Fartamo-nos de abelhinhas a zumbir pelo ar, peixes coloridos a saltitarem nos rios, erva tenra e fofa, brisa doce e convidativa ao ócio, sol quase todos os dias... que já nos provoca irritação e faz ansiar por umas densas e boas gotas de chuva. Animais a exibir o seu poderio ou a encher as horas de grunhidos e rugidos, que dão cabo dos nervos a um santo! Contudo, Eva dava por si a pensar, quando observava os animais a acasalar e a reproduzir-se, que o seu companheiro, até nisso, mostrava ultimamente enfado. E quando organizava subrepticiamente as coisas, com muito esforço, para o desviar dos 22


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seus trabalhos e conseguia levá-lo a passear para sítios propícios, ou onde sabia existir grande actividade procriadora, para ver se ele se entusiasmava e pimba... a coisa enrolava-se! Ela quase perdia a vontade, enquanto ele filosofava e lá com muita calma, sem grande empenho, a possuía, para adormecer logo de seguida, muitas das vezes sem a satisfazer, como uma mulher requer, ao atingir precocemente o clímax. Se lhe custava começar, uma vez no acto, Adão tomava o freio nos dentes e ia por ali adiante, a cortar mato a contento, contentando no início Eva, cuja esperança se mantinha sempre alta, a expectativa a par, para na maior parte das vezes... morrer na praia. Eva? Andava frustradíssima. Sem saber como motivá-lo e espicaçá-lo mais, para que ele se tornasse no homem que era ao início, em que tudo é novidade e aquela cavidade entre as suas pernas era um entusiasmo, porém... com o tempo, ele desinteressou-se, ou teria desenvolvido qualquer problema, e lá... por mais paradisíaco que o lugar fosse, também não existiam psicólogos, conselheiros matrimoniais, filmes pornográficos, lojas de sexo, muito menos livros que lhe dessem alguma ajuda. Clarificassem aquele enigma... Ela não se atrevia a levar o seu desagrado e tristeza aos ouvidos de Deus. Ele andava “na sua” e, como homem, mandá-la-ia bugiar, igualmente. Portanto, Eva já estendia também a sua contrariedade a Deus! Primeiro, por tê-la feito subalterna a Adão e por ele se ter tornado num tipo passivo. Que cumpria as suas tarefas obrigatórias porque assim devia ser, mas sem muito gozo e dirigir esse prazer para tudo o resto e as suas invenções, com o pretexto de que, sendo o homem original, tinha deveres para com todos os que viessem! Devia retratar e explicar o melhor e mais pormenorizadamente possível a vivência e as experiências dos dois naquele tempo... Só que seria difícil, ou quase impossível, vir a existir descendência de ambos se ele não a procurasse mais para a actividade “lúdica”. E se Adão pintava, escrevia, arquitectava projectos e fazia protótipos que a ela pareciam a mais redonda parvoíce, Eva dava por si a pensar, nas suas longas e solitárias caminhadas, em como seria bom ser igual a ele. A sua opinião ter peso. Existir um lugar onde 23


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habitassem mais como eles. Se pudesse, ir dançar com música, sem ser produzida pelos pássaros, brisa ou mar. Um outro local onde se pusessem em dia as conversas com os outros, que deviam ter imensas coisas para lhe contar, se os houvesse... Lugares onde visse projectadas outras fitas, que não as mesmas imagens e cenários de sempre. Sobretudo, estava farta de andar descalça e nua. Por mais que lavasse os pés, aquela capa dura dos calcanhares não saía! Nem com algumas mezinhas que experimentara fazer do que a Natureza lhe punha ao dispor. Nem a sua pele do rosto e corpo ficava mais suave, delicada ou perfumada. E das vezes que tentou mudar o seu aspecto, com outras folhas unidas que vestiu, ou pintar o rosto com alguns mates dos pós que algumas flores lhe forneciam, não resultou. Pelo contrário! A sua boa intenção foi brindada com gargalhadas e o seu aspecto comparado ao de uma arara maluca. Sentada naquele recanto distante do Jardim do Paraíso, onde nunca tinha ido antes e nem sabia bem porque lá fora, embora lhe estivesse vetado, Eva, ao ver aquela maçã, também proibida, pensou. Pensou muito e resolveu arriscar. Que mal podia fazer trincar a maçã? Quem sabe se depois de o fazer a vida dela e de Adão não mudasse? E quando a serpente apareceu e lhe falou, Eva quase chorou de alegria. Qual é a mulher que não gosta de conversa, nem que seja com uma serpente? Mas, até aí, nada lhe corria bem. Enquanto as duas estavam na mais alegre cavaqueira e a outra incentivava Eva a prosseguir, apareceu Adão para atrapalhar a festa! Aflito, porque não se podia estar ali... Pois, é! Mas Eva já decidira e para lá do “Não faças, que está interdito, e não mordas que morremos” e do gesticular e vociferar desesperado de Adão... Eva deu uma valente dentada na maçã e nada aconteceu. Mais! Aquele era o fruto mais saboroso que ela já tinha comido na vida dela. Ele devia experimentar. Farta de rotina andava ela! E... ou ele era homem para a acompanhar, ou não era. E se não era, Eva iria à sua vida! Quem lhe dizia que não existiam outros homens, se afinal comera a maçã e nada de mal lhe sucedera? Perante o ultimato dela e porque não queria perder a sua amiga e 24


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companheira, para além de tantas outras razões que pudessem existir, Adão obedeceu-lhe e claro... lixou-se! O problema de Eva? Não foi ser amaldiçoada e expulsa do Paraíso. Foi ter de ouvi-lo a azucrinar-lhe a paciência com o “Se não fosses tu...” durante o resto dos seus dias! No entanto, viu resolvido o seu problema do “Crescei e multiplicai-vos!”.

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SOMBRAS DO PASSADO Suzete Fraga

Ao fim de algum tempo, Caim apresentou ao Senhor uma oferta de frutos da terra. Por seu lado, Abel ofereceu primogénitos do seu rebanho e as gorduras deles. O Senhor olhou favoravelmente para Abel e para a sua oferta, mas não olhou para Caim nem para a sua oferta. Caim ficou muito irritado e o rosto transtornou-se-lhe. (Génesis 4, 3-5)

Vim ao mundo num impiedoso mês de dezembro. Tive de sobreviver aos caprichos do inverno e ao desaire do meu pai, pois defraudei as suas ânsias de ter um filho varão. Quinze meses mais tarde, surgiu o meu irmão. Uma chegada apoteótica, com direito às flores e às honras do sol de março. Este sim, merecedor do ar floral que respirava e de um lugar entre o mundo dos vivos. Foi a seleção natural da vida: a sobrevivência de uma pária versus o intocável. Por imposição da vida, fui aprendendo o máximo que podia. Não havia muito, por isso, praticava a tabuada no caminho de terra batida, treinava a leitura em tudo o que tivesse letras, escrevia em todas as superfícies, incluindo as paredes lá de casa e os sofás rafeiros da nossa sala. Claro que a ousadia tinha um preço: a famigerada vergasta de oliveira. Quem nunca a provou, provavelmente, não imagina as dores lancinantes que um caninho desses provoca, e outra coisa: aquilo não partia, o que era chato. Muito chato, diga-se 26


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de passagem. Se partisse, o assunto ficava resolvido num instante. Como não partia, havia que esperar que o cansaço acalmasse a cólera do meu pai, que me mantinha presa por um braço enquanto me açoitava. Fui ficando esperta... Pudera! Fui apanhada desprevenida algumas vezes; depois, reparei que, se corresse em redor dele, a pontaria piorava significativamente, salvaguardando um pouco as minhas pernas desprotegidas, e cansava-o com mais celeridade. Quando era o meu irmão a aprontar, sendo eu a sua guardiã, a punição recaía sobre mim em primeiro lugar, claro. Tocavam-lhe umas pancadinhas de amor. No final, encolhidos a um canto, perguntava-me: – Doeu-te muito? E eu, a chorar, mentia-lhe: – Não. Não podia deixar transparecer a minha dor, não na totalidade. Tinha seis ou sete anos quando, pela primeira vez, vi os desenhos animados do Tom Sawyer, a preto e branco, na televisão da vizinha – também apanhei algumas vezes por causa disso. A dada altura, a minha atenção centrou-se na casinha da árvore que volta e meia aparecia. Tive a minha primeira epifania: fugir de casa para ir morar no meio da floresta! A aventura durou até ao anoitecer. Se tivesse ido sozinha, teria sido bem-sucedida, certamente, mas senti-me na obrigação de convidar o meu irmão, o que fez com que os sinos tocassem a rebate. Bem... mais uma tareia descomunal! Jurei que aos dezoito anos evaporaria do mapa e não regressaria por nada, nem por ninguém. Na verdade, ainda faltavam uns meses para completar a maioridade. Era só mais um dia somado a tantos outros, mais uma folha subtraída ao calendário da minha miserável vida. Mas, naquele dia, o meu espetro fantasmagórico queimou os últimos resquícios de paciência. Não foi por me ter atrasado com o almoço por falta de lenha seca, não foi por metê-lo numa caçarola e levá-lo à vessada, junto ao rio, onde o meu pai andava a podar umas videiras de borraçal, nem por ver o fruto do meu trabalho a ser engolido pela corrente do rio, tampouco por ouvir que eu é que devia ser arre27


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messada ao rio em vez do almoço. Foi aquele breve momento; o milésimo de segundo em que os seus olhos demoníacos cruzaram os meus e gritaram: «Se não soubesses nadar... ah, se não soubesses nadar!» Voltei as costas sem ripostar. Passei por casa, enfiei algumas roupas e os meus documentos numa mochila e o pouco dinheiro que tinha amealhado. Fiz-me à estrada. Desta vez, não iriam encontrar-me. Revi todo aquele processo vezes sem conta, anos a fio. Entrei no primeiro autocarro que apareceu e pedi um bilhete para a vila. Saí na vila e entrei no que seguia para a cidade. Na cidade, apanhei outro para outra cidade e assim sucessivamente. Quando a distância me pareceu suficiente, liguei para casa a sossegar a minha mãe. Apesar de tentar dissuadir-me, havia algo reconfortante na sua voz estilhaçada; ela percebia as minhas motivações e, no fundo, lamentava não ter tido força suficiente para amenizar a desigualdade patente entre as duas crias: uma fustigada, a outra idolatrada. Nunca nada me foi ofertado, à exceção das tareias e dos comentários depreciativos que ouvi, mesmo enquanto dormitava. Até o direito, o dever de sonhar, me foi reprimido enquanto residente daquela casa, por imposição forçada. Não tive outra opção e, ainda assim, não guardei rancor nem invejei nada que pudesse ter ficado para trás. Agora, era só eu e o mundo. O mundo podia duvidar da minha força, porém, eu só a tinha a ela para me socorrer. A trezentos quilómetros de casa, no meio do nada, apenas com a bagagem que a vida me impingiu, tive de ser como a vergasta de oliveira: vergava, mas não partia. Vagueei à procura de trabalho e de um teto para me recolher. Um mês de mendicidade na primeira pessoa, a comer o pão que o Diabo amassou, cuspiu e regurgitou. Bati a tantas portas que perdi a conta. Certo dia, vergada pelo cansaço, fome e frio, sentei-me encostada a um portão e acabei por passar pelas brasas. Acordei com o barulho de um carro que se preparava para entrar – o senhor Júlio. O meu ego iluminou-se de esperança. Era um homem já na casa dos sessenta, alto, magricela e de tez morena, mais queimada pelas agruras da vida do que propriamente pelo sol. Ex28


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pliquei-lhe que procurava trabalho, trabalho honesto – não fosse o homem ficar com ideias –, se me podia ajudar ou indicar alguém que precisasse dos meus serviços. Olhou-me de soslaio e voltou a olhar, desta vez, de cima a baixo com um misto de compaixão e receio. – Podes ficar uma semana... à experiência. A garotagem da tua idade nem uma batata sabe descascar, veremos o que sabes fazer. Deves compreender que já não tenho idade, nem paciência, para brincar aos estagiários. – Quanto a isso, pode ficar descansado. Comecei a cozinhar para a minha família aos oito anos – argumentei, orgulhosa. – Aos oito anos? – perguntou, consternado. – Ora, com essa idade devias era brincar às casinhas! – Se calhar... mas não tive muito tempo para isso. Passou-se uma semana, um mês, um ano... Fui ficando. Tratava da casa, das roupas, cozinhava, cuidava do jardim e fazia-lhe companhia. Os fins de semana eram mais calmos; como mantinha tudo limpo e organizado, podia ficar horas a ler os livros da fantástica biblioteca que o senhor Júlio possuía. Ele observava o meu gosto pela leitura com muito agrado. Finalmente, aquele santuário, criado para proporcionar horas de deleite à sua falecida esposa, voltava a ganhar vida e a ser útil. Um dia, apanhou-me a ler na cozinha, já a lua pensava em dar lugar ao sol. – Insónias? – questionou, preocupado. – De forma nenhuma. Estava tão embrenhada na história que perdi a noção das horas. Desculpe se o acordei. Olhou para o livro “As Palavras Que Nunca Te Direi” sem conseguir disfarçar a nostalgia. Observei-lhe o rosto endurecido pela saudade, interrogando-me se aquele livro teria outra história por detrás da história. Perspicaz como era, saciou logo a minha curiosidade: – Sabes? A minha Amélia tinha um vício: a leitura. Nunca foi mulher de gastar fortunas em jóias, roupas ou qualquer outro bem supérfluo, mas perdia a cabeça quando entrava numa livraria. Liaos todos; alguns, repetidas vezes. Era um bálsamo para os meus 29


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ouvidos, a forma como descrevia o enredo das histórias... O brilho dos olhos, a suavidade da voz... Que saudades, meu Deus! Esse ficou por ler. Prometi a mim mesmo que o leria... em jeito de homenagem, sei lá! Mas fui sempre adiando. Acho que ainda acalento a esperança de a ouvir, nem que seja em sonhos. Comprei-lho após a sua morte, pelo aniversário. Gosto de pensar que ela gostou do meu presente. Continuo a comprar-lhe livros, para que não desapareça da minha memória. Para que não desapareça para sempre. Incapaz de o confortar com palavras, rodeei-o num abraço apertado em jeito de solidariedade. Interrogava-me sobre o porquê dessa dificuldade em encontrar palavras que amenizassem um espírito saudoso. Eu sabia montes delas e só consegui responder-lhe com o silêncio e um afago. Constrangido por revelar a sua fraqueza, esforçou-se por recuperar a compostura e afastou-se. Depois, parou à entrada da cozinha e disse: – Vai descansar. Mais tarde, há um assunto que quero discutir contigo. Pronto, o entusiasmo passou a insónia! Obviamente, não preguei olho. Como fui capaz de cometer semelhante gralha? Para que é que fui deitar sal numa ferida aberta? «És mesmo estúpida!» Logo agora que me sentia amada. Justamente quando começava a ser estimada como uma neta. Fosse o que fosse que estivesse prestes a rebentar, o melhor a fazer era enfrentar com dignidade, de cabeça erguida... «Vergar sim, partir nunca, lembras-te?» Saltei da cama mais cedo do que o habitual. Mesmo sem dormir, o meu estado de espírito estava elétrico, de tal forma que podia acusar substâncias dopantes no organismo. Por seu lado, o senhor Júlio continuava recolhido no seu quarto, talvez esperando que eu recuperasse as horas perdidas de sono. A ideia agradava-me imenso, embora a demora já roçasse a linha ténue que separava a amabilidade da tortura. Pus a mesa para o pequeno-almoço e, sob o pretexto de saber se estava tudo bem, bati-lhe à porta. Não demorou muito a aprontar-se, também ele transparecia uma certa urgência em abordar o “tal” assunto. Sem rodeios, disparou: – Estás despedida! Vou voltar a solicitar os serviços da assistên30


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cia social. Paralisada, socorri-me do lado positivo da coisa: ainda estava em pé, o que afastava a possibilidade de problemas cardíacos. Visivelmente satisfeito com o impacto das suas declarações, prosseguiu: – Quero que retomes os estudos. O que achas da ideia? A estupefação que me atingiu em nada ofuscou a alegria que essa possibilidade me causava, para não falar do estatuto que acabara de ganhar! Ele considerava-me sua neta... eu, uma pária indesejada! A ideia de morrer e deixar-me desprotegida atormentava-o. Fazia questão de patrocinar os meus estudos e, desse modo, assegurar o meu futuro. Claro que a resposta foi um inequívoco sim! A minha existência infernal acabara por ser recompensada. Descobri, pela primeira vez na vida, o verdadeiro significado da palavra “Pai”. Foi uma longa mas gratificante jornada. Pus de parte os meus devaneios de, um dia, tornar-me uma estilista famosa, uma dessas que rivalizam com a Prada ou o Armani. Nem precisei de ponderar sobre o assunto: iria formar-me em medicina! Uma escolha com um único objetivo: retribuir todo o carinho que recebera. Dediquei-me aos estudos com afinco e zelo, sempre apoiada pelo meu anjo protetor, o senhor Júlio. Formávamos uma dupla vencedora, eu e ele. Não havia mais ninguém. Uma vez por ano, ainda ia ligando para casa, única e exclusivamente para tranquilizar a minha mãe. Até que chegou o dia em que liguei e uma gravação deu conta de que o número para o qual ligara não estava atribuído. Imaginei só bons cenários: mudança para uma casa melhor, férias numa ilha paradisíaca ou simplesmente – o que era mais provável – a substituição do telefone por telemóveis. Nunca mais pensei no assunto. O rasto das minhas origens esfumara-se juntamente com um número não atribuído. Irónico! Viera ao mundo sem pedir e sem ser desejada e o mundo apagou-me das vidas que importunei. Senti alívio, finalmente estava livre do passado e em segurança. Porém, o meu subconsciente deixou uma dúvida inquietante no ar: «Não estarás a ficar sem coração?» Seria isso possível? Renegar quem nunca me amou fazia de mim 31


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um ser desumano? Não, não podia ser. Eu era capaz de sentir gratidão, benevolência, caridade... Que culpa tinha eu se o instinto de sobrevivência falava mais alto? Esfalfei-me para obter as melhores notas, bolsas de estudo, prémios de mérito, tudo o que pudesse deixar o Júlio orgulhoso. Doze anos de entrega total! Nos últimos anos de faculdade, fiz internato hospitalar, na área de cirurgia geral, em Coimbra. Dado o elevado empenho, convidaram-me a ficar, oferecendo vantagens deveras aliciantes. No entanto, vi-me obrigada a declinar o convite, por causa dos cem quilómetros (ida e volta) que me separavam de casa. O Júlio carecia de mais atenção e não era justo privá-lo das memórias e do conforto da sua (nossa) casa. Após a especialização em cardiologia, consegui uma vaga em Leiria, a dez minutos de casa, a pé. Desse modo, e apesar da presença constante de uma enfermeira, podia socorrê-lo em qualquer eventualidade. Estava longe de imaginar que essa decisão iria ressuscitar o meu passado, da pior maneira possível. Nas vésperas do Dia do Pai, desdobrei-me em reservas e marcações para fazer uma surpresa ao meu querido Júlio. Preveni a administração de que iria estar fora nessa semana. Organizei uma visita ao Museu Benfica Cosme Damião, isso faria o meu anjo viajar no tempo! De seguida, o Estádio da Luz – aqui, iria enchê-lo das mais variadas recordações do seu Glorioso. Eu, que nem era adepta dessa modalidade, vi-me “obrigada” a adotar o Benfica como sendo o clube do meu coração e a absorver o máximo de informação para não cometer nenhum deslize imperdoável. O resto do tempo seria gasto em visitas aos principais pontos de interesse que o Júlio ainda não tivesse visitado. Reservei três quartos numa zona sofisticada das Amoreiras; a Lúcia (a enfermeira) também iria, mas a título de lazer. Sempre tão atenciosa com o meu anjo... o mínimo que podia fazer por ela era proporcionar-lhe uma semana de férias, com tudo pago. Tudo controlado! A minha equipa médica estava de sobreaviso, inclusive um amigo meu cardiologista, pronto a render-me, caso surgisse alguma urgência. Fazia a minha última ronda quando solicitaram a minha presença no bloco operatório. Tinha acabado de 32


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chegar uma vítima de acidente de viação, com um traumatismo torácico, tendo feito já duas paragens cardiorrespiratórias. Não havia tempo a perder! Se a revascularização do miocárdio fosse efetuada com êxito, o paciente estaria livre de perigo nas próximas quarenta e oito horas e dentro de dez dias poderia dar-lhe alta hospitalar. Ainda voltava a tempo de o ver de novo, por isso, não me demorei em detalhes desnecessários. Açoitada pela escassez de tempo, nem transpus a barreira de pano que separava o rosto do corpo do paciente. Todavia, algo fez o meu corpo estremecer, havia qualquer coisa de familiar, um pressentimento... Ignorei os meus instintos, a minha urgência maior chamava-se Júlio e somente ele ocupava o meu pensamento naquele momento. Proporcionei uma semana de sonho ao meu Julinho. Embora a imagem daquele paciente me assaltasse a cada passo e ainda não tivesse identificado o motivo para tal inquietação, diverti-me imenso. Uma sensação de paz invadia-me sempre que observava um Júlio revitalizado, ele merecia tudo isso e muito mais. Porém, aqueles braços abertos na mesa das operações... porque continuavam a sobressaltar-me o espírito? Logo que pude, passei no hospital para saber dos pacientes. Decorrera tudo sem percalços, segundo a enfermeira chefe, até com o Naves. – Não tarda, levanta voo! – adiantou divertida, achando piada ao apelido que tínhamos em comum. – Naves?! – Sim, o da revascularização – relembrou a enfermeira. – Avise-me quando... Esqueça! Calei-me para não falar de mais. Queria confirmar as minhas suspeitas, mas só quando ele estivesse a dormir. Se fosse realmente o meu irmão, eu saberia, não precisava de confrontar o negrume dos seus olhos para saber. Tal qual um tubarão, o seu olhar era um interminável buraco negro. Consultei a ficha do doente; nome, idade, residência... Bolas! O que fazia ele ali, tão longe de casa? Não podia permitir que me reconhecesse, não ia desabar o meu mundo novamente! Enveredei por portas travessas para manter a minha identidade em sigilo e quando pensei estar a salvo... 33


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– Desculpe, doutora, está lá fora um indivíduo que insiste muito em falar com a doutora. – Disse o nome ou do que se trata? – Sou eu, maninha! – irrompeu apressadamente, envergando a dose habitual de cinismo que tão bem o caraterizava. Alguém tinha falado de mais. Mantive a candura até sentir a porta fechar-se com um estrondo. – Vejo que continuas com os mesmos modos... – Então, são maneiras de receber o teu irmãozinho? – Estou a trabalhar, o que queres de mim? – Queria agradecer-te pelo facto de me teres salvado a vida! – proferiu com um brilho demoníaco nos olhos. – Agradecimento feito! Agora, se me dás licença... – disse-lhe, levantando-me para lhe indicar a saída – tenho muito trabalho à minha espera, que o dia ainda mal começou. – Calminha aí! Não tens mais nada para me dizer depois de tantos anos? – De bom? Deixa ver se me lembro de algo... não, não tenho! E também não tenho interesse em ouvir o que quer que seja. Sai, se não te importas! Segurança! Ajude este senhor a encontrar a saída, por favor! Quase de empurrão, lá abandonou o edifício. Com as pernas a tremer, tentei localizá-lo no exterior, através da janela, na esperança de descobrir mais informações: se estava sozinho, de carro, que tipo de carro... Nem uma única pista! Por precaução, optei por almoçar no refeitório do hospital, o que era um verdadeiro suplício. Quando dei pelas horas, já estava atrasada para fazer a ronda do pós-operatório e as duas altas previstas para aquele dia também careciam de mais atenção por causa das recomendações, medicação e da burocracia inerente ao processo. Com tanta barafunda, esqueci de avisar que não ia almoçar em casa. Liguei de imediato para casa: – Lúcia, como está o nosso Julinho? Bem-disposto? – interpelei mal senti o auscultador levantado. – Desculpa, miúda, a tipa está um pouco ocupada neste momento – retorquiu uma voz asquerosa. Asquerosa e terrivelmente 34


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familiar: a voz do meu irmão. O meu coração tremeu! O passado estava de volta e não vinha com um ramo de flores. Uma infeliz coincidência ameaçava roubar-me tudo o que conquistara. Se não fosse aquele estúpido acidente de carro... Pelo que pude apurar, ele viajava sozinho, seguia para norte depois de ter passado férias no Algarve. Quis acreditar que finalmente se emendara, que estava bem na vida. Pura ilusão! O irmão que deixei para trás sempre foi adepto da vida boémia, do dinheiro fácil sem olhar a meios para o conseguir. O mais certo era ter arquitetado mais um conto do vigário para esbanjar os bens dos velhotes ou, na pior das hipóteses, a herança. – O que é que lhes fizeste? Se lhes tocas num fio de cabelo que seja... O que é que queres de nós? – Ora, a miss Q.I. sabe muito bem: quero guito! Cinquenta mil, para começar... Ah, e não te armes em parva! Aqui o avozinho pode confundir o itinerário e tentar descer as escadas de cadeira de rodas. Acontece muito nestas idades... – Mas eu não tenho essa quantia! Deixa-me pensar... Quatro horas... Dá-me quatro horas para conseguir arranjar o dinheiro. – Chato, não é? Uma casa com tantos degraus. Tens uma hora, nem mais um segundo! Cega de raiva, pensei na farmácia do hospital: surripiar uma dose letal de morfina, Propofol ou Fentanil, mas como? E o juramento de Hipócrates? Não, não podia quebrá-lo. Dirigi-me ao banco para limpar todas as economias. Perante a avultada quantia e sem um aviso prévio, o funcionário refutou o meu pedido. Exasperada e sem tempo, segurei-lhe fortemente o braço e implorei: – Ouça, eu preciso desse dinheiro para ontem! É uma questão de vida ou de morte! Finalmente, consegui a atenção do subalterno. Pediu-me para aguardar uns minutos. Depois de efetuar uma chamada no telefone que estava mais afastado, começou a preparar o dinheiro. – Desculpe, em notas pequenas... o máximo que puder, se faz favor! – Claro – anuiu, contrariado. Rezava para que o meu plano ardiloso desse certo. Conhecendo 35


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a peça como eu conhecia, o mais certo seria conferir a quantidade antes de se fazer à estrada. Teria que bastar esse compasso de espera para colocar o Júlio e a Lúcia em segurança. Interiorizei que ia correr tudo bem. Ele não se atreveria a magoar-nos, ou atreveria? Consultei o relógio uma vez mais; o tempo escasseava a um ritmo alarmante. Devo ter infringido todas as regras de condução e mais algumas. No exterior da casa, parecia estar tudo calmo, uma calmaria que até arrepiava. Liguei para o telefone a pedir que libertasse os meus amigos. Recusou, obviamente. Avancei para o interior de casa, não restava outra alternativa. Ele aguardava sentado nas escadas que davam acesso aos quartos. – Júlio? Lúcia? Estão bem? – gritei – Está aqui o dinheiro, seu canalha! Nada correu como eu planeara. A fúria e o medo engoliram o meu bom senso. Atirei-lhe com o dinheiro à cara e subi em busca do meu bem mais precioso. Estavam ambos no quarto do Júlio, presos e amordaçados com fita adesiva. Pobrezinho! Há quanto tempo estaria assim, naquela posição desconfortável? Ia a correr para os libertar quando senti algo encostado à nuca, presumi que fosse uma arma. Voltei-me para encarar o ordinário. – O que queres mais? Deixa-nos! – vociferei. – Então? Sempre foste mais inteligente do que isto... Achavas mesmo que iria deixar pontas soltas? Não, claro que não. No fundo, pressentia-o, mas rezava por um milagre. Sem nada a perder, desafiei-o: – Desde quando usas armas? Sempre gostaste de infligir dor com as próprias mãos, o que é que mudou? Estás a ficar mais fraco? Ele não suportou o ataque ao seu precioso ego e, atirando a arma para cima da cama, lançou-se ao meu pescoço. Raios! Continuava forte, não perdera o jeito! Empurrou-me contra a parede e apertava-me o pescoço com determinação. Aqueles dedos eram como garras de aço. Tentava, em vão, livrar-me deles, mas a privação de oxigénio limitava (e muito) o meu contra-ataque. Vi, pelo canto do olho, uma seringa com a agulha já colocada, em cima da cómoda. Reuni as últimas forças para a alcançar, com as mãos 36


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atrás das costas, puxei o êmbolo e cravei-lha no coração, injetando-lhe todo o ar que tinha dentro. Incrédulo com o volte-face, cambaleou e tombou pesadamente no chão. A polícia, alertada pelo funcionário do banco, entrou de rompante e, percebendo que o raptor estava dominado, apressou-se a libertar os reféns. – Chamem uma ambulância! – ordenei, enquanto simulava manobras de reanimação cardiopulmonar. A cada trinta compressões, devia fazer duas ventilações e repetir o ciclo até cinco ciclos. Mas, no momento de ventilar, sussurrava-lhe os motivos porque a vida dele se desvanecia nas minhas mãos: «Lembras-te da sova que levei por causa do dinheiro que roubaste, da venda das cabras? Gozaste o manancial e deixaste que eu pagasse por ti! Lembras-te da faca que me cravaste na perna? E onde seria a próxima facada, caso eu não assumisse a pertença do charro na tua mochila? As chibatadas duplicaram por ter tentado “incriminar-te”. Estás a recordar? Quero que sintas a dor agonizante que eu senti por teres despenhado o trator. Essa tareia custou-me uma semana de cama. A maçarica era eu, lembras-te? Tu eras um condutor exímio, nunca farias tal coisa. Mas conseguiste adiar o corte do feno e ir ao concerto que tanto querias assistir. Sente o inferno que me fizeste passar! Sentes? Pega nos teus feitos e arde no inferno!» A ambulância foi incrivelmente rápida; não consegui despejar toda a cólera que me corrompia o sangue, porém, havia que mascarar a minha revolta. – Depressa, ele sofreu uma embolia coronária – supliquei, com uma preocupação convincente, enquanto gozava da vista: o sinal vermelho em forma de lágrima (o mesmo sinal que me inquietou quando lhe salvei a vida, na mesa das operações) jazia no braço inerte, não voltaria a provocar lágrimas de sangue. As tentativas para recuperar os sinais vitais foram infrutíferas, como eu esperava. As investigações livraram-me de qualquer suspeição. Não tive outra opção senão defender-me, eles viram. Só eu sabia o que as minhas mãos tinham feito. Resta agora convencer-me de que foi em legítima defesa, não fora um ajuste de contas. E, quando estiver diante do Criador, rezar para que também Ele esteja convencido. 37


ESTE LIVRO TEM 378 PÁGINAS

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Mais informações no blogue Sui Generis: http://letras-suigeneris.blogspot.pt


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