Memรณrias de um menino Ismar Dias de Matos
115
Uma criança ainda não acumulou memórias, é praticamente presente e futuro. Estas “Memórias” foram escritas pelo menino que virou adulto e as recolheu antes que a morte levasse seu pai, e antes que o Alzheimer destruísse aos poucos a memória de sua mãe. Além dos pais, muitas outras pessoas contribuíram com o que se pode ler aqui. Ao escrever e reescrever estas páginas, devagar, no decorrer de muitos meses, pude fazer uma longa viagem em busca de mim mesmo. Pude rever instantes e acontecimentos que eu julgava esquecidos. Fui puxando daqui, dali, e pude compor com esses fios um pouco da minha história. Fui auxiliado por muitas pessoas nessa empreitada memorialística, a quem agradeço, de coração.
s a i r รณ m Me nino de um me
Memรณrias de um menino Ismar Dias de Matos
São memórias de um menino que, de repente, cresceu, mas ainda é pequenino, apenas envelheceu!
MEMÓRIAS DE UM MENINO Copyright © 2019 ISMAR DIAS DE MATOS Todos os direitos reservados.
Mazza Edições : Edição e Produção Gráfica Sylvia Vartuli: Projeto gráfico, diagramação e capa Ismar Dias de Matos : Textos e Produção maria madalena loredo neta: Revisão Arquivos do autor: Fotografias
M433m
Matos, Ismar Dias de
Memórias de um menino / Ismar Dias de Matos. - Belo Horizonte : Mazza Edições, 2019. 112 p. : il. ; 15cm x 22,5cm. ISBN: 978-85-7160-716-3 2019-285
1. Literatura brasileira. 2. Memórias. I. Título.
CDD 869.8992 CDU 821.134.3(81)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410
Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios que possam ser empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação etc.
Sumário Escrevo...
12
Primeira seção: 14 Segunda seção: 36 Terceira seção:
52
Quarta seção:
68
Quinta seção:
96
Sobre o autor:
108
o a seçã
ir Pr ime
Os meus sonhos de criança, pequeninos na verdade, deixaram apenas lembrança e um grande mar de saudade!!! (idm)
14
Meu nascimento
V
im à luz do mundo no dia 13 de dezembro de 1962, numa quinta-feira, dia de Santa Luzia, a protetora dos olhos. Chovia muito naquele dia, dizia minha mãe. Talvez por isso eu goste tanto da chuva. Como meus irmãos que nasceram antes de mim, não nasci em hospital, foi em casa mesmo. Uma casa toda de madeira, de tábuas, casa provisória, como eram as casas dos colonos de Dr. Rui Alves de Camargo e de outros fazendeiros. Dona Josefa, mãe de minha madrinha Lia, foi a parteira, quem primeiro pôs os olhos em mim e me pegou nos braços. Era o terceiro filho de meus pais: Geralda, José Geraldo e eu. Gislene, a única que nasceu em hospital, chegou quando eu tinha quase onze anos. Mas meu irmãozinho não cresceu para brincarmos juntos. Virou anjinho do coro celestial, como era comum entre os pobres, naquele tempo. Fiquei sendo o único filho homem. Dois dias depois de meu nascimento, meu pai completou trinta anos. Minha mãe era três anos mais velha que meu pai. Fui batizado pelo Padre Edwino Engelmeier, na Capela Nossa Senhora das Graças, no distrito de Paiquerê. Era para eu me chamar Luiz, pois nasci no dia de Santa Luzia. Minha mãe cogitou chamar-me de Luiz Gonzaga; depois resolveram que não. Meus padrinhos foram Manoel Martins, colega de trabalho de meu pai, e Lia, esposa de Amâncio, meu tio paterno, que morava próximo de nossa casa. Todos morávamos na Fazenda Imbaúva, distrito de Paiquerê, município de Londrina.
15
A Amazonas comia ovos de galinha. Uma vez o meu pai esquentou um ovo e depois, quando o ovo ainda estava bem quente, ele o pegou e pôs na boca da Amazonas, segurando-lhe a boca, fechando-a fortemente com as duas mãos. Ela ganiu, esperneou e, mesmo depois dessa tortura, continuou comendo ovos. Minha mãe deu a Amazonas de presente a um conhecido nosso, que morava nas margens do Vitorino. Ele disse que sabia como curá-la. Pensei que meu pai iria matá-la também. Os ovos eram fonte de renda para nós: transformavam-se em macarrão, querosene, toucinho e outras coisas mais. Dona Aparecida era prima de minha mãe e também afilhada de batismo dela. Ela veio para nossa companhia assim que mudamos para Santa Maria do Suaçuí. O Paulinho era ainda bem pequeno; eu sou três anos mais velho do que ele. A Eniceia não havia nascido ainda. Eu e o Paulinho, meu primo, saíamos pelos pastos para procurar ninhos de pássaros. Era apenas para ver, não tocávamos nos ovinhos. Minha mãe dizia que se tocássemos nos ovos eles seriam comidos pelas cobras, e não queríamos isso. Paulinho era um mestre na arte de subir nas árvores, mesmo naquelas com poucos galhos. Havia no terreiro, perto da cisterna, um imenso pé de angico. Ele ia nos galhos mais altos. Os balanços de corda ou de cipó retorcido eram amarrados por ele, num galho de aparente resistência. Nesses balanços, nós brincávamos. 24
Dona Aparecida, Paulinho e Eniceia. Na página ao lado: José Paulo de Almeida Leão (Paulinho)
Também corríamos pelo pasto para ir atrás de um papagaio, uma pipa que caía. Recolhíamos aquelas linhas todas e as colocávamos em pequenos pedaços de madeira. Fazíamos, nós mesmos, nossas pipas e tentávamos empiná-las. Fracasso total. No Natal, que demorava tanto para chegar, sempre tínhamos um presentinho. Ganhamos, por anos seguidos, uns carrinhos de plástico, que puxávamos por um cordão. Fazíamos estradas pelo quintal, construíamos garagens nos barrancos. 25
d Se g u n
o a seçã
Tudo o que eu tenho na vida trago na palma da mão: um bilhete ... só de ida... e um mapa no coração! (idm)
36
Aprendizado
A
prendi a rezar com minha mãe quando eu ainda era criança. Rezava o terço e sabia contemplar os mistérios: gozosos, às segundas e quintas; dolorosos, às terças e sextas; e gloriosos, às quartas, sábados e domingos. As pessoas achavam lindo aquele menininho rezando o terço contemplado, que muitos adultos não sabiam rezar e desfiavam apenas as ave-marias, secamente, uma após a outra. E eu rezava também o Ofício da Imaculada Conceição, ladainha de São José, ladainha de Nossa Senhora, ladainha de Todos os Santos, e ladainha do Coração de Jesus. Esta era a última que rezávamos. Quando começávamos sua recitação, era um alívio, pois sabíamos que o momento de rezas estava chegando ao final. Eu queria rezar como o papa, pois sempre ouvi dizer que ele falava diretamente com Deus. Que privilégio! Quanta inveja eu sentia! Eu olhava para a estampa daquele homem de mãos postas, todo vestido de branco, e ficava imaginando o que ele falava com Deus. Não sei o que eu falaria com Deus se pudesse falar com Ele. Certamente pediria coisas pequenas. Decorei a abstrata tabuada sob a pedagógica ameaça de varas. “Sete vezes oito”? A resposta tinha que ser imediata, senão a vara descia no meu lombo. “Nove vezes sete”? “Não sei”. E a vara vibrava no ar, junto com a resposta: “Sessenta e três, seu malandro”. Não sei se é desculpa minha, mas talvez seja isso a causa de minha aversão pela matemática, uma espécie de medo antecipado de não conseguir aprender, um bloqueio total. Para piorar ainda mais, tive uma professora, no 37
A primeira casa, diferente da minha, em que comi algo, foi a da minha irmã Ladinha, depois que se casou: 1976. Isso pareceume um começo de libertação.
Na escola Entrei na escola – Escola Estadual Fernão Dias – no começo do ano em que o Brasil se tornou tricampeão mundial de futebol, no México. Eu não sabia onde era o México nem o que representava aquela conquista. Mais tarde, quando compreendi, fiquei feliz. Foi também naquele ano que fiz a minha Primeira Comunhão Eucarística. Não gostei da ideia de ir para a escola. Sabia que perderia muito do meu tempo livre, de meus momentos de brincadeiras. Tomei banho chorando, naquele meu primeiro dia de aulas. Eu não conhecia nenhum dos meninos da minha sala. Minha mãe não quis que eu estudasse onde estudavam meus vizinhos, em nenhum dos grupos escolares – Padre José Maria ou Nacip Raydan –, pois a notícia que circulava era a de que havia muitas brigas entre os alunos desses grupos. Estudei, pois, nas Classes Anexas da Escola Estadual Fernão Dias. Essa escola, muitos anos depois, mudou de nome e passou a se chamar Escola Estadual Hauy Petruceli Mayrink, homenagem a um odontólogo, ex-professor e ex-prefeito da cidade de Santa Maria do Suaçuí. Naquele tempo, no auge do regime militar no Brasil, éramos militarizados: fazíamos fila para entrar para a sala de aula (os menores à frente; eu era sempre dos primeiros), havia muitas sessões cívicas, hasteamento da bandeira nacional, e o canto do hino nacional. Lembro-me do Diretor Rubem Augusto Godinho dando-nos a dica para não errarmos a letra do hino, na parte que diz: 40
Fui promovido à segunda série com média nove, em primeiro lugar
“Brasil, de um sonho intenso...” [e a segunda parte]: “Brasil de amor eterno seja símbolo”. O Diretor dizia: primeiro a gente sonha, depois ama. Sempre me lembro dele quando canto o hino nacional. Tínhamos que ficar de pé para receber a professora na sala de aula. Assim deveríamos fazer quando chegasse o Diretor ou qualquer autoridade da escola. Assentávamos em carteiras duplas, de madeira escura; normalmente era menino com menino, e menina com menina. Eu levava bananas maduras para comer na hora do recreio, mas não as comia. Tinha vergonha de comer bananas enquanto meus colegas comiam lindos lanches retirados das lancheiras coloridas e forradas com paninhos limpos e asseados. Eu fazia de conta que não tinha fome, corria, brincava de pique, chutava coisas com meus colegas, mas meu sentido estava nos colegas 41
Tia Gê e minha mãe: Praça Santa Rita, Bairro Esplanada, Belo Horizonte
E a brincadeira de estátua? Na verdade, falávamos “istauta”. Brincávamos também de queimada e usávamos uma bola feita de meias velhas, com vários enchimentos, para que ficasse pesada. Outra diversão de férias: Manoel Carneiro, meu tio Manezim, comprava cavalos velhos para revendê-los para corte. Eu e o meu primo Lado levávamos os cavalos para beber água no rio e os levávamos de volta ao pasto. Montávamos sem nenhum arreio, no pelo mesmo, usando como freio uma pequena corda, que era amarrada ao queixo do animal. O destino daqueles animais era Campo Belo, onde havia uma fábrica de salame... 46
Minha tia Gê – professora de várias gerações – morava na Rua do Campo. Havia também a Rua da Taquara, Rua da Lama, Rua do Sossego, Rua de Baixo e Rua de Cima. Apenas hoje é que considero esses nomes como pura poesia, pois naquela época eu os achava muito feios. 1
2
3
4
7 5
6
1 - Tia Gê E filhos: 2 - Misael 3 - Geraldo (Lado) 4 - Margarida 5 - Fátima 6 - Ademir 7 - Elci
47
gato os comera. Ai, que raiva, meu Deus! Pensei em matar o gato. Todos riram de mim. Aí aprendi a fazer, com um galho espinhento de laranjeira, um secador de peixes. Ele ficava dependurado, sobre a fornalha, preso por um arame ao cano da serpentina. Ali os peixes secavam, e o gato não conseguia chegar até eles. Assim como no caso dos peixes, tive que pagar para aprender muitas outras coisas. Quando fiz treze anos, eu estava de férias na Limeira. Só me lembrei do meu aniversário no dia seguinte. Ninguém ali sabia da efeméride, nem eu me lembrei dela. Havia, certamente, coisas mais interessantes para viver. Fazer aniversário era apenas um detalhe. Não havia para nós festa de aniversário. Não frequentei, na infância, os circos que iam à nossa cidade. Não tinha dinheiro. Também não frequentei o cinema local. Eu ia ao circo e ao cinema, mas ficava lá fora escutando o que se passava lá dentro. E pensava que um dia eu teria dinheiro para entrar no cinema e no circo. Sou muito grato ao primo Juarez, irmão de meu cunhado José Paulino de Melo, pelas aventuras que me proporcionou ali na Limeira e nos arredores. Embora mais velho do que eu, ele soube compreender-me e me ajudar a ser o homem que sou.
50
Primo Juarez, em Aparecida - SP, ao lado de Pe. Vitor Coelho de Almeida
51
o a seçã
r Tercei
Eu agora abro os dedos e deixo tudo fluir... Já chega de tantos medos nesse arrebol do existir! (idm)
52
Primeiros trabalhos
E
u era ainda um menino quando trabalhei de balconista no boteco de meu cunhado José Paulino. Ele me pagava meio salário mínimo. E me dava tudo em notas de mínimo valor, talvez para que eu pensasse que estava ganhando muito. Após as aulas da manhã eu ia para o boteco e trabalhava ali até oito da noite. Também fui auxiliar de mecânico na oficina do Xândi e do Walter. Era mais um ferramenteiro. Aprendi a conhecer todas as chaves e aprendi a fazer soldas com o maçarico alimentado com carboreto. Minha mãe disse que o que eu ganhava ali não dava para pagar o sabão necessário para lavar a minha roupa. Eu gostava de sair todo sujo de óleo e de graxa, me sentia importante... um mecânico! O dinheiro era pouco, mas a experiência foi boa. Trabalhei auxiliando o Zé Borracheiro, no posto que ficava próximo de nossa casa. Ganhava apenas gorjetas. Com uma caixa de isopor pendurada ao pescoço, vendi picolés pelas ruas. Tinha que gritar sempre: ó o picolé! Às vezes alguém retrucava: de leite de muié, nessa rua ninguém qué! Também vendi pastéis no muro da escola, para os alunos da tarde. Vendi santinhos na feira do Mercado Municipal. Os santinhos, em múltiplos pacotes, eram trazidos pela Irmã Adélia e Madre Zita, já mencionadas. Um dos trabalhos mais pesados que realizei foi o de quebrador de pedras. Os meninos pobres da minha idade quebrávamos pedras nos locais onde havia construção. Transformávamos as pedras brutas em britas para as lajes. Fiz brita para a construção 53
Pe. Luiz Barroso e eu: minha Primeira ComunhĂŁo
58
No futebol havia uns meninos mais velhos e muito cruéis com os que éramos mais novos. Lembro-me do Zé Muela, do Manga, do Zué. O Peneira foi o maior jogador que já vi. Não sei que rumo tomaram na vida! Muitos jogos da copa mundial de futebol, de 1974, realizada na Alemanha, eu vi nas televisões dos bares de Santa Maria. Ficava à porta do bar, procurando não incomodar ninguém. Eu fiquei impressionado com um jogador da Polônia, chamado Lato. Eu o achava um grande craque. Eu via os jogos para admirar os jogadores do meu Cruzeiro: Nelinho e Piazza! Na Seleção não havia nenhum jogador de nosso time rival. Uma vez quase fui preso. Fui salvo pelo meu bom Anjo da Guarda. Meus pais só ficaram sabendo disso muito tempo depois, quando um vizinho lhes contou. Tínhamos entrado, sem permissão do dono, em uma quadra poliesportiva particular para jogar futebol. Entramos por um buraco sob o muro, por onde escorria a enxurrada. Além dos muros, havia uma enorme tela por cima deles, para evitar que a bola saísse a todo momento. Quem chutasse a bola pra fora da quadra era obrigado a buscá-la. Chegou, então, a minha vez. E quando eu subi na tela, para passar para o lado de fora, avistei a polícia que vinha, ainda longe, juntamente com o proprietário da quadra, que eu identifiquei. Eu gritei: “lá vem a polícia”. E terminei de pular a tela e sumi no milharal do seu Agostinho, um oleiro que morava próximo à quadra. Meu coração acelerou e minhas pernas tremiam como eu nunca havia sentido, algo semelhante apenas ao que ainda narrarei sobre o Pedro Raizeiro. Fiquei lá no meio da roça, tremendo feito vara verde balançada pelo vento, até perceber que tudo havia silenciado. Fui, então, pedir um gole d`água à Dona Ana, esposa do seu Agostinho. Ela, ao me ver tremendo tanto, teve pena de mim. 59
a Qua r t
seção
Olhando pra trás eu vejo imensa fila de gente, num pequeno lugarejo, acenando tão pungente! (idm)
68
Meu pai
M
eu pai gostava de escrever seu nome por todo canto: Antônio Teles de Matos. Minha mãe dizia assim: nome de bobo tá em todo lugar! Ele não se importava com a crítica. Sempre que vejo a Estrela d’Alva, vem à minha memória a exclamação de meu pai: primeira estrela que vejo, dá-me tudo o que desejo! Às vezes acrescentava: aquela é a segunda, tira a carga da minha cacunda! Meu pai não comia com o chapéu na cabeça; não comia sem, antes, rezar. Eu o ouvi dizer diversas vezes: com ave-maria se perde, com ave-maria se salva! Dizia que nunca deveríamos comer para ficar com a barriga cheia demais. Era preciso, segundo ele, parar de comer antes de ficar saciado. Via meu pai fazer a barba e tinha vontade de poder fazer a barba também, como a maioria dos meninos deseja. Ele afiava bem um canivete corneta, um canivete grande, e o deslizava pelo rosto coberto de espuma branca. O canivete ia abrindo sulcos no meio daquela neve de sabão. Raspava, raspava, e depois se ensaboava novamente para fazer uma segunda sessão, para ficar lisinho, como ele dizia. Deixava, quase sempre, um bigodinho fino, retangular. Eu também tinha vontade de fazer a barba, vontade de crescer e poder fumar cigarros brancos com filtro. Achava bonito aquilo, naquele tempo.
69
Pรกgina do livro escriturado por meu pai
74
Meu pai era um necrologista, o único que já conheci até hoje. Não possuía instrução escolar, mas anotava, de seu jeito, nomes e datas dos falecidos em nossa cidade. Não se comprazia com a morte de ninguém, simplesmente anotava o óbito. De vez em quando folheio o livro de suas anotações. Se não fossem elas, como eu me lembraria do Guilhermano, do João Roxinho, do Dupim, da Mãe de Dona Corina, do Baiano do Xandro, da Maria do Grigório, do Agostinho do Roseno, do Caixinha, do Dito Gudim, do Luiz da Lia? Meu pai anotou tudo. No seu caderno não há apenas apontamentos mortuários. Estão ali resultados da loteria mineira, da federal, datas de batizados, de casamentos. Consigo me lembrar de algumas pessoas, outros desapareceram de minha memória e só restaram nomes. Seu Juca do Lajeado era coxo e só andava a cavalo; um dia bateu num menino que o chamou de manqueba. Está no livro de anotações de meu pai: comprei um guardachuva no dia 12 de janeiro de 1977; eu acabei o serviço do Agustinho no dia 28 de setembro de 1977; entrei na pensão do Nozinho [para trabalhar] no dia 16 de setembro de 1977... Meu pai era solene enquanto escrevia. Pegava os óculos, comprados no camelô, limpava-os na fralda da camisa, e os colocava pendentes sobre o nariz. Escrevia com sua mão calejada de tantos trabalhos. Lia soletrando. E contava casos, casos engraçados, e casos de mortes nas lavras do Queiroz, perto de Santo Antônio dos Araújos.
75
Q u int
o a seçã
Gente não finca raízes, Deixa apenas suas memórias! Umas são bem mais felizes, E carregadas de histórias! (idm)
96
Em busca de minhas raízes: volta ao Paraná
D
epois de muitos dezembros longe do Paiquerê, com cabelos quase brancos e raros, ali retornei em busca de minhas raízes, pois quanto mais avanço em idade, mais tenho necessidade de voltar aos acontecimentos pretéritos. Fui ver meu tio Amâncio, irmão de meu pai, e com ele voltei aos primeiros locais da minha história. Só encontrei a terra vermelha que se grudou a meus pés. A casa de tábuas que me viu nascer foi derrubada. Meu tio me disse: tá vendo aqueles dois coqueiros ali? Pois é, ficavam no quintal da casa de vocês. Fiquei imaginando a casa, o menino engatinhando pela terra ferruginosa e boa para os cafezais que abundavam por todo lado. A irmã mais velha pajeando o menino chorão. Segundo minha mãe, minha irmã dizia sempre: não sei o que a Dona Josefa ganhou por nos trazer este menino chorão. A casa que me acolheu quando vim à luz era igualzinha à do meu tio. Uma casa de tábuas, feita para durar pouco; uma casa provisória, casa de colonos, que hoje estavam aqui, amanhã acolá. Pude, então, me imaginar dentro da casa que fora minha por uns tempos, mas a minha imaginação não tinha asas, andava baixo como galinhas e pintinhos. Não pude me sentir em casa, não sentia o chão sob os meus pés. Eu era como planta aquática, uma alface d’água ou um aguapé.
97
r o au to e r b o S
Aqui pausa a narrativa, mas a histĂłria, essa nĂŁo finda! Deus permita que eu viva contando vidas, ainda! (idm)
108
Sobre o autor Ismar Dias de Matos nasceu em Londrina - PR, aos 13 de dezembro de 1962, filho de pais mineiros. Costuma dizer que sempre foi mineiro, e usa o seguinte argumento: gato que nasce no forno não é biscoito, é gato; mineiro que nasce em outro lugar é sempre mineiro! Da primeira série do ensino fundamental até o primeiro ano do ensino médio estudou na Escola Estadual Fernão Dias, em Santa Maria do Suaçuí - MG. O restante do ensino médio foi feito no Colégio Comercial Cônego Lafayette, na mesma cidade, formando-se Técnico em Contabilidade, em 1981. Em 1982 escreveu seu primeiro livro, Um poema: Minas. Em 1988, em Diamantina - MG, recebeu o prêmio de primeiro lugar no Concurso Municipal de Contos e de Poesia: conto O fantasma que veio de mim, e o poema Convite à poesia. Estudou Filosofia e Teologia em Diamantina, e foi ordenado presbítero na Diocese de Guanhães, em 06/07/1989. IDM é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais (cadeira 75), sócio efetivo da Academia Brasileira de Hagiologia (cadeira 26). Outras obras: Cônego Lafayette: exemplo de vida (1986), Cônego Lafayette: sacerdote para sempre (1994), As igrejas de Serra Verde: história e histórias da paróquia de São João Evangelista (1998, em coautoria com José Luiz Gonçalves), A grandeza na simplicidade: relatos históricobiográficos do Servo de Deus Lafayette da Costa Coelho (2001), Uma descrição do humano no Leviathan, de Thomas Hobbes (2007), e Frente e perfil: autorretrato em palavras (2012). 109
Este livro foi impresso no outono de 2019, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Textos compostos com as fontes das famílias tipográficas Horley Ols Style e OldNewspaper. Impressão do miolo em papel Chambril Avena 80g/m2 e capa em papel Cartão 250g/m2.
Confesso que em vários momentos desta escrita fui tomado pela emoção, tanto ao recordar coisas boas, como ao lembrar as que doeram profundamente em mim. Fui às lágrimas várias vezes. À medida que envelhece o menino que há dentro de mim, vou ficando frágil, chorão, sensível demais. Espero que as Moiras me permitam escrever outras memórias, relatando outras vivências. Que o Deus da Vida nos ajude! (IDM)
Também sou um homem que escreve a lápis, que pensa provisório, de modo que possa ser corrigido; não tenho o pensar indelével das tintas, dos cinzéis, das placas de bronze; penso a lápis, como Antônio Biá, autodenominado o “intelectuário do povoado de Javé”. Aprendi a escrever a lápis, com Dona Rubéria pegando na minha mão, subindo montanhas, desenhando vogais, fazendo éles e êmes,
Minha vida tem sido um provisório só. Fiz planos, sonhei tantos caminhos, e a Vida me foi desviando daqui, dali, e trilhei caminhos com que não sonhara. Não é sempre possível fazer o planejado-definitivo. A bússola do destino, enquanto escuta o pulsar do coração, vai modificando tudo no acontecimento real e provisório. Tenho sido um homem provisório. Depois virá o tempo e apagará tudo com sua borracha implacável.
118
Memórias de um menino Ismar Dias de Matos
colorindo, desenhando, tudo a lápis.