Entretempos

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Alzira Umbelino

EDIÇÃO DO AUTOR


O cuidado com os signos, com a articulação entre forma e fundo, com a performação eficaz do “constructo” lírico, ressalta-se como um dos traços marcantes da produção poética de Alzira Umbelino, que tive o prazer de conhecer e publicar há cerca de quinze anos nas páginas do Suplemento Literário de Minas Gerais. O que se encontra neste Entretempos é, num primeiro nível, a aura “chiaroscura”, simples e difícil, de um fazer efetivado sem pressa ao longo dos anos. Trata-se de uma poesia na contramão do tempo presente, que não corresponde às pressões do mercado, desprovida dos estereótipos que facilitam a recepção em termos consumistas. Disso de­corre uma certa dificuldade da parte de quem lê, oprimidos que somos todos pelo ritmo acelerado da vida no capitalismo – selvagem, ainda por cima, em países como o Brasil. Entretempos, do fundo de uma despretensão que suscita a desconfiança quanto à sua real pretensão, convida-nos a uma desaceleração, a uma desautomação dos sentidos maquínicos que comportamos, a uma “lentidão”, para recordar aquele belíssimo ensaio do saudoso Milton Santos. Se não há dúvida – fico pensando neste momento em que tento, uma vez mais, alinhavar algumas palavras sobre o gesto criador de Umbelino – que esse convite a uma libertação das garras monstruosas do capitalismo é o que move a grande poesia moderna, de Friedrich Novalis a Murilo Mendes, também é razoável pensar que a poesia hegemônica deste século, produzida nos grandes centros urbanos ocidentais, mantém uma relação “ingênua”, para dizer o mínimo, deslumbrada, com o tempo presente, refém do capital, até mesmo quando parece combater esse tempo. Discreta, visivelmente mineira, Alzira Umbelino não se ocupa de denunciar as mazelas do mundo, na linha dos poetas “participantes”, mas de trazer à tona, de modo sutil, aquilo que podemos entender como vestígios da “waste land”, da terra devastada, sobre a qual temos existido. Em vez de proceder a julgamentos fáceis, apressados, ideológicos, do que percebe, a poeta compartilha linhas de reflexividade sobre os objetos percebidos, instigando-nos sempre no sentido de um resgate, ressignificação ou cultivo de um senso de humanidade cada vez mais em vias de se perder, senão já perdido. Tantos são os poemas investidos aqui desse propósito humanizante, que não se confunde com qualquer moralismo, que seria difícil, e muito redundante, enumerá-los. Entretempos é um caso de silencioso desejo ético, de uma afirmação do horizonte do bem, da compaixão pelo outro, em face do mal social reinante. Ao revolver todo um substrato estranho, que constitui a interioridade da superfíciena qual temos transitado, a poeta expõe clinicamente o espaço virtual, a Internet,como a grande metáfora do mal social neste século XXI, responsável pela desconexão dos corpos e pela imbecilização, como denunciou o derradeiro Umberto Eco, dos sujeitos. Vivemos, todos os que nos recusamos a cair na rede da imbecilidade, uma terrível solidão material, não apenas espiritual, uma solidão corpórea, que Alzira Umbelino consegue sugerir, em clave simbolista, sem qualquer vontade tirânica de nomear completamente. Entretempos nos traz poemas verdadeiros, eivados de honestidade, que nos colocam em face de uma desencantada condição humana, com seus raios de esperança, de um abandono barroco, digo já, de que “Portal” dá bem a medida: “um coro mudo há tempos/um longe sempre cantante”. Uma poeta sentida, na linha de Alphonsus e Henriqueta, com aquela rara capacidade de auscultar o que pulsa lá no fundo do mundo visível, aporta neste livro. Anelito de Oliveira - Montes Claros, maio de 2016.

(orelhas)


Alzira Umbelino

Ilustrações:

Humberto Guimarães

Sabará, MG Edição do Autor 2016


ENTRETEMPOS Copyright © 2016 Alzira MARIA Umbelino Todos os direitos reservados.

Ilustrações: Humberto Guimarães Capa: Sylvia Vartuli sobre ilustração de Humberto Guimarães Revisão: Alba Caldeira Mello Projeto gráfico e diagramação: Sylvia Vartuli Assistente de Edição: Letícia Santana

Umbelino, Alzira U48e Entretempos/ Alzira Maria Umbelino – Sabará: Edição do Autor , 2016. 64f; il . Ilustração de Humberto Guimarães.

ISBN: 978-85-921144-0-4 1. Poesia Brasileira . I. Autora. II Ilustrador. III. Título.

CDD – B869.1 Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios que possam ser empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação, etc.


“Corre o tempo, seu voo vá ligeiro e sem tornar cá, que será pedir sem tento que já se fosse o tempo ou viesse o tempo já.”

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. 1ª ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2005. p.397.



Sem idas nem vindas, a minha gratidão, sempre presente, a Ana Carolina, Filipe, Helena, Henrique, Juliana, Larissa, Lucas, Luís Fernando, Luíza, Manuela, Maria Luíza e Ulisses.


Sumário

PARTE I 10

Configurações 12 Aromas 13 Alva 14 Lições de botânica 15 Paisagens 16 Verdades 17 Pano de fundo 18 Miragem 19 Cobiça 20 Inocência 21 Flor de seda 22 Portal 23 Cidadelas 24 Viés 25 Passagem 26

8


PARTE II 28

PARTE III 44

Primícias 30 Bicho da seda 31 Transitório 32 Semeadura 33 Epifania 34 Contratempo 35 Passe livre 36 Provérbio 37 Conquista 38 Rosa dos ventos 39 Rota de fuga 40 Diverso 41 Enigma 42 Intermédio 43

Resistência 46 Obrigação 47 Oráculo 48 Antepassados 49 Redemoinho 50 Santuário 51 Estúdio 52 Picadeiro 53 Presença 54 Astral 55 Corda bamba 56 Pretensão 57 Certezas 58 Recado 59 Aspiração 60 Entre tempos 61

9


PARTE I

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No sem tempo de um olimpo deuses cochilam enfadados quem sabe tecem novos semideuses quem sabe Ă s ocultas tecem-se novamente entre cĂŠus e terra a humana trilha memĂłria em moldura caprichos de um tempo perfeito

11


Aromas Em viagem de volta um filtro na mente sem princípio ativo a esgarçar a vida sem vapor perdido a destilar o que foi jasmim sem a prensa de mil fragrâncias nem extração nem pressão mãos não tintas de bílis sem frascos e frio de laboratório nomes ou marketing em viagem de volta um filtro latente água de cheiro em batismo do desjejum no reino do meio-dia um cheiro no ar anúncio do que primeiro se põe à mesa um ar quente se enovela pela tarde confirma sabores ao longo das vésperas na confirmação da noite desaprender dói fole fôlego latente evocação de ceia da vida

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Entre tempos Um canto de gênese em composição no ciclo primeiro na pura claridade o que ganha palco com sol a pino ou não prepara-se sem cerco sem lona sem teto face prima de cada tom imune de sim ou não sem vértice a que se agarrar sem horizonte previsto barro mole sem pressa sem peso tempo mais que perfeito de si mesmo

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Este livro foi impresso na outono de 2016, em Sabará, Minas Gerais, Brasil. Textos compostos com as fontes da família tipográfica Baskerville e Goodlife. Impressão do miolo em papel Chambril Avena 90g/m2 e capa em Duo Design 300g/m2.

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Para Alzira Umbelino, escrever poemas é escavar os orifícios escondidos da alma, como as crianças que faziam buracos com pauzinhos na parede das casas simples das avós. Nesse escavar-se a autora nos apresenta tesouros como os versos: “desaprender dói”, em Aromas, levando-nos a refletir no papel de tantas deseducações em nossas vidas... Quem não entrevê, de forma até delicada, mas não menos contundente, as angustiantes algemas do trabalho maçante do mundo contemporâneo, nos versos do poema Plumas: “cada um sabe de cor as tramas da sua labuta/ carrega pedras/ e aconchega plumas”? E como não sorrir ao ler “Só relógio para suportar gente grande” no poema Verdade? Até gente que não vê estrelas ou não escuta passarinhos não passará incólume pelas páginas deste livro. E certamente se tornará gente miúda outra vez ao se reconhecer em meio às brincadeiras semânticas da autora. Do ventre poeta de Alzira nasce Entretempos. Esse filho que nós todos queremos ter para sempre em nossa companhia. Pura brincadeira, puro deleite de gente grande que nunca deixará de ser criança. Alba Caldeira Mello


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