DECIFRA-ME... OU DEVORO-TE! - Guadalupe Navarro

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COLECÇÃO SUI GENERIS

DECIFRA-ME... OU DEVORO-TE!


COLECÇÃO SUI GENERIS Obras colectivas: A BÍBLIA DOS PECADORES – Do Génesis ao Apocalipse O BEIJO DO VAMPIRO – Antologia de Contos Vampirescos VENDAVAL DE EMOÇÕES – Antologia de Poesia Lusófona GRAÇAS A DEUS! – Antologia de Natal NINGUÉM LEVA A MAL – Antologia de Estórias Carnavalescas SEXTA-FEIRA 13 – Antologia de Contos Assombrosos SALOIOS & CAIPIRAS – Contos, Causos, Lendas e Poesias TORRENTE DE PAIXÕES – Antologia de Poesia Lusófona Obras individuais: AMARGO AMARGAR – Isidro Sousa ALMAS FERIDAS – Suzete Fraga MAR EM MIM – Rosa Marques O PRANTO DO CISNE – Isidro Sousa DECIFRA-ME... OU DEVORO-TE! – Guadalupe Navarro


GUADALUPE NAVARRO

DECIFRA-ME... OU DEVORO-TE!

EDIÇÕES SUI GENERIS


TEXTOS © 2017 GUADALUPE NAVARRO

Título: Decifra-me... ou Devoro-te! Autor: Guadalupe Navarro Prefácio: Isidro Sousa Posfácio: Suzete Fraga Revisão e Paginação: Isidro Sousa Capa (design): Isidro Sousa Capa (fotografia): Depositphoto Editores: Paulo Lobo e Isidro Sousa 1ª Edição – Março 2017 ISBN: 978-989-8856-07-4 Depósito Legal: 419840/16 EDIÇÕES SUI GENERIS Lisboa, Portugal https://issuu.com/sui.generis http://letras-suigeneris.blogspot.pt letras.suigeneris@gmail.com EDITORA EUEDITO geral@euedito.com www.euedito.com Impressão Print On Demand Liberis A cópia ilegal viola os direitos dos autores. Os prejudicados somos todos nós. Direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, por quaisquer meios e em qualquer forma, sem a autorização prévia e escrita dos Editores ou Autor. Exceptua-se a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro.


«Se você não consegue entender o meu silêncio, de nada irão adiantar as palavras, pois é no silêncio das minhas palavras que estão todos os meus maiores sentimentos.» OSCAR WILDE



in memorian, Alberto Rubio Alvarez



ÍNDICE

Prefácio ........................................................................................................... 11 A estátua de sal .............................................................................................. 17 O arrepio de Micaela ..................................................................................... 27 A mulher de branco ...................................................................................... 37 O sonho .......................................................................................................... 43 A máscara ....................................................................................................... 49 A armadura de Sancho ................................................................................. 61 O lado obscuro de Afonso .......................................................................... 67 Riacho .............................................................................................................. 71 O casarão ........................................................................................................ 81 O colar de pérolas ......................................................................................... 93 Totó ................................................................................................................. 99 Mea culpa ...................................................................................................... 105 Posfácio ......................................................................................................... 119 A autora ......................................................................................................... 125 Edições Sui Generis .................................................................................... 129



PREFÁCIO

Numa tarde abrasadora, em pleno esplendor de Agosto do ano 2015, a autora Guadalupe Navarro surgiu no meu percurso literário. Embora o seu nome fosse familiar, de uma obra poética em que ambos participáramos no início desse Verão, nunca havíamos trocado uma palavra. Ela abordou-me pelas redes sociais, solicitando esclarecimentos sobre a antologia A Bíblia dos Pecadores, cujo regulamento acabara de tornar público. Elucidada sobre a essência do projecto, que só abrangia textos em prosa, volveu algo assim: «Eu sou poetisa, não escrevo prosa.» Lamentou o facto de a nossa Bíblia de Pecadores não contemplar poesia, reiterando o seu interesse em participar numa obra colectiva tão instigante. Exploradas todas as possibilidades, sem todavia conseguir contornar essa limitação, Guadalupe Navarro acabou por considerar «Posso tentar escrever um texto; talvez uma crónica...» e mencionou a ideia que, nesse preciso momento, se lhe delineava na mente, sobre Sodoma e Gomorra. Recordando que, meses atrás, eu também experimentara escrever poesia para uma antologia poética, e fi-lo com êxito, incentivei-a de imediato: «Se sente vontade de escrever uma estória, não hesite!» Ainda renitente, mostrando-se receosa em adentrar num terreno desconhecido, aceitou o desafio, porém, salvaguardando que não se comprometeria. Nos dias subsequentes, à medida que ela cimentava pedra sobre pedra naquela muralha em que se transformaria o texto, expunha-me ideias, dava conta de avanços e recuos, receios e dificuldades, buscando sempre uma palavra esclarecedora que facilitasse o contorno de obstáculos literários. Até que decidiu mostrar as páginas que já redigira, ansiando que eu lhe transmitisse uma opinião sincera. 11


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Mal li os parágrafos iniciais, gargalhei. A trama, sobre a bíblica esposa de Lot em estátua de sal transformada quando fugia do fogo devastador disparado do céu sobre Sodoma, achava-se incompleta, todavia, vislumbrei logo que se tratava de uma sátira inteligente, divertidíssima – uma relíquia! Era difícil conter-me; as gargalhadas prevaleciam. Se até aí, porque desconhecia a escrita de Guadalupe Navarro, receava transmitir alguma indicação, para não constrangê-la ou melindrá-la, nesse instante a minha posição alterou drasticamente. Fui peremptório: «Tem de concluir o texto! Sem qualquer hesitação! É uma ordem! Força, Guadalupe!» Entusiasmada, mergulhou com ainda mais afinco nesse universo da prosa tão temeroso quão desafiante. Finalizou o trabalho. Quando me chegou às mãos, li-o e reli-o; ainda hoje não canso de o reler. A autora nem acreditava no fascínio que a sua estreia na prosa me despertara! Refiro-me a A Estátua de Sal, a mesmíssima sátira sobre o episódio da destruição de Sodoma, abordando a falta de hospitalidade, os excessos e a imoralidade que grassava nessa cidade remota, bem como as incursões incestuosas daquelas filhas que, julgando-se sozinhas no mundo, embriagam e seduzem o pai para, com ele, gerarem descendência. Essa estória, publicada em 2016 na antologia inaugural da Colecção Sui Generis, está compilada nas primeiras páginas deste livro que se acha nas vossas mãos. Daí em diante, a nossa cumplicidade, entre mim e a autora, acentuarse-ia de dia para dia, embora não houvesse convívio presencial, somente comunicação virtual pelas redes sociais; e a amizade crescendo, solidificando, uma confiança mútua enraizando-se. Guadalupe interessou-se por todas as obras colectivas que eu viria a organizar na área da prosa, participando nelas com regularidade. Nessa época (a Sui Generis ainda inexistia), concebi outra antologia para a editora que então dinamizava, intitulada Boas Festas, dedicada ao Natal. A estória natalina (O Arrepio de Micaela, também incluída neste livro), num registo diferente do texto anterior, que a autora fez chegar às minhas mãos despertou-me igualmente a atenção. E ela foi mergulhando, de modo crescente, no universo da prosa. Mostrava-me, inclusive, textos destinados a projectos de outras editoras. Fosse qual fosse o tema envolvido em novas antologias, ela fabricava imediatamente uma trama, visando participar. E que tramas apresentava! 12


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Uma imaginação fértil, prodigiosa, que surpreende constantemente. A sua capacidade de criar enredos complexos, quer sejam dramáticos ou humorísticos, aliada ao elevado grau cultural (os conhecimentos sobre História são soberbos), é incrível. E desenvolve cada tema com vontade férrea, inigualável, nunca vacilando perante obstáculos, só respira quando finaliza cada trama. Foi desse modo – atrevo-me a dizê-lo – que Guadalupe Navarro se viciou na construção de narrativas. Ao ponto de deixar para segundo plano a escrita poética, em prol da prosa. Um universo verdadeiramente irresistível que a emaranhou nas suas teias. Que a desafiou. Envolveu. Fascinou. Aprisionou! E muita água deslizou sob a ponte desde que ousou aventurar-se na espantosa e deslumbrante Estátua de Sal. Meses volvidos, em maré de confidências, ela revelaria pormenores da vida pessoal que vi reflectidos no perfil de algumas personagens; falaria também, despida de quaisquer complexos ou constrangimentos, sobre a paralisia cerebral de que é portadora e a forte depressão que a afectava na época em que me abordara. Naquele abençoado Verão de 2015 em que vários sonhos desencadearam o primeiro passo rumo à realidade... Frisou publicamente o quão bem o meu incentivo (a escrever prosa) lhe fizera, ajudando a superar essa fase menos boa – às vezes, basta um estímulo, um simples empurrãozinho para se ultrapassar o receio de falhar. Além disso, a solidariedade por ela manifestada, em momentos críticos da minha trajectória editorial, para contornar situações assaz delicadas, contribuiu mais ainda para aprofundar uma vera amizade, tornando-nos confidentes literários. E daí a considerar a possibilidade de editar uma obra pela Sui Generis, compilando textos redigidos ao longo dos últimos tempos, foi um salto. Na realidade, este livro, que marca um ciclo bastante significativo, verdadeiramente sui generis, no percurso da autora. Decifra-me... ou Devoro-te! principia com o magnífico A Estátua de Sal, primeiro texto em prosa de Guadalupe Navarro, destinado à antologia inaugural da Colecção Sui Generis, e finaliza com Mea Culpa, um drama igualmente inspirado em episódios bíblicos, concebido propositalmente para o segundo volume da mesma antologia, A Bíblia dos Pecadores. Entre o primeiro e o derradeiro texto, desfilam uma dezena de contos e crónicas de igual modo marcantes – estórias totalmente distintas, do drama à 13


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aventura, recheadas de humor e uma certa malícia, ou mesmo sarcasmo, redigidas com uma simplicidade sofisticada e, não raras vezes, uma ironia refinada, para as diversas obras colectivas, em Portugal e no Brasil, em que a autora participou. São estórias aparentemente simples, mas que se revestem de uma sensibilidade e uma intensidade profundas, explorando, todas elas, universos verdadeiramente sui generis. E o que dizer da galeria de personagens? Magistral! Maioritariamente femininas, as personagens destas tramas são figuras singulares, especiais, numa primeira vista um tanto “malucas”, mas que se revelam seres humanos incríveis, salvo raras excepções, dotadas de grande humanidade, as fragilidades mesclando com fortes personalidades, mostrando fraquezas, mas também a força interior que delas emana. Como a bela Micaela e os seus sintomáticos arrepios enquanto se embrenha nos afazeres para o Natal ou a sensível e solitária Mónica, em A Máscara, a filha rejeitada que busca forças no talento para colmatar o desprezo familiar e se enamora pelo homem errado. E também a espevitada Ludmila e as suas deambulações vampíricas, em O Sonho, a enigmática Rosana cujo misterioso retorno à sua cidade natal desperta atenções porventura indesejadas, em Riacho, e a atrevida e sofisticada Olga, que se envolve carnalmente, em Mea Culpa, com um membro do clero para tentar compreender uma antepassada por todos considerada a mula sem cabeça da sua região. Sem olvidar a deliciosa discussão com Santo António da exuberante narradora de O Colar de Pérolas, que diverte com as peripécias libidinosas da madame inglesa que “virou duquesa” e escandalizou a sociedade do seu tempo ao desencadear um evento insólito, deveras incomum, que envolvia “homens sem cabeça”, e ainda a destemida e imperturbável Rosa Martina, em A Armadura de Sancho, que viaja pelos confins da História e convive com espectros enquanto planeia instituir o dia especial (ou internacional) dos fantasmas, desvendando a origem de alguns mitos ou superstições. E a histérica e inescrupulosa editora Branca de O Casarão, autêntica “amiga do alheio” inspirada em certas realidades que grassam no meio literário e afectaram, de algum modo, a autora, é igualmente digna de registo. Ou de atenção! Se as mulheres que embelezam estas estórias fascinam, magnetizam, 14


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emocionam, fazem vibrar, as figuras masculinas, embora em desigualdade numérica, são também envolventes, sedutoras, carismáticas. Veja-se o executivo, jovem e elegante, que procura achar, em O Lado Obscuro de Afonso, a mulher que a sua falecida avó consideraria ser “uma moça decente” para casar, mas alimenta uma vivência sórdida, doentia, na clandestinidade, algo inimaginável numa mente aparentemente sana. Ou o discreto e charmoso António em A Mulher de Branco que experimenta, após uma noite de diversão entre amigos, ainda que casualmente, um encontro surreal, deveras inusitado, numa instigante narrativa que aborda o universo fantástico, onde referências mitológicas marcam presença, como Daphne, a bela e estonteante ninfa em frondoso loureiro transformada para escapar à perseguição desenfreada de Apolo, o deus da beleza que lhe inspira profunda aversão. A propósito, realçam-se referências às mitologias mas não só; os frequentes contextos históricos também se destacam nestas peças literárias, com inúmeras menções devidamente enquadradas a reis e rainhas, príncipes e princesas, imperadores, pontífices e a outras personalidades emblemáticas ao longo dos tempos, que denunciam o arraigado conhecimento, o elevado grau cultural da autora, de que se socorre, vastas vezes, para caracterizar cenários, personagens ou as ambiências que as rodeiam. E não se pense que é tudo! O mundo infantil, aliado ao reino animal, é recordado em Totó. Através da visão de uma adorável tartaruga, exilada num jardim zoológico após um acidente lhe ter danificado o casco, vamos conhecendo, numa narrativa profundamente nostálgica, uma saudade de corroer a alma, as complexas relações da sua família de acolhimento por tantos anos, que a adoptou como membro, onde se incluem três crianças que a adoram, particularmente a menina mais nova que “não é bem igual aos outros” e terá em si reflectido algo de autobiográfico, a quem a autora empresta vivências ou emoções nitidamente pessoais. As doze estórias que compõem as cento e cinquenta páginas de Decifra-me... ou Devoro-te! são divinas, irresistíveis, autênticos bálsamos para a alma. Estórias despretensiosas que numa primeira instância podem afigurar-se bastante simples, porém, revestidas de uma sofisticada complexidade; algumas aparentemente sem nexo mas de uma profundeza intensa, 15


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de um humanismo sem igual, ricas na nobreza de sentimentos, nos afectos ou nas relações interpessoais, bem como nos contextos em que são inseridas, nas ambiências envolvidas. Estórias enigmáticas, magistrais, em que cada protagonista, cada personagem, cada enredo convida à leitura... à viagem, ao mergulho no seu universo, ao desafio de desvendá-la. Estórias arquitectadas e levadas a cabo por uma alma sensível, cativante, mulher guerreira, autora talentosa, um ser humano deslumbrante que, independentemente de vicissitudes do foro pessoal, contagia todos, à sua volta, com a magia das palavras que agora dispersa ao mundo nas páginas deste livro. Palavras que deliciam, seduzem, envolvem. Palavras que prendem, anestesiam, deleitam. Palavras que, atingida a derradeira linha de cada trama, deixam sempre um sabor a pouco. Decifra-me... Ou Devoro-te! Ei-lo nas vossas mãos. Pois então, decifremno! Não sejam devorados... pelo pecado da ignorância. Isidro Sousa

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A ESTÁTUA DE SAL

Então, o Senhor fez cair do céu sobre Sodoma e Gomorra uma chuva de enxofre e de fogo, enviada pelo Senhor. (Génesis 19, 24)

O que seria dos poetas sem madrugadas insones vendo a noite morrer? É nesta espera que nascem alguns dos mais belos poemas já escritos... Cinco da manhã! Mais uma noite morreu... Que coisa triste! Bem, vou parar de gravar estas bobagens e tentar dormir. Mas, e o poema sobre a estátua de sal? Vou repassar a estória e tentar encontrar inspiração. A estátua de sal que está perto do Mar Morto seria a mulher de Lot que, fugindo de Sodoma, olhou para trás, contrariando as instruções dadas pelo Senhor. Mas este Senhor! Não conhece as mulheres! Somos curiosas e não aceitamos ordens!!! Também o coitado não teve mãe, nem irmãs, nem mulher... Como pode saber algo sobre nós? Mesmo assim, deveria ter um pouco mais de cuidado com o que faz. Tomara que o Senhor não me castigue e me transforme em uma estátua de sal! Que coisa horrível! Se é para passar a eternidade como estátua, prefiro ser estátua de ouro branco! Muito mais chique! Ou ao menos de chocolate, assim pode ser que algum bonitão me lamba e me leve para morar com ele. Que delícia ser lambida todos os dias!!! Hum... Melhor voltar à estória da coitada da mulher de Lot. Bem, continuando... O Senhor decidiu castigar Sodoma e, não satisfeito, resolveu destruir Gomorra. Ah, Senhor, porquê tanta raiva?!? De17


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vias procurar yoga, terapia ou qualquer outra coisa para controlar e entender esta raiva, Senhor. Olha a pressão! Já não és tão jovem assim. Aliás, qual é a tua idade? Desculpe, é falta de educação perguntar a idade dos outros. Voltando ao que realmente interessa: parece que Lot ocupava um lugar importante na cidade de Sodoma. Provavelmente, era juiz, e talvez seja por isso que tinha fama de homem justo. Dois anjos chegam (Anjos... Queria ver um chegar aqui, neste meu quarto, e me ajudar a escrever este bendito poema!!!) e encontram Lot que, temendo que os homens da cidade atacassem os anjos, os convida a passarem a noite em sua casa... Lhes oferece um banquete. Depois que os anjos encheram a pança, os homens da cidade (Também sem televisão, sem internet, os homens não tinham muita distração...) foram até à casa de Lot e queriam que ele lhes entregasse os anjos para fazerem uma algazarra. Ah, este povo de Sodoma poderia ter sido mais educado: bastava convidar os anjos para tomarem umas cervejas, conversar e saber se eles estavam interessados em algazarras. Como os homens insistiam que queriam os anjos, Lot quis fazer acordo com eles e entregar as filhas... Será que eu entendi bem?!? Para proteger os anjos, Lot quer entregar as filhas para os homens se divertirem com elas!!! Que coisa mais estranha!!! Talvez fosse um costume: proteger os hóspedes de qualquer incômodo... Vai ver que era a etiqueta da época. Seja como for, é muito estranho! Bem, como os homens não iam embora, os anjos lançaram um raio que os deixou temporariamente cegos e tontos. Gostei desta “arma”. Todos deveriam ter um raio desse tipo, para se protegerem dos assaltantes! Ah, mas não consigo esquecer uma coisa: porque Lot quis entregar as filhas?!? Será que era machismo? Antigamente, nós mulheres não valíamos muita coisa, éramos consideradas propriedade de pais ou maridos. Bem, até hoje em dia, em alguns lugares, a situação não mudou muito. Ih... já estou me desviando do assunto. Ou será que as filhas de Lot queriam participar da algazarra? Até eu tenho fantasias de fazer uma “festinha” com vários homens. Ora, quem nunca teve uma fantasia deste tipo que atire a primeira pedra!!! Ih, quem 18


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disse isso foi Jesus... Muito tempo depois de Lot, estou misturando as estórias! Este Lot, suas filhas e os anjos deixam qualquer um confuso! Mas, Senhor... Onde andavas que não evitaste esta situação?!? Afinal de contas, Senhor, tu mandaste os anjos. Estavas tirando um cochilo?!? Estavas vendo algum jogo de futebol ou coisa que o valha?!? Querias ver o circo pegar fogo, não é, Senhor? Confessa! Tu gostas de uma confusão, não é? Desconfio até que és voyeur. Sim, porque te preocupas tanto com a vida sexual dos outros... Andas espiando o que os outros fazem na cama... Tudo bem, Senhor, não há nenhum crime nisso! Todos têm um lado voyeur, porque tu serias diferente? Mas, e a mulher de Lot?! Onde estava quando tudo aconteceu? Será que, de tanto cozinhar para os anjos, ficou exausta e desmaiou? É bem provável que ninguém lhe desse muita atenção. Coitada... com um marido que preferia salvar os anjos e entregar as filhas! Ou com umas filhas que queriam se divertir com todos os homens da cidade! Ah, seja qual tenha sido a verdade, pobre mulher... Nem nome tem! Senhor, tu és um machista da pior espécie! De madrugada, os anjos advertem Lot que a cidade seria destruída por conta dos excessos de seus habitantes... Senhor, precisavas destruir a cidade inteira? E as mulheres, as crianças? E os cachorros?!? Bem se vê que nunca tivestes um cãozinho de estimação, Senhor! Se tivesses tido um, não poderias destruir um ser que expressa tanto amor em seu olhar. E as crianças, que culpa poderiam ter? Ah, Senhor, não te bastava Sodoma?!? Tinhas que destruir Gomorra?!? Acaso, andavas mal-humorado? Ou estavas de ressaca? Senhor, Senhor, Senhor, porquê tanta raiva?! Insisto!!! Tens que fazer yoga ou terapia para controlar esta tua raiva, elaborar teus traumas e aprender a conviver com tuas angústias sem descontar nos outros! O povo destas duas cidades pode ter exagerado... Talvez com uma conversa podias chegar a um acordo sem ter de ser tão radical, não achas, Senhor? Ih, eu falando com o Senhor?!? O que não se faz para conseguir inspiração para escrever um poema! Mas... sou teimosa e me meti neste Concurso de Poesia. Então, vamos ao que realmente interessa! Os anjos avisaram Lot que o Senhor 19


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destruiria as cidades para castigar o povo que andava exagerando em suas folias. Lot avisou os noivos de suas filhas que precisavam sair da cidade. Os rapazes acharam que Lot estava embriagado e, não acreditando, se recusaram a partir. Estranho seria se acreditassem na estória... Talvez já soubessem que Lot quis entregar suas noivas para os homens da cidade... Ou, quem sabe, não andavam desconfiados que suas noivas queriam mesmo se divertir com os homens da cidade? Mas que noivos mais chatos!!! Nem casados eram e já queriam mandar na vida das noivas!!! Ora, até parece que eles não se divertiam com outras mulheres! Bem, os noivos não foram atrás da conversa de Lot, preferindo ficar na cidade. Sem esperar o dia começar, os anjos avisaram Lot que deveriam partir... Senhor!!! Ninguém te ensinou que é falta de educação importunar os outros antes das dez da manhã?!? Por quê tanta pressa? Ora, coitados! Serem destruídos sem tomar café da manhã! Isso é maldade, Senhor!!! Aliás, como seria o café da manhã daquele povo? Será que comiam ovos mexidos? Hum... Que fome!!! Bem que podias ter esperado o povo acordar, se vestir e tomar café para destruí-los, não é, Senhor? Lot, a princípio, demora em obedecer aos anjos, talvez ainda duvidasse deles... Hummmm... Tenho certeza que quem demorou não foi Lot! Foram sua mulher e filhas que demoraram! Não há coisa mais difícil para nós, mulheres, decidir qual roupa levar em uma viagem! Imagina!!! Como uma mulher vai poder decidir o que levar, ao saber que sua cidade será destruída?! Senhor, Senhor, Senhor... O que tens contra nós, mulheres? Os anjos forçaram Lot, sua mulher e suas filhas a não levar coisa alguma! Coitados!!! Nem uns biscoitos, nem um pouco de água?!? Senhor, se gostas de fazer jejum ou sofres de anorexia, isso não é razão para fazer os outros passar fome e sede!!! Ora, que falta de consideração! És um egocentrista, Senhor! E, não contente com isso, mandas os anjos proibir todos de olharem para trás!!! Que diabos de anjos mais perversos são estes?!? Parecem capetas em vez de anjos!!! Anjos devem ser bonzinhos, bonitinhos e não dois chatos como estes!!! E lá foram eles... fugindo da destruição, sem biscoitos para matar a fome, sem água para beber... Senhor, sabes o que estou começando a 20


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pensar? Tens falta do que fazer!!! Por isso, tens essas manias de voyeur, essas raivas... devias arrumar uma ocupação. Ou então relaxar... livros de colorir ajudam a combater o stress... ou então fundar um abrigo para cãezinhos sem lar e ajudar a procurar uma nova família para estes bichinhos. Garanto que te sentirias feliz fazendo algo de bom por alguém. No caso de ajudar cãezinhos, estarias dando alegria a uma família, além de salvar da fome e da solidão um ser que tu criaste. Ora, não é por ter quatro patas que um cachorro merece menos atenção! E tu, Senhor, quantas patas tens? Sei não... Se fosses parecido com um urso panda, serias tão fofo! Por que não te juntas a alguma ong que luta pelos pandas? Coitados, estão se extinguindo!!! Bem que poderias ajudar a evitar este absurdo! Viste como há coisas mais importantes e agradáveis para fazer em vez de ficar destruindo cidades?! No meio do caminho, a coitada da mulher de Lot não resistiu à curiosidade e decidiu olhar para trás... Nada de mais, Senhor! Precisavas castigar a coitada transformando-a em uma estátua de sal?!? Ah, Senhor! Que estátua mais feia tu fizeste! Vi as fotos do que dizem ser a estátua! Sim, aquele espeto de pedra perto do Mar Morto. Que coisa horrorosa!!! Devias ter feito um curso de Escultura, Senhor! Que falta de respeito com a pobre criatura!!! Sei, ela desrespeitou teu conselho de não olhar para trás, mas era mulher!!! Como já te disse, somos curiosas, não gostamos de ordens... Pobre mulher!!! Passar a eternidade no meio do deserto sozinha, sem ter ninguém para conversar. Isso é maldade, Senhor! Tu deves ser bom e compreensivo!!! Confessa! Estavas mal-humorado! Destróis duas cidades, transformas uma pobre mulher em uma estátua espantosa... Hum... Se fosses mulher, diria que estavas com TPM! Espero que tenhas te arrependido de tanta maldade. Lot e suas filhas continuaram sua fuga de Sodoma... O que será que aconteceu com os anjos? Devem ter voltado para o céu, ou então foram relaxar em algum spa... Estes anjos deviam ser uns chatos!!! Não consigo imaginá-los relaxando, fazendo massagens, sauna, tratamentos para a pele em algum spa! Devem ter ido amolar outro pobre coitado. Lot e suas filhas foram morar em uma pequena cidade chamada Segor. Lá ficaram um tempo e depois, sem mais nem menos, se mudaram 21


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para uma caverna. Que coisa mais doida! Porquê morar em uma caverna?!? Senhor, será que também destruíste Segor?!? Pode ser, mas como conseguiste esconder isso? Bem, não vou ser injusta contigo, Senhor! Vai ver que os aluguéis estavam muito caros em Segor e Lot não tinha como pagar um apartamento... Ou, então, ele e as filhas se meteram em algum tipo de confusão... Sabe-se lá o que se passa na cabeça de alguém, depois de ter visto a mulher e a mãe virar estátua de sal! Com certeza, devem ter ficado perturbados. Viu, Senhor, o que faz nas vidas das pessoas?!? Bem, tenho que tentar te entender sem te julgar... Acho que precisas de ajuda. Não tiveste mãe, nem pai, nem infância. Esse negócio de seres onipresente, onipotente e onisciente te fez mal. Não tens limites. Não te importas com o outro. Fazes o que te dá na telha e os outros que se danem! Senhor, procura um terapeuta, vai ser bom para ti e para todo mundo. Pois é, Senhor... Por causa de tuas destruições, Lot e suas filhas acabaram em uma caverna. Será que acharam alguma que não tivesse morcegos? Tomara!!! E que não fosse muito úmida e nem muito fria... Coitados!!! Tomara que não tenham pegado uma pneumonia. Que será que comiam?!? Será que as filhas de Lot sabiam cozinhar? Não acredito. Bem, vou dar uma conferida no tal Gênesis. Ainda bem que tem a versão online. É só procurar no Google... Ah, Senhor! O Google deveria ser canonizado! Em vez de ficar canonizando tanta gente sem “eira nem beira”, devias falar com Francisco para fazer do Google um santo. São Google!!! Isso sim, seria algo relevante para a Humanidade! Afinal de contas, Senhor, nem todo mundo é onisciente como tu! Deixa ver o que aconteceu na caverna... Mas... Será que eu estou entendendo bem?!? Não é possível! Estas filhas de Lot! Senhorrrrr, coitado do Lot! Foi sexualmente abusado pelas próprias filhas!!! As espertas embriagaram o velhote e o seduziram! Será que ao menos lhe deram um bom vinho?!? Ressaca de vinho ruim é terrível... Senhor, estas garotas mereciam uma surra!!! Homem está difícil no mercado (aliás, Senhor, bem que poderias dar um jeitinho para acabar com a seca de homem que está acontecendo, hein?), mas abusar do pai é demais. Que vinho será que deram para ele beber? Tinto, branco, rosé? Merlot, CabernetSauvignon? Que importância tem isso?! Nem sei mais o que pensar! Pa22


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rece que Lot nem se deu conta do que fez com as filhas... Alto lá! Quando se bebe (disso posso falar com conhecimento de causa) não é verdade que não se sabe o que se faz, apenas o que se faz não parece ser tão errado... Ih, mas, assim sendo, Lot sabia o que fazia! Senhorrrr, me acode que vou ter um troço!!! Ah... Tu sabias que isso aconteceria! Afinal de contas, és onisciente! Achas isso certo?!? Bem, quem sou eu para questionar tuas decisões? Mas não há muita lógica nisso. Destróis duas cidades por causa das folias de seus povos e permites que Lot e suas filhas façam suas estripulias. Ora, ainda bem que a coitada da mulher de Lot virou estátua de sal para não ver isso!!! Agora, vou tentar dormir um pouco e, depois, tentarei escrever este bendito poema sobre a estátua. Estou chateada contigo, Senhor! Mas não se preocupe, daqui a pouco passa. Quem sabe, não podemos ficar amigos? Sinto que precisas de amigos sinceros e desinteressados. Adorar-te, idolatrar-te, é fácil. Entender-te, questionar-te, é difícil! Até mais tarde, Senhor. *** Ah... Que horas serão? Duas da tarde!!! Tenho de ir para a minha aula de pilates... Senhor, devias fazer pilates. É bom para a coluna, para a postura... Em vez de ficar maquinando destruições, espiando a vida dos outros, devias te preocupar mais com tua saúde! Te dei as dicas. Cabe a ti decidir o que fazer. Sabe, acho que quero ser tua amiga, Senhor. Amiga de verdade! Sem nada de adoração, de te achar divino... Apenas um ser que precisa de respeito e amor. Aceitas? Hummm, me deu uma vontade de escrever o poema sobre a estátua... Consegui! Escrevi um poema antes de tomar meu café-almoço. Isso sim, é um milagre! Vai ver que tu me deste uma mãozinha, Senhor. E bem que poderias me dar uma ajudinha para ganhar o concurso! Não, há gente que precisa mais de ti. E tu, Senhor, em vez de ficares destruindo cidades, castigando e julgando os outros, devias ajudar e amar todos pois, afinal de contas, esta é a tua verdadeira obrigação. Hum... Vou reler o poema para ver se está bom. 23


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A MULHER DE LOT Cravada na pedra Não deixas que de ti Se esqueçam... Mulher Coração pulsante no Peito Sangue correndo Pelo corpo Viraste o rosto Vendo o que não Era para ser visto Em estátua de sal Foste transformada Tal castigo Te salvou de ver O que mulher alguma Suportaria ver: Filhas nascidas de Tuas entranhas Conceberem filhos com O próprio pai! Mulher de sal De triste sorte A eternidade É ínfima Comparada à dor Que não te Atingiu 24


DECIFRA-ME... OU DEVORO-TE!

*** Ih... Já fazem duas semanas que enviei o poema da estátua e ainda não recebi nenhuma resposta. Sei lá, essa minha mania de tentar ser visceral em tudo que escrevo às vezes me atrapalha. Já me disseram que tenho de parar com a mania de querer imitar Florbela, que não deveria ler tanto Rimbaud... Com certeza, o meu poema não foi classificado. Vou continuar escrevendo, vai ver um dia acerto a mão e escrevo um poema que passe em alguma antologia. Mas que barulho é esse? Parece que vem da sala. Tomara que seja um fantasma! Eles são tão solitários... Querem alguém para conversar. E eu adoro conversar! Uma dessas madrugadas, apareceu um meio revoltado. Queria me assustar mas, como já conheço todos os truques, desistiu. Conversámos por horas... Era um garoto que foi pajem na corte de Carlos V. Foi uma sorte ele ter aparecido por aqui! Justo agora que começou a série sobre Carlos... Ele estava revoltado com a morte que teve! Levou um coice da égua que adorava. A coitada se assustou com um escorpião e saiu dando coice. Jogou o pobre garoto para bem longe. Deu azar de bater a cabeça em uma pedra. Já dizia um poeta: “No meio do caminho tinha uma pedra...” Perguntei a ele se era verdade que Carlos V queria trocar a noiva portuguesa pela viúva francesa do avô. Sabia dessa história, quer dizer... sabia que Carlos andou se divertindo com a avó postiça, parece que tiveram até uma filha, mas não pensei que ele quisesse acabar com o noivado! O pajem fantasma me contou que foi verdade! Carlos realmente se apaixonou por Germaine de Foix e pensou em ficar com ela. Mas como não ficaria bem se casar com a viúva do avô, casou com a bela Isabel de Portugal. Bem, o pajem fantasma agora é meu amigo. Adoro quando ele aparece e conta tudo o que se passava na corte imperial... Tem um vulto não muito grande no meio da sala. Será um fantasma anão? Um duende? Vou ligar a luz. Não acredito!!!... Nossa!!!... Que pacote mais lindo! Vermelho com uma fita branca! Vou abrir... Ah!!! Não acredito... Ele conseguiu!!! Que coisa mais linda! Vou mandar um 25


GUADALUPE NAVARRO

WhatsApp para ele... Senhor, viste como deu certo?!? Era só procurar um curso, mesmo online, que ias poder fazer esculturas. Adoreiiii a coruja!!!... Essa vai ter um lugar especial na minha coleção e no meu coração. Porque foi feita com carinho e esforço. És um artista nato, precisavas umas dicas e trabalhar com amor! Tenho certeza que vais conseguir fazer uma estátua da mulher de Lot muito melhor do que aquela que está no Mar Morto. E não te preocupes como vais fazer a troca das estátuas. Qualquer problema, Francisco resolve! Como vai a dieta? Já sabes, tens que te cuidar! Tua pressão melhorou depois que procuraste um professor de yoga. Agora, só falta aceitar fazer terapia. Sei que não é fácil, mas tens toda a eternidade para te convencer de que precisas de terapia! Até. Beijos

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ESTE LIVRO TEM 150 PÁGINAS

Para continuar a lê-lo, deverá adquiri-lo em: www.euedito.com/suigeneris

ou directamente à autora através do e-mail: grn3006@gmail.com Se preferir, solicite-o à Sui Generis pelo e-mail: letras.suigeneris@gmail.com

Mais informações no blogue Sui Generis: http://letras-suigeneris.blogspot.pt

Página da autora: www.facebook.com/rubionav


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