COLECÇÃO SUI GENERIS
A PRIMAVERA DOS SORRISOS ANTOLOGIA EM PROSA E POESIA
COLECÇÃO SUI GENERIS Obras colectivas: A BÍBLIA DOS PECADORES – Do Génesis ao Apocalipse O BEIJO DO VAMPIRO – Antologia de Contos Vampirescos VENDAVAL DE EMOÇÕES – Antologia de Poesia Lusófona GRAÇAS A DEUS! – Antologia de Natal NINGUÉM LEVA A MAL – Antologia de Estórias Carnavalescas TORRENTE DE PAIXÕES – Antologia de Poesia Lusófona SALOIOS & CAIPIRAS – Contos, Causos, Lendas e Poesias SEXTA-FEIRA 13 – Antologia de Contos Assombrosos CRIMES SEM ROSTO – Antologia de Contos Policiais FÚRIA DE VIVER – Um Hino à Vida A PRIMAVERA DOS SORRISOS – Antologia em Prosa e Poesia Obras individuais: AMARGO AMARGAR – Isidro Sousa ALMAS FERIDAS – Suzete Fraga MAR EM MIM – Rosa Marques O PRANTO DO CISNE – Isidro Sousa DECIFRA-ME... OU DEVORO-TE! – Guadalupe Navarro SONHO?... LOGO, EXISTO! – Lucinda Maria
36 AUTORES
A PRIMAVERA DOS SORRISOS ANTOLOGIA EM PROSA E POESIA Organização e Coordenação ISIDRO SOUSA
EDIÇÕES SUI GENERIS EUEDITO | PORTUGAL
TEXTOS © 2017 SUI GENERIS E AUTORES
Título: A Primavera dos Sorrisos Subtítulo: Antologia em Prosa e Poesia Autor: Vários Autores Organização e Coordenação: Isidro Sousa Revisão e Paginação: Isidro Sousa Capa (design): Ricardo Solano Capa (fotografia): Depositphotos Editores: Isidro Sousa e Paulo Lobo 1ª Edição – Outubro 2017 ISBN: 978-989-8856-83-8 Depósito Legal: 433211/17 EDIÇÕES SUI GENERIS letras.suigeneris@gmail.com www.euedito.com/suigeneris http://letras-suigeneris.blogspot.pt https://issuu.com/sui.generis EUEDITO geral@euedito.com www.euedito.com Impressão Print On Demand Liberis Direitos reservados pelo Organizador e pelos Autores. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, por quaisquer meios e em qualquer forma, sem a autorização prévia e escrita dos Editores ou do Organizador. Exceptua-se a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Os Autores podem usar livremente os seus textos. A utilização, ou não, do actual Acordo Ortográfico foi deixada ao critério de cada Autor. SEJA ORIGINAL! DIGA NÃO À CÓPIA! RESPEITE OS DIREITOS DE AUTOR!
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«Quem falou de Primavera sem ter visto o seu sorriso, falou sem saber o que era.» CECÍLIA MEIRELES
«A Primavera é o jeito que a Natureza tem de dizer: Vamos festejar!» ROBIN WILLIAMS
«Novas folhas, novas flores, na infinita bênção do recomeço.» CHICO XAVIER
Quando vier a Primavera, Se eu já estiver morto, As flores florirão da mesma maneira E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada. A realidade não precisa de mim. Sinto uma alegria enorme Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma Se soubesse que amanhã morria E a Primavera era depois de amanhã, Morreria contente, porque ela era depois de amanhã. Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo? Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo; E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. Por isso, se morrer agora, morro contente, Porque tudo é real e tudo está certo. Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem. Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele. Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências. O que for, quando for, é que será o que é. ALBERTO CAEIRO in “Poemas Inconjuntos” Heterónimo de Fernando Pessoa
ÍNDICE Prefácio .................................................................................................. 11 Prosa ....................................................................................................... 13 Bela... a ambientalista!, Lucinda Maria ................................................ 15 Mayra, a índia sioux, Amélia M. Henriques ......................................... 19 O cálice de Antuérpia, Estêvão de Sousa .............................................. 23 Sentimentos e palavras reconfortáveis, Tânia Tonelli ....................... 29 Homenagem idílica de aniversário, Diamantino Bártolo .................... 31 Rosas de Maio, Teresa Morais ............................................................... 37 A donzela, Sara Timóteo ........................................................................ 41 Muito mais do que eu esperava, Sónia Fernandes .............................. 43 É novamente Primavera, amor!, Rosa Marques ................................. 47 Orquídea de Maio, Armando Velho ..................................................... 53 Mar de paixão, Ana Isabel Bertão ......................................................... 57 Surpresas floridas, Fernanda Kruz ....................................................... 61 A alegria de Illari, Guadalupe Navarro ................................................. 67 Entre amigos, Jeracina Gonçalves .......................................................... 75 Quando o tempo não pára..., Isabel Bastos Nunes ............................. 79 Poesia ...................................................................................................... 81 Decifra-me, Catalão Marçal .................................................................. 83 Ensejo Primavera, Elizabeth Seixo ...................................................... 84 Naquela Primavera, Natália Vale ........................................................ 86 A Primavera, José Carlos Moutinho ....................................................... 87 Orgulho-me, Marizeth Maria Pereira ................................................... 88 Flores ao vento, Cristina Sequeira ........................................................ 90 Natureza e cor, Manuel Timóteo de Matos ............................................ 92 Uma rosa, Inês Carolina Rilho ............................................................... 94
Cheiras a morangos silvestres, Isabel Martins .................................... 95 Gravei o teu olhar, Paulo Galheto Miguel ............................................ 96 Primavera da vida, Isilda Monteiro ....................................................... 98 Lisérgica natureza do desejo, Geovany Barnabé da Silva ................. 100 Sorria..., Lucinda Maria ...................................................................... 101 Primavera em mim, Ana Campos ..................................................... 102 Menina-flor, Nardélio F. Luz ............................................................ 104 A Primavera, Maria Alcina Adriano ................................................. 106 Os dezfaces de Vera, José Antônio Loyola Fogueira .......................... 108 Uma tela pintada na Primavera, Isabel Bastos Nunes ...................... 110 Primavera na pele, Marizeth Maria Pereira ....................................... 112 Carta, Catalão Marçal .......................................................................... 114 Primavera, Rosa Marques ................................................................... 116 Algo sobre flores..., Erald Bast ......................................................... 118 Pétalas de Sol, Isidro Sousa ................................................................ 120 A Primavera dos sorrisos, Angelina Violante .................................. 122 Sê tu Primavera, Deise Zandoná Flores .............................................. 124 Tapete colorido, Cristina Sequeira ..................................................... 126 Primavera, José Carlos Moutinho ......................................................... 128 Idílio campesino, Inês Carolina Rilho ................................................ 130 Amor em tempo de Primavera, Elizabeth Seixo ............................. 132 Sorriso de esperança, Manuel Timóteo de Matos ............................... 134 Serra da Nave, Isilda Monteiro ........................................................... 136 Beijou-me, Marizeth Maria Pereira .................................................... 138 Maio florido, Natália Vale ................................................................ 140 Saudade da nossa Primavera, Adriano Ferris .................................. 142 Enfim é Primavera, Catalão Marçal .................................................. 145 Acho que sei, Paulo Galheto Miguel ................................................... 146 Foto em síntese, Geovany Barnabé da Silva ....................................... 148 Rosas encarnadas, Isabel Martins ...................................................... 149 Alegre despertar, Isidro Sousa ............................................................ 150 Os autores ........................................................................................... 153 Edições Sui Generis .......................................................................... 165
PREFÁCIO
A Primavera é a estação do ano tipicamente associada ao reflorescimento da flora terrestre, cuja chegada, após meses de frio e chuva, é aguardada com a ansiedade de quem deseja voltar a desfrutar do ar livre. É nesta altura do ano que as árvores se cobrem de flores e novas folhas, fazendo a paisagem regressar aos tons verdes. As temperaturas começam a subir, os dias tornam-se cada vez maiores, as flores desvendam todo o seu esplendor, uma parte significativa de animais exibe as novas crias ou ninhadas, os rios correm mais fortes e os panoramas naturais mostram-se com toda a sua diversidade, sendo os melhores exemplos da diversidade geográfica e da importância de preservarmos os mecanismos dos ecossistemas, desde o ciclo da água às relações que existem entre as inúmeras espécies que partilham o mesmo espaço. Enquanto tempo de renovação, esta estação é uma boa altura para se conhecer coisas novas, visto que a profunda regeneração da Natureza é um laboratório vivo e vibrante que pode trazer muitas lições de botânica, biologia, geografia, ecologia e de outras ciências. Para as crianças, por exemplo, a Primavera mostra-se perfeita para novas descobertas, já que é sinónimo da saída de casa e de alternativas às brincadeiras no interior, à televisão e aos jogos electrónicos. Correr, jogar à bola, regressar à praia (mesmo que seja cedo para banhos de mar), passear em jardins ou descobrir os encantos da vida campestre são óptimos programas para toda a família. 11
ANTOLOGIA EM PROSA E POESIA
Perante as árvores que se revestem de novas folhas e flores, torna-se mais fácil explicar aos mais pequenos o processo de renovação vegetal e de que forma as plantas que pareciam tão secas no Inverno estavam, afinal, somente adormecidas, preparando-se para a nova fase. Este fenómeno ajuda, também, a mostrar como funciona o ciclo da vida, em especial se tivermos disponível um grupo de pintainhos, cãezinhos, gatinhos... Todas as pessoas são sensíveis à Natureza, aos animais e à beleza da Primavera, e é em torno desta estação (a estação das flores, dos sorrisos e dos amores, em que a Natureza se reveste de verde e a Vida recomeça a vibrar com toda a sua intensidade) que se debruçam os textos, em prosa e poesia, redigidos por 36 autores lusófonos, incluídos nesta antologia – a primeira de quatro obras colectivas dedicadas a cada estação do ano: Primavera, Verão, Outono e Inverno. E embora o livro seja editado durante a terceira estação, creio que o mais importante são as leituras que proporciona, leituras que poderão ser apreciadas em qualquer altura do ano, contribuindo, desse modo, para que a Primavera se torne eterna. Boas leituras! Isidro Sousa
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PROSA
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BELA... A AMBIENTALISTA! Lucinda Maria
Amava a natureza... como amava a vida. Em tudo, via o toque genial de um esteta, de um artista. Amava a arte... como amava a Primavera. Sorria só de pensar que a sua chegada estava próxima. E o seu sorriso lindo abria-se em espirais de luz que lhe inundavam o rosto. As suas faces coravam de ternura. Nos seus olhos grandes e expressivos espelhava-se toda a sua alma. Poetisa de alma grande, nas palavras que jorravam incessantemente... sempre! Ela era assim: jovem, invulgar e, sobretudo, diferente. Detestava estereótipos... era sempre a mesma... adorava a sua singularidade, a sua quentura, a sua entrega. Depois, aquele apego à beleza, no que contém de mais abrangente. A bondade é bela... a alegria é bela... a ternura é bela. Talvez por isso a chamavam Bela, embora o seu nome fosse Isabel. Gostava de ouvir o som: – Bela! – era muitas vezes a mãe a chamá-la. Apesar dos seus tenros quinze anos, a jovem tinha uma grande consciência ambiental e chegava a ser compulsiva. Como ela dizia e muito bem, o ser humano só tem feito disparates. O pior é que nem se dá conta de que está a destruir o seu próprio habitat. Talvez por isso lhe chamem “meio ambiente”... é que o outro meio já foi aniquilado! – pensava ela, às vezes. Não tinha dúvidas nenhumas da carreira a escolher, quando ingressasse na Universidade. Ia ser ambientalista. 15
ANTOLOGIA EM PROSA E POESIA
Sonhava com o amor e, nesse amor, incluía toda a natureza. Amar é tão natural como respirar! – dizia. Era uma pessoa de fortes convicções. Quando a Primavera se aproximava, saía das aulas e corria para o campo. Era bom ver tudo a acordar da letargia do Inverno! Era bom ver a azáfama das aves... as árvores a vestirem-se de novo... o solo revirado, por baixo do qual germinavam sementes!... Nunca deixou que destruíssem um ninho de andorinha que ficava debaixo do beiral sobre a janela do seu quarto. Todos os dias ia ver se ele já era habitado de novo... Que alegria quando viu um casal de avezinhas pretas a transportarem raminhos e penas para comporem a casinha! Depois, os ovos e a fêmea sempre a chocá-los, enquanto o macho ia buscar alimentos. Foi um delírio ouvir o piar dos bebés recém-nascidos!!! Saía e observava tudo com perspicácia, atenção, carinho. No jardim, as roseiras começavam a cobrir-se de rosas que aspergiam pelo ar um perfume inebriante. E a glicínia que trepava pela varanda, fazendo pender as flores azuladas como se fossem cortinas? Certa tarde, decidiu ir dar um passeio até próximo do riacho. Os campos pareceram-lhe telas pintadas de fundo verde e mescladas de todas as cores do arco-íris! Bem, mas o vermelho das papoilas sobressaía, como um grito de liberdade. E os malmequeres? Lindos, no seu branco imaculado ou no amarelo doirado das suas pétalas! As árvores, agora, já tinham flores por entre as folhas tenras que cheiravam a novo. As águas do ribeirito corriam lestas através dos seixos redondos e lisos. Murmuravam canções que só ela entendia! Mas... Bela sabia bem a razão que a levara ali. Não eram as rãs que saltavam de pedra em pedra. Não eram os peixinhos que nadavam nas águas transparentes. Não eram as muitas flores que pejavam as margens. Não. Eram as borboletas. Ela adorava observá-las... acompanhar o seu voejar airoso... inebriar-se com o seu colorido! Pois... e a surpresa? Naquele dia, haveria uma surpresa! 16
A PRIMAVERA DOS SORRISOS
Parou e viu miríades de asas coloridas esvoaçando sobre as pétalas das flores silvestres... sugando o pólen... Formavam uma nuvem de cores variadas e exuberantes que quase a entonteceu. Então, pegou numa caixinha que trazia consigo, uma caixinha de cartão com uns furos na tampa. Abriu-a devagar e – que maravilha! – lá de dentro saiu a mais linda borboleta que, depressa, voejou pelo ar e se juntou às outras. A jovem não cabia em si de contente e sentou-se debaixo de um chorão de ramos debruçando-se sobre o riacho e que a protegeram como se fossem uma abóbada. Fechou os olhos e recordou um outro dia, naquele mesmo lugar. Há algum tempo, tinha ido até ali, mas não havia ainda tantas borboletas. Havia, sim, ovinhos e larvas. Ela sabia bem que aqueles insectos sofrem metamorfoses, isto é, passam por várias fases, até atingirem a idade adulta. Primeiro, são ovos – afinal, a génese de tudo – e deles eclodem lagartas. Cheia de curiosidade de comprovar como tudo se passava, resolveu levar para casa uma dessas larvas e também muitas folhas da planta onde ela se encontrava. Pôs tudo num saco plástico, algo que levava sempre com ela nessas explorações ambientais. Chegada ao seu quarto, Bela arranjou a caixinha, depositou nela o animalzinho comprido e cilíndrico juntamente com as folhas. Tinha estudado que eles comem abundantemente nesta fase. O tempo foi passando e houve necessidade de ir renovando a comida. Era voraz a sua amiga lagarta! Não é decerto uma fase muito bonita, mas, como dizia o Principezinho de Saint-Exupéry: “Às vezes, é necessário suportar uma ou duas larvas, para podermos apreciar as borboletas!”. Ela adorava este livro e ele sempre lhe ensinava algo bonito. Passado um tempo, bastante, a lagarta prendeu-se pela parte de trás do seu corpo através de fios de seda e iniciou-se a formação da crisálida. E ali ficou, metida num casulo, dias... dias... Nesta fase ela não se alimenta, sobrevive apenas das suas reservas nutritivas. 17
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Quando ficou completamente formada, a crisálida abriu e a borboleta saiu de dentro dela. E foi um deslumbramento! Era linda e a jovem sentia-a como sua filha. Não, nunca pensou ficar com ela em casa. Queria-a no seu habitat, junto das suas irmãs. Voltou ao presente. Olhou de novo o esvoaçar das mariposas todas lindas e coloridas, mas, mesmo assim, reconheceu a sua. Agora, ela voaria livremente, iria reproduzir-se, comeria o néctar das flores ou chuparia o líquido de alguns frutos. Bela estava feliz e sorria. Quando o fazia, até pareciam tilintar campainhas. Era um sorriso genuíno e doce... tão doce quanto a Primavera. Sorriu à vida renovada, ao renascer, aos sonhos, ao amor... sim, porque ela também dizia: “O mundo não será nada enquanto o amor não for tudo”! Mais uma vez pensou e, dentro dela, uma vontade inabalável cresceu: “Vou ser ambientalista!”
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A PRIMAVERA DOS SORRISOS
MAYRA, A ÍNDIA SIOUX Amélia M. Henriques
São incontáveis as Primaveras de sorrisos que o rosto de Mayra, sulcado de algumas rugas expressivas, deixa transparecer e os cabelos encanecidos não desmentem... Esta mulher quadragenária, prostrada no leito, desalentada, olhar embaciado pela dor, pela desilusão, envelhecida prematuramente, na curva final da vida, sem mazelas físicas... tal como Homero se refere à luta, entre gregos e troianos, Mayra era o protótipo mais recente de Helena de Tróia... raptada da sua felicidade total... as lágrimas caíam-lhe em catadupa para a almofada... introspectiva... fazendo uma retrospectiva das suas vivências anteriores! Foram tantos os sorrisos que afloraram ao seu rosto... enquanto menina e moça... a cabeça povoada de tantos sonhos felizes... de tantas expectativas... sem antever quaisquer armadilhas na selva da vida, que ela bem podia “arreganhar” os dentes e estender as mãos unidas, erguidas para o céu, agradecida... Lá fora, os trovões ribombam no céu, escuro como breu... sem luar iluminando-o. Um pássaro livre... que nunca deixou que as suas asas livres se queimassem... Mayra era uma indígena que passara muitas luas de Primavera cheias de sorrisos... A sua tenda era agora uma das mais singelas... onde apenas o catre, as peles que a aqueciam nas noites longas de Inverno e uma arca de pele de búfalo, onde guardava 19
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alguns dos seus pertences e memórias, compunham os seus escassos bens materiais. Quem diria que este corpo frágil e emagrecido fora, um dia, uma valente guerreira sioux e matriarca de uma família feliz? Andava ela, num dia primaveril, pelo bosque, em cata de algumas plantas medicinais, quando o galope de um cavalo a fez agachar-se atrás de um arbusto! Nessa altura, era ela uma índia muito bonita, de pele tisnada pelo Sol, olhos e longos cabelos negros, entrançados... O cavaleiro apeou-se junto do rio, onde as águas, de tão cristalinas, permitiam ver o seu fundo. Viu-o despojar-se das suas roupas e mocassins... entrar nu no rio e refrescar-se nas suas águas... enquanto ela se mantinha queda e muda... evitando ser descoberta. O seu coraçãozito acelerou-se em batidas rápidas, o corpo aumentou de temperatura e as suas faces afoguearam-se, toda ela numa excitação repentina, sem explicação! Entretanto, o belo moço moreno saiu do rio, vestiu-se e montando no seu cavalo, sem sela, partiu, desaparecendo sob o olhar de Mayra. Esta, chegada à aldeia, vislumbrou-o, sendo-lhe apresentado, mais tarde, como o filho de uma outra tribo e que procurava uma squaw para acasalar e constituir família. Ela era uma das squaws jovens e candidatas, sendo-lhe por isso apresentada. O olhar dele, ao cruzar o olhar da bela índia, encheu-se de um brilhozinho irrequieto. Lobo era o seu nome... sorriu, algo maravilhado com Mayra... Começa assim uma vida nova para ela, nas margens do Mississípi, junto de Lobo. Tal como o seu nome significa, Mayra era a Rainha da Planície e dos animais. Era introvertida, pensadora, mística e filósofa. Criadora e artista. Individualista e silenciosa. Tinha-se apaixonado por Lobo, sendo correspondida. A vida nas planícies era relativamente pacífica. Lobo, chefe da tribo, caçava e pescava enquanto ela fazia artesanato com as ossadas e roupas em couro. Os guerreiros pintavam o corpo e o seu cavalo para aterrorizar o 20
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inimigo, usavam penas e amuletos que traduziam a sua cultura e crenças. Trinta e seis luas mais tarde, Mayra dá à luz um casal de gémeos: Lakota e Flor de Lótus. A família era considerada o centro de suas vidas. As crianças eram chamadas “wakanisha”, o que significava sagrado, e eram o centro das atenções. Enquanto a monogamia era frequentemente praticada, os homens poderiam ter mais de uma esposa. Entretanto, infidelidade era punida com desfiguramento. As conquistas guerreiras eram narradas e exaltadas. O cocar, símbolo do chefe, tinha relação direta com a Contagem de Golpes pois cada pena presente no cocar simbolizava um ato de bravura, realizado tanto na Guerra quanto na Paz. Faziam também um pacto de sangue, corte nas mãos dos guerreiros, sob juramento de lealdade, numa cerimónia em que se transformavam em irmãos. Com o escassear da caça, escaramuças entre tribos acabaram em massacres pela posse de território. Foi numa dessas guerras que Lobo foi flechado mortalmente. Mayra havia-se refugiado numas grutas com os filhos já adultos e mais duas mulheres com três crianças. Entretanto, Flor de Lótus entrou num estado febril fervilhante... nem as ervas que ela recolhia pela calada da noite, usandoas quer como forma de cataplasmas, a fim de baixar a temperatura, quer também em forma de chás, evitaram que sucumbisse. O coração de Mayra, de cinza enegrecido, tornou-se negro e raiado de sangue púrpura quando teve de aceitar, para que todos se salvassem de morrer à fome, a decisão de que a filha servisse de alimento, abstendo-se ela própria de praticar tal ato! Lakota decide ir juntar-se a uma tribo amigável e lutar como um guerreiro, digno do nome de seu pai, Lobo. Contava dezoito primaveras já, mas era ainda uma criança muito inexperiente que havia sido muito feliz no seio familiar. Passaram-se várias luas sem que Mayra, cada vez mais débil, soubesse do seu filho ou descesse às planícies. Mais algumas luas passaram... até que foi descoberta por índios amigos. Foi levada para a sua tribo e foi aí que soube que o 21
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seu filho Lakota tinha sido feito prisioneiro e escalpelizado. Do seu rosto inexpressivo, apenas duas lágrimas grossas rolaram mornas, embaciando-lhe o olhar. Sem família, tornou-se uma contadora de histórias. Algumas noites eram dedicadas às histórias e às tradições. Esses Contadores de Histórias usavam uma pequena mecha com tranças e nós, que lhes caía pelo meio da testa e que os caracterizava como professores e historiadores da tribo. Um cabelo trançado do sexo masculino não precisava participar nas batalhas, mas deveria observar tudo e recordar-se, mais tarde, do desenrolar da luta. Já um cabelo trançado do sexo feminino era a historiadora que mantinha viva a tradição feminina e que deveria ensinar as mulheres mais jovens a sentirem orgulho de seus respectivos papéis dentro da tribo. Os Contadores de Histórias viajavam entre os grupos e as tribos das diversas Nações, levando as notícias dos acontecimentos que afetavam a todos os Nativos. Mayra vivia, assim, o finalmente...
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A PRIMAVERA DOS SORRISOS
O CÁLICE DE ANTUÉRPIA Estêvão de Sousa
Lisboa, Primavera de 2016. Enquanto, no Parque Eduardo VII, decorria a Feira do Livro de Lisboa e se assistia a um autêntico hino à cultura, com milhares de pessoas desfilando perante uma quantidade infindável de obras – quase todas produto da imaginação e engenho dos seus autores – contrariando, com a sua massiva presença, aqueles que vêm dizendo que os hábitos de leitura se vão gradualmente perdendo; e no parque de Monsanto os passarinhos, com os seus gorjeios, deliciavam as famílias que prazerosamente usufruíam do tão desejado como maravilhoso Sol, piquenicando sobre a relva; não muito distante dali, um grupo estava reunido a coberto de olhares indiscretos num velho armazém portuário considerado desativado. O chefe do gang, conhecido por Coiote, dava instruções aos capangas que, com a máxima atenção, o ouviam. Todos sabiam bem quão cara lhes poderia custar uma desatenção, por pequena que fosse. O que estava em jogo era por demais valioso para que alguém pudesse cometer um deslize. O Coiote nunca lhe perdoaria; e o castigo seria pagar com a vida de uma maneira verdadeiramente bárbara; antes de levar um tiro, o faltoso era amarrado e torturado impiedosamente. Era assim que o chefe do gang punia a incompetência! O motivo de tanta atenção estava no planeamento do golpe do século: o roubo de um valiosíssimo cálice sagrado, do século VIII. 23
ANTOLOGIA EM PROSA E POESIA
O cardeal Alphonse Dwight ao ajoelhar, pela segunda vez naquele dia, defronte do altar onde se encontrava a virgem de mármore, com o menino ao colo, na catedral de Antuérpia, ia olhando para o local em que sabia estar bem guardado, e a coberto de olhares indiscretos, o cálice sagrado. Mentalmente despedia-se da relíquia, ao mesmo tempo que sentia um certo alívio por deixar de ter sobre os ombros uma tão pesada responsabilidade. Tinha a noção de que – como cardeal, superior máximo da Igreja Católica na região – ia continuar a ser o responsável pelas outras obras de arte existentes na catedral, quase todas da autoria do grande artista de Antuérpia, Rubens; responsabilidade que em nada era comparável a esta. Ao seguir para a catedral de Santiago de Compostela, o cálice regressaria ao local onde tinha permanecido desde o séc. VIII, junto ao túmulo do santo, de onde saiu para Antuérpia por volta do ano de 990 para escapar à cobiça de Almançor, califa de Córdoba. A mudança, que havia sido ordenada pela Santa Sé, seria realizada sob fortíssimas medidas de segurança. Havia que proteger um património constituído por uma das mais valiosas relíquias do Vaticano! Em Compostela tudo se encontrava a postos para a receção de tão preciosa peça, a qual ficaria guardada a salvo dos olhares mais indiscretos. Sigilosamente o arcebispo Emanuel Sanches organizou a comissão de receção da relíquia, composta por três elementos da sua máxima confiança que, após a irem receber ao aeroporto, a trariam, com o máximo segredo, para a catedral. A realização do transporte estava marcada para daí a dois dias, sendo a data só conhecida pelo Cardeal de Antuérpia, o Bispo da Galiza e a Santa Sé, na pessoa do Camerlengo, a cargo de quem se encontrava toda a logística do transporte. Na reunião do gang de Lisboa, o Coiote – que todos sabiam ser o “testa de ferro” do verdadeiro chefe – comunicava, aos restantes membros, haver recebido do “Big Boss” todos os pormenores do 24
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transporte, informando-os de que o mesmo seria feito num Falcon 50, fretado para o efeito, o qual sairia de Roma às vinte horas, devendo estar em Antuérpia por volta das vinte e duas, altura em que o cálice seria transportado ao aeroporto, por um carro blindado, para ser embarcado no avião. – Se tudo correr conforme o previsto, levantará então voo, com destino a Compostela, guardado por três homens vindos de Roma. Um desses homens, ao serviço do nosso patrão, desviará o avião, após a sua descolagem de Antuérpia, pelo que o cálice nunca chegará a Compostela, mas sim a um outro local, onde nós estaremos à sua espera. Dois dias após esta conversa, o piloto do Falcon, acabado de descolar do aeroporto de Antuérpia, elevava-se nos céus belgas quando entrou no cockpit um dos elementos enviados pela Santa Sé. O piloto, ao vê-lo, perguntava-lhe sorridente o que desejava. Este, apontando-lhe uma pistola, e com cara de poucos amigos, disse-lhe em voz sibilina: – Vai fazer o que eu lhe digo e ninguém se magoará, caso contrário vejo-me obrigado a meter-lhe uma bala na cabeça. – Dizia-lhe isto, enquanto engatilhava a pistola. O piloto, vendo a vida em perigo, sem perceber nada do que se passava, limitou-se a acenar afirmativamente com a cabeça. Então, o assaltante indicou-lhe, baixo, ao ouvido, o novo destino. Imediatamente se notou o avião a alterar a rota, o que, todavia, passou despercebido dos restantes guardas. Naquele dia, saíram de Lisboa três SUV’s blindados e com vidros negros à prova de bala que rumaram a sul e, atravessando a ponte 25 de Abril, seguiram a alta velocidade em direção a Évora. Ao chegarem à capital do Alto Alentejo, nenhum dos ocupantes, à exceção do condutor do carro da frente – chefe do gang –, sabia o que ali iam fazer. Embora soubessem que se tratava do roubo do cálice sagrado, não sabiam como, quando e onde o iam praticar. O Coiote mandou toda a gente aguardar num bar, até que lhes desse 25
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ordens em contrário. Por volta da meia-noite, o responsável pela operação ordenou que entrassem nas viaturas e o seguissem. Pela direção, foram-se apercebendo que iam no sentido sul. Decorrida cerca de uma hora chegaram a Beja, rumando ao aeroporto. Mal tinham acabado de estacionar junto à gare, viram aparecer os projetores de um avião a fazer-se à pista deserta. Logo que o recém-chegado aparelho se imobilizou, os seis meliantes, com o chefe à frente, invadiram a pista, cercando-o, e assim que a porta se abriu entraram de armas em punho. De dentro, a intrusão foi-lhes facilitada pelo cúmplice que já havia imobilizado os restantes ocupantes, os quais tinham por missão dar proteção ao cálice. Imediatamente entraram no aparelho, capturaram o piloto e carregaram o escaparate com o cálice, na viatura da frente. De posse do precioso cálice e levando o piloto consigo, arrancaram a alta velocidade, direitos à fronteira. Iam felizes, comentando entre si que a operação havia sido “canja”, por ser de noite e praticamente não haver ninguém num aeroporto que quase não funciona. Havia agora que atravessar a fronteira e entregar o objeto daquela ação ao comprador que aguardava, em local para eles desconhecido, para realizar a transação. As coordenadas do local em que se encontrava seriam, logo que se encontrassem em Espanha, transmitidas ao Coiote. Ao chegarem à fronteira de Badajoz, depararam-se com esta fechada. Tinha havido um atentado em Madrid e as autoridades vizinhas haviam suprimido as entradas e saídas do país. Quando disso se aperceberam já estavam cercados pela Guardia Civil, que exigiu revistar as viaturas. Vendo que iam ser descobertos, reagiram disparando sobre os guardas, ao mesmo tempo que tentavam fazer inversão de marcha e arrancar com os veículos em sentido contrário. Em retaliação a esta atitude as autoridades espanholas dispararam várias rajadas, fazendo com que, apesar de os veículos serem blindados, dois condutores fossem atingidos, indo as viaturas – desgo26
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vernadas – embater nas guardas da ponte, precipitando-se no Guadiana, enquanto o terceiro SUV foi cercado e os dois ocupantes aprisionados, sendo o precioso cálice resgatado. Com o cálice em seu poder, comunicaram o achado ao governo de Madrid que, desconhecendo a “operação de transferência”, contactou as cúpulas da Igreja Católica espanhola, as quais, apanhadas de surpresa, por desconhecerem em absoluto que cálice era aquele e porque se encontrava ali, entraram em contacto com Roma. Na Santa Sé, em face do sucedido, operou-se uma pequena revolução, visto, após rápido e sigiloso inquérito, se ter descoberto a interferência do Camerlengo – e a sua qualidade de coordenador e chefe supremo do gang –, a quem foi imposta a demissão do cargo e uma pena de prisão perpétua. Dois dias decorridos, a Guardia Civil de Badajoz recebeu instruções para conduzir, com elevadas medidas de segurança, o cálice até Compostela, onde voltou a ficar a bom recato, na catedral a que havia pertencido até ao ano de 990. E... tudo isto aconteceu numa maravilhosa primavera!
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