O BEIJO DO VAMPIRO - Antologia de Contos Vampirescos

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COLECÇÃO SUI GENERIS

O BEIJO DO VAMPIRO ANTOLOGIA DE CONTOS VAMPIRESCOS


Colecção Sui Generis A BÍBLIA DOS PECADORES – Do Génesis ao Apocalipse O BEIJO DO VAMPIRO – Antologia de Contos Vampirescos VENDAVAL DE EMOÇÕES – Antologia de Poesia Lusófona NINGUÉM LEVA A MAL – Antologia de Estórias Carnavalescas SEXTA-FEIRA 13 – Antologia de Contos Assombrosos


37 AUTORES

O BEIJO DO VAMPIRO ANTOLOGIA DE CONTOS VAMPIRESCOS Organização e Coordenação ISIDRO SOUSA

EUEDITO


© 2016 ISIDRO SOUSA E EUEDITO http://letras-suigeneris.blogspot.pt www.facebook.com/letras.suigeneris letras.suigeneris@gmail.com Título: O Beijo do Vampiro – Antologia de Contos Vampirescos Autor: Vários Autores Organização e Coordenação: Isidro Sousa Revisão e Paginação: Isidro Sousa Capa (design): Ana Cláudia Marques Editor: Paulo Lobo 1ª Edição – Abril 2016 ISBN: 978-989-99568-8-9 Depósito Legal: 407645/16 EUEDITO geral@euedito.com www.euedito.com Impressão Print On Demand Liberis

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«Todas as três possuíam dentes brancos que luziam como pérolas em contraste com os rubis de seus lábios sensuais. Havia algo nelas que me tornou inquieto, algum desejo e ao mesmo tempo algum medo terrível. Senti no meu coração o anseio mau e ardente de que me beijassem com aqueles lábios vermelhos.» BRAM STOKER Drácula

«Veio pelo pátio, abrindo as janelas sem um ruído, um homem alto de pele delicada, cabelos louros e movimentos graciosos, quase felinos. E, delicadamente, estendeu um xaile sobre os olhos de minha irmã e diminuiu a chama da lâmpada. Ela adormeceu ali, ao lado da bacia e da toalha com que tinha humedecido a minha testa, e não se moveu até de manhã. Mas, então, eu já estava profundamente transformado.» ANNE RICE Entrevista com o Vampiro

«O vampiro, especialmente depois que a sua irracionalidade foi estabelecida pela ciência do Iluminismo, tornou-se um veículo ideal para que os escritores expressassem os seus próprios sentimentos complexos e para ilustrar as suas experiências mais aterrorizantes.» J. GORDON MELTON O Livro dos Vampiros: Enciclopédia dos Mortos-Vivos



OS VAMPIROS

No céu cinzento sob o astro mudo Batendo as asas pela noite calada Vêm em bandos com pés de veludo Chupar o sangue fresco da manada Se alguém se engana com seu ar sisudo E lhes franqueia as portas à chegada Eles comem tudo eles comem tudo Eles comem tudo e não deixam nada [bis] A toda a parte chegam os vampiros Poisam nos prédios poisam nas calçadas Trazem no ventre despojos antigos Mas nada os prende às vidas acabadas São os mordomos do universo todo Senhores à força mandadores sem lei Enchem as tulhas bebem vinho novo Dançam a ronda no pinhal do rei Eles comem tudo eles comem tudo Eles comem tudo e não deixam nada


No chão do medo tombam os vencidos Ouvem-se os gritos na noite abafada Jazem nos fossos vítimas dum credo E não se esgota o sangue da manada Se alguém se engana com seu ar sisudo E lhe franqueia as portas à chegada Eles comem tudo eles comem tudo Eles comem tudo e não deixam nada Eles comem tudo eles comem tudo Eles comem tudo e não deixam nada

Zeca Afonso


ÍNDICE

Prefácio ............................................................................................................ 11 A luz e a escuridão, Akira Sam ..................................................................... 15 O raio vampírico, Amélia M. Henriques ........................................................ 23 Besame mucho, Ana Paula Barbosa .............................................................. 28 Darklua Júnior – De férias com o papai, Anderson Furtado ...................... 32 O príncipe que vestia de preto, Andrea Reis ............................................... 39 Uma sur(presa), Angelina Violante ................................................................ 42 Impactante animal, Antônio Guedes Alcoforado ............................................. 49 Monte Cascais, Augusta Silva ......................................................................... 52 Os vampiros, Carlos Arinto ............................................................................ 59 A heresia do sangue, Daniel Damien ............................................................. 68 Vampiros na aldeia, Estêvão de Sousa ............................................................ 71 A menina do lago, Eugen Weiss ..................................................................... 76 Lenôra, Fábio De Bari ..................................................................................... 81 Do sonho à realidade, Fernanda Kruz ........................................................... 86 Imortalizada, Flávia Mendes ........................................................................... 93 O sonho, Guadalupe Navarro ......................................................................... 98 A odisseia de Diogo, Isidro Sousa ................................................................ 104 Estranho vizinho, Ivan de Oliveira Melo ...................................................... 132 Estranho entardecer, João Almeida ............................................................. 141


Vampire Revolution, Jonnata Henrique ....................................................... 148 Os segredos da serra, Jorge Manuel Ramos .................................................. 155 A Condessa Draculina em Braga, José Teixeira ......................................... 164 Uma paixão de morte, Leonor Matos .......................................................... 167 Para a eternidade, Leopoldo Pontes ............................................................... 176 Salvação, Maicon Ferreira Vale ..................................................................... 178 Clavícula de Sol, Marcella Reis ..................................................................... 181 De uma outra vida, Maria Correia ............................................................... 187 Imortalidade – O caso Safira, Patheres de Sá Dias .................................... 196 Destino traçado, Patrícia Alves .................................................................... 202 A hora do disfarce, Pedras Nuas ................................................................. 210 Noites de Carmim, Ricardo de Lohem .......................................................... 217 A oracular, Sara Timóteo ............................................................................... 228 Cenários enganadores, Sérgio Sola .............................................................. 232 Anjos... Quem os viu e quem os admirou, Sertorius ................................ 242 Kayla: Sede de vingança, Suzete Fraga ....................................................... 249 O meu vampiro de estimação, Tito Lívio .................................................. 257 Sombras do velho mundo, Wagner S. G. Azevedo .................................... 267 Os Autores .................................................................................................... 273


O BEIJO DO VAMPIRO

PREFÁCIO

O mito é um instrumento de materialidade das subjectividades do mundo; é uma narrativa de carácter simbólico-imagético relacionada com determinada cultura, que procura explicar e demonstrar, por meio da acção e do modo de ser das personagens, a origem das coisas – de qualquer coisa que seja fantasiosa. E o ser humano, procurando compreender o universo que o rodeia, criou mitos que emergem como grandes metáforas capazes de sintetizar a forma como ele entende e organiza o caos da Natureza e da Humanidade, bem como materializar o que há de mais recôndito na sua alma. Surgem, então, seres monstruosos que corporificam os receios, os horrores e até mesmo os desejos humanos, entidades que ganham força através do mito, cristalizando-se no imaginário social ao mesmo tempo em que colocam o ser humano diante de si mesmo – é como se, por intermédio destes seres, pudéssemos descortinar o lado escuro de cada um de nós, revelando-nos totalmente. É nesse contexto que se recorreu, através da literatura, à mitologia romena para dar origem a uma figura eterna, misto de violência, sensualidade, perigo e fascínio, que atravessaria os séculos: o vampiro. A crença em vampiros é remota; está documentada na antiga Babilónia, no Egipto, na Grécia, na China, entre os Astecas e os Incas. O Livro dos Mortos egípcio permite-nos entrever a fome e a sede insaciáveis das almas dos falecidos. Na Grécia Antiga, a Empusa – um dos espectros de Hécate, que poderá ter inspirado a lenda sobre os vampiros, uma vez que se alimentava de humanos com as presas que se prolongavam dos seus caninos – levava os jovens que eram atraídos para a sua cama à morte para lhes beber o sangue e comer a carne. No Talmude, livro sagrado do Judaísmo, a primeira mulher de Adão foi Lilith e ela, por desobedecer e abandonar Adão, foi transformada num monstro que perambulava à noite em busca de vingança contra os filhos de Eva. Por sua vez, a crença em íncubos e súcubos, popular durante a Idade Média, foi corroborada por Santo Agostinho, ao escrever que os demónios tinham «imortali11


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dade corporal e paixões como os seres humanos», e por São Clemente, ao dizer que os demónios têm paixões humanas mas não têm órgãos, usando para seu intento os órgãos dos seres humanos ao deitarem-se por cima (íncubos) ou por baixo (súcubos) deles durante a noite. No entanto, o termo “vampiro”, que vem do húngaro “vampir” e entrou na Língua Portuguesa através do francês “vampire”, só passou a ser utilizado no século XVIII. Embora tenham raízes antigas, os vampiros adquiriram proeminência na cultura ocidental somente em finais do século XVII e início do XVIII. Entre 1720 e 1730, surgiram relatos sobre vampirismo na imprensa do Leste Europeu: de criaturas misteriosas que assombravam uma cultura ocupada em livrar-se, naquele momento, da superstição e do irracionalismo. Quanto ao primeiro momento literário do vampiro, ocorreu na poesia. Em 1748, o poeta alemão Heinrich August Ossenfelder escreveu Der vampir, inspirado em discussões académicas de cunho científico acerca da existência destes seres que dominavam a Europa no século XVIII. Na prosa, a primazia é atribuída ao inglês John Polidori, que estabelece, com o conto The Vampyre (1819), as marcas do género e revela que o mito deixa de pertencer apenas ao imaginário popular, passando definitivamente para os registos literários. O seu vampiro, Lord Ruthven, era um aristocrata cosmopolita que se misturava à sociedade do seu tempo e abriu caminho para o romance de James Malcolm Rymer, Varney, The Vampyre or The Feast of Blood (1847), uma obra de transição entre o conto de Polidori e as obras Carmilla (1872) de Sheridan Le Fanu e Drácula (1897) de Bram Stoker. Com Le Fanu, surgiu a mulher vampira, personificação da figura feminina da mulher fatal que encanta, seduz – a personagem que empresta o seu nome ao título da obra, Carmilla, é uma vampira que ataca jovens mulheres, numa trama com conotações lésbicas. Bram Stoker, por sua vez, revolucionou com o seu texto epistolar as produções góticas da época, ao descortinar as aventuras de um ser imortal preso à vida por ter em si uma amargura e um gosto maior por sangue, e deixou marcado um perfil que definiria, daí em diante, a imagem do vampiro. Desde a sua introdução no romance, o Conde Drácula é descrito como um homem de maneiras requintadas e costumes excêntricos. Polido, bem-educado e com espírito pesquisador, embora solitário, cujas demonstrações de violência não são exactamente aterrorizantes, mas resultados da sua busca por alimento e de uma sexualidade intensa que emerge como a sua principal característica. Da Europa à América, passando por outras regiões do Planeta, o 12


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vampiro começa a ser utilizado como uma alegoria para o mal e a libido implícita da perversão como forma de transgressão dos modelos de comportamento. Nesse início de manifestação literária, ele é, sob todos os aspectos, o objecto que leva à perversão, à transgressão da moral social. Sempre associado à beleza e à promessa de prazer, é a personificação das nossas possíveis sublimações da morte física, burlando a natureza mortal do ser humano. A temática da morte, do sobrenatural, aliada a certa morbidez, encontrou neste cenário a sua melhor personificação, já que o vampiro é o protótipo do homem sedutor, imortal, perverso, que fascina todos e fatalmente os leva à desgraça. Encarnando o paradoxo, os vampiros são mortos-vivos, transgredindo a oposição entre vida e morte, e não se reflectem no espelho, excedendo as alternativas de presença e ausência. Nesta perspectiva, trazem consigo a sua violência e a sua indiferença, reconhecidas pelo pensamento da tradição que conjuga as pulsões de Eros e Tânatos. Apresentam, portanto, uma dimensão dionisíaca, pois estão ligados ao prazer e à crueldade, à paixão e à morte. E estas personagens vão descortinando, cada vez mais, as distorções de comportamento humano, de devassidão, temas relacionados com o perverso e o monstruoso que vão ganhar maior profundidade a partir das Crónicas Vampirescas de Anne Rice, iniciadas em 1976. Com Anne Rice, o vampiro Lestat já sintomatiza a condição pósmoderna: ele é um ser que vive na errância, percorrendo séculos e continentes, totalmente à deriva, confrontando-se com a impossibilidade de resposta à pergunta que o dilacera: qual é o significado de tudo isto? Os vampiros de Anne Rice fazem emergir uma consciência existencialista e melancólica ao mesmo tempo em que vivem o conflito moral que envolve o acto de matar para se alimentar, quer tornando isso um tormento eterno, quer transformando-o em fonte de satisfação, de possibilidade para experimentar a diversidade e a novidade proporcionada pelos séculos. Salienta-se ainda a forte erotização do vampiro que ganha novas dimensões, uma vez que tal aspecto é associado à busca de alguém com quem vivenciar a imortalidade e a sede de sangue. Se em Drácula o vampiro ataca apenas mulheres, na obra de Anne Rice os vampiros atacam indiscriminadamente aqueles que mais lhes despertam os seus desejos; contudo, estes não se consumam porque o vampiro só é sexualizado no sabor que experimenta com a morte da sua vítima – e, após a morte da vítima, ele necessita de caçar outras vítimas, deixando um rasto de corpos exauridos no próprio prazer. Não obstante, há casos particulares 13


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(raros) em que ele salva a sua vítima da morte, transformando-a em vampiro, mas o corpo de outro vampiro é incapaz de lhe proporcionar prazer, já que a fome voluptuosa do vampiro não cessa jamais, nem pode ser aplacada por algo que não seja o sangue humano. Imortalidade, sedução, mistério, sexualidade, terror e suspense fazem deles personagens fascinantes que amedrontam, atraem, seduzem. O vampiro, morto todavia vivo, moldado nas sombras da sociedade, obcecado por sangue, incorpora o lado mais escuro, porém, não menos real da existência humana; por outras palavras, o vampiro literário imediatamente justapõe na sua figura tanto as luzes quanto as sombras que alicerçam a vida humana. Posta esta explanação, olhemos para o livro que se acha nas vossas mãos, cujas narrativas que o compõem abordam, de um modo ora intenso, excêntrico ou fantasioso, ora superficial ou mesmo subtil, o tema dos vampiros. O repto para organizar esta obra colectiva foi lançado em finais de 2015, sob o lema Terror e Sensualidade. Sete dezenas de cartazes, difundidos ao longo de um par de meses nas redes sociais, exibiram (diariamente) imagens bastante variadas, inspiradoras de novos enredos, às quais ninguém mostrou indiferença nas duas margens do Atlântico. Cumprida a campanha, eis a selecção de trinta e sete textos em diversos géneros; da aventura ao romance, do drama à comédia, do policial à ficção científica, um pouco de tudo! Ordenados alfabeticamente a partir dos nomes dos seus autores, são trechos variadíssimos e foram escritos por trinta e sete autores – vinte e dois portugueses e quinze brasileiros – distintos entre si, com diferentes sensibilidades, culturas, idades, experiências de vida e estilos. Alguns foram já distinguidos em concursos literários e certames similares, conquistaram prémios e menções honrosas e têm obras individuais editadas, e outros continuam a estrear-se no universo das letras numa edição Sui Generis; as suas biografias, embora resumidas, podem ser consultadas no apêndice desta antologia. Apresento-lhes, então, O Beijo do Vampiro. Boas leituras vampirescas!

Isidro Sousa

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A LUZ E A ESCURIDÃO Akira Sam

O céu noturno era claro, a luz da lua caía suave sobre o vale adormecido e as sombras brincavam entre as árvores, criando formas incomuns, um vento cortante atravessava o rico som dos seres noturnos, amenizando e acariciando; o belo anjo sorriu, não tinha medo de nada, mas tinha uma curiosidade imensa sobre o mundo dos humanos, aquele mundo onde finalmente estava pisando, graças à permissão dos guardiões, e, mesmo que sua missão ali fosse apenas observar e nunca interagir, estava feliz. Aquela cidade onde agora estava ficava na costa do Japão, uma pequena cidade costeira; durante muitos anos aquele vale sofreu com grandes catástrofes naturais, foi assolado por terremotos, maremotos, doenças, até que finalmente seus habitantes, em sua maioria, o deixaram e partiram para outras regiões, e a cidadezinha permaneceu ali, quase morta, apenas com alguns moradores antigos, que já não se lembravam das desgraças ali ocorridas, mas talvez por uma lembrança coletiva morava longe do mar, nas áreas mais elevadas do vale solitário. Ali o jovem anjo podia caminhar sossegado, fazendo suas imensas asas brancas desaparecerem em suas costas, ele era apenas um jovem, um adolescente vestindo um jeans velho e desbotado, rasgado nos joelhos, uma camiseta branca e tênis, seu cabelo era uma mistura de sol e vento revolto, um loiro cintilante e levemente rebelde, que tocava seus ombros de leve, sua pele pálida como a lua, seus lindos olhos como jóias verdes, curiosos e perfeitos demais, mas o mais interessante era o sorriso bonito, aberto, livre de medos e preocupações, em um rosto puro e inocente, um rosto angelical; ele fora alertado pelos guardiões para não interagir com os humanos, pois estes podiam facilmente se apaixonar por ele, e isto podia ser perigoso, só não explicaram perigoso para quem, mas ele não se preocupou, não ali, naquele local quase perdido do mundo. 15


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O anjo evocou seu nome mentalmente, o seu poder estava oculto ali, repetiu várias vezes: – Uriel, Uriel, Uriel. Então começou a caminhar pelo vale, entre as folhas que caíam naquele outono frio, sentiu na pele o vento e na boca o gosto da neve, embora ela ainda não estivesse caindo, e notou à sua frente uma enorme construção abandonada, um velho templo Shinta, com seus antigos tons de terra e vermelho ainda visíveis em sua arquitetura, sinais de desmoronamento sugeriam que seus antigos monges o deixaram depois dos terremotos, mas a construção sobreviveu parcialmente, e o anjo curioso ali entrou, observou a nave interna, absolutamente linda, e notando uma escadaria que descia em espiral a seguiu, descia solo adentro; tocando as mãos nas pedras frias sentia a força da terra, nua e bela, e desceu até um local onde provavelmente se guardavam livros antigos, mas que agora abrigava apenas poeira, e uma cama grande de casal, antiga e pesada, estranhamente limpa, com tecidos negros a cobri-la, sedosos e perfumados. O anjo cheirou o ar, nenhum cheiro de humanos, mas havia ali perfume de rosas e de algo mais, um cheiro bom de terra molhada e folhas verdes amassadas, apesar disto alguém dormia na cama, alguém que não fazia som algum, e o ser angelical se aproximou devagar, curioso, e pela primeira vez em sua jovem existência temeroso; ao se aproximar da cama viu um homem ali, um jovem de cabelos muito negros, mais longos que os seus, porém muito lisos, sua pele era pálida mas bonita, quase cremosa, seus lábios tinham a cor das maçãs maduras e pareciam igualmente saborosos, e ele dormia ali, suavemente, os braços deixados ao lado do corpo, a cabeça de lado, fios de cabelo negro caindo no rosto bonito, e o anjo sentindo algo diferente e novo não resistiu e se aproximou, não queria ser visto, mas precisava ver um pouco mais daquele ser lindo que dormia tão tranquilo naquele local inusitado. Com dedos leves o pequeno ser tocou os cabelos negros e sentiu na pele a textura macia, não resistiu àquele rosto belo e com a suavidade dada somente aos anjos beijou aquela boca, seus lábios não deviam acordar o outro, pois ele sabia se ocultar de humanos, mas durante o beijo olhos cor de violeta se abriram, cintilantes, e mãos macias se ergueram e tocaram sua nuca, o prendendo um pouco mais, aquela boca suave envolveu a sua e o beijo casto se transformou em algo mais profundo, sua boca foi invadida por uma língua ávida e quente que explorava cada milímetro, cada espaço, acariciante e faminta, e então ele foi solto, ofegante e assustado, e viu com total incredulidade aquele homem se sentar na 16


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cama, sorrindo e olhando para seus olhos directamente; com o susto ficou paralisado, tinha acabado de se deixar ser visto. – Isto é muito interessante, ser acordado por um beijo, e quem em sã consciência entraria em um templo abandonado e me beijaria? Diga-me seu nome, menino lindo... Aquela voz era doce e hipnótica e ele se viu abrindo os lábios e sem perceber acabou falando seu nome, aquilo que devia ser o mais absoluto segredo. – Meu nome é Uriel; eu estava apenas caminhando e acabei aqui. – Sei... Sente-se aqui ao meu lado, Uriel. E o anjo obedeceu, seu coração saltava no peito, tinha certeza que o outro podia ouvir suas batidas fortes e descompassadas, mas aquele doce aroma era inebriante e aquela presença fascinante demais, por um momento pensou em como seus superiores ficariam zangados com ele por ter se deixado ver, e pior ainda por ter dito seu verdadeiro nome para um humano, mas simplesmente não conseguia resistir e depois não era capaz de mentir, afinal era um anjo e os anjos sempre dizem a verdade, mesmo que ela seja dolorosa, mas enquanto estes pensamentos passavam por sua mente o outro levou a mão até seu rosto e acariciou sua pele frágil e sobrenatural, aquele toque era frio e quente ao mesmo tempo e fazia sua pele formigar de um jeito completamente novo, de um jeito que ele nunca antes tinha sentido. – Uriel, você parece um anjo loiro, sabia disto? – Falou o outro sorrindo, ainda tocando sua pele, agora na altura do pescoço, tirando alguns fios de cabelo rebeldes dali, e este gesto fez o anjo soltar um som rouco que subiu de seu peito e arranhou sua garganta, era um gemido suave, lento, que o anjo percebeu num instante e o deixou subitamente envergonhado. “O que estou fazendo? Como isto pode estar acontecendo comigo?” – Posso te beijar de novo? – O outro perguntou, já se aproximando dele, os olhos brilhando impossivelmente naquela claridade suave, que ele nem sabia de onde vinha, e que não se importava em saber, no momento tudo que queria era aquela boca na sua, o consumindo em algo novo, em algo que ele não sabia que existia no mundo humano, um sentimento que o aquecia por inteiro, fazendo seu corpo puro arder, e ele cedeu, deixou-se levar, fechou os olhos verdes e entregou-se ao outro, e os lábios se uniram, macios e lentos, e desta vez ele moveu seus lábios também, aprofundou aquela sensação, buscou a boca alheia, e por fim pararam em busca de ar, mas o outro já descia a boca por seu pescoço 17


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alvo, e então sentiu uma fisgada aguda, uma dor quente que logo se transformou em algo bom, e então se tornou gostoso, uma onda de prazer o tomou por inteiro, seu corpo tremeu, as mãos que o seguravam o deitaram na cama, seu corpo estava leve e quente, abriu os olhos por um instante e tocou os cabelos macios do outro, mas adormeceu em seguida. – Acorde Uriel, acorde pequeno anjo... E o som daquela voz o fez voltar, ele abriu os olhos devagar e viu o outro sentado na cama ao seu lado, parecia ainda mais belo, seu rosto estava corado e suas mãos quentes tocavam seu rosto, e o anjo lembrou que nem sabia seu nome. – Qual o seu nome? – Eu me chamo Lucas, estou vivo há trezentos anos e nunca antes em minha existência solitária provei um sangue tão puro, sei que você não é humano, mas não sei o que é, e já que estamos nos apresentando, eu sou um vampiro, isto te assusta, pequeno? O anjo sentou na cama, sentia a cabeça leve, tocou o pescoço meio dolorido e percebeu na ponta dos dedos algo molhado, que notou ser sangue, seu sangue, havia sido mordido por um vampiro, ou era melhor dizer que havia sido seduzido por um vampiro? Como se o vampiro lesse seu pensamento, ele reclamou, fazendo uma cara emburrada. – Foi você que me acordou com um beijo; agora me diga, o que você é? Mordendo os lábios, o pequeno anjo decidiu responder, afinal ele já tinha feito tudo que não devia mesmo e mentir era algo impossível para ele. – Sou um anjo, um anjo bem jovem, fui criado há apenas mil anos; é a primeira vez que venha ao mundo humano e eu não sabia que vampiros eram reais, achei que eram apenas lendas humanas. – Eu podia dizer o mesmo sobre você, nunca acreditei em anjos, mas então é mais velho que eu, pequeno? Não parece, você é tão... inocente. – Bom, para um anjo, mil anos é muito pouco, sou ainda quase uma criança, por isso eles não queriam me mandar para cá, mas eu insisti e acabaram deixando, só que eu vim para esta cidadezinha porque é bem pequena, quase deserta, e assim eu corria menos riscos. O vampiro riu, afinal a que riscos os outros se referiam, encontrar e seduzir vampiros adormecidos? – Parece que acabou de encontrar algo novo, mas onde está ficando? Diante do rosto confuso do pequeno sentado ali em sua cama, o 18


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vampiro decidiu reformular a pergunta, achando aquela situação muito divertida, na verdade fazia muito tempo que não via graça em nada, mas ali estava algo muito diferente. – Onde vai dormir? Onde está morando? – Em lugar algum, estou apenas andando, e quando me canso e fico com sono me deito no solo e adormeço, afinal quase sempre os outros não podem me ver, a não ser que eu lhes diga meu nome ou decida aparecer. Lucas sorriu satisfeito, tinha adorado provar daquele sangue puro, mas estava curioso por algo mais e achou interessante ter aquele anjinho por perto. – Fique comigo; eu vou te mostrar o mundo humano, como você nunca viu. – Eu acho... Acho que vou gostar, se estiver com você... – Certo, mas primeiro vamos providenciar roupas para você, as minhas ficam muito grandes mas vão servir até chegarmos a Tóquio, então vou comprar algo mais adequado e daí vamos nos divertir, posso te mostrar a cidade toda, suas luzes e seu encanto secreto, não há nada melhor do que ver, sentir e viver a cidade. – Dizendo isto o belo vampiro deu a mão e ajudou o pequeno anjo a se levantar, ofereceu a ele uma camisa preta, cuja manga foi dobrada várias vezes, e saíram juntos para a noite fria; caminhavam de mãos dadas na escuridão, não que fosse preciso, era apenas porque queriam, queriam sentir a pele um do outro, o toque macio dos dedos enlaçados, aquele calor sobrenatural e gostoso, que subia dos dedos para o resto do corpo como uma corrente elétrica, vibrante e luminosa. – Uriel, você tem asas, pode voar? O anjo sorriu com a pergunta, olhou o outro demostrando alegria e num instante asas longas e macias, brancas como a primeira neve, se elevaram de suas costas, rasgando a camisa negra e se erguendo no alto. Num instante apenas estava lá no alto, e quando olhou para baixo não viu mais o amigo vampiro, levou um enorme susto ao ver ao seu lado asas negras, maiores que as suas, negras e lustrosas, um anjo negro, de aparência devastadoramente linda, e o anjo teve que lembrar de respirar com aquela visão. O outro apenas sorriu e voou pelos céus nocturnos. O anjo tentou segui-lo de perto, às vezes o perdia, mas ele voltava e acenava, e assim chegaram em Tóquio, descendo em um beco estreito, próximos a uma movimentada estação de trem; o vampiro recolheu suas asas e o anjo fez o mesmo, aceitou a mão oferecida e com o coração aos pu19


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los entrou no turbilhão humano das ruas, era gostoso ser visto ali, somente mais um na multidão, e eles recebiam muitos olhares, masculinos e femininos, uns mais ousados que outros, mas o anjo se sentia protegido junto ao outro, era estranho e acolhedor, e assim chegaram a uma elegante loja, sua fachada de vidro e seu letreiro dourado encantaram o anjo curioso. – Uau! – Foi tudo que disse, antes de ser conduzido para dentro, onde uma elegante mulher atendeu atenciosamente o amigo e ofereceu roupas macias ao toque que serviam para o pequeno como se tivessem sido feitas para ele, o outro comprou ali roupas e sapatos, quando já estavam elegantemente trajados saíram para a rua frenética e foram até um café. O cheiro doce e forte chegou aos sentidos aguçados do anjo e ele sentiu uma mistura de curiosidade e espanto, mas entrou e se sentou em um banco estofado de vermelho próximo a uma janela envidraçada. O belo vampiro mandou trazer bolos, doces e café expresso, e o anjo os experimentou. Conversaram sobre muitas coisas e sobre nada, seus silêncios eram tão bons quanto suas palavras, havia ali um entendimento mútuo, um contraste perfeito entre a luz e a escuridão, o profano e o inocente. Em certo momento uma sensação meio desesperada tomou conta do pequeno anjo, que olhava para o amigo sem entender o que sentia, as emoções de um ser celeste são sempre contidas, os anjos vivem apenas para a contemplação do ser supremo, seu amor magnânimo suprindo suas vidas incessantemente, ou pelo menos era o que ele tinha aprendido até aquele momento, sem nunca questionar sobre nada, mesmo quando um dos seus irmãos ou irmãs abandonava o paraíso e se perdia no mundo humano, ele nunca perguntou o porquê disto, até aquele momento, mas quando um anjo ama, este sentimento forte é multiplicado milhares de vezes, já que sua existência é pura, e ele estava percebendo agora que deveria ter perguntado mais, entendido um pouco mais sobre os sentimentos, porque certamente já estava perdido. Neste exato momento Lucas suspirou aflito, nunca antes tinha se apaixonado, nem mesmo quando era humano, mas ali, olhando para aquele ser angelical, seu coração vazio se encheu de amor, tão intenso que chegava a doer, uma fome nova se abateu sobre ele, não era fome de sangue, era um desejo incontido, arrebatador, desejo de amar aquele anjo puro, de tomá-lo em seus braços e fazê-lo somente seu. Com um silêncio novo os dois se levantaram, mãos dadas, caminharam como humanos normais até um elegante hotel, e o vampiro esco20


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lheu uma linda suíte, pediu vinho e morangos e subiram calmamente, embora o coração do ser angelical estivesse agora desesperado. – Posso tirar sua camisa, pequeno anjo? O anjo respirando com dificuldade afirmou que sim, e sentiu mãos macias tocando seu corpo, retirando a camisa, depois sua calça nova, e se viu nu, sendo contemplado pelo outro, que sorria satisfeito. – Então é assim o corpo de um anjo? Você é ainda mais bonito sem roupa, meu pequeno querubim... – Na verdade, eu sou um serafim... Mas o vampiro não estava interessado em gêneros ou categorias angelicais, não quando tinha na sua frente um garoto de corpo suave, com curvas bem feitas, pernas torneadas e muito lisas, em uma pele macia ao toque como seda, e pensando nisto o vampiro se despiu, e o outro ao ver aquele belo corpo, tão igual e tão diferente do seu, se arrepiou, e tocou de leve com dedos incertos a pele exposta, o outro era forte, bem mais forte que ele, e seu membro era com certeza maior, porém, na verdade a força verdadeira vinha de algo mais, vinha daquele aroma delicioso que era o puro pecado, ao que o anjo desejou se entregar. – Qual é a punição por amar um anjo? – Não há punição no amor, embora eu tenha que confessar: o amor não é muito divulgado em meu mundo, é um tabu, um sentimento humano, até agora... Se beijaram de novo, quente e profundo, e suas mãos se tocaram, enlaçadas, e o vampiro levou o anjo para a cama, depois pegou duas taças de vinho e levou os morangos para a cama, oferecendo a fruta ao pequeno e uma taça bem cheia. Quando ambos já estavam alegres e o anjo já se sentia mais leve e menos receoso, o experiente e sedutor vampiro sorriu e o tomou nos braços, o devorando em beijos quentes, os quais eram recompensados com gemidos baixos e roucos que serviam para acender ainda mais a paixão. Lucas traçou uma linha de beijos suaves desde o pescoço branquinho até o umbigo, deixando um rastro quente de desejo por onde pousava sua boca bem feita, e daí enlouqueceu o seu pequeno quando o tomou em sua mais pura intimidade, o fazendo arquear as costas pelo susto e pelo prazer que nunca antes tinha sentido; o outro o acariciava ora lenta ora rapidamente, e o levou rapidamente a um extremo estado de puro êxtase, e ele gemeu, seu corpo todo tremendo, e se derramou na boca do belo vampiro, meio envergonhado e muito satisfeito, e foi recompensado com um beijo na boca que tinha seu sabor misturado à saliva, e era es21


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tranho e bom. Quando o pequeno anjo achou que aquilo era o máximo do prazer que podia experimentar, se assustou, pois o seu amigo abria suavemente suas pernas, enquanto beijava suas coxas buscando aquele amor mais profundo e profano, e quando o tocou naquele espaço apertado e quente, o serafim gemeu, numa mistura de dor e desejo, mas se recusou a se encolher, queria mais, queria tudo, queria aprender sobre este amor insano do qual pouco ouviu e nada sabia, e deixou o outro o invadir, os dedos molhados entrando e saindo, perturbadoramente, até que ele se deitou sobre seu corpo, entre suas pernas, e o possuiu lentamente, e como era assustador e dolorido, e ao mesmo tempo arrebatador e reconfortante, sentir o corpo dele dentro do seu era tudo que ele queria, e após o primeiro instante de dor algo mais o tomou, e se derreteu em prazer, gemendo e se movendo junto ao outro, seus corpos em sintonia perfeita naquele vai e vem cadenciado, até que, por fim, tremendo juntos, se entregaram ao extremo sentido e gozaram juntos, abraçados um ao outro, perdidos em seus aromas que agora se tornaram um só. Quando as respirações se acalmaram e o coração do anjo se tornou tranquilo, eles se beijaram suavemente, e deitados na cama grande prometeram ficar sempre juntos, porque agora eram apenas um, viveriam um para o outro até o fim dos tempos, unidos na luz e na escuridão, entre as sombras do sobrenatural e a claridade de tudo que é real.

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O RAIO VAMPÍRICO Amélia M. Henriques

Nova Iorque,1978 A chuva caía intensamente, o dia começava a vestir a cor da noite, as luzes reflectiam o seu colorido no asfalto molhado, enquanto alguns transeuntes corriam apressados, na hora de ponta. Lotis, mulher de uma beleza magnética e sensual, pele marmórea, olhos escuros felinos, acabara de pentear os seus longos cabelos loiros e retocara os seus lábios com um batom púrpura. Aparentava cerca de quarenta anos de existência. Maquinalmente, olhou o relógio, vestiu a gabardina, pegou na sua bolsa e num pequeno saco de viagem e saiu do escritório a correr para a rua, em busca de um táxi. Este não tardou em aparecer, ao fundo da rua. – Táxiii! – Chamou Lotis, fazendo sinal de paragem, com a mão no ar. O táxi parou e Lotis entrou dizendo: – Siga para o aeroporto JFK! – Com certeza, minha senhora. Durante o trajeto, de olhar absorto, detinha-se num único pensamento: Rodrigo. Chegados ao aeroporto, o táxi parou. Lotis pagou a corrida e apeouse... não antes sem exibir umas pernas perfeitas, perante alguns olhares masculinos. Quebec, Canadá, 1968 Dez anos atrás, Lotis sofrera um violento acidente de automóvel, quando, precisamente num dia de chuva intensa, o seu carro foi atingido por um raio fulminante, que lhe iria transformar a vida para sempre! 23


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Dada como morta, às 23:48h, foi encaminhada para o instituto de medicina legal. Morgue,18:05, hora local O médico legista, Marco Stone, dirige-se para a sala de autópsias a fim de efectivar a autópsia de Lotis. É um homem de fisionomia jovem, agradável, alto, moreno, de olhar profundo e inteligente. Chegado à sala, abre a gaveta, onde jaz Lotis. Fica a observá-la por momentos. Entretanto, começa a preparar os instrumentos, mas quando se volta para a marquesa... fica estarrecido. Lotis senta-se... olha à sua volta, retira o lençol branco... expondo na sua nudez todo o esplendor da sua nudez, bela e imponente! Detém-se na figura masculina, hipnotizando-o... completamente! Aproxima-se dele, com sensualidade e lascívia, começando a acariciálo... sedenta de adrenalina sexual... enquanto o médico, completamente excitado, entra no seu jogo... de sedução. Ajoelha-se, passando os seus dedos dengosos nos genitais... que intumescem. Devagarinho, deita-o sobre a marquesa. Senta-se sobre o seu corpo, refastelando-se... os seios intumescidos, o seu órgão vaginal latejando. Lotis cavalga ferozmente, qual amazona numa corrida de cavalos, rumo à vitória... atingindo orgasmos múltiplos em explosões de prazer sublime. Ambos gozam de um prazer nunca antes sentido! Por fim, em jeito de despedida, Lotis beija-o... fatalmente... cravandolhe os seus dentes na jugular... enquanto Marco arregala os olhos, atónito... e suga-lhe o sangue, tendo mais um momento orgástico ao lambuzar-se num misto de sémen e sangue! Maquinalmente, veste-se e sai da morgue. Mais tarde, a polícia jamais consegue explicação para o desaparecimento, quer do corpo do médico, quer da morta. Dias mais tarde, Lotis recomeça nova vida, em Boston. Com documentos falsos, muda de identidade e de profissão e pinta os seus cabelos de um ruivo fulgurante. É agora comercial, numa famosa loja de perfumes, fazendo diariamente a sua rotina normal como qualquer mulher independente. Mas Susie Deschamps tem um lado obscuro e secreto... uma sede de 24


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satisfação sexual, antes desconhecida. Meses depois, Susie decide sair à noite... até um barzinho, na outra ponta da cidade. Quando faz a sua aparição, todos os olhares masculinos se fixam na sua figura esbelta e exótica. Dirige-se ao balcão, de estilo irlandês, onde pede um Daiquiri... sorvendo-o em goles sensuais... enquanto perscruta em volta. Detém-se sobre um homem do tipo escandinavo... que, como em transe, se levanta e tenta meter conversa. Susie sorri e entabula conversa. John sente-se fascinado e hipnotizado por esta mulher deslumbrante e sorridente. Saem de braço dado, rindo como se de um casal amoroso se tratasse, dirigindo-se cada um para o seu respectivo automóvel. Alguns quilómetros decorridos, dois automóveis estacionam no parque de estacionamento onde, sob grandes letras de néon, se anuncia o Motel Rivers. Quarto 13 Susie e John envolvem-se numa atmosfera de prazer promíscua. A sede de sexo e de sangue de Susie aumenta gradativamente... enquanto John pensa na boa transa que vai ter com ela, não imaginando a mudança terrível que vai acontecer na sua vida, que jamais será a sua. Loucuras sexuais, entre as quatro paredes, acontecem entre dois corpos sedentos em que se sucedem os orgasmos múltiplos de prazer... mas, mais uma vez, Susie tem de selar a transa com o seu beijo especial, sorvendo-lhe todo o seu sangue avidamente, que lhe restitui as energias vitais para uns meses. Veste-se e fecha a porta atrás de si, deixando o corpo de John sobre a cama. Sabe que, horas mais tarde, ele despertará e desaparecerá do quarto, sem que vivalma dê conta do ocorrido. Acabara de fazer mais uma vítima fiel ao seu clã... vampírico! Por mais duas vezes, Susie volta àquele Motel, remoto. Salt Lake City, seis anos mais tarde Rebeca, uma linda mulher de longos cabelos matizados, é uma das assistentes e colaboradoras de uma empresa de estética feminina. Naquele dia, tem um desejo martelando-lhe a cabeça... tem um convite para um evento de arte e uma ânsia sexual... subindo-lhe espinha acima. Em vão, tenta controlar-se... o desejo é mais forte do que ela... tem 25


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de voltar à caça de novo! À hora combinada, parte para a inauguração artística. Lá, conhece um homem interessante de nome Rodrigo. Este tem um efeito diferente sobre ela, um não sei quê que a trava na sua sede sanguinária. Rodrigo é um homem italiano, alto, de olhos verdes, artista, que veio a negócios com uma importante galeria e que, durante a sua estadia, aproveitou para a visita ao evento. É durante esta que os seus olhos se fixam em Rebeca e se lhe apresenta entusiasmado. Finda a exposição, mais uma vez Rebeca sai acompanhada... desta feita, com o italiano. Vai para o seu quarto de hotel, onde transa mais uma vez... e Rodrigo mostra-se um amante fogoso e excitante. Rebeca sente-se inexplicavelmente diferente. Acaricia o seu parceiro mais calmamente, num prazer mais contido e algo ritmado, envolvendo-se numa atmosfera mais romântica... para seu espanto! O enlace é cheio de carícias... de dádiva orgástica conjunta. Que metamorfose estará experimentando? Que se passa com ela? Questões assolam a sua mente e, no meio delas, abandona o quarto sem o seu beijo fatal. Sobre a mesinha do quarto, deixa o seu nome, Lotis, e contacto telefónico. Vai para casa pálida, sem a sua bebida energizante... Horas mais tarde... Rodrigo acorda com um baque na janela do quarto. Salta da cama e vai verificar se esta está bem fechada. Ao voltar-se, ouve um ruído vindo da porta e repara, estarrecido, que esta está girando. Sem medo, abre a porta de rompante e, olhando para ambos os lados do corredor, nada vislumbra. Devia estar sonhando... pensou, voltando para a cama. Minutos mais tarde, na esquina mais próxima do hotel, um homem é atacado, desta feita sem ato sexual e o seu sangue sorvido... No dia seguinte, Rebeca aceita almoçar com Rodrigo... e, entre um e outro encontro, acabam por assumir uma relação amorosa, encontrandose, esporadicamente, entre viagens ao exterior, uma vez que ela mudara para Nova York e Rodrigo continuava em Milão. Depois desta decisão, Lotis faz mais algumas vítimas apenas sedenta de sangue, mantendo-se fiel a Rodrigo. No aeroporto JFK, depois de sair do táxi, às 21 horas, sexta-feira de 1978, apanha o voo, rumo a Milão, onde a aguarda Rodrigo. Meses antes, descobrira que o seu namorado mantinha uma relação paralela com outra mulher. Chegada a Milão, ambos apanham outro voo que os levará de fim-de-semana prolongado até ao Haiti. Durante a sua última noite de estadia, Lotis parece transfigurada pelo 26


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cio e pela raiva da traição. Estão na praia, envoltos por uma atmosfera quente, sob as estrelas, amando-se... como se fosse a última vez. Deitados na areia, desenham, na pele um do outro, o desejo, os beijos, as carícias... atingindo um clímax orgástico memorável! Desta vez, Lotis sela o ato com o seu beijo fatal, sorvendo todo o sangue de Rodrigo... até à última gota. A seguir, adiciona um outro pormenor... destrói a face e o corpo do namorado, sem dó nem piedade, jogando-o da falésia. Fica a ver o corpo... até este desaparecer, nas águas do oceano. A sua vingança tinha sido consumada. Rodrigo jamais seria vampiro ou faria amor com outra mulher. Horas mais tarde, Lotis preparava-se para aterrar, no aeroporto JFK. Não sem antes reparar e lançar um sorriso sedutor de desafio ao seu companheiro de bordo...

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BESAME MUCHO Ana Paula Barbosa

Agradava-lhe visitar a casa dos avós. Isabel sabia que, praticamente, toda a família materna tinha nascido na bonita mansão; era-lhe fácil ouvir os risos das crianças correndo pelos jardins, e sentir o cheiro da limonada refrescante, com que regava os folguedos – além do pequeno lago, que servia de piscina improvisada nos longos dias de Verão. A propriedade era o espelho dos seus ancestrais: em períodos de prosperidade, ainda estava patente a abundância, os ampliamentos, os vitrais da capela restaurados; em épocas de declínio económico, no lado oeste escondia árvores centenárias, que cresceram à deriva, um estábulo de janelas nuas, uma velha arrecadação abandonada. As memórias da meninice trouxeram-lhe um sorriso: o velho balouço, palco de guerras entre Isabel e seus irmãos, a oponente macieira que tantas quedas provocara por uma suculenta maçã vermelha e a fachada da casa senhorial, saudada por quatro elegantes degraus de mármore rosa; sentia-se minúscula perante a sumptuosidade da construção, não obstante acolhedora e afável. Transpôs a entrada, subiu a escada de madeira com passos lentos, saboreando o aroma adocicado que impregnava o ar. Encaminhou-se para a mansarda, no quarto piso, levada pela lembrança de uma echarpe de seda bege, pertencente à sua avó, de quem herdara o nome – seria perfeita para o jantar de essa noite, o complemento perfeito para um momento que esperava magnífico – após quase um ano de namoro, sentia que Pedro iria, finalmente, propor-lhe casamento. Sorrindo dos seus próprios pensamentos, românticos e antiquados, Isabel abriu a gaveta de vida da antiga cómoda, tocando com carinho nos pertences da sua antecessora: finos lenços de renda com monograma bordado, cartas escritas a tinta permanente, com letras esguias deformadas pelo tempo, até localizar a echarpe, que acariciou com ternura e 28


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emoção. Retirou-a com cuidado, abrindo-a – expondo à luz do dia toda a excelência da peça. Da escura cristaleira abandonada, um som de ondas furiosas invadiu o aposento, obrigando-a a proteger-se encostada a uma parede. Para seu assombro, as portas abriram-se de par em par e, envolta numa nuvem de pó, revelaram a figura de um homem. Isabel estarreceu: um ladrão, foi a primeira ideia que conseguiu formular, muda de pavor. Um ladrão! Paralisada de medo e gelada pelo ar gélido que dominava o pequeno compartimento, conseguiu vislumbrar: “Um ladrão... com punhos de folhos e rendas na camisa?!” O pavor dominou-lhe os sentidos e Isabel perdeu a noção do tempo, que não passa de uma medida de instantes: não os quantificou; quando recuperada a visão, na sua mente confusa, deparou-se com o desconhecido sentado num cadeirão, ladeado por um candelabro com três velas, ostentando a echarpe bege em contraste com as calças pretas empoeiradas – não fora uma visão ou, pelo menos, mantinha-se. – Podes ter medo, sim. Isabel passou a mão pelos cabelos desalinhados: que forma amável de a tranquilizar! Não havia a menor dúvida, era um reles gatuno, não condizente com o semblante distinto e o porte elegante. Imóvel, esperou o pior. – Leva o que quiseres e vai-te embora – conseguiu murmurar, num fio de voz. O enigmatismo juntou-se à sala, enquanto o estranho a observava detalhadamente: – És igualzinha a ela... uma cópia quase perfeita. Mas nem assim tens o direito a usá-la – aliou as palavras ao gesto suave com que aflorou a echarpe depositada na perna esquerda. Isabel estava atónita: um louco, só lhe faltava um doido, que falava por meias-palavras. – Vai-te embora – repetiu o apelo – vai-te embora; prometo que não faço queixa à polícia. Enfurecido, moveu a echarpe para o braço da poltrona onde se encontrava, levantou-se e aproximando-se de Isabel, petrificada no chão, explodiu: – Por quem me tomas? Por um ladrãozeco! Um ladrãozeco! Essa é a diferença: falta-te nobreza de alma, falta-te arte, sentimentos... cópia imperfeita. Agora que estava mais próximo, Isabel confirmou a impressão inicial: estava diante de um homem atraente, de roupas finas apesar de desgasta29


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das, expressando-se com precisão, apesar do ligeiro sotaque estrangeiro. Com as lágrimas a tocar os olhos, pronunciou receosa: – Quem és tu? Aceitou a mão que lhe estendeu – temeu que a recusa destaparia a ira – e, tinha de admitir, a súbita atracção substituiu o terror. Agora, ambos de pé, defronte um do outro, separados por escassos centímetros, Isabel sentiu o coração fugir-lhe do peito. – Fui eu que lha ofereci: Isabel tinha a tua idade e deslumbrei-me mal a vi no jardim desta casa. Sentiu o chão ruir: aquele estranho, que aparentava trinta e poucos anos, estava a dizer-lhe que oferecera a belíssima echarpe... à sua falecida avó. Quis respirar, mas não conseguiu: o sangue abandonou-lhe as veias. Um par de braços fortes, mas delicados, ampararam-na, evitando assim a queda iminente. – Sei que te assustei, mas não vou fazer-te mal – escutou junto ao ouvido –, sossega: não pertenço ao teu Mundo, mas Isabel amou-me como um igual: soube amar o homem, não o... Na minha classe, há os bons... e existem os maus, também. Igual à tua; apenas vivemos mais tempo, até que só um exista e, enfim, possa descansar. Isabel não se atreveu que não estava a perceber nada, mas não o interrompeu: – Nasci em 1536 – o coração recém regressado de Isabel quis abandoná-la –, nas terras altas da Escócia. Teria uns 16 anos quando, numa batalha, fui trespassado por uma espada. Todos consideraram que estava morto, mas ressuscitei. E começou a minha jornada: fui considerado feiticeiro, vampiro, diabo, ser de outros mundos e expulso da minha aldeia e do meu clã. Desde então que vagueio pelo Mundo, eliminando quem me desafia, os que querem sugar o meu sangue como Fonte da Vida Eterna. Certificando-se de que Isabel não tinha desmaiado, apertou-a ligeiramente, prosseguindo: – Para muitos, sou um vampiro, é mais fácil compreenderem... – Mas os vampiros – atreveu-se Isabel – são figuras imaginárias... – Sem dúvida! Temem-me, acreditam que vivo num caixão, que saio de sepulturas e que me alimento de sangue fresco... Uma lenda! Isabel não: viu com os olhos da alma o meu coração, acreditou nos meus pensamentos, na minha história, por inacreditável que fosse. Amámo-nos na sombra, vivemos um amor impossível; que vida lhe poderia oferecer? 30


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Achas que foi fácil vê-la casar com o teu avô, criar a tua mãe e tios...? Vê-la envelhecer? Nunca perdeu o brilho do olhar e, sempre que nos encontrávamos, era a jovem maravilhosa que estava diante de mim... confiante e apaixonada. Isabel não sabia se tinha morrido nos braços de um desconhecido; nem sabia o que a surpreendia mais: se a história bizarra que acabava de ouvir... ou se o facto de a avó Isabel trair o avô António com aquele homem encantador. Adivinhando os seus pensamentos, apressou-se a esclarecer: – Não a julgues mal: nada aconteceu entre nós após o casamento. Aturdida entre milhares de pensamentos dispersos e, surpreendentemente, Isabel apercebeu-se que o medo a ia abandonando, que o ar gélido estava a desaparecer. Sem se libertar do conforto que os braços e o peito do ex-desconhecido... – E que fazes aqui, agora que a minha avó faleceu há tantos anos? – De vez em quando, passo por cá, para rever momentos, espaços partilhados, o primeiro beijo, o nosso amor... Quando te vi pegar na echarpe, não aguentei e revelei-me. – Ias-me matando de susto – assumiu Isabel, trémula. – Eu sei... e com razão. Desculpas-me? – acariciou-lhe os cabelos, ao de leve. Isabel deixou escapar um pequeno suspiro – parecia-lhe que não respirava há décadas. Não queria pensar em nada nem em ninguém: nem na echarpe, nem no Pedro, nem na avó Isabel... queria guardar no peito, a sete chaves, a estranha e desconhecida sensação que a dominava, rapava o discernimento, todo o raciocínio ou razão. Sucumbiu ao desejo: – Beija-me! Afastando-se ligeiramente, olhando-a profundamente nos olhos cor de avelã – tão amados – e deliciando-se perante o desejo espelhado no rosto, prometeu-lhe: – Só se for muito!

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ESTE LIVRO TEM 284 PÁGINAS

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