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O REFÚGIO E O JUÍZO DE JEREMIAS FLORES
todos os direitos reservados à Puri Productions 2019.
1a. edição publisher: Issuu [ www.issuu.com/sutilmagazine ] distribuição: Facebook [ www.facebook.com/puriprod ]
capa: design de Han Wenqiang / ARCHSTUDIO [ www.archstudio.cn ] projeto de arquitetura para o Central Academy of Fine Arts [ China ] fotografia de ©Jin Weiqi [ www.jinweiqi.top ]
prólogo_ “Afinal, o que aconteceu com Jean Wyllys?”. Este livro surgiu comigo com esta indagação, uma semana após as primeiras notícias de que o deputado federal brasileiro reeleito pela 2a. vez havia deixado o país e renunciado desde o exterior ao novo mandato por medo das ameaças de morte que sofria e pelo desafeto parlamentar Jair Messias Bolsonaro ter sido eleito para a Presidência da República do Brasil a partir de 2019. Naquele despertar davame conta de que havia algo incabível no que estava sendo divulgado por todas as partes, prós ou assumidamente contra à personalidade, do seu partido PSOL e fãs internautas às autoridades e mídia, pois o próprio nunca mais aparecera ou falara em público – nem mesmo através de redes sociais –, enquanto o seu paradeiro era completamente incerto, incluindo a dúvida se teria mesmo deixado o país. Porém esta história não é sobre Jean Wyllys, e sim sobre Jeremias Flores, uma personagem tão inspirada pelos fatos citados quanto por tantos outros casos de refugiados Mundo afora, que abandonam suas terras como fugitivos por motivos políticos, ideológicos, religiosos ou de guerras, mas sempre envolvendo questões espirituais. Este livro é, portanto, uma ficção.
1_ Passava das 6 da manhã quando Jeremias Flores entrou no saguão de desembarque do aeroporto internacional. Com ele o amarrotado de praxe dos passageiros maldormidos nas longas viagens transcontinentais e uma mala, de bordo. Chegara. Quando cruzasse os portões de vidro com abertura sensitiva automática veria gente com cartazetes com o seu nome inscrito para que identificasse quem o conduziria até ao seu destino. Entretanto, concorreu uma fila mais para apresentar o passaporte, o bilhete da viagem de regresso e o local onde se hospedaria junto ao balcão dos serviços de fronteiras. Tinha pressa e estava algo mais ansioso que o habitual, mas via ao seu lado tanto quem se atrapalhasse com bolsas, malas, papéis, celulares e crianças de colo quanto senhores e senhoras solitárias quase imóveis dentro de seus trajes formais. Sentiase bem naquela condição. Nada o impedia mais do que a vontade de soltar um bocejo pelo sono perdido na noite passada dentro do avião e reviase jovem. 'Senhor Flores?', indagouo educadamente um dos dois guardas que o abordara quando estava apenas a três estrangeiros de ser atendido. Sim, sou eu… O senhor poderia nos acompanhar com os seus documentos e pertences até àquela sala em particular?
Sim, claro… Jeremias ainda concatenava ideias sobre o porquê daquele tratamento diferenciado, mas ao aproximaremse da porta de uma das salas para atendimento privado do departamento de controle de entrada de estrangeiros logo desanuviou, pois parecia apenas ter sido reconhecido. – Por aqui, senhor Flores… –, disselhe o mesmo guarda abrindolhe a porta de um escritório sem janelas. Era a última coisa que ouviria desde aquela sua vida.
2_ Flores manteve os olhos abertos. De todos os sentidos, o único que fazia sentido era a sua visão. Viu quando de repente o chão se aproximou do seu rosto após uma picada ao de leve no ombro esquerdo junto ao pescoço assim que a porta do escritório no aeroporto foi fechada. Viu a seguir entrarem mais botas pretas apesar de não conseguir mover mais nenhuma parte do seu corpo ali estirado. Viu quando puxaram uma maca para perto enquanto outros atavamno com roupasdeforça, focinheira e protetores de ouvidos para que fosse levado em segurança para um laboratório. Lá, em uma sala ampla, Flores acompanhava o vaievem e o entraesai de pessoas de uniformes brancos, máscaras médicas brancas, óculos protetores transparentes, capuzes brancos, luvas cirúrgicas, num ambiente de paredes e luzes brancas. Um retiraralhe um fio de cabelo com uma pinça; um outro, uma amostra de sangue; e um terceiro coletaralhe a saliva com um palito adequado para depois alguém começar a ministrarlhe drogas por via intravenosa… Só percebia – e via –, que, durante horas, estava sendo submetido a procedimentos para uma examinação.
3_ Durante os procedimentos esteve em pânico, à beira de um estado de choque. Não sentia nenhuma dor, mas a arbitrariedade com que fora desviado do seu curso previsto obviamente deixara Flores desesperado. Não sabia onde estava, quem eram aqueles profissionais e com que intuito operavam seu corpo. Porém o que mais o incomodava eram aqueles olhares dispersos dos seus e os comentários esporádicos entre aquelas pessoas, como se ele não estivesse ali. Era uma situação semelhante a de um paciente anestesiado numa sala de cirurgia, com exceção para o fato de que antes estava desembarcando num aeroporto e que fora levado para ali consciente mas à revelia, e sabendo que fora capturado pelos próprios guardas do serviço de controle de fronteiras. Entre silêncios e silêncios, mais silêncio, pois não ouvia nada, apenas flagrava ocasionalmente movimentos labiais por debaixo das máscaras. Não sabia o que tanto faziam com o seu corpo e quantos profissionais estavam operando porque a sua cabeça permanecia imobilizada sobre a mesa de cirurgia, o que só lhe permitia enxergar os rostos quando estes se debruçavam bem em frente ao seu campo de visão.
Até que Flores começou a sentir dificuldades em manterse acordado e adormeceu.
4_ Ao reabrir os olhos uma sirene de luz vermelha disparou, e logo desligou. Estava na parede a sua frente, porque naquele momento Flores começava a perceber que tinhamno mudado de cômodo. Continuava todo atado a um tipo de cama, agora na posição vertical. O ambiente era menor e menos iluminado, e ainda não sentia o próprio corpo. Alguém adentrou ao recinto interrompendo os seus raciocínios. Provavelmente avisado pela sirene que se acendeu ao acordar. Não conseguia distinguir a figura devido à iluminação, mas rapidamente pôde concluir pelos seus movimentos que ela veio para usálo sexualmente. Sua angústia e aflição dispararam por suas veias adentro, e nada podia fazer. Flores estava entregue às pessoas daquele lugar. O abuso durou poucos minutos mas pareceulhe o inferno. Tinha acabado de despertar e a primeira coisa que vira foi a ofuscante luz vermelha da sirene antes sequer de recordar onde estava até adormecer, e quando esta se apagou, a tal figura misteriosa adentrara o cômodo para ir diretamente em sua direção para as tais práticas sexuais sem que pudesse sentir até mesmo de que gênero era ela. Quando a porta se fechou e voltou a ficar só, Flores chorou
compulsivamente. Tinha náuseas e um início de claustrofobia. Suava frio e tinha calafrios, mas nem sentia a maior parte daquelas reações, pois mantiveramno sedado. Após o pranto, clamou pela sua vida. Esquecia momentaneamente o que passara nas últimas horas não contabilizáveis para elencar motivos pelos quais deveria sair daquela situação a salvo, desde as pessoas que amava aos seus ideais, suas intenções mais juvenis, suas conquistas pessoais e profissionais, seus pais, seus hobbies mais prazerosos, os desejos mais simples mas ainda por realizar… Tudo ordenado até antes de a sirene acender novamente.
5_ Desta vez, não acontecera nada a seguir ao toque da sirene. Demorou um bocado até que Flores voltasse os seus pensamentos para outros motivos que não fosse a expectativa do que iria adentrar por aquela porta. Foi aí que veio a pergunta: “o que eu estou fazendo aqui?...”. Flores havia saído de férias da empresa após quase uma década sem gozá las devidamente. Seu diaadia é tão atribulado e de constantes afazeres que o trabalho e o ócio já não se distinguem, assim como quem são os meros colegas, os amigos, familiares e, até, os desconhecidos dentre os que o rodeiam. É tão inacessível quanto fácil, dependendo apenas de onde está, se dentro do seu veículo ou nas ruas; se num restaurante ou num quarto de hotel. Uma popularidade que às vezes carregava com certo enfado já que algumas de suas condutas e decisões contradiziam a sua própria consciência… Já havia ultrapassado três relações conjugais e diversos outros envolvimentos, quase todos de forma litigiosa e que lhe trouxeram grandes turbulências afetivas e morais; também angariava e alavanca alguns de seus negócios de formas bastante questionáveis para suportar com leveza a manutenção de sua propalada honraria comunitária. Socialmente, Flores tem os seus problemas como quase todos temos os nossos, mas agora, tudo isto parecialhe pesar aos detalhes.
E já quase começava a tomar juízo quando a sirene vermelha novamente se acendeu.
6_ Um sujeito abriu a porta mas detevese ainda por alguns segundos do lado de fora do cômodo onde Flores estava preso. Viera só e precisou escancarar a entrada para ir buscar um carrinho manual de transporte de caixas de duas rodas. Vestido de branco como os da sala de operações, seguiu diretamente em sua direção contornandoo, para apanhálo com a maca que o prendia por trás. Ao erguer Flores com a base do carrinho, o homem conduziuo calmamente para a saída e pelos amplos corredores do andar, tudo sempre muito alvo e com portas espaçadas que davam para outras salas. Não via mais ninguém. Naquelas condições conseguiu pouco mais do que ficar com a impressão de que demorara para chegar ao ambiente consecutivo – e que, afinal, era a mesma sala de cirurgia anterior. Flores foi posicionado como dantes sobre a mesa e o ritual de exames recomeçou. Tinha feito sexo. A equipe averiguaria quais foram as consequências em seu organismo através das análises. Repentinamente, todos os que estavam em seu campo de visão olharam em direção à porta e saíram, sem nenhuns entretantos para términos de alguma atividade inacabada ou arrumações, para logo surgir diante dele
uma mulher – também de branco –, sem máscara, o que permitiu um batom cor de vinho como as frutas silvestres de compota que introduzira em sua boca utilizando uma colher.
7_ Não sabia como sairia daquela clausura, mas quando acordou Flores teve a convicção de que nunca mais esqueceria aquele rosto. Todavia não se pôs de lisonjeado. Encontravase algo nauseabundo numa mistura entre o nojo pelo que fora submetido com os efeitos colaterais da bateria de exames. Novamente uma luz vermelha foi acionada ao seu despertar e um grupo de quatro homens entrou imediatamente na sala de cirurgias para retirarlhe as amarras, despilo das roupas de confinamento, trajálo com um bom terno à medida e acomodálo numa cadeira de rodas com controle remoto para que fosse conduzido até a um outro local no interior daquele pavilhão. Ao chegar ao recinto, Flores foi deixado ali sozinho. Continuava privado dos seus movimentos e de todos os seus sentidos, exceto o da visão. O salão estava vazio. Aliás, nem era bem um salão… Flores fora levado até a um grande auditório semelhante ao de um tribunal, e a sua cadeira deixada na posição da do réu ou do acusador.
8_ Horas passaram até que Flores reiniciasse uma revisão prolongada da sua própria vida até ao momento em que fora capturado no aeroporto. Recomeçou as recordações quase exatamente de onde havia sido interrompido quando acordou na sala do coito. Lembrouse de mais deslizes, de mais motivos para sofrer aquilo tudo; de mais razões para não ser feliz. De desmerecimento em desmerecimento a sua balança de caráter ia pendendo para ambos os lados e encontrava sempre equilíbrio: se era bem sucedido é porque era competente naquilo que empreendia; se atraiu admiradores é porque tinha carisma; se fez dinheiro é porque sabia ganhá lo, e se saía do país sem prazo de retorno previsto em sua agenda é porque precisava libertarse do centro do seu próprio Mundo – nem que fosse por um tempo. Flores consideravase realizado e aceite no seu contexto. Sem plateia nem oposição, um grupo começou a entrar no auditório, um a um, em fila indiana, através de uma porta por detrás do balcão elevado pela plataforma à sua frente. Suas vestes mais pareciam armaduras hightech do que batas ou os jalecos dos que interviram na sala de operação, e não eram brancos como todo aquele ambiente. Não se cumprimentaram nem dirigiram qualquer saudação para Flores. Alinharamse de pé por detrás de
cada um dos assentos até que todos chegassem para sentaremse simultaneamente. Era uma comitiva. Iniciavam um expediente dessincronizado clicando cada um em algo sobre o balcão e lendo a seguir, mas Flores não conseguia enxergar o que utilizavam por estar afastado e no sopé do mezanino. Entendia que deveriam estar tomando ciência de dados sobre si e dos resultados daquela série de exames através de telas com touch screen. Impunhamse completamente de negro mas cada traje tinha um desenho distinto, inclusive as máscaras e luvas eram ímpares. Clicavam e estudaram durante horas e não voltavam suas faces uns para os outros. Até que finalmente pareceulhe que haviam terminado ao ouvir uma voz chamando pelo seu nome completo. Há tempos distraído e sem poder ver os rostos daquelas figuras ficou sem perceber quem lhe dirigira a palavra, mas como só podia acenar com a cabeça, abanoua afirmativamente. Flores aproveitou o ensejo e pôs a língua para fora como quem demonstrava que tinha sede. Não demorou para se arrepender do pedido. Ficaram todos imóveis e virados para ele, observandoo. Esperou alguns minutos e fez um sinal de negação tentando desvencilharse do embaraço. Foi quando ouviu novamente o seu nome completo com entonação de indagação e achou que
partira da figura central, dum total de nove. Confirmou uma vez mais. À sequência, Flores viu e ouviu uma enorme quantidade de imagens, frases e perguntas, que só conseguiu ponderar com a memória de que não estava escutando desde quando entrou na sala do aeroporto. Estavam comunicando mentalmente. Ou mais que isto... não compreendia aquele nível de interatividade. Muito do que presenciava reconhecia como oriundo das suas próprias lembranças apesar de involuntárias, mas a maioria recebia como estímulos externos desde os membros daquela comitiva. Suas ideias, sentimentos, convicções e construções foram constantemente postos em causa, mas mesmo com a sua participação ativa naquele estranho questionário o caudal era francamente superior à sua capacidade de resposta, e a balança mental de Flores, que funcionara tão bem durante aquele longo período de espera, pouco a pouco foi se tornando obsoleta. A primeira desconstrução formal que Flores notou naquele julgamento foi a do seu maniqueismo exacerbado. Nunca consideraria válido aquele processo mas não diria que tudo o que foi feito teve o único intuito de o maltratar. De alguma maneira, encontrara espaço para ponderações deste tipo, como a de que havia sido mais preparado para aquela audiência do que torturado, mesmo desconhecendo o que tinham realizado nele. Continuava a querer que tudo aquilo fosse um pesadelo, mas comunicava em algumas dimensões nalguns momentos que se tornaram – em apenas frações de segundo , mais importantes na sua vida do que algum dos seus melhores momentos caso
tivesse perdido algum tempo quebrando a sua rotina para tentar redigir uma lista. Flores constatou que efetivamente estava sendo julgado. Formalmente, diria que sim, que era um juízo. Apontava entrelinhas como os procedimentos ditatoriais e invasivos, a total impessoalidade, o controle e a impotência, enfim, Flores achavase naquela arena multisensorial e isto ao invés de reduzilo a um quase ninguém o afirmava ainda mais como indivíduo do que quando ele próprio reunia uma plateia espontânea diante de si. Estava sendo confrontado com conceitos, opiniões universais, dogmas, experiências humanas bemsucedidas e as fracassadas das quais compactuava mesmo que inadvertidamente, e não sentia que lhe apontavam os dedos apesar de ter a certeza de que era francamente o réu naquele repertório. A questão do tempo já nem vinha ao caso para Flores, e não devido a um suposto condicionamento resultante do tratamento na equipe, e sim porque naquela seção lidava com relatos do passado anteriores à sua existência, mesclados à sua trajetória e com coisas que não conseguia sequer datar como já tendo ocorrido. A certa altura pensou que aquilo nunca mais terminaria, e até tinha alguma razão, pois tanto o Flores que estaria sentado naquele fórum quanto o da fila para estrangeiros no aeroporto prestes a arriscar um pequeno exílio antes da polícia o deter, deixavam lentamente de existir fora daquele grupo.
PURI PROD