NINGUÉM LEVA A MAL - Antologia de Estórias Carnavalescas

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COLECÇÃO SUI GENERIS

NINGUÉM LEVA A MAL ANTOLOGIA DE ESTÓRIAS CARNAVALESCAS


COLECÇÃO SUI GENERIS Obras colectivas: A BÍBLIA DOS PECADORES – Do Génesis ao Apocalipse O BEIJO DO VAMPIRO – Antologia de Contos Vampirescos VENDAVAL DE EMOÇÕES – Antologia de Poesia Lusófona GRAÇAS A DEUS! – Antologia de Natal NINGUÉM LEVA A MAL – Antologia de Estórias Carnavalescas TORRENTE DE PAIXÕES – Antologia de Poesia Lusófona SEXTA-FEIRA 13 – Antologia de Contos Assombrosos SALOIOS & CAIPIRAS – Contos, Causos, Lendas e Poesias Obras individuais: AMARGO AMARGAR – Isidro Sousa ALMAS FERIDAS – Suzete Fraga MAR EM MIM – Rosa Marques O PRANTO DO CISNE – Isidro Sousa DECIFRA-ME... OU DEVORO-TE! – Guadalupe Navarro


30 AUTORES

NINGUÉM LEVA A MAL ANTOLOGIA DE ESTÓRIAS CARNAVALESCAS Organização e Coordenação ISIDRO SOUSA

EDIÇÕES SUI GENERIS EDITORA EUEDITO PORTUGAL


TEXTOS © 2017 SUI GENERIS E AUTORES

Título: Ninguém Leva a Mal Subtítulo: Antologia de Estórias Carnavalescas Autor: Vários Autores Organização e Coordenação: Isidro Sousa Revisão e Paginação: Isidro Sousa Capa (design): Ricardo Solano Editores: Isidro Sousa e Paulo Lobo 1ª Edição – Março 2017 ISBN: 978-989-8856-32-6 Depósito Legal: 423331/17 EDIÇÕES SUI GENERIS letras.suigeneris@gmail.com www.euedito.com/suigeneris http://letras-suigeneris.blogspot.pt https://issuu.com/sui.generis EDITORA EUEDITO geral@euedito.com www.euedito.com Impressão Print On Demand Liberis A cópia ilegal viola os direitos dos autores. Os prejudicados somos todos nós. Direitos reservados pelo Organizador e pelos Autores. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, por quaisquer meios e em qualquer forma, sem a autorização prévia e escrita dos Editores ou do Organizador. Exceptua-se a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Os Autores podem utilizar livremente os seus textos. A utilização, ou não, do actual Acordo Ortográfico foi deixada ao critério de cada Autor.


«Mas como é que Deus poderia gostar mais do dia de hoje, Quarta-feira de Cinzas, do que do dia de ontem, Carnaval? Não é Ele o Deus da Alegria e da Festa? Não é Ele o Deus da Vida e dos Vivos? Não é Ele o Deus da Plenitude e da Abundância? Não é Ele o Deus do Excesso e da Ressurreição? (...) A humanidade, cada vez mais liberta da nefasta influência do clero católico e da sua ideologia moralista, também gosta mais do Carnaval do que da Quarta-feira de Cinzas.» PADRE MÁRIO DE OLIVEIRA Escrito no seu diário numa Quarta-Feira de Cinzas


O Padre e Filósofo Anselmo Borges, num artigo publicado no Diário de Notícias, valoriza a dimensão “catártica” do Carnaval: «O homem não é só sapiens. Ele é sapiens e demens: sapiens sapiens e demens demens (duplamente sapiente e duplamente demente). Por mais que a sociedade tente normalizar comportamentos, haverá sempre explosões de alegria, excessos, desmesuras e loucuras.» E lembra que «foi tardiamente que os cristãos aceitaram os festejos carnavalescos às portas dos rigores quaresmais. Apesar das tentativas da Igreja oficial para travá-los, eles continuaram e impuseram-se». Porque o sagrado não sobrevive sem o riso.


ÍNDICE

Prefácio ............................................................................................................. 9 Exótico seduzir, João Santos .......................................................................... 17 Conto de Carnaval, Adeilton Lima ............................................................... 19 Faces ocultas, Ana Paula Barbosa ................................................................. 21 A carta, André Varela ..................................................................................... 25 E com que então não fazia distinção, Angelina Violante .......................... 29 Noites de Carnaval, Apolo ............................................................................ 35 Dia frio de Inverno, Augusta Silva ............................................................... 39 No tempo das folhas mortas – dancemos!, Carlos Arinto ........................ 47 Nada é o que parece ser, Denise Berto .......................................................... 55 Dudu, um fazedor de Carnaval, Florizandra Porto ..................................... 59 A máscara, Guadalupe Navarro ...................................................................... 65 Os amigos de Malachi, Isidro Sousa .............................................................. 75 Coisas de Carnaval, Ivan de Oliveira Melo ..................................................... 99 Colision point – Carnavais conectados, Jonnata Henrique ...................... 103 O Pierô e o outro, José António Loyola Fogueira ........................................ 109 O corso dos desejos, José Teixeira .............................................................. 113 O grande Clóvis, Júlio Gomes ...................................................................... 117 Sereia não samba, Marcella Reis .................................................................. 127


O disfarce, Maria Isabel Góis ....................................................................... Ninguém leva a mal, Marizeth Maria Pereira ............................................. As férias em Veneza, Rosa Marques ........................................................... O gato, o sacerdote e o pirata, Sakura Shounen ....................................... Máscaras de bem-estar, Sara Timóteo ......................................................... Que vidas vivem para lá das máscaras?, Sérgio Sola ................................ Nem tudo vale no Carnaval, Sertorius ....................................................... O demônio que me habita, Sidney Rocha .................................................. O preço da máscara, Suzete Fraga .............................................................. Um Carnaval diferente, Teresa Faria .......................................................... “Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele”, Tito Lívio ................... História de pescador, Vânia de Oliveira ..................................................... Vestígios de luar, João Santos ...................................................................... Os autores ..................................................................................................... Edições Sui Generis ....................................................................................

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PREFÁCIO

O Carnaval é um período de festas profanas que ocorre entre os Reis e a Quaresma, com o seu auge nos três dias anteriores à Quarta-feira de Cinzas, especialmente na terça-feira que antecede o primeiro dia da Quaresma. De todas as celebrações cíclicas anuais, esta é a mais grandiosa e uma das poucas manifestações que consegue envolver todo o público, apresentando maior riqueza de aspectos, grande variedade de elementos e uma característica complexidade de significações. A sua história começa na Antiguidade, com as festas de culto à deusa Ísis, no Antigo Egipto, e eventos relacionados com acontecimentos religiosos e agrários, embora também haja indícios de que tenha origem em festas pagãs e rituais orgíacos. Os romanos, os gregos e os egípcios davam as boas-vindas à Primavera com cultos de fertilidade, rituais de abundância para a agricultura e celebrações fartas, consagradas aos respectivos deuses. Alguns advogam o culto de Ísis, outros as festas em honra do deus Dionísio e outros as bacanais, lupercais e saturnais, festejos romanos de grande licenciosidade em que havia uso de máscaras. Na Grécia clássica, as primeiras seguidoras de Dionísio eram mulheres que escapavam, nos dias que lhe eram dedicados, da vigilância dos maridos, pais e irmãos, para caírem na folia com “danças furiosas e gritos de júbilo”. Nesses dias, saíam aos bandos, com os rostos cobertos de pó e vestes transformadas ou rasgadas, cantando e gritando pelas montanhas. Os homens, transfigurados em silenos e sátiros, não tardaram a aderir às procissões femininas e ao “frenesim dionisíaco” e a festança, que durava três dias, encerrava com uma bebedeira colectiva no meio de um “vale-tudo” pan-sexualista. As autoridades (as cortes, os sacerdotes e os ricos) não gostaram desses festejos malucos porque, entre outras razões, eram as vítimas favoritas das sátiras; tentaram reprimi-los. Além de serem uma teatralização colectiva da inversão de tudo, os festejos serviam como um acerto de contas do povo com os seus governantes, ainda que metafórico e psicológico. Neles, o miserável vestia-se de rei, o ricaço de pobretão, o libertino aparecia como guia religioso, a rameira posava como a mais pura donzela, machos vestiam-se como fêmeas e assim por 9


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diante. Dionísio, irreverente e debochado, estimulava que virassem o mundo de cabeça para baixo. A tentativa de repressão fracassou e Pisístrato oficializou as homenagens a Dionísio na Grécia, sendo nesta altura (século VI a.C.) que se instaurou o chamado Carnaval Pagão. Outra hipótese difundida entre pesquisadores é a de que o Carnaval tenha iniciado em Itália, com o nome de Saturnálias – em homenagem a Saturno, a Baco (o Dionísio romano) e a Momo. Saturno, deus da agricultura dos romanos, identificado como Cronos pelos gregos, pregava a igualdade entre os homens e ensinou a arte da agricultura. As comemorações, que se prolongavam por sete dias e incluíam bacanais, realizavam-se nas ruas, praças e casas da Antiga Roma e havia uma aparente quebra de hierarquia social quando todos se misturavam na praça pública. A separação da sociedade em classes fazia que houvesse a necessidade de válvulas de escape, através de sexo e bebida. Os festejos revestiam-se de tal importância que todas as actividades e negócios eram suspensos nesse período: tribunais e escolas fechavam as portas durante o evento, os escravos ganhavam liberdade temporária e as restrições morais eram relaxadas. As pessoas dançavam e trocavam presentes, um rei era eleito por brincadeira e comandava o cortejo pelas ruas e as tradicionais fitas de lã que amarravam aos pés da estátua de Saturno eram retiradas, como se a cidade o convidasse para participar na folia. Corridas de cavalo, desfiles de carros alegóricos, brigas de papelinhos, lançamentos de ovos e outros divertimentos generalizavam a euforia. Na abertura dessas festas ao deus Saturno, carros com aparência de navios surgiam na “avenida”, com homens e mulheres nus – estes eram chamados os carrum navalis, para muitos a origem da expressão carnevale. Embora haja muitas teorias sobre a origem do Carnaval, numa ideia todas elas convergem: a transgressão, o corpo, o prazer, a carne, a festa, a dança, a música, a arte, a celebração, a inversão de papéis, as cores e a alegria fazem parte da matriz genética de uma das manifestações populares mais belas do Mundo, que foi frequentemente alvo da repressão de quem não tolerava a subversão de um mundo virado do avesso. A opinião de historiadores sobre o Carnaval não é unânime, tanto em relação à data do seu surgimento como à origem da própria palavra “Carnaval”. Há efectivamente duas correntes distintas nesta abordagem, que se baseiam em duas oposições presentes nas actuais celebrações do Carnaval. A primeira é a oposição entre a ordem e a desordem, entre o mundo visível e quotidiano e as pulsões inconscientes, entre a representação e a vontade, entre o mundo que vemos e o mundo visto de cabeça para 10


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baixo. Nesta linha, a palavra “Carnaval” teria origem no vocábulo latino carrum navalis, os carros navais que faziam a abertura das Saturnálias e das Dionísias Gregas nos séculos VII e VI a.C. e onde a euforia e a inversão de valores se estendiam pelas ruas das cidades. A segunda oposição, com origem nitidamente cristã, é entre o Carnaval e a Quaresma, ou entre a Terça-feira de Carnaval e a Quarta-feira de Cinzas, que marca a entrada na Quaresma. A palavra terá surgido quando o início da Quaresma foi transferido para a quarta-feira (sendo a terça-feira legitimamente a noite do Carnaval) antes do sexto domingo que precede a Páscoa. Ao domingo anterior deu-se o título de dominica ad carne levandas, expressão que se abreviou sucessivamente para carne levandas, carne levale, carne levamen, carnevale e carnaval, todas variantes de dialectos italianos e que significam acção de tirar, isto é, “tirar a carne” ou “adeus à carne”. Com o advento da era cristã, a Igreja Católica começou por tentar conter os excessos do povo nestas festas pagãs e uma solução foi incluílas no calendário religioso. Então, o Carnaval Cristão passa a existir quando a Igreja (em 590 d.C.) oficializa a festa. Antes, a instituição condenava os festejos pelo seu carácter “pecaminoso”. A civilização judaicocristã fundamenta-se na abstinência, na culpa, no pecado, no castigo, na penitência e na redenção, renegando e condenando o Carnaval. Não obstante, as autoridades eclesiásticas da época viram-se num beco sem saída dada a força e espontaneidade das celebrações. Foi aí que houve a imposição de cerimónias oficiais “sérias” para conter a “libertinagem”. No entanto, é só em 1545, no Concílio de Trento, que o Carnaval é reconhecido como uma manifestação popular de rua. A Igreja Católica, que considerava tais festejos mundanos, decidiu adoptar essas festas de origem pagã e obscena, transformando-as em libertárias na tentativa de domesticá-las. E determinou que fossem promovidas na véspera do início da Quaresma, como uma espécie de compensação para o período de jejum e abstinência que antecede a Páscoa, momento em que os cristãos comemoram a ressurreição de Cristo, a vitória da vida sobre a morte. Assim, o Carnaval ficou sendo uma festa que termina em penitência na Quarta-feira de Cinzas. Os cristãos iniciavam as suas comemorações no fim de Dezembro, compreendendo os festejos do Natal, do Ano Novo e dos Reis, onde predominavam os jogos e os disfarces. Mas estas acentuavam-se no período que antecedia a Terça-feira Gorda, o último dia que se comia carne antes do jejum da Quaresma, durante o qual também havia, tradicionalmente, a abstinência de sexo e até mesmo das diversões, como circo, teatro ou festas. Desse modo, a origem da palavra “Carna11


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val” estará, igualmente, relacionada com a ideia de “festa do adeus à carne” e marcada pela junção de duas palavras latinas como carnis (carne) e valles (prazeres) ou carnis (carne) e levale (retirar). Após o Concílio de Trento, a Igreja considerava o Carnaval pecaminoso somente em círculos restritos, como a Corte Francesa anterior à revolução, onde os bailes de máscaras se transformavam em bacanais. Não entre o comum do povo entregue a ingénuos bailados e banhos de cheiros, revelando o vigoroso e sadio espírito de festa, a culminar nos cortejos expressando não só o pitoresco, mas frequentemente a crítica aos costumes e aos poderosos. Como a Igreja proibira as manifestações sexuais no festejo, novos divertimentos adquiriram forma: corridas, desfiles, fantasias, deboche e morbidez. Estava o Carnaval reduzido à celebração ordeira, de carácter artístico, com bailes e desfiles alegóricos. No Renascimento, as festas carnavalescas passam a incorporar os bailes com as suas ricas fantasias, os carros alegóricos e os corsos – o baile de máscaras é introduzido no século XV, mas ganha força e tradição no século seguinte, por causa do sucesso da Commedia dell’Arte. O Pierrô, a Colombina e o Arlequim datam dessa época, tendo origem na Comédia Italiana, companhia de actores que se instalou na França para difundir a Commedia dell’Arte. As mais famosas máscaras confeccionam-se em Veneza e Florença, muito utilizadas pelas damas da nobreza a partir do século XVII como símbolo máximo da sedução, verdadeiras peças de arte indispensáveis à libertinagem dos burgueses. Os excessos continuam associados aos festejos; não obstante, a Igreja Católica absolve-os de pecado e autoriza os fiéis a disfrutarem dos prazeres da carne, pois tudo será perdoado a seguir – desde que cumpram com rigor os quarenta dias de jejum da Quaresma, a purificação do corpo e da alma estão garantidos. E assim se manteve o Carnaval até ao século XIX, quando adquiriu outro vigor. Perdia em festa “bufa” e de rua, ganhava em elegância, alegoria, ordem e requinte artístico, além de tocar agora as classes mais abastadas, antes arredadas dos festejos populares. Na Europa Ocidental, bailes e desfiles organizados tomavam o lugar das turbas de gente etilizada e aos gritos. Este novo Carnaval europeu sobrevive ainda hoje; aliás, o Carnaval moderno, feito de desfiles e fantasias, é produto da sociedade vitoriana do século XX e a cidade de Paris foi o principal modelo exportador desta festa para o Mundo. Cidades como Nice, Nova Orleans, Toronto e Rio de Janeiro inspiraram-se no Carnaval parisiense para implantar as suas novas festas carnavalescas. Já o Rio de Janeiro criou e exportou o estilo de fazer Carnaval com desfiles de escolas de sam12


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ba para outras cidades do Mundo, como São Paulo, Tóquio e Helsínquia. Um dos principais rituais de Carnaval na Europa que se deve salientar é o Entrudo. Esta palavra vem do latim, significa introdução à Quaresma e existe desde que o Carnaval Cristão foi oficializado. O povo comemorava, comendo e bebendo, para compensar o jejum, mas o ritual tornouse, aos poucos, bruto e grosseiro, atingindo o máximo de violência e falta de respeito em Portugal, no século XVI, quando um homem do povo atirou uma “laranjada” a um nobre. Nessa época, atiravam água suja e ovos das janelas e dos balcões, nas ruas havia guerra de laranjas podres e restos de comida e cometia-se todo o tipo de abusos e atrocidades. Foi assim que a festa de Carnaval chegou a Portugal, recebendo o nome de Entrudo, através de uma brincadeira agressiva. O evento tinha uma característica essencialmente gastronómica e era marcado por um divertimento violento, cujas partidas incluíam brigas e vassouradas, baldes de água (e de outras coisas) despejados das janelas, lixo arremessado, cal esfregada nas roupas e nos cabelos, escadas ensaboadas à espera do trambolhão; faziam-se esferas de cera com o interior cheio de água-decheiro que eram atiradas aos transeuntes e os mais ousados começaram a injectar, no interior das “laranjinhas” ou “limões-de-cheiro”, substâncias malcheirosas e impróprias, o que fez que a festa fosse perdendo a sua alegria. No entanto, estas práticas foram proibidas e o Carnaval entrou na ordem dos cortejos, nas batalhas das flores e nos salões de baile. Em finais do século XIX, nas aldeias portuguesas, o Entrudo era um momento de transgressão calendarizada e aceite por todos: uma catarse de pulsões, a purga necessária ao regresso à ordem, um momento de igualdade e de liberdade para todos, aceite pelos poderosos. Nas cidades, o Carnaval transformou-se numa forma de “luta de classes”, com uma insolência e irreverência (e montras de lojas partidas) que assustavam os burgueses. Todavia, os exageros do Carnaval urbano foram regulamentados e domesticaram-se os festejos, com a criação dos desfiles. Dentre as comemorações características de cada região, um especial destaque para as máscaras dos Caretos e os próprios Caretos. São máscaras assustadoras, misteriosas e fascinantes, que andam à solta no Inverno transmontano, uma tradição que tem raízes milenares e transforma pacatos rapazes em diabos, chocalheiros, zangarrões e caretos, que afugentam e animam aldeias inteiras e os forasteiros que lá vão só para as ver. Os preparativos para os dias de festa começam antes do Inverno chegar ao Nordeste português. Os artesãos trabalham a madeira, o cabedal, o latão, a lã. Aos poucos aparecem as caras e os fatos que vão esconder a identi13


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dade dos rapazes. Assim, temíveis e divertidos, os mascarados quebram a rotina do quotidiano rural. O disfarce é a chave destes rituais que anunciam um novo ciclo: na Natureza e na vida dos homens. Os mascarados transmontanos simbolizam a vida que se renova na Primavera, a entrada num tempo fecundo e próspero, a passagem da puberdade à idade adulta. A comunidade revitaliza-se e reforça laços nestas festas organizadas pelos rapazes. De chocalhos à cintura e vara na mão, eles têm o diabo no corpo – correm, saltam, dançam, perseguem as raparigas solteiras, intimidam os visitantes. A brincar a brincar, este Carnaval recicla tradições e enche de orgulho o povo aldeão, cujas festas de Domingo Gordo e do dia de Carnaval são da inteira responsabilidade dos Caretos, seres mágicos que vivem nas máscaras e nos trajes exuberantes, que invadem as ruas da aldeia para expurgar os males e purificar. E, claro está, para dar umas “chocalhadas” nas raparigas casadoiras. Esta forma de celebrar o Carnaval, que é hoje uma atracção turística, vem do tempo dos romanos, embora alguns autores reportem as festividades ao período do Neolítico. Além dos Caretos, outros foliões como Cabeçudos e Matrafonas continuam de pedra e cal no Carnaval lusitano. Mesmo em tempo de crise, o espírito de festa mantém-se vivo, as tradições carnavalescas são cumpridas à risca, razão pela qual a expressão “a vida são dois dias e o Carnaval três” soma e segue ao mesmo ritmo com que se preparam os festejos em várias regiões do País. Sempre com a alegria e o simbolismo próprio desta época. De Norte a Sul, são diversos os cortejos, as máscaras e os bonecos que respeitam a tradição, enchendo as ruas de cor e fantasia. Organizam-se os corsos, enfeitam-se bonecos e importa-se o samba do Rio de Janeiro, mas nem por isso perdemos a nossa identidade cultural. O Carnaval de Torres Vedras, por exemplo, é considerado “o Carnaval mais português de Portugal” e não tem espaço para introduzir hábitos ou costumes oriundos do estrangeiro. Tudo leva a crer que as suas facécias tenham emergido no rescaldo da luta dos Republicanos contra a dinastia dos Braganças, no início do século XX. A imponência das vestes reais, que integram elementos de ridículo como o ceptro régio transmudado em corno ou o leque de Sua Sereníssima Alteza, a Rainha, alterado para abano de fogareiro plebeu, parecem credibilizar esta génese. A festa mantém-se fiel às tradições que a popularizaram na rua, desde 1923, altura em que se fez a recepção ao Rei e ao qual se juntou, um ano depois, a figura da Rainha. O modelo dos Reis do Carnaval ainda hoje persiste, mas fazendo jus às sátiras sociais e políticas, à base de caricaturas de personalidades públicas, é composto por duas figuras masculinas, uma 14


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delas trajada de Rainha. O centro da cidade serve de palco a brincadeiras, aos corsos nos quais participam os carros alegóricos, de grandes dimensões, Matrafonas (homens vestidos com roupas de mulher), Cabeçudos (bonecos gigantes), grupos de desfile e os Zés Pereiras, terminando com o enterro do Entrudo – condenação do Rei – e fogo-de-artifício. O Carnaval brasileiro, por sua vez, tem origem no Entrudo português e surgiu com as primeiras caravelas da colonização. Mais precisamente: o Entrudo desembarcou no Brasil no século XVI, com a chegada de portugueses das ilhas da Madeira, Açores e Cabo Verde, e a principal diversão dos foliões era atirar água uns aos outros. Tal como em Portugal, era uma festa cheia de inconveniências, na qual participavam tanto os escravos quanto as famílias brancas. Após insistentes intervenções e advertências da Igreja Católica, substituíram os banhos de água suja por limões de cheiro, esferas de cera com água perfumada ou água de rosas e bisnagas cheias de vinho, vinagre ou groselha. Esses frascos deram lugar ao lançaperfume, bisnaga ou vidro de éter perfumado de origem francesa. No final do século XVIII, o Entrudo era já praticado em todo o território de Vera Cruz. Embora muitos da elite na Corte Imperial o considerassem uma festa suja e violenta, a maioria dos senhores libertava os escravos para a folia, cujas brincadeiras e folguedos variavam conforme os locais e os grupos sociais envolvidos. Com a mudança da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, surgiram as primeiras tentativas de civilizar a festa carnavalesca no Brasil, através da importação dos bailes e dos passeios mascarados parisienses, colocando o Entrudo popular sob forte controlo policial. A partir de 1830, sucede-se uma série de proibições na tentativa, sempre infrutífera, de acabar com a festa grosseira. O evento brasileiro recebeu também muitas influências das fantasias e máscaras italianas, que começaram a ser difundidas no século XIX, e só no século XX é que recebeu elementos africanos, considerados fundamentais para o seu desenvolvimento. Com essa mistura de costumes e tradições tão diferentes, o Carnaval do Brasil é, presentemente, um dos mais famosos do Mundo e atrai imensos turistas dos cinco continentes. Os primeiros grandes clubes carnavalescos no Rio de Janeiro surgiram em 1855. Outro importante movimento foi o dos cordões, nascido em 1885, que originou os blocos e, mais tarde, as escolas de samba – é a primeira manifestação de Carnaval influenciada pela cultura e religião africana, formada por negros, mulatos e pessoas humildes, que saíam às ruas animando o povo ao som de instrumentos de percussão e músicas compostas especialmente para os desfiles comandados pelo apito do 15


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mestre que estava sempre à frente dos músicos. No início do século XX, já diversos cordões e blocos desfilavam nas cidades. A primeira escola de samba foi fundada em 1928, no Rio de Janeiro; a Praça Onze, nesta cidade, tornou-se no local mítico de concentração das escolas nos dias de Carnaval, incentivando, de ano para ano, o aparecimento de novas escolas, que foram surgindo até chegarem à grande festa que se vê hoje e faz do Carnaval uma das maiores manifestações populares do Brasil. Actualmente, existem outras formas de Carnaval por todo o País, como o da Bahia, de tradição africana e com sonoridades e ambientes diferentes do do Rio de Janeiro (veja-se o cortejo dos Afoxés), ou os de Olinda e Recife, igualmente animadíssimos e marcados pelas músicas de ritmo frenético e contagiante, em batidas sincopadas a par de instrumentos de sopro. E o frevo, uma “combinação de canto, toque e dança”, classificado como património imaterial da cultura brasileira, domina ainda o Carnaval de alguns estados do Nordeste, como Pernambuco e Paraíba. Quanto às escolas de samba, são hoje autênticas empresas de espectáculos e há regras próprias dentro delas, quer de admissão, quer de permanência, quer de actuação dentro de um desfile de Carnaval. Porém, são elas que mais animam o evento carnavalesco, atraindo uma miríade de colaboradores ao longo do ano e um frenesim inusitado na época do Carnaval. Posta esta explanação, para que possamos ter algumas noções sobre a história do Carnaval ao longo dos tempos, e pegando numa das imensas expressões populares – É Carnaval, ninguém leva a mal – organizámos esta obra colectiva, para a qual se seleccionaram três dezenas de estórias de trinta autores lusófonos, ambientadas ou inspiradas no Carnaval, e estão presentes, entre elas, dois textos que ocorrem no Halloween, já que este é considerado um “Carnaval fora de época” em algumas comunidades. Ordenadas alfabeticamente a partir dos nomes dos autores, são estórias totalmente distintas entre si, cujos registos variam do drama à comédia, da aventura ao romance, passando pela fantasia, sobrenatural e biografia, ou seja, incluem um pouco de tudo, independentemente das sensibilidades, culturas, experiências de vida e estilos dos seus autores. Alguns foram já distinguidos em concursos literários e certames similares, conquistaram prémios e menções honrosas e têm livros individuais editados, e outros continuam a fazer a estreia literária numa edição Sui Generis; as suas biografias (resumidas) estão incluídas no apêndice desta antologia. Boas leituras! Isidro Sousa 16


EXÓTICO SEDUZIR João Santos

Rompem bombos, batuques, bengalas, tlintintins a acompanhar, remexem ancas, saltos... dos altos, há glúteos a rodopiar! No centro a mesa, em seu torno: safadeza; é euforia a começar. Sabe a Verão, é emoção, é calor para se dançar... Treme a bunda, abana o chão, os corpos dançam a cortejar. Dança o mineiro, dança o holandês, dança o intruso português, dança o velho, dança o novo, aqui samba todo o povo, dança quem se permite sentir este exótico seduzir, nascido, vivido para contagiar – o samba sabe apaixonar...

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CONTO DE CARNAVAL Adeilton Lima

Para Aníbal Machado Diante do espelho fazia os últimos retoques na maquiagem. Já se ouvia ao longe o som de um tamborim, um pandeiro e uma cuíca. A fantasia resultou de algumas economias ao longo do ano. Teve que engolir muita coisa a seco para estar ali se preparando para o grande momento. Poderia ter visitado a família ou aproveitado aquele dinheirinho para comprar um colchão novo e alguma peça de roupa, ou mesmo para uma pequena reforma no barraco. Isso tudo, sem contar o coração já tão baqueado pelo gingado da vida e que precisava com urgência de um tratamento. A voz do médico ainda ecoava na memória. Mas não. Nada poderia ser mais importante que sua fantasia, o sorriso efêmero das pessoas, a letra gloriosa do seu samba favorito. O tamborim renovava o convite a cada instante. As pessoas já se reuniam na concentração. O enredo da escola naquele ano tinha tudo para ser campeão. Mais um pouco e veria sua própria vida escorrendo pela avenida. O pandeiro dava o ar de sua graça, ao que seus pés não resistiam. Ali, diante do espelho, tudo era devaneio sob o telhado puído do quarto. Reforçou a maquiagem sob os olhos para esconder as olheiras, um pouco mais de talco para endurecer as lágrimas também puídas. O coração em descompasso era como o badalo de um sino chamando para a missa. Talvez sua alma já estivesse em cinzas antes mesmo de qualquer quarta-feira. Sobre o salto, a sua fantasia; sobre o seu corpo, um enredo ou arremedo de vida, tanto faz. Tal fronteira limitava a voz na garganta, e desafinou na primeira tentativa. Cambaleou como se estivesse bêbada, uma 19


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embriaguez de serpentinas, uma chuva imaginária de confetes sufocando-lhe a respiração. Caiu no chão do quarto vendo no teto o estandarte de sua própria história. A escola iniciava mais um desfile sob o choro disfarçado de uma cuíca.

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FACES OCULTAS Ana Paula Barbosa

– Sai daí, levanta-te, que me estás a irritar – aplicando o gesto às palavras, arrancou com um movimento brusco a manta castanha que cobria as pernas de Cristina. – Olha que jeitosa: não bastava a mantinha, com essas meiazinhas pirosas pelo tornozelo; parece que casaste há seis anos; ainda hei-de encontrar-te de bata e lenço na cabeça, afundada nesse sofá. Recolhendo as pernas, não se moveu: só queria esconder o coração, em algum canto escuro, para que parasse de doer: adorava Isabel, mas não agora, não naquele momento em que só queria que a deixasse só. – Deixa-me – atreveu-se, sabendo a priori que o seu pedido seria ignorado. – Deixa-te tu... dessas mariquices; uma rapariga com tantas qualidades, pareces uma velhota, enterrada num maple, como se o Mundo fosse acabar e não tivesses Rennie’s para o enjoo. – Para mim, o Mundo acabou... tu sabes! O meu Mundo ruiu e só sobrei eu... – Isso é tudo muito bonito, muito apocalítico, mas para Shakespeare... dramas e horrores para aqui não são chamados, nem tão pouco permitidos, minha querida! Vá, levanta-te ou passas pela vergonha de sair assim nessa figura e às cavalitas. Esboçou um sorriso triste, vincado pelas lágrimas recém-vencidas pela angústia: – As Rennie’s são para a azia – tentou desviar o assunto. – Tu estás enjoada, não aziada; estás de luto por um homem vivo. E que vivaço que ele está! – impiedosa, Isabel, limpando as pedras do caminho, tão saturada estava de “dramaturgia cristiana” de terceira categoria –, e não mudes de assunto: ou vens, ou vens, que comigo não há 21


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meio-termo, já devias saber. A custo, Cristina ergueu-se nos antebraços; as pernas recusavam-se a esticar e, muito menos, a obedecer-lhe; compôs os cabelos com as mãos, tencionando prendê-los num rabo-de-cavalo e assim satisfazer a amiga. – Anda lá, que eu ajudo-te – deitou-lhe a mão, decidida. – Vais ver que vais gostar e até divertir-te: é Carnaval e ninguém leva a mal... se o Natal é quando o Homem quiser, o Carnaval também é... só não rima por um décimo de inspiração. Isabel é uma pessoa singular, uma amiga única, forçou-se a reconhecer. Muito próximas desde a infância, tão diferentes quanto poderia imaginar-se, Cristina não vivia à sua sombra, como muitos julgavam: unidas, invejadas e inseparáveis, sobretudo nas passagens mais difíceis. – Vais pôr este vestido verde, com esta carteira; os sapatos podem ser aqueles, repara que estou a ser boazinha. – Isabel conduziu-a até ao quarto de vestir, amparando-a. – Essas “lindas meiazinhas” podem ir directamente para o caixote do lixo – irónica, emprestou os actos às palavras, sem comiseração. – Afinal, para onde queres levar-me? – Vamos ao Palácio dos Anjos – decidida, mostrou o convite –, o mais animado da cidade. – Estou cá com uma animação... – interrompeu Cristina, numa vã e desesperada tentativa de deixa-me-em-paz-que-é-só-isso-que-quero. – Não estás, mas vais ficar, garanto-te. E, pelo menos, o champanhe é grátis: podes absorvê-lo para afogar as mágoas, como diz o povo. Anda lá, solta esse cabelo – e soprou-lhe pó compacto para o rosto, provocando uma nuvem de partículas, associada ao ataque de tosse de Cristina. – Ora muito bem, um toque de gloss e estás linda! – Estou, estou... amarrotada por fora, destroçada por dentro – as lamúrias pareciam não ter fim. – “Amarrotada e destroçada”, que bonito par de adjectivos para a noite de Carnaval: Do not think about tomorrow, Let tomorrow come and go, Tonight you've got a nice warm boxcar, Safe from all the rain and snow. – Não sei onde já ouvi isto, mas gosto – imparável, Isabel não iria desistir –, afinal, minha cara, o João nunca te mereceu: usou-te ao seu 22


NINGUÉM LEVA A MAL

bel-prazer, serviu-se das tuas influências para subir na vida, apoderouse dos teus conhecimentos em proveito próprio, não passa de um mero oportunista, um alpinista social. E tu, em vez de o atirares ao poço, como merece, estás aí armada em Calimero. – Tu não entendes: eu gostava dele, mesmo. A sério, e ainda gosto. – Gostavas dele ou gostavas de ir para a cama com ele? – Que estás a dizer?! Sexo é secundário, sabes bem disso, eu gosto mesmo dele. Com ele, sentia-me tão... sei lá... amada. O motorista do táxi que entretanto tinham apanhado olhou com mais atenção pelo retrovisor, passando a mão pelo bigode: o diálogo tinha o seu interesse, sem dúvida. – Querida, sexo é secundário, mas do tipo “primário”: queres que descreva as propriedades terapêuticas que uma boa cama tem?! Cristina não argumentou, sentia-se cada vez mais arrependida por ter cedido à insistência de Isabel: não queria ir a festa nenhuma, nem ouvir música. Muito menos dançar ou beber champanhe. Não queria nada. Apenas ficar quieta. Quieta. Imóvel. Até a dor se afastar, devagarinho. Ou até João voltar. – “Amada” rima com “enganada” e com “usada”, que são quase a mesma coisa – filosofou Isabel, com a sua dose desconcertante de ironia. E acrescentou: – Essa segurança que o amor te dá é uma ilusão. – Ai, quando queres, és insuportável – num ímpeto, Cristina explodiu tudo que retinha. – Para quê dar-te ouvidos? Antes atirar-me da ponte! – Não faças isso, que a água está gelada. Estamos a chegar – o magnífico edifício brilhava na noite escura, trazendo com ele os acordes da orquestra. – Está cá toda a gente – certificou-se Isabel –, as pessoas que importam. – Que bom; era mesmo o que eu queria. O entusiasmo de Cristina era semelhante a uma tragédia grega e foi de braço dado com ele que entrou na festa. Os lustres queimavam o ar com tal calor que estremeceu. Isabel recomendou: – Põe a máscara à frente da cara, é suposto que ninguém te reconheça. – Ainda mais essa – resmungou Cristina, como resposta, que Isabel ignorou; pegando-lhe pelo cotovelo, encaminhou-a para a mesa de acepipes. – Olha uma tostinha de queijo, para curar o azedume – e sorriu, provocadora, enquanto trincava o aperitivo. A amiga franziu o nariz, demonstrando descontentamento: no fundo, 23


ESTÓRIAS CARNAVALESCAS

estava grata, muito agradecida a Isabel, pela determinação e (também) pelas verdades cruéis: desde crianças que nos ensinam a não mentir – que é feio! – mas os adultos esquecem-se de avisar que a verdade dói, fere com o seu gume acutilante, amputa sentimentos e razões. – Gosto de “pessoas fáceis”, sabes? Cada vez gosto mais! – Os olhos escuros de Isabel brilhavam, dançantes e provocadores, por detrás do leque com que encobrira o rosto. – Dessas que não estão com meias medidas, nem se fazem rogadas. Se proponho “Vamos?”, respondem com “Já lá devíamos estar”, que não são enjoadinhas; “Ah, vou ver se posso, depois falamos”, indecisas galopantes, sem saber o que querem. E tu, como a maioria, queres o que te é vedado – só quero quem me quer, o resto são floreados inúteis. Cristina afastou o olhar do da amiga; sabia que proferia aquelas palavras para a provocar, para a contradizer, para forçá-la a sair daquela amálgama de contradições. – Tu sabes lá o que queres... – contrapôs com indiferença. – Tudo sempre te foi fácil... – Como para ti! A diferença é que tomo partido dessa facilidade e não complico, sonhando com o impossível, com o que causa danos: não me deixo enganar, e depois? É crime, porventura? – Um dia, tu também vais cair nas malhas da vida e depois falamos. – Um dia, mas não esta noite – garantiu Isabel, com firmeza. O rapaz que se aproximava ouviu as duas últimas frases, garantindose: – Isa & Cris, impossível não as reconhecer. – Beijou a face de Cristina, enquanto enlaçava Isabel pela cintura, transpirando à-vontade. – Seu malandro! Chegas e não dizes nada?! Estás cada vez mais giro! Será por isso que não avisaste? – Cheguei há dois dias e ainda não parei, acreditas? Quero pôr a conversa em dia – e, num movimento ágil, segurou a mão de Cristina, fazendo-a rodopiar até à pista: a mão reconheceu a outra mão, o corpo identificou-se com o ritmo acostumado. Há quantos anos não dançavam juntos? A música embriagou os sentidos. Irresistível sedução que o tempo não afogara. Deixou-se embalar, entregando-se àquele instante único em que o Mundo pára e nada mais existe. Sentiu os lábios aflorarem o pescoço, tocado ao de leve na orelha esquerda e a mão apertou com força, mas suave, a outra mão. Do bar, Isabel ergueu o olhar, que cruzou com o de João – no piso superior – e um sorriso aflorou à boca de ambos. 24


A CARTA André Varela

A gente do mar cheira a peixe. De pele curtida pelo sol como um casaco de couro envelhecido. A gente do mar cheira a tabaco e abraços. Cheira a sal e amor. É dura, muito dura, mas cheia de nós. A gente do mar cheira a tintol e a cerveja. Tem areia nas pernas e onde calhar. Sabe muito e é simples. Abraça como ninguém; respeita, respeita muito. E ai de ti se te armas em galaró. Não gostam. Têm olhos que marejam. Nunca percebi se esta expressão se refere aos homens como o meu avô Gilberto. Homem franzino e forte como aço temperado; carregava-me aos ombros; numa das mãos um balde cheio do que o mar ofereceu, a outra encostada às minhas costas para que não caísse. Tão fácil para aquele pequeno pescador; tinha em si toda a força do mundo. Está velhote. Precisa dos outros, logo ele que nunca precisou de ninguém. – Assim não dá. Vamos, vamos, faça-me a vontade – disse-lhe; e nada. – Por mim, por mim. Tu que me carregaste nos ombros até os quilos serem demais, Tu que enfrentaste intempéries que a minha imaginação não concebe, Tu que partiste ossos. Tu que a desafiaste vezes sem conta e a prostraste de joelhos. Maior que a vida, maior que o mundo. Cheiro a mar e gasolina, a força e amor. Não, assim não dá. Os teus ossos fraquejam, mas levanta a alma, olha para mim, pelo menos. Se choro, repara. Não ignores como se cá já não estivesses. Mirraste, mas és tão grande. Ajuda-me a ajudar-te. Anuiu. – Vá, mais para cá que essa barba tem de ficar bem feita. Estou a magoar, avô? – Mas que jeito, filho? – devolveu Gilberto, indagando porquê, na25


ESTÓRIAS CARNAVALESCAS

quele seu linguajar algarvio. – Nada disso. – Ora bem, então olhe para mim, levante esse pescoço. Espectáculo! Sai daqui todo bonito. – Não gosto nada dessas barbas que vocês usam. Eu fazia todos os dias. Uma vez deixei um bigode fininho porque gostava muito do Errol Flynn. – Tá bom assim? Acho que está feito. – Falta aqui um bocadinho, filho. – Tem razão. Espere aí. Pronto, está impecável. – Oh filho, já está feita? Mas que jeito? – exclamou avó Judite em espanto. – Devias tirar curso de barbeiro que o teu avô demora muito e corta-se todo. Ah! Mas que lindo! Até se ri... E aquele sorriso valeu por mil e por outros tantos que me foram negados. Gente do mar. Olhos vergastados pela chuva e pelo vento, córneas tristes e marejadas de sal; de Deus? Do deles? De ambos, possivelmente. De fúria, de coragem, de medo, de vitória? Talvez não se aplique nenhuma ou talvez todas; e, por escassez, perco-me. Porque olhos marejaram à minha frente e não se assomaram do salitro e do vento. Assomaram-se de mim. E carregavam neles aqueles olhos que enfrentaram intempéries sem saber ainda como cá estão. As mesmas lágrimas salgadas. *** Deambulando o cão por essas ruas e cafés de terra de cheiro a maresia e gentes morenas e valentes, eis que oiço: – Olha, tu! Conheço esse canito. Parei e olhei para o homem. Prosseguiu: – És neto do mestre Gilberto. – Pois sou. – Tu é que és o Andrézinho! – Andrézinho? É pá, nunca me chamaram isso! De onde vem essa conversa? – Este linguado é para o Andrézinho, este robalo é para o Andrézinho, este polvo é para o Andrézinho, dizia mestre Gilberto. – E assim o imagino, entre dois bafos dos quatro maços que fumava por dia e dois goles de vinho tinto. Avô, prometa-me que esta semana vamos à rua para você esticar essa perna partida em Agosto e essa alma magoada por 87 anos de vida. 26


NINGUÉM LEVA A MAL

– Não sei, filho, não sei. Talvez quando estiver sol. Mas o sol não chegou. Muito menos em Fevereiro, pleno Carnaval. Época festiva e de grandes excessos por estas partes. As noites colam-se aos dias e os vultos outrora arqueados pelo peso da faina revelam-se leves e ébrios. Longas e plásticas cabeleiras esvoaçam por todos os recantos, em cada mesa, em cada rua, em cada porta. Pernas vigorosas e cabeludas mal disfarçadas por meias de rede rotas e ensopadas de cerveja. Os seios vigorosos e disformes, os traços rudes esborratados de baton e rímel; as vozes, as mesmas vozes das esplanadas por onde deambulo eu e o cão. Por aqui, é tradição os homens mascararem-se de mulheres. Todos esganiçam as cordas vocais e arranham dois tons acima; mas as vozes são as mesmas. Há apalpões, gritinhos estridentes e promessas de teor duvidoso por onde quer que se ande. Estes são os dias de tirar a carapaça e enfiar a carapuça; vestir (a) outra pele. E como se regozijam, nos seus trajes mal-arranjados, deixando para trás uma aspereza que não desaparece, mas se disfarça. Há algo de lírico e profundamente irónico neste hábito, que não carece de grandes interpretações. Parece catártico. A faina que espere, que o Carnaval são três dias e aqui quem dorme não é homem que valha. Nada de sargos e sardinhas, polvos ou carapaus; o que vale é a insinuação e a piadola, a antítese do que se vive todos os dias, por entre vagas e escamas. Sem pudores nem maledicência, o que interessa é desconstruir o quotidiano. E que bem o fazem, sem mácula nem dúvida. Quando se abrem bocas desdentadas borradas de baton vermelho, impossível é não sorrir. E assim é, todos os anos, e ninguém falta ao chamamento. Mas como a toda a regra corresponde uma excepção, eis que deparo com alguém que, à minha semelhança, se mantém em seus trajes habituais. Por entre mesas pintadas de tinto e cinza, empurrões e gargalhadas, estava o Qalenga. Há dois dias que o conhecia pelas minhas incursões pela vila, onde se aprende muito e se é acarinhado. Cumprimentei-o e convidou-me a sentar um pouco, quase como por afinidade por sermos os únicos não transformados em donzelas suspirantes. O Qalenga, homem robusto, calvo, de feições marcadas pelo sol e sorriso fácil e terno, ofereceu-me uma cerveja. Declinei respeitosamente. Perguntei-lhe: – Então, não se disfarça também? – Não me apeteceu. É Carnaval, ninguém leva a mal. E trata-me por tu, se faz favor. 27


ESTÓRIAS CARNAVALESCAS

E lá ficámos, como velhos amigos, unidos pela falta de indumentária. Falou-me de política, da pesca, das vezes em que se candidatou à Junta, sem nunca ganhar, não fosse ele o “Álvaro Cunhal cá do sítio”. Rimos, pelo menos duas ou três vezes. Sorrimos muitas mais. – Pois é, meu amigo – disse – se o Carnaval são três dias, é pena que a vida só sejam dois. Mas é assim. Vamos andando. – Pois, o importante é irmos andando... – ficando-me pela frase feita do costume, antes de verificar que era chegada a minha hora de recolher. Levantei-me e despedi-me: – Então, vamo-nos vendo por aí, um abraço. O Qalenga não respondeu; supus eu que tivesse a minha voz sido silenciada pela música alta e pelos berros inebriados que povoavam o ar. No dia seguinte, encontraram o Qalenga. Pelos vistos, andou perdido. Estava pendurado pelo pescoço num baraço que fez de um cinto; deixou uma carta; tinha um bom casamento e três filhas lindas e era homem de negócios e de vícios (e quem não é?). O meu avô e avó conheciam o Qalenga, “Um bom moço, bem-disposto, toda a gente gostava dele. Dizem que tinha dívidas”. Pois é, mas parece que a maior dívida tinha-a a vida; e não se fez rogada em cobrar. E assim vamos andando. *** Está frio. É Fevereiro. O Carnaval acabou e agora só para o ano. Avô, prometa-me que esta semana vamos à rua esticar essa perna partida em Agosto e essa alma magoada por 87 anos de vida. – Não sei, filho, não sei. Talvez quando estiver sol.

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ESTE LIVRO TEM 226 PÁGINAS

Para continuar a lê-lo, deverá adquiri-lo em: www.euedito.com/suigeneris

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Mais informações no blogue Sui Generis: http://letras-suigeneris.blogspot.pt



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