T O D O S O S D I R E I T O S R E S E R V A D O S A P U R I P R O D U Ç Õ E S 2 0 1 7 .
D E S I G N & C A P A
M.I.K.A. E D I Ç Ã O D E I M A G E N S
ACID25 INACIO DA GLORIA
M.I.K.A. S E B A S T I A Õ F E R R E I R A C O U T I N H O G O M E S
VALUS TRIPS T H E V A U L T O F T H E A T O M I C S P A C E A G E
D I S T R I B U I Ç Ã O
ISSUU S U T I L D I G I T A L M A G A Z I N E
16:32 O shortinho jeans e as pernas especadas à mostra sobre o painel começam a perder o efeito do início da viagem. Botas tipo cowgirl. Ela curte botas tipo cowgirl. Das de couro cru com detalhes discretos desenhados pelas costuras. Ela quer curtir. 'Posto de Abastecimento - 5km', promete uma placa na berma da estrada. O ponteiro do medidor de combustível está colado na reserva há demasiado tempo para ficarmos aliviados. Não era a primeira; nem a segunda; e infelizmente estava longe de ser a terceira vez que isto nos acontecia. A ideia era enchermos o tanque na saída da cidade para evitarmos filas longas. Pegamos logo um trevo e, na
descida de acesso à estrada principal o ponteiro deu um levante quando entornou o restinho de gasolina no carburador enquanto passávamos em frente a tal placa que indicava o posto. Aquela última placa trouxera esperança e algo mais para abstrair. Estava enferrujada e parecia também baleada, contrastando com o estado de conservação da restante sinalização. Tinha pixações e um emaranhado de arames farpados enganchados ao poste. O carro simplesmente morre quando o embico ao volante para entrarmos no posto. Mas a leve inclinação da pista da entrada permite deslizá-lo até às bombas sem termos de empurrá-lo [ o sorriso dela disfarça toda a ansiedade como se sempre tivesse tido a certeza de que iríamos chegar ].
De corpos esticados e com a respiração normalizada notamos que não havia ninguém à vista. Desde onde viemos, nem vivalma; para onde iríamos, tampouco. Uma baforada seca e quente levanta o pó da terra repentinamente e apressa a nossa parada. Deve haver apenas um funcionário que talvez esteja no caixa no interior da loja. Nada. O balcão está vago exibindo algumas mercadorias e suportando uma máquina registradora das antiga. A persiana à janela entre-aberta está suspensa à meia-altura, portanto, há de haver algum funcionário… Vamos aos toilettes no exterior. No trajeto reparamos que o estabelecimento não possui letreiro
com um nome comercial, e nem as bombas uma marca de distribuidora ou refinaria petrolífera. Ao sairmos dos banheiros dou de ombros para ela acenando negativamente com a cabeça, pois nem sinal de atendente, apenas um pequeno ventilador tipo ventoinha ainda ligado sobre a pia do masculino. Na outra lateral da conveniência uma escadaria que conduz até à sobreloja deixa antever um ventilador de teto também ligado. Subimos. Bato à porta com cuidado para evitarmos alguma intromissão, mas não vem nenhuma resposta do interior. Viro a maçaneta e a fechadura destrava. Entramos. Ninguém. O cômodo mistura o mobiliário de um escritório com o de um dormitório. Sobre a
madeira uns porta-carimbos pesam papéis de faturas e recibos vencidos e dividem espaço com um portalápis e um telefone de discagem mudo. Noutro canto, um colchão de casal com umas latas de cerveja vazias ao lado fazem crer que alguém ainda irá regressar. Descemos então até às bombas para reabastecer, mas não sai nem uma gota de gasolina dos galhetes. Vamos ter de esperar… e a noite nem tarda em concordar.
19:01 Balas. E uns biscoitos, amendoins e salgadinhos industrializados dispostos nas gôndolas da loja. No freezer há ½ dúzia de latas para cada tipo de bebida, e nas prateleiras logo acima, alguns destilados. Uma horinha depois feita dentro do carro e subimos com os tira-gostos e sem álcool [ a hora feita é pura expressão porque ambos os relógios pararam de funcionar ]. Volto a reparar nos carimbos até que ela mostra um carimbo que diz 'A&R'. Uma primeira impaciência faz o pensamento oscilar entre a demora do funcionário
e ela com o shortinho dela já espreguiçando sobre o colchão. Ainda queremos percorrer vários quilômetros amanhã mas não há gasolina no posto, mesmo que o tal atendente apareça ainda hoje. Ela dá o mote ao ir buscar uma toalha de banho na mala do carro: aproveito para pegar a lanterna no porta-luvas pois jurava ter visto algo mais escrito naquela placa a 5km atrás. Ela fica e eu vou. Não há nada mais ao redor neste trecho da estrada. Mal possui acostamentos. Não há residências e até as árvores são escassas. Me dou conta também de que não passam carros deste que paramos aqui. Na placa, além de 'Posto de Abastecimento - 5km', há uma tag pixada que diz 'tarja preta'.
20:13 De volta ao posto, olho para a outra direção e também não há nenhum ponto de iluminação. Ela espalhada pelo colchão no escritório já havia derrubado ½ garrafa do bourbon. Não iria conduzir, relembra-me sapecamente. Durante aquela parada forçada refizemos planos face aos acontecimentos e decidimos que se ninguém aparecesse ou se não conseguíssemos sair dali seria ali mesmo que ficaríamos hospedados. Com a madrugada pedindo licença, derramo com ela uma golada para sacramentar a alteração, acompanhado de uma carimbada com a logomarca do estabelecimento em nossas coxas: uma mera gota estilizada.
04:06 Ela adormece antes oferecendo-me o prazer de ver a lua na sua pele. A lua na pele nua sempre revela outros nós. E a lua na pele nua dela a deixa ainda mais cowgirl. Não tirou as botas. Disse que o funcionário poderia aparecer e que não convinha demorarmo-nos a vestir, como se toda a nossa roupa não tivesse sido arremessada a uma cadeira afastada do colchão.
09:27 Desperto com o ruído de um veículo vindo do pátio do posto. Corro para a janela já catando algumas peças de roupa para ela e vejo um caminhão de combustível parando junto às bombas. Beleza. Enquanto nos vestimos continuo observando. Um cara sai pela porta do carona trajando um sobretudo estilo militar, de chapéu para-chuvas e tudo. Mete o galhete retirado da bomba no receptáculo do caminhão para encher o tanque, mas demora-se um pouco. O motorista permanece ao volante enquanto o companheiro põe a mangueira no lugar e dirige-se lentamente para a área de calibragem de pneus.
Já ia eu atendendo à solicitação dela de que estava pronta quando o cara sacou a mangueira do barômetro, enfiou o bico em uma das narinas, levou uma das mãos até à alavanca e a baixou com toda a força para obter a máxima potência. Caiu como se tivesse se dado um tiro. O motorista porém religou o caminhão a seguir e partiu, tranquilamente. Sem ter como explicar para ela o ocorrido, agarrei numa de suas mãos e descemos as escadas às pressas, pois lá estava um corpo estendido no chão.
10:28 Uma caveira. Sobretudo sim - e botas, luvas semdedos, cachecol de flanela, cinturão de couro encardido… Mas, uma caveira. Antes de dormir havia recordado dezenas de filmes onde aparecem postos com histórias esquisitas, e muitas vezes até são fundamentais na trama. Elucubrei quais seriam os motivos para rolarem tantas cenas de assaltos, assassinatos e explosões em postos no cinema, mas não cheguei à nenhuma conclusão, ficando apenas com a constatação de que se trata de um dos cenários prediletos de roteiristas e diretores. Mas este 'posto da gota' não se parecia em nada com o que já havia visto e, agora, ainda menos. Além de
alguém ter descido de um caminhão de combustível que pretensamente seria o nosso suprimento para o abastecimento para dar um tiro de ar comprimido na própria venta, ainda por cima este alguém é uma caveira. O horror foi tamanho que até ponderei fugirmos à pé e explodir o posto à distância, mas sem gás sequer no tanque, não rolava. Não víramos ninguém mais cruzar a estrada desde que entráramos ontem no raio dos 5km do posto após a placa, e sabe-se lá o que era aquele motorista do caminhão. Nem tocamos na caveira. Entramos novamente no escritório e, apesar da mudança de planos estar em causa, não tínhamos outra opção a não ser fugir dali.
Ainda reorganizávamos as ideias quando outro automóvel adentrava o posto. Ressabiados, espreitamos com mais cautela. Era um 4 portas. Entretanto, silêncio. Longos segundos se passaram até que um dos passageiros abrira a janela. Assim como nós, deviam estar à espera de alguém que os atendesse e fosse abastecer o veículo. De braços para fora, o passageiro derruba a mangueira ao retirar o galhete do encaixe na bomba e pressionar o gatilho, deixando-a no chão, e logo arrancam com o carro em alta-velocidade. Mas, alguns metros adiante, outro tripulante atira um coquetel molotov na mesma bomba que, ao ricochetear na bomba e cair próximo ao galhete, explode. Porém, sem gasolina no posto, o estrago acabou por ser menor do que a intenção.
13:45 Não havia mais o que pensar. Precisávamos sair dali imediatamente. Montamos uma mochila com o essencial e trancamos toda a bagagem no porta-malas.
A
intenção era caminhar até ao povoado ou residência mais próxima para arranjar combustível e voltar para buscar o carro. Empurramos o carango até ao lava-jato. Retiramos uma das rodas e o estepe e os trancamos no toilette do escritório [ não fosse alguém aparecer e querer roubar o possante ]. Com os pés na estrada e já com cerca de 5km percorridos na direção contrária a de onde viemos,
um ônibus apontava na pista indo na mesma direção para onde seguíamos. Acenamos para que parasse, mesmo que com o reflexo daquela hora do dia estivesse impossível ler o seu trajeto, mas naquela situação, qualquer caminho avante seria caminho para gente. Porém ao parar, e antes que abrissem a porta ou víssemos quem estava dentro e a conduzir, lemos o letreiro do ônibus que dizia: 'Tristar'.
sequela 1 Vacilamos. Tiramos um cochilo e não percebemos o quanto demorou para chegarmos neste sítio. O motorista do ônibus também não sabia informar. 'Não uso relógio', respondeu quando indagado, e completou dizendo que o contador de quilômetros estava avariado.
Tipo estranho, ele. De cabelos grisalhos como o pelo de um gato de pelos brancos, magrelim, praticamente um cabide de seu uniforme 'Tristar' amarfanhado e meio roto, não balbuciou sílaba desde que embarcamos. Conduziu cuidadosamente o coletivo até este rancho que, entre uns tratores e
ferramentas agrícolas, armazenava gasolina e diesel num galpão.
Foi sorte. Logo ali era o ponto-final da viação Tristar que cumpria uma rota circular, e pudemos voltar para o posto no mesmo carro e rapidamente.
O nosso 'boa viagem e obrigado' não teve retorno [ o tipo é mesmo estranho ]. Mas foi uma aparição mais do que oportuna... conseguíramos dois galões de 5 litros cada para abastecer o possante.
Escaldados, subimos para o escritório com os galões para buscar as rodas. Eu, ela e o shortinho dela que beleza.
Porém, mal pusemos os pés na sobreloja e um ciclista adentrou ao posto portando um cavalete, uma tela e uma bolsa à tira-colo num dos braços, seguindo diretamente para o lava-jato. Não acreditamos. Parecia que, sempre que subíamos para o escritório ocorriam coisas no pátio...
O sujeito era artista. Aparcou a bike numa mureta, abriu o cavalete de tripé, montou a cena toda e, sacando pincel e tintas da pochete, pôs-se a ilustrar o nosso carro.
'Vamos ter de esperar...', disse ela sem tirar os olhos da janela, enquanto eu da janela os olhos não tirava.
sequela 2 Ela é manequim [ como diriam os das antiga ]. Anda de um lado para o outro no escritório sem fazer barulho. Convém. O ciclista está pintando e não reparou ainda que é observado.
De repente, outro carro chega à estação de abastecimento um pouco acima da velocidade recomendada. O ciclista olha de soslaio, e, para aumentar o espanto geral, dirige-se até ao lavajato, cola no nosso veículo ainda ali parado e buzina insistentemente aos berros de 'Eu quero passar! Eu quero passar!'.
O ciclista dá-se por satisfeito como se tivesse terminado a sua obra, guarda o seu material cuidadosamente e retira-se em sua bike, deixandonos curiosos quanto ao resultado.
O incauto motorista esbraveja ainda mais contra o nosso possante ali parado. Todos demonstram insistentemente terem pressa e comportam-se como se fora um engarrafamento, até que o piloto desesperase: 'Sai da frente! Sai! Eu quero passar!', buzinando.
Passo a mão na garrafa de bourbon quase vazia e enxugo-a. O posto estava completamente deserto e o único automóvel que havia ali era o nosso, mas provocava um congestionamento.
Mais conformado, um passageiro desce do carro com uma toalha de papel em mãos e caminha até à loja. Ao regressar ao veículo, o motorista faz uma manobra do tipo de mudança de pistas e partem ainda mais acelerados. Descemos. Na porta da loja, o cartazete improvisado na toalha de papel diz: 'Há 2 pinél no banheiro'.
sequela 3 O posto agigantou-se. Afinal, o que é 'pinél' e a que banheiros aquele passageiro se referiu? Aos públicos e ao de funcionário ou ao do escritório? O silêncio fez-se dramático. Tínhamos de sair fora dali, mas sem antes checarmos o que há nos WCs, qualquer movimento seria arriscado, ademais a dúvida de se as rodas do nosso carro ainda estavam onde as guardamos.
Saquei o bilhete da porta da loja e acenei para ela com a cabeça para subirmos. Beleza. As rodas estão no mesmo lugar. Ela debruça-se aliviada sobre a pia e quando levanta o rosto para olhar-se ao espelho
solta uma lágrima, copiosamente. Encosto na parede como se tivesse a esperado para um encontro durante horas, e também suspiro. Combináramos então em irmos aos toilettes abaixo para verificarmos se havia alguém lá. Um ficaria à porta vigiando o exterior do recinto, enquanto o outro entraria para ver qual é.
Ela fica e eu entro.
Nos banheiros feminino e no de funcionário não havia ninguém. Porém, no masculino, ao olhar pelo vão debaixo das portas dos sanitários, em dois, dentre os três, tinha gente. Os calçados os denunciavam. Saí o mais discretamente possível e os usuários nem se moveram.
Não podíamos fazer nada antes de sabermos quem ou o que eram esses pinél. Da porta, ela aponta para uma pequena escotilha envidraçada no teto, servindo para entrada de luz. Do lado de fora, uma escada escorada na parede permite subir para o telhado.
Subo eu.
Temendo estragar tudo com um simples pisão de maljeito, engatinho até chegar à janelinha. Vale o esforço. Apesar dos calçados, os ocupantes dos sanitários são dois bonecões de posto, daqueles que são postos nos postos à beira da pista de entrada para sinalizar aos motoristas que cruzam a rua de que ali há uma estação de combustível.
'Então, vamos nessa!', anima-se ela. Passamos na loja , apontamos os produtos que consumimos num guardanapo e embrulhamo-o ao pagamento, deixando-os sob a gaveta da máquina registradora. A seguir, catamos as rodas e os galões e preparamos o carro para a partida.
Ninguém mais apareceu.
Na estrada, depois de um tempo mudos tentando descomprimir, só pensávamos em quem seria o responsável por aquele estabelecimento e porque rolavam tantas coisas absurdas em seu entorno e interiores, torcendo para que a gasolina fosse suficiente para chegarmos noutro ponto de abastecimento.
EnsaiĂĄvamos finalmente uns sorrisos e as botas com as pernas dela jĂĄ tinham se espraiado novamente pelo painel, voltando a viver a viagem planejada, quando reparamos que o ponteiro do medidor de combustĂvel colara na reserva.
PURI PRODUÇÕES