Desafinado
das cinzas da Acayaca à bossa-nova
Henrique Dumont, fazia tempo, havia enviado seu sexto filho para estudar Física, Química, Mecânica e Eletricidade em Paris... e Alberto ganhou os céus.
“Judith sem Par” desfilava solitária pelas capistranas diamantinas, da esquina da Rua do Bonfim até a grade do Macau. Domingos José de Almeida, “impregnado por seu espírito libertário”, desbravava o sul do país. E não sei o que teria acontecido a Dom Pedro I – e a todos nós –, sem a mão forte do padre Belchior. Curt Lange, por sua vez, seguia sua saga para tentar tornar conhecido o compositor José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, um dos maiores expoentes da música sacra das Américas no século XVIII. O maestro Francisco Nunes Júnior regia as orquestras mais expressivas do Rio de Janeiro, ajudando a preservar o ambiente sinfônico-erudito, que mais tarde serviria de moldura para a entrada triunfante de Orfeu da Conceição no cenário carioca.
As apresentações teatrais não cessavam no grande salão da Quinta da Palha, mandado edificar pelo contratador dos diamantes, na intenção de transbordar de amor o coração de sua mulata favorita. O Teatro Santa Isabel, descortinava-se à rica cultura europeia, numa Diamantina universal. O peixinho voador estabelecia recordes nacionais – talvez para anunciar a chegada do Peixe Vivo às encantadoras noites de lua cheia diamantinenses. Aires da Mata Machado Filho, definitivamente, fincava a bandeira das nossas artes populares no universo do folclore brasileiro.
Rezava-se a missa na Igreja da Sé, às portas do Beco do Motta, onde, na Boate Cajubi, corria solto o rebolado das belas mulheres da vida, amaldiçoadas pela sina das paixões arrebatadoras e instantâneas. E ainda estava prestes a se cumprir a praga rogada pelo pajé Pyrakassu, como castigo pela derrubada da Acayaca, que, pensando bem – ao se analisar o contexto do Brasil dos últimos tempos –, pode ter sido a construção de Brasília, sonho maior do presidente Juscelino Kubitscheck de Oliveira.
Em meio a tudo isso, quis o destino que, na primavera multicolorida de 1955, aportasse, em Diamantina, João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira... e a bossa-nova ganhou o mundo!
Aventurem-se!
Desafinem-se!
Fotografia de capa: detalhe da fotografia de um Piquenique nas adjacências de DiamantinaInstrumentos musicais. Coleção Chichico Alkmim / Acervo Instituto Moreira Salles
DESAFINADO - DAS CINZAS DA ACAYACA À BOSSA-NOVA
Copyright © 2022 Wander Conceição - Todos os direitos reservados.
Pesquisa e autoria: Wander Conceição
Edição e produção gráfica: Mazza Edições
Projeto gráfico e capa: Sylvia Vartuli
Diagramação: Sylvia Vartuli e Letícia Santana
Pesquisa iconográfica: Wander Conceição e Bernardo Magalhães
Diretor de fotografia: Bernardo Magalhães
Revisão textual: Hermes Pimenta Werneck Machado e Ana Emília de Carvalho
Revisão historiográfica: Marcos Lobato Martins e José Paulo da Cruz
Fotografias: acervos particulares e públicos
Nosso muito obrigado às pessoas que nos cederam fotos de seus acervos particulares, todas com a maior presteza, gentileza e generosidade, e de modo muito especial às seguintes instituições: Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP) / Arquivo Público Mineiro (APM) / Associação do Pão de Santo Antônio –Diamantina / Biblioteca Nacional (BN) / Casa de Juscelino – Diamantina / Casa do Pilar de Ouro Preto / Colégio Diamantinense / Conservatório Estadual de Música Lobo de Mesquita – Diamantina / Discoteca Pública de Belo Horizonte / Exército Brasileiro – RJ / Folha da Manhã, SP – Folhapress / Photo Assis / Instituto Antônio Carlos Jobim – Jobim Music / Instituto Casa da Glória / Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (IGC – UFMG) / Instituto Moreira Salles (IMS) / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) / Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) – Unidade Diamantina.
Nossa gratidão também às seguintes instituições: Associação Comercial e Industrial de Diamantina – ACID / Associação dos Movimentos Populares de Diamantina – AMPODI / Contabilidade Visão – Diamantina / Sindicato dos Trabalhadores na Construção Civil Diamantina e região / 11ª Superintendência Regional de Ensino – Diamantina / Terceiro Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais / Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
Desafinado: das cinzas da Acayaca à bossa-nova / Wander Conceição. - Belo Horizonte : Mazza Edições, 2022.
636 p. ; 17,8cm x 25,5cm.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5749-047-1
1. História do Brasil. 2. Diamantina. 3. João Gilberto. 4. Juscelino Kubistchek. 5. Igreja Católica. 6. Mineiridade. I. Título.
2022-1222
Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949
Índice para catálogo sistemático: 1. História do Brasil 981 2. História do Brasil 94(81)
CDD 981
CDU 94(81)
C744d Conceição, WanderPara
Thaís da Mata Entreportes Conceição, minha filha querida, a quem amo em primazia sobre tudo que existe na face da Terra.
FOTO: SYLVIA VARTULIEm memória de:
Antônio Carlos Fernandes, meu amigo historiador, companheiro na construção de textos madrugada afora, que continua redigindo o brilho das estrelas;
Luciano Francisco Guedes, meu amigo violonista, que continua espargindo o seu especial talento, em nome do Criador, numa outra dimensão;
Wanderlice Entreportes da Conceição, Wânia Reny Entreportes da Conceição e Wanda Beatriz Entreportes da Conceição, minhas três irmãs guerreiras – as duas primeiras drepanocíticas –, mensageiras da alegria, que continuam sorrindo para a vida!
Fábrica de Lapidação – Sítio da Formação / Coleção Chichico Alkmim / Acervo Instituto Moreira Salles Comércio Franklin de Carvalho - Praça Barão de Guaicuí Coleção Chichico Alkmim / Acervo Instituto Moreira SallesPrefácio
Não é de hoje que se tornou ponto pacífico na avaliação das obras de artistas e intelectuais se levar em conta o binômio “texto e contexto”. A crítica cultura vai além da consideração das referências que os criadores têm ou de sua vontade radical de criar algo maior e melhor, e mesmo das idiossincrasias das biografias de determinado indivíduo ou movimento estético. Ideias, memórias, sentimentos, vitórias, frustrações, a sorte e a ajuda generosa de outros são relevantes, é claro, mas não bastam para compreender, de uma perspectiva histórica – isto é, o movimento, não a abstração – a tessitura interna e o lugar dos criadores numa determinada cultura.
Desde a década de 1970, a partir da Cambridge de Quentin Skinner e John Dunn, consolidou-se a démarche de lidar com a história das ideias (artísticas, científicas, políticas e religiosas) com referência privilegiada à contextualização cultural, epistemológica e textual da produção artística ou intelectual. É fundamental entender o processo de formação do criador, mobilizando a maior quantidade possível de dados históricos, culturais, sociais e biográficos/prosopográficos. Noutros termos, se se está estudando um músico, um pintor, um arquiteto ou um escritor, o estudioso tem que se enterrar neste sujeito, na sua sociedade e na sua época, vasculhar os arquivos que digam alguma coisa sobre ele, inquirir as gentes que conviveram com ele, quando isto é possível. Sem se fiar em seleções prévias ou leituras a priori Como ensinou Marc Bloch, entender um fenômeno requer que o historiador abra mão de qualquer quadro de referência específico e aceite a validade de vários quadros de referência simultaneamente. Que esteja aberto a surpresas e que não menospreze episódios da trajetória do artista ou intelectual investigados só porque outros estudiosos o fizeram, frequentemente com desprezo ou arrogância.
Rua Direita em Diamantina [1868-1869]
Foto: Augusto Riedel
Acervo: Biblioteca Nacional
Jazz Band da Polícia Militar, formada por músicos mulatos. Início da década de 1930.
[Esq. p/ Dir. em pé] 2º - Antônio Alves de Lima. 6º - Pedro Paranhos dos Santos.
7º - Joaquim Carlos Entreportes. 8º - Francisco Severiano da Fonseca.
9º - Ângelo Torres Correia. Acervo: Conservatório Estadual Lobo de Mesquita
Wander Conceição: o desbravador
Não é tarefa que se possa considerar corriqueira, apesar de honrosa, a de apresentar o autor de um livro do jaez de Desafinado - das cinzas da Acayaca à bossa-nova, com inelutável expressão e de repercussão nacional. Principalmente, quando se depara com dupla preocupação: primeiro, tentar esquadrinhar, sucintamente, com fidelidade, a trajetória do homem Wander, a importância da sua obra e o que ela representa. Paralelamente, desvendar para o leitor a intrincada charada, que responde pelo nome Wander Conceição.
Já o sobrenome encerra, velada, a ideia de concepção, que nos remete, inevitavelmente, ao conceito criação. Wander, um autóctone oriundo de família simples da qual herdou sua perspicácia, sua inteligência e o seu caráter, que precisou burilar à custa de ferramentas cegas. Sua trajetória, ornada por descaminhos e provações, é quase uma epopeia, pois os homens que nasceram como ele, no período pós-guerra, tiveram que levar, às costas, o ônus das suas incômodas sequelas.
Banheiro de boa acústica, em Diamantina, onde João Gilberto tocava.
Foto: Sylvia Vartuli
capítulo I
Considerações iniciais
Não há como se executar razoavelmente bem um instrumento sem o domínio de um conjunto de habilidades. Entretanto, ainda que qualificado com as aptidões ideais, é imperioso ao músico realizar uma carga diária de treinamento, bastante disciplinada e criteriosa, para manter uma performance eficaz. A necessidade desse treinamento disciplinado e criterioso aumenta, tornando-se quase uma exclusividade de vida, quando um músico tem o objetivo de ser instrumentista exímio.
Ao se abrirem as cortinas do palco, muitos são os fatores que determinam o sucesso ou insucesso de uma apresentação, porém o treinamento é determinante. É o fator que mais pesa para se atingir um desempenho preciso e equilibrado. Essa preparação, que se faz tão preponderante para a vitória do músico, é enfadonha, repetitiva, desgastante, enjoada... No entanto, fundamental.
“Considerações Iniciais” é um capítulo que não oferece a garantia da aprovação do texto deste livro, mas, análogo ao trabalho de parto do músico, reveste-se do caráter de treinamento, tornando-se obrigatório, por ser fator preponderante. E por assim o ser, é muito possível que também se mostre enfadonho e desgastante ao se descortinar.
As primeiras interrogações, sobre as quais se iniciou um processo de levantamento de respostas que resultaram na construção deste livro, começaram a fervilhar dentro de mim, quando li o best seller Chega de Saudade , de autoria do jornalista Ruy Castro, lançado ao mercado brasileiro em 1990. Incomodou-me o conteúdo das informações contidas no best seller referentes ao período em que João Gilberto viveu em Diamantina. Sobre a afirmativa categórica de seu total isolamento na cidade, surgiu a primeira indagação: “Seria justo deixar para as gerações pósteras o registro de que o músico se comportou apenas como um sujeito anacoreta excêntrico, trancafiado num banheiro, para desenvolver o ritmo que revolucionou a música popular brasileira e encantou o mundo?”
capítulo II
Uma revelação sedutora
Otrompete,
imponente, com todo glamour e elegância, registrou notas sincopadas. Após a quinta nota, o baterista puxou os outros acompanhantes do conjunto musical e o salão inteiro mergulhou-se em delicioso êxtase. A atmosfera contagiante em que tudo acontecia passava a sensação de que o Clube Acayaca estava no ápice da sua existência, com sua aura radiante.
Semelhante à comemoração final de quem vai partir após uma missão vitoriosa, era como se o Acayaca estivesse num arroubo de felicidade, despedindo-se da Rua da Quitanda, para nunca mais voltar! Suas janelas, em harmonia com o cortinado, em sintonia com os ornamentos dos balcões das sacadas, emitiam luminosidade especial. A escadaria que dá acesso ao salão de eventos ostentava um tapete vermelho, sobre o qual o vai e vem de passos esfuziantes embalava um entusiasmo caloroso, no burburinho rouco das saudações. Os garçons, impecavelmente vestidos, foram treinados para executar, com educação, deferência e presteza, o melhor atendimento. As mesas, que receberam toalhas brancas de linho, rendadas, foram ornamentadas com flores multicores. Todas as mesas haviam sido vendidas. Diante da procura intensa por lugares, as entradas avulsas tornaram-se inevitáveis e em grande número até. As pessoas transpiravam euforia. Os abraços comemoravam reencontros calorosos, marcados por anos a fio de desencontros entre muitos. A última vez em que alguns amigos se tinham encontrado pertencia a um passado distante.
Jazz Band da Polícia Militar / década de 1940
Coleção Chichico Alkmim / Acervo Instituto Moreira Salles.
Foto acima: Lado A –
Encosta Oriental
Foto na página à direita: Lado B –
Encosta Ocidental
Fotos: Bernardo
Magalhães
Diamantina capítulo III
Detahes do “Mappa da Freguezia da Villa do Principe” - 1800
- Acervo: Arquivo
Público Mineiro
Diamantina está situada no território do Alto Jequitinhonha, parte setentrional do Estado de Minas Gerais, sudeste do Brasil. Encontra-se a uma altitude de 1.262 metros acima do nível do mar (utilizando-se o Largo Dom João como referência), edificada sobre um terreno rochoso, incrustada em região montanhosa. Cidade de pequeno porte, com aproximadamente 50.000 habitantes neste início de século XXI, dista cerca de 290 quilômetros de Belo Horizonte, capital do Estado de Minas. O trajeto mais adequado para se chegar até ela, a partir da capital mineira, inicia-se na rodovia BR 040, em direção a Brasília, capital do país. Depois, segue-se pela BR 135 até a cidade de
Curvelo, onde se atinge a BR 259, rodovia que liga Curvelo à cidade do Serro. Porém, muito antes do Serro, onde a BR 259 se bifurca, continua-se o trajeto pela BR 367. Após 26 quilômetros, chega-se ao trevo da entrada principal para o conjunto de edificações de Diamantina tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O referido trevo está localizado na face norte da cidade e foi construído num local denominado, antigamente, Morro Vermelho.
Acervo:
Associação
capítulo V O presidente
Porvezes, invocar a hipótese é como escolher caminhar sobre o fio da navalha. A dimensão exata das coisas, a definição absoluta da forma correta ou incorreta para a tomada de decisões se fazem, quase sempre, impossíveis. Cientistas políticos, economistas, historiadores, jornalistas, intelectuais, críticos, procedentes dos segmentos sociais mais variados, dedicaram tempo precioso de seus estudos à tarefa de tentar escandir Juscelino Kubitschek de Oliveira. Em seus trabalhos, teceram relações de causa e efeito, levantaram dados estatísticos, esmiuçaram teorias, para fundamentar suas conclusões.
Não obstante as premissas desses estudos buscarem sustentação em um plano racional, a vida de Juscelino Kubitschek apresenta repertório vasto de interrogações, para as quais as respostas são evasivas nos corredores da razão. Destarte, sua trajetória de vida oferece um colorido especial à conjunção “se”. Aliás, o próprio Juscelino Kubitschek salientou esse colorido particular, quando se referiu aos fatos imponderáveis que determinam os desdobramentos da existência humana, ao relatar a maneira como foi impelido a ingressar na carreira política, apesar de todo esforço seu em seguir os caminhos da medicina, em detrimento dos caminhos políticos.
O estado democrático como prerrogativa de governo
Acervo: Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP)
Sobre a inclusão do seu nome na chapa de candidatos a deputado federal em 1934, por imposição de Benedito Valadares Ribeiro, então interventor do Estado de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek salientou que, por mais que tenha tentado esquivar-se da possibilidade de se tornar político, não conseguiu reunir forças para declinar a deliberação do interventor. Tempos depois, ao relembrar como esse acontecimento foi essencial para a mudança de rumo que se operou em sua vida, Juscelino revelou que outros fatos históricos determinantes foram alvo de sua reflexão:
capítulo XII
A serenata e outros entretenimentos
Serenata no centro da cidade / década 1960
Violonistas [Esq. p/ Dir.]
Fila da Frente: Pedro Cruz, José Lopes Figueiredo e Valdemar Siqueira.
Atrás: No meio -Antônio
Roque. Direita, ao fundo - Ciro Andrade
Acervo: UEMG –Unidade Diamantina
Nodia 16 de abril de 1993, o músico Ivo Pereira da Silva, naquele momento exercendo o cargo de superintendente da Fundação Cultural e Artística de Diamantina (FUNCARD), enviou para o Ministério das Relações Exteriores a carta nº. 37, solicitando que fosse apresentada à UNESCO proposta de inscrição de Diamantina na Lista do Patrimônio Mundial. Estava dado o primeiro passo para que a cidade recebesse o título de Patrimônio Cultural da Humanidade seis anos depois.1
Era necessário, contudo, que Diamantina coligisse várias razões plausíveis que oferecessem sustentação à proposta. Para tanto, seus habitantes deveriam elaborar um ensaio histórico estratégico, sobre o qual o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) pudesse desenvolver um dossiê com as justificativas oficiais, para ser entregue à UNESCO.
Ao longo da campanha para aquisição do título, formou-se uma comissão composta por diversas pessoas de notório saber, para decidir o caminho a ser trilhado, entre elas, o monsenhor Walter de Almeida, oficial capelão do 3º. Batalhão da Polícia Militar. Suas indicações foram determinantes para a definição das justificativas.
Chamaram a atenção para o fato de que, se por um lado o objetivo primaz da colonização portuguesa era espoliar com voracidade o território brasileiro, por outro lado, foi por intermédio dos portugueses que se abriu a oportunidade para a cultura europeia se estabelecer de forma bastante contundente no Brasil, em seus mais variados aspectos e mais variadas nuances. Essa cultura deveria ser preservada em Diamantina, para conhecimento das gerações futuras.
Definiu-se, pois, que a linha de construção do ensaio histórico estratégico para justificativa da inscrição de Diamantina na Lista do Patrimônio Mundial deveria basear-se nessa perspectiva de olhar voltada para a preservação de várias formas de
capítulo XV
A renovação no ritmo
Acima: detalhe de capas de discos em vinil gravados por
João Gilberto
Foto: Acervo da Discoteca Pública de Belo Horizonte/ Edu Pampani
Ao lado: João Gilberto durante um show
Foto: Juvenal Pereira
Acervo: Folhapress
Parte
integrante da estrada-tronco Belo Horizonte-Salto da Divisa, a rodovia BR 367 passaria pelo Bairro do Rio Grande, em Diamantina. Para abrir sua pavimentação no intestino da Serra de São Francisco e continuar seu percurso rasgando os Campos dos Cristais, até o distrito de Mendanha, o Departamento de Estradas de Rodagem (DER-MG) contratou a empreiteira Companhia Mineira de Obras S.A. Do seu quadro de funcionários, fazia parte o engenheiro civil Péricles Rocha de Sá, nomeado chefediretor dos trabalhos naquela obra.
Nascido na cidade de Oeiras, Estado do Piauí, Péricles possuía vasta experiência profissional, tendo trabalhado como residente de construção do Departamento Nacional de Estradas de Ferro (DNEF), nos Estados do Piauí e da Bahia; diretor de obras públicas no Território Federal de Rio Branco;1 diretor da Divisão de Construção do DER, no Estado do Maranhão; engenheiro-chefe de departamentos de construção de estradas, em firmas particulares.2
1.Território desmembrado da Amazônia em 1943, que passou a se chamar Território Federal de Roraima em 13/9/1962 e que ganhou status de Estado em 5/10/1988, após a promulgação da Constituição.
2. BAT – Apelação. Péricles Rocha de Sá: Diamantina, 1957. fl. 66. Cx 338.
Casado com Maria da Conceição Oliveira de Sá, cognominada “Dadainha” no seio familiar, o engenheiro desembarcou em Diamantina, no segundo semestre do ano de 1954, hospedando-se com sua família no Hotel Esplanada, localizado no Largo Dom João, parte alta da cidade. Durante o pequeno tempo em que residiram nesse hotel, estreitaram fortes laços de amizade com os familiares do proprietário, Bráulio Trevas Andrade, mais especificamente, com seus filhos, os irmãos Antônio Juliano de Andrade, comerciante, e o médico José Aristeu de Andrade.
O casal já possuía o filho primogênito, Pedro Augusto Cezar Oliveira de Sá. Deste modo, por volta de novembro daquele ano, para maior comodidade de sua família, Péricles mudou-se para uma casa pertencente ao condomínio de moradas situado na Rua São Francisco nº. 120. Contudo, o trabalho exigia sua presença constante na linha de frente do trecho em construção, situação que o forçava a passar bastante tempo ausente de casa. Como “Dadainha” ficava muito sozinha na cidade, estava com uma criança de poucos meses em casa e grávida novamente, Péricles convidou o seu cunhado, Jovino Antônio Pereira de Oliveira, a se mudar para
Epílogo
Na foto ao lado
Restaurante Chafariz [Esq. p/ Dir.]
Em frente:
Raimundo Proença, Adriana Dias, Edival Dias.
Atrás: Dilson Coelho, Marco Antônio Dias, José das Graças.
Acervo: UEMG –Unidade Diamantina
Foilá no Carumbé, o famoso botequim do Gaguinho, que fiquei conhecendo a bossa-nova, pela qual me apaixonei, perdidamente. Foi paixão arrebatadora, amor à primeira vista! Coisa linda! Eu achava que sabia tocar violão, afinal, já dominava as pestanas, a mim ensinadas pacientemente por Reinaldo Vieira Pinto. De repente, uma confusão de acordes dissonantes apresentou-se a mim. Que coisa mais complicada! Não se via aquilo sendo utilizado pelos seresteiros tradicionais da cidade!
O fenômeno João Gilberto havia passado por Diamantina, mas não deixara discípulos. A música que chegou com muita força para a juventude da cidade, após a partida do baiano para o Rio de Janeiro, foi o rock’n’roll , em decorrência da disseminação das bandas de rock no Brasil, influenciadas pelo surgimento dos Beatles. Os violões foram substituídos pelas guitarras. Assim, estruturou-se um movimento nacional de rock , que foi denominado Iê-iê-iê, no início da década de 1960, a partir da expressão yeah , yeah , yeah , presente em algumas canções dos Beatles. Pode-se dizer que o Iê-iê-iê tenha sido uma versão brasileira do rock internacional.
Naqueles anos, o ponto de convergência dos jovens de Diamantina era a Praça de Esportes, tendo Anatólio Alves de Assis como conselheiro e a grande referência moral e ética. Havia uma dificuldade de diálogo dos jovens com os pais, especialmente, numa sociedade estruturada sob valores de extremo conservadorismo. Com a intenção de minimizar essa situação, nasceu o Clube União dos Adolescentes (CUA), como uma extensão das ações de Anatólio, que palestrava para a juventude, na Praça de Esportes, discorrendo sobre comportamentos, família, disciplina, respeito, cumprimento de horários etc.
Erimar Miguel Pires era um jovem bastante empreendedor. Na primeira metade da década de 1960, ele teve a iniciativa de fundar esse clube, por meio do qual se promoveriam reuniões de confraternização e congraçamento de jovens do sexo masculino. As reuniões eram semanais, ocorriam na casa de um dos sócios ou na sede da Praça de Esportes. Havia também as reuniões bimestrais, para as quais personalidades proeminentes na cidade eram convidadas a ministrar palestras no clube, sobre aconselhamentos, civismo, cultura, experiências de vida. Nos mesmos moldes do CUA, nasceu o Clube Recreativo Juvenil (CRJ), que reunia jovens do sexo feminino, liderado por Rozanne e Ayrde Assis, filhas de Anatólio.
Clichê de xilogravura da cidade de Diamantina. Autor da obra: desconhecido.
Acervo: Associação do Pão de Santo Antônio
Agradecimentos
Tenho o dever de registrar que recebi o apoio de um número elevado de pessoas que dispensaram a mim sua amizade e atenção, oferecendo-me as mais variadas formas de ajuda, em todas as etapas do trabalho. Terminaram por se fazerem cúmplices desta aventura.
Cônscio de que não seria producente a descrição, individualizada, de cada forma de apoio recebido, tomei o cuidado de registrar os nomes de todos os colaboradores, pois, sem o auxílio de suas mãos amigas, eu jamais teria alcançado a realização deste desiderato.
Contudo, reportando-me, especificamente, ao início do trabalho – especialmente ao tempo das enormes dificuldades, durante a primeira década –, avaliei que, além de minha família, alguns amigos fizeram a diferença naquele momento crítico. Por meio do carinho, zelo, presença e conforto concedidos a mim, de maneira incondicional, tornaram-me forte o bastante para tomar a decisão de fazer a opção pela pesquisa e de me embrenhar em um caminho anômalo e áspero. Sem a ajuda e o incentivo deles, certamente, eu não teria iniciado este livro, razão pela qual jamais poderia deixar de evidenciá-los.
André Luiz dos Reis, mola mestra deste livro, um dos meus maiores amigos, o mais contumaz incentivador desta empreitada. Andrezinho é indescritível! Sua generosidade é tamanha que, diante da perspectiva de não conseguir apresentá-lo com a deferência de que os homens de sua magnitude são dignos, ousei roubar de Vinicius de Moraes as palavras com as quais o poetinha distinguiu seu amigo Otto Lara Resende:
Andrezinho é desses amigos que a pessoa não sabe bem o que fez para merecer, mais habituado a dar que a receber. Grande amoroso, daí o segredo da imantação que exerce sobre seus amigos, que acabam todos escravizados a sua escravidão. Há amigos a quem querer bem se vai tornando, à medida, um sacrifício. Impõem a própria desarmonia, violentam a nossa intimidade, nos agridem. Outros, pelo contrário, como Andrezinho, parecem estar sempre esticando uma mãozinha disfarçada para nos ajudar a carregar a nossa cruz. São seres de bons fluídos, que, quando a gente encontra, o dia melhora.1
Meus irmãos, Wanderlei Augusto Entreportes da Conceição, Wanderlúcio Entreportes da Conceição e Wanderson Entreportes da Conceição, pelo amor desmedido consagrado a mim, principalmente, nos momentos mais adversos, de grandes dificuldades.
Wanderlei Guedes da Silva; José Domingos Pereira e Helena; Manoel Natalício Barreto e Aparecida; Jesuíno Mariani e Amélia; José das Graças Santiago e Édila; Érico Antônio Diniz Almeida e Maria de Fátima, que me aqueceram com sua amizade e seu carinho, como se aquece a um filho.
Maria Flor de Maio Guedes, Elizabete Ferreira de Oliveira, Cleide Fátima Santos, Elvira Maria dos Santos, Moacir Aguiar Filho, Anísio Ferreira, Gildázio Antônio dos Santos, Valdézio Amadeu dos Santos e Roberto Manoel da Cruz, que choraram, rentes comigo, lágrima por lágrima.
De importância capital para o nosso êxito, as amizades vigorosas, redobrada atenção, amparo maiúsculo e especial carinho de José Antônio Martins, Hugo Leonardo Miranda Coelho, Serafim Melo Jardim, Hermes
Pimenta Werneck Machado, José Paulo da Cruz, Marcos Lobato Martins, Daniel Adalberto Guedes (in memoriam), Jairo José de Oliveira (in memoriam), Roberto Resende Debien, Ivo Pereira da Silva, Marcelo Diniz Motta, Márcio Sebastião Silva, Jáliton Luiz Ferreira (Tytoca), Soraya Araújo Ferreira
Alcântara e Andreza Dayrell Gomes da Costa.
1. MORAES, Vinicius de. Para uma menina com uma flor. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. p. 155-156. OBS. Onde está escrito Andrezinho, lê-se Otto Lara Resende, conforme texto original da crônica denominada “Zero zero um”, do poeta Vinicius.
Wander José da Conceição nasceu em Diamantina no dia 12 de setembro de 1960. Filho de Maria Reny Entreportes da Conceição e José Francisco da Conceição.
Formado em Língua Portuguesa pela extinta Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina, da antiga Fundação Educacional do Vale do Jequitinhonha.
Membro fundador do Grupo de Incentivo ao Escritor Diamantinense - GIED.
Membro da Comissão Mineira de Folclore.
Coautor dos livros: Caminhos do Desenvolvimento – síntese histórica da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. UFVJM, 2005 / La Mezza Notte – o lugar social do músico diamantinense e as origens da Vesperata. UFVJM, 2007. / A Terra, O Pão, A Justiça Social – a importante participação da Igreja nas políticas públicas do Brasil. FUMARC, 2010.
Desejo manifestar a minha irresistível admiração e respeito pela seriedade imprimida por Wander Conceição em seu trabalho de pesquisador, com parcos recursos, possivelmente quixotesco para alguns. Sem a maquiagem da invencionice imaginária, mas, marcadamente, pela obstinada busca de genuínos e criteriosos depoimentos, cujo resultado será o fruto de honroso propósito idealístico. Que o trabalho de Wander Conceição reflita, positivamente, sobre as cabeças menos crédulas.
Desejo manifestar a minha irresistível admiração e respeito pela seriedade imprimida por Wander Conceição em seu trabalho de pesquisador, com parcos recursos, possivelmente quixotesco para alguns. Sem a maquiagem da invencionice imaginária, mas, marcadamente, pela obstinada busca de genuínos e criteriosos depoimentos, cujo resultado será o fruto de honroso propósito idealístico. Que o trabalho de Wander Conceição reflita, positivamente, sobre as cabeças menos crédulas.
Brasília (DF), 15 de outubro de 2003. Leon Horowitz.
WANDER CONCEIÇÃO
Quando o renomado escritor Ruy Castro escreveu o livro Chega de Saudade, fez apenas fugaz referência ao tempo que o cantor e compositor João Gilberto residiu em Diamantina e criou a batida rítmica, elemento que viabilizou o surgimento da bossa-nova. Para Ruy, o músico morou em “uma cidade chamada Diamantina, em Minas”. Desconsiderou a grandeza de Diamantina pelo seu significado histórico, cultural e político. Essa omissão inquietou o Wander Conceição e acendeu nele a necessidade de se fazer o justo reconhecimento à sua cidade natal. Este livro, Desafinado, vem como uma “dissonância”, harmonicamente, elaborada, acrescida ao texto de Ruy.
Quando o renomado escritor Ruy Castro escreveu o livro Chega de Saudade, fez apenas fugaz referência ao tempo que o cantor e compositor João Gilberto residiu em Diamantina e criou a batida rítmica, elemento que viabilizou o surgimento da bossa-nova. Para Ruy, o músico morou em “uma cidade chamada Diamantina, em Minas”. Desconsiderou a grandeza de Diamantina pelo seu significado histórico, cultural e político. Essa omissão inquietou o Wander Conceição e acendeu nele a necessidade de se fazer o justo reconhecimento à sua cidade natal. Este livro, Desafinado, vem como uma “dissonância”, harmonicamente, elaborada, acrescida ao texto de Ruy.
Sete Lagoas - MG, primavera de 2018. Wanderlei Guedes da Silva
Sete Lagoas - MG, primavera de 2018. Wanderlei Guedes da Silva
Número do protocolo do projeto de pesquisa: 0110/01/2016/FEC.
Número do protocolo do projeto de pesquisa: 0110/01/2016/FEC.
Brasília (DF), 15 de outubro de 2003. Leon Horowitz.