Take 30

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CANNES D'OR

TAKE.COM.PT | ANO 6 | NÚMERO 30


RETOUR MIGUEL REIS

Estamos de volta. Depois de longos meses de ausência neste formato de revista online que viu nascer este projecto, a Take Cinema Magazine aproveitou a pausa para revolucionar o seu conceito e o seu design, apostando agora em revistas temáticas para, assim, tentar continuar a oferecer algo de diferente, inovador e original aos milhares de leitores que descarregam cada edição desta nossa paixão. Para recomeçar, que melhor assunto para aprofundar que um dos mais conceituados festivais de cinema deste planeta, abordado de forma multidisciplinar no seu glorioso passado, no seu auspicioso presente e no seu promissor futuro. Das memórias do recentemente falecido Roger Ebert na cidade francesa ao destaque e análise de vários vencedores destes últimos sessenta e seis anos de história do Festival Internacional de Cannes, não esquecendo os asiáticos coroados ou os preferidos de José Peseiro - ou seja, aqueles que quase ganharam mas saíram da Riviera francesa de mãos vazias -, a refrescada equipa da Take preparou ainda uma antevisão geral e individual para a edição deste ano e revisitou alguns dos mais históricos cartazes oficiais que há habitaram os postes e as árvores das ruas de Cannes. Para a próxima edição, quem sabe. Seja outro festival, um realizador, uma actriz, um género ou até, porque não, um ano em específico, são estes os moldes a seguir. Para notícias fresquinhas, críticas a estreias em sala, desafios e passatempos, contem com a nossa página no Facebook. Para uma revista forte, mais uma e não uma a mais, esta especialização foi o caminho escolhido pela redacção. O futuro, e vocês, caros leitores, logo dirão se foi o passo correcto.



ARTIGOS 02 06 08 18 24 32 54 60 64 68

ANTEVISÕES

Retour . editorial Histórico Vencedores Cannes Cannes D'Or À Conversa Com João Nicolau As Expectativas de Cannes Cannes - Relembrando Quinze Palmas Vencedores Asiáticos em Cannes Peseirismos Memórias de Roger Erbert em Cannes Cannes em 10 Cartazes

27 27 28 28 29 29 30 30 31 31

The Great Gatsby Inside Llewyn Davis The Immigrant Only Lovers Left Alive The Bling Ring Nebraska Venus In Fur Behind the Candelabra Only God Forgives Wara No Tate

CRÍTICAS 34 36 37 38 40 41 42 44 46 47 48 49 50 51 52

Letyat Zhuravli Il Gattopardo Un Homme et Une Femme MASH Apocalypse Now All That Jazz Paris, Texas The Mission The Piano Pulp Fiction Underground La Stanza del Figlio Elephant 4 Luni, 3 Saptamâni si 2 Zile The Tree of Life

Director José Soares. josesoares@take.com.pt Editor Miguel Reis. editor@take.com.pt Editor adjunto João Paulo Costa. editor.adj@take.com.pt Colaboraram nesta edição Aníbal Santiago. João Paulo Costa. Miguel Reis. Samuel Andrade. Sandra Gaspar. Colaboração CCOP Carlos Reis. Gonçalo Trindade. João Pinto. Jorge Rodrigues. Nuno Reis. Pedro Miguel Fernandes. Pedro Ponte. Tiago Ramos. Design José Soares. Imagens Arquivo Take. Alambique. Big Picture Films. Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. Clap Filmes. Columbia TriStar Warner Portugal. Costa do Castelo Filmes. Fox Portugal. Films 4 You. iStock. LNK Audiovisuais. Leopardo Filmes. ZON Lusomundo Audiovisuais. Midas Filmes. Pris Audiovisuais. Sony Pictures Portugal. Universal Pictures Portugal. Valentim de Carvalho Multimédia. Vendetta Filmes. Imagem de capa Still do filme La Dolce Vita de Federico Fellini © 2013 Take Cinema Magazine - Todos os direitos reservados. As imagens usadas têm direitos reservados e são propriedade dos seus respectivos donos.

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Cannes 2013 Š Xico Santos


HISTÓRICO VENCEDORES CANNES De 1946 a 1955 a Palme d’Or ainda não tinha sido criada, o júri atribuía o Grand Prix.

1955: 1956: 1957: 1958: 1959: 1960: 1961: 1962: 1963: 1964: 1965:

Marty de Delbert Mann The Silent World de Jean-Yves Cousteau e Louis Malle Friendly Persuasion de William Weyler Letiat Jouravly de Mikhaïl Kalatozov Orfeu Negro de Marcel Camus La Dolce Vita de Federico Fellini Viridiana de Luis Bunuel Une aussi longue absence de Henri Colpi O Pagador de Promessas de Anselmo Duarte Il Gattopardo de Luschino Visconti Les Parapluies de Cherbourg de Jacques Demy The Knack and How to Get it de Richard Lester

Entre 1966 e 1974 o Festival de Cannes regressa ao Grand Prix

1966: 1967: 1969: 1970: 1971: 1972: 1973: 1973: 1974:

Un homme et une femme de Claude Lelouch Signore e Signori de Pietro Germi Blow up de Michelangelo Antonioni If de Lindsay Anderson M.A.S.H. de Robert Altman The Go-Between de Joseph Losey La classe operaia va in paradiso de Elio Petri Il Caso Mattei de Francesco Rosi Scarecrow de Jerry Schatzberg The Hireling de Alan Bridges The Conversation de Francis Ford Coppola

A partir de 1975 a Palm D’Or volta a ser atribuída

1975: Chronique des années de braise de Mohammed Lakhdar- Hamina 1976: Taxi Driver de Martin Scorsese 1977: Padre Padrone de Vittorio e Paolo Taviani


1978: 1979: 1980: 1981: 1982: 1983: 1984: 1985: 1986: 1987: 1988: 1989: 1990: 1991: 1992: 1993: 1994: 1995: 1996: 1997: 1998: 1999: 2000: 2001: 2002: 2003: 2004: 2005: 2006: 2007: 2008: 2009: 2010: 2011: 2012:

L’Arbero Degli Zoccoli de Ermanno Olmi Apocalypse Now de Francis Ford Coppola Die Blechtrommel de Volker Schlondorff All That Jazz de Bob Fosse Kagemusha de Akira Kurusawa Czlowiek Z Zelaza de Andrezj Wajda Missing de Costa Gavras Yol de Yilmaz Guney Narayama-Bushi-ko de Shohei Imamura Paris, Texas de Wim Wenders Otac Na Sluzbenom Putu de Emir Kusturica Mission de Roland Joffé Sous le soleil de Satan de Maurice Pialat Pelle Erobreren de Bille August Sex, Lies and Videotape de Steven Soderbergh Wild at Heart de David Lynch Barton Fink de Ethan e Joël Coen Den Goda Viljan de Bille August Bawang Bieji de Kaige Chen The Piano de Jane Campion Pulp Fiction de Quentin Tarantino Underground de Emir Kusturica Secrets and Lies de Mike Leigh Unagi de Inamura Shohei Tam’e Guilass de Abbas Kiarostami Mia Eoniotita Ke Mia Mera de Theo Angelopoulos Rosetta de Jean-Pierre e Luc Dardenne Dancer in the Dark de Lars Von Trier La Stanza de Figlio de Nanni Moretti The Pianist de Roman Polanski Elephant de Gus Van Sant Fahrenheit 9/11 de Mickael Moore L’Enfant de Jean-Pierre et Luc Dardenne The Wind That Shakes the Barley de Ken Loach 4 Luni, 3 Saptamini si 2 Zile de Christian Mungiu Entre les murs de Laurent Cantet Das Weiss Band de Michael Haneke Lung Boonmee Raluek Chat de Apichatpong Weerasethakul The Tree of Life de Terrence Malick Love de Michael Haneke



CANNES D’OR ANÍBAL SANTIAGO

É já no próximo dia 15 de Maio de 2013 que começa a 66ª edição do Festival de Cannes. Composto por muitos anos de História e histórias, recheados de muitos filmes, momentos memoráveis, grandes descobertas, enormes desilusões, escândalos, mas acima de tudo, muita paixão pela Sétima Arte, o Festival de Cannes tem conseguido manter uma relevância notável ao longo dos anos, e ultrapassar as adversidades iniciais. Ao abrirmos o site do Festival encontramos uma citação atribuída a Jean Cocteau: “O Festival é um no man's land apolítico, um microcosmos do que seria o Mundo se os homens pudessem ter contactos directos e falar a mesma língua”. Embora seja um ideal algo utópico, não deixa de ser uma verdade que o Festival de Cannes reúne elementos ligados à Sétima Arte, oriundos um pouco de todo o Mundo. Mas será que sempre teve este glamour?

ao facto da Alemanha ter invadido a Polónia a 1 de Setembro de 1939. Dois dias depois, França e Grã-Bretanha declaram guerra à Alemanha. O Festival deveria decorrer entre os dias 1 a 20 de Setembro de 1939, ou seja, o dia da sua inauguração marca também uma data fulcral para o início do conflito Mundial. O Festival foi assim cancelado, tendo apenas sido exibido The Hunchback of Notre Dame de William Dieterle. O forte revés que marcou o início do Festival não levou a que os seus organizadores tenham desistido da ideia, pelo que a 20 de Setembro de 1946, foi (finalmente) inaugurada a primeira edição do Festival em Cannes. A cerimónia de abertura decorreu com pompa e circunstância, a 19 de Setembro, tendo contado com a participação da cantora de ópera norte-americana, Grace Moore, que cantou “A Marselhesa”, uma canção pronta a exorcizar os fantasmas da França ocupada e do Governo de Vichy. A edição decorreu entre 20 de Setembro a 5 de Outubro de 1946, tendo contado com obras oriundas de 21 nações, exibidas no casino municipal (substituído em 1949 pelo Palais des Festivals et des Congrès), mas pouco relevância conseguiu ter no panorama internacional, devido à sua procura em agradar a “Gregos e a Troianos”, com o Grand Prix du Festival International du Film (a Palma de Ouro só foi instituída em 1954) a ser entregue ex-aequo a mais de uma dezena de filmes (mesmo assim ainda conseguiram deixar Alfred Hitchcock [Notorious] de fora, como poderão confirmar no artigo “Peseirismos”).

Situado na cidade de Cannes, local aprazível para o turismo e uns belos passeios pela Croisette, o Festival de Cannes resultou inicialmente de uma procura de rivalizar com o Festival de Veneza, criando uma alternativa para fazer frente a um festival que naquele tempo se encontrava claramente dominado pelos regimes fascistas italiano e alemão. Perante essa excessiva insurgência política em Veneza, é criado o Festival de Cannes, que supostamente teria a sua primeira edição em 1939, presidida por Louis Lumière. No entanto, o certame não chegou a avançar devido 9


Entre os vencedores do Grand Prix da primeira edição do Festival de Cannes encontram-se obras como Brief Encounter de David Lean, Roma, Città Aperta de Roberto Rossellini, The Lost Week-End de Billy Wilder, sendo que em competição estava o “nosso” Camões de José Leitão de Barros. O Festival regressou em 1947, até ser interrompido devido a falta de fundos em 1948. Em 1949, o certame volta a realizar-se, mas no ano seguinte volta a claudicar, um forte revés, sobretudo quando finalmente começava a apresentar uma postura mais séria em relação aos premiados (na sua terceira edição, apenas The Third Man de Carol Reed recebeu o Grand Prix). O ano de 1951 marca o regresso em força do Festival de Cannes e uma alteração no seu calendário, com o Festival a decorrer entre 3 a 20 de Abril, ou seja, é a partir deste ano que o certame ganha o seu estatuto primaveril. Não é só um estatuto primaveril que o festival ganha na sua 4ª edição, mas também um fôlego que lhe permitirá não voltar a ter paragens até 1968.

assistir a um aumentar do prestígio do festival, com Cannes a começar a ser povoado por várias estrelas do cinema que desfilavam pelo certame e nas praias das proximidades, ao mesmo tempo que várias figuras políticas começavam a associar-se ao evento (em 1956, François Miterrand, então Ministro da Justiça, abriu a nona edição do Festival). Aos poucos estar na Selecção Oficial do Festival de Cannes torna-se uma inegável fonte de prestígio e divulgação para os filmes, assistindo-se a uma enorme diversidade de obras, provenientes de diferentes países e géneros, permitindo a descoberta e confirmação de alguns cineastas. Veja-se que cineastas como Roberto Rossellini, Luis Buñuel, Federico Fellini, Ingmar Bergman, Vittorio de Sica, Michaelangelo Antonioni, Robert Altman, Akira Kurosawa, Quentin Tarantino, tiveram direito a conhecer a glória da Palma de Ouro (troféu instituído em 1955, tendo sucedido ao Grand Prix). O caso de Tarantino é paradigmático de um cineasta que conheceu uma grande ascensão com esta “conquista" de Cannes, com o seu Pulp Fiction a conquistar os jurados (e a constar no Top do CCOP que poderão encontrar mais adiante) e posteriormente o Mundo. Esta “cacofonia” de obras cinematográficas e cineastas com diferentes estatutos e diferentes proveniências tem marcado um festival que, ao longo dos anos, tem cada vez mais aberto as suas portas aos filmes mais comerciais de Hollywood, muitas das vezes inseridos na secção Fora da Competição.

Em 1968, ano de grande convulsão da História contemporânea, um grupo de realizadores, formado por elementos como Roman Polanski, Jean-Luc Godard, François Truffaut, entre outros, solidarizaram-se com os estudantes e trabalhadores em protesto e conseguiram cancelar essa edição do Festival. Este foi um percalço, que advém em grande parte do complicado contexto histórico, embora a partir de 1951 comecemos a 10


Não é preciso recuarmos muito para encontrarmos esta situação, veja-se os casos de Robin Hood de Ridley Scott (2010), Pirates of the Caribbean: On Stranger Tide de Rob Marshall (2011), Madagáscar 3: Europe's Most Wanted de Eric Darnell, Tom McGrath e Conrad Vernon (2012).

Nesta fase do texto certamente já estarão a questionar (ou talvez não) sobre como os filmes são seleccionados para estas secções. Primeiro é preciso salientar que nem todas estas secções existiram ao longo dos 66 anos de História do Festival de Cannes, mas até 1972, os filmes que constavam na selecção oficial eram designados pelo respectivo país de origem. A partir de 1972, o Festival resolve afirmar a sua independência e tornar-se no único elemento que decide as obras cinematográficas presentes na Selecção Oficial dos filmes. Nos anos 60, à margem da Selecção Oficial, nascem duas selecções independentes do Festival, nomeadamente a Semana Internacional da Crítica (1962) e a Quinzena dos Realizadores (1969, um evento que entronca na polémica protagonizada por alguns realizadores em 1968). De salientar ainda o Marché du Film, criado em 1959, que visa favorecer os encontros e as partilhas entre os diferentes actores da indústria cinematográfica permitindo a compra e venda de vários projectos.

Já que o termo Fora de Competição foi utilizado, importa agora abordar um pouco como funciona a estrutura do Festival de Cannes a nível de secções. O Festival conta com as seguintes secções na Selecção Oficial: • Em Competição (geralmente a rondar os 20 filmes, que competem pela Palma de Ouro). • Un Certain Regard (criada em 1978 por Gilles Jacob, visa premiar cineastas mais desconhecidos). • Fora de Competição. • Sessões Especiais. • Cinéfondation (criado em 1998, sendo formada por cerca de 15 curtas e médias metragens de escolas cinematográficas oriundas de vários locais ao redor do Mundo). • Curtas-Metragens (cerca de 15 curtas competem anualmente pela Palma de Ouro na categoria).

Importa regressar aos filmes da secção Em Competição e abordar o seu mais prestigiado troféu, a Palma de Ouro. Até 1954, o Júri do Festival atribuía o 'Grand Prix du Festival International du Film' ao melhor realizador, sendo que os elementos premiados recebiam uma obra de um artista contemporâneo (geralmente um nome que estivesse na moda). Em 1954, Robert Favre Le Bet convida diversos joalheiros a apresentarem os 11


seus projectos para a Palma de Ouro, tendo vencido Lucienne Lazon. A primeira longa-metragem a receber a Palma de Ouro foi Marty, tendo sido atribuída a Delbert Mann (o prémio é atribuído ao realizador). Entre 1964 a 1974, a Palma de Ouro (devido a imperativos legais) é substituída pelo Grand Prix, tendo regressado em 1975. O troféu foi alterando de formato ao longo dos anos, mas o seu prestígio continua intacto, sendo o troféu principal do Festival. Entre os principais vencedores da Palma de Ouro encontram-se Michael Haneke, Francis Ford Coppola, Shoei Imamura, Emir Kusturika, Bille August, os irmãos Dardenne (trabalho conjunto), todos com dois troféus. A título de curiosidade, vale a pena salientar que apenas uma mulher conseguiu trazer a Palma de Ouro para casa, Jane Campion, com The Piano (1993). Como podem ter reparado, as Palmas de Ouro encontram-se bastante divididas, não só por realizadores, mas também por nacionalidades, algo visível no top desenvolvido pelo CCOP (integrante não só de vencedores da Palma de Ouro, mas também do Grand Prix), algo que advém dessa aposta do Festival de Cannes na diversidade. Os restantes prémios da secção Em Competição são: Grand Prix; Prix d'interprétation féminine; Prix d'interprétation masculine; Prix de la mise en scène; Prix du scénario; Prix du jury. No caso das curtas-metragens em competição, Palme d'or du court métrage, Prix du jury du court métrage. 12


De salientar ainda, o Caméra d'Or, que visa premiar o Melhor Primeiro Filme em todas as competições. Não é apenas de Palmas de Ouro e de prémios que se faz o Festival de Cannes, bem pelo contrário. Este é um certame que permite a divulgação de obras de vários cineastas ao redor do Mundo, que ganham um destaque que provavelmente nunca teriam se tivessem ficado pelas suas fronteiras internas. O facto do Festival comemorar 100 anos de Cinema Indiano é um bom exemplo dessa multiculturalidade encontrada em Cannes. Mas esse destaque do Cinema Indiano é apenas uma gota no Oceano, veja-se por exemplo os vencedores da secção Un Certain Regard. Não faltam elementos provenientes do Cazaquistão (Darejan Omirbaev, por Killer), Tailândia (Apichatpong Weerasethakul, por Sud Senaeha), Senegal (Ousmane Sembène, por Moolaadé), Roménia (Cristi Puiu, por Moartea domnului Lăzărescu), Coreia do Sul (Kim Ki-duk, por Arirang), México (Michel Franco, por Después de Lucía), entre muitas outras nacionalidades.

poucos foram criando uma reputação assinalável em Cannes, veja-se o caso nacional de Manoel de Oliveira, uma presença constante no certame, que tanto é respeitado no Festival de Cannes. Diga-se que Oliveira não é o único português a passar por Cannes. Nomes como Teresa Villaverde, Paulo Rocha, João César Monteiro tiveram os seus filmes em exibição em anteriores edições do Festival, e em 2013 temos Miguel Gomes como Presidente do Júri da Semana da Crítica. Ou seja, independentemente da nacionalidade e língua, Cannes permite que a comunicação seja feita pelos filmes, pelas imagens em movimento, enquanto os seus jurados seleccionam poucos vencedores, e os "derrotados" acabam por conseguir várias vitórias para a sua carreira graças ao reconhecimento que tiveram no local. A esta altura do texto, já devem ter reparado que ainda pouco ou nada foi dito sobre os elementos do Júri. Mas quais os elementos que formam o Júri do Festival? Os jurados variam de secção para secção. Por exemplo, na secção Em Competição, encontramos (regra geral) um júri presidido por uma figura de renome internacional, sendo composto por vários outros elementos. Por exemplo, em 2013, teremos Steven Spielberg como Presidente do Júri, tendo como jurados Nicole Kidman, Vidya Balan, Lynne Ramsay, Naomi Kawase, Daniel Auteuil, Ang Lee, Christoph Waltz e Cristian Mungiu. Em outros anos tivemos nomes como Jean Cocteau (1953), Sophia Loren (1966), Luchino Visconti (1969), a diva

Descobrir cinema de diferentes locais, diferentes escolas e diferentes culturas é também um dos objectivos do Festival de Cannes e isso é algo que fica paradigmaticamente visível na diversidade das proveniências das obras presentes nas diversas secções. Esta situação tem permitido que ao longo dos anos se tenham descoberto vários cineastas, que aos 13


Ingrid Bergman (1973), Roberto Rossellini (1977), Wim Wenders (1989), Clint Eastwood (1994), Wong Kar-wai (2004). Como podem verificar, uma enorme diversidade, onde até o (agora) russo Gérard Depardieu (1992) teve a honra de presidir os jurados. A quem irá ser atribuída a próxima Palma de Ouro não sabemos (embora o Samuel Andrade apresente na sua antevisão à 66ª edição do Festival de Cannes algumas escolhas que podem eventualmente "arrancar" o troféu), o que sabemos é que a cidade de Cannes será novamente invadida pela febre da Sétima Arte. Entre realizadores, actores, actrizes, argumentistas, produtores, jornalistas, vários são os elementos que estarão em Cannes a cumprir o seu trabalho, a respirar o seu ambiente único, onde grandes nomes se lançaram, outros confirmaram o seu talento e tantos outros desiludiram. Por Cannes passaram nomes lendários que marcaram a História do Cinema, hoje em dia, são vários os que procuram gravar o seu nome nessa história, a procurar atingir a imortalidade apenas ao alcance de alguns predestinados. Na edição de 2012 do Festival de Cannes, o vencedor da Palma de Ouro foi Amour de Michael Haneke. Curiosamente, ou talvez não, esse foi um sentimento que o filme despertou por milhares de cinéfilos que o viram, um amor que é dedicado não só ao Amour de Haneke, mas também, à Sétima Arte. Que comece a nova edição do Festival de Cannes e nos traga gratas surpresas que nos recordem o porquê de amarmos o cinema.






"Como toda a gente sabe, os gambozinos são seres míticos que existem naquele terreno movediço situado entre a infância, a ingenuidade e a superstição popular. São, se quisermos, uma exponenciação colectiva da imaginação. Não sendo um especialista, suspeito que o cinema é praticamente a mesma coisa."

À CONVERSA COM

JOÃO NICOLAU ANÍBAL SANTIAGO

Gambozinos, a nova curta-metragem realizada por João Nicolau, foi seleccionada para estar na 45ª edição da Quinzena dos Realizadores, uma secção paralela do Festival de Cannes. Esta não é a primeira vez que João Nicolau marca presença em Cannes. Duas das suas curtasmetragens, Rapace e Canção de Amor e Saúde, foram apresentadas na Quinzena dos Realizadores, em 2006 e 2009, respectivamente, tendo posteriormente sido exibidas numa miríade de festivais e mostras de cinema. Numa edição dedicada ao Festival de Cannes, a Take Cinema Magazine não poderia ficar indiferente à estreia Mundial de Gambozinos na secção paralela do certame e entrevistou João Nicolau.

A curta Gambozinos, que estará presente na Quinzena de Realizadores, desenrola-se numa colónia de férias, um local quase à parte do Mundo, onde podemos acompanhar as peripécias de um rapaz de dez anos, que lida com uma série de eventos ao longo da sua estadia neste local maioritariamente habitado por crianças. Na colónia, as crianças jogam à bola, cantam, discutem, criam grupos e disputas, rezam a Marsupilami, enquanto Rui procura conquistar a atenção da rapariga pela qual é apaixonado e evitar os bullies. No À Conversa Com, João Nicolau fala não só sobre Gambozinos, mas também sobre os seus trabalhos anteriores, as suas presenças em Cannes, a sua relação com a Produtora Som e a Fúria, bem como aquilo que considera ser necessário para as curtas-metragens serem mais valorizadas, entre outros assuntos, que podem encontrar já de seguida na entrevista gentilmente concedida pelo cineasta.

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O João Nicolau estudou Antropologia e fez o mestrado em Antropologia Visual. Como surgiu a decisão de ser realizador? Não foi propriamente uma decisão, foi acontecendo. Depois desse mestrado comecei a montar filmes documentários. Daí saltei para a montagem de filmes de ficção até que um dia me arrisquei a realizar uma curta-metragem (Rapace, 2006). Gostei bastante da experiência e, aí sim, decidi continuar a realizar. E também tenho continuado a montar filmes de outros colegas.

fulgurante dessas curtas pelos Festivais de Cinema. Pode revelar-nos algumas das melhores experiências que viveu nas anteriores passagens por Cannes? A experiência mais gratificante é poder mostrar um filme a um público numeroso e interessado. É incrível como com tanta oferta concentrada nos dias do festival e com tantos filmes e nomes sonantes se podem encontrar filas intermináveis para ver curtas-metragens de manhã. O outro aspecto que mais valorizo é a possibilidade de conhecer colegas que de outra forma nunca sequer saberia que existiam.

Ser realizador em Portugal é tarefa complicada, mas temos assistido a um conjunto de cineastas portugueses que têm conseguido obter algum sucesso, um grupo no qual João Nicolau se insere. Quais os maiores desafios que tem encontrado ao longo da sua carreira? A maior dificuldade é conseguir manter alguma continuidade no nosso trabalho e viver dignamente do mesmo. As fontes de financiamento são muito poucas. O maior desafio é continuar a ter prazer em realizar filmes, é a única forma de não nos enganarmos muito.

O Festival de Cannes tem alguma tradição de contar com cineastas portugueses. Já passaram pelo festival nomes como João César Monteiro, Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, João Mendes, Teresa Villaverde. Sente que existe uma relação especial entre este festival e o cinema português ou esta poderia ainda ser mais incrementada? Não, não existe nenhuma relação especial entre este festival e o cinema português. Os filmes portugueses são submetidos e seleccionados ou não como quaisquer outros. É normal o maior festival do mundo apresentar os grandes autores de cada país (como os acima referidos). No entanto estou certo de que se produzíssemos mais filmes mais presenças em Cannes teríamos. E isso só nos pode beneficiar – quanto mais não seja para atrair a atenção do público português. É quase um paradoxo mas é verdade.

Grande parte dos seus trabalhos têm sido produzidos pela Som e a Fúria. Como nasceu esta relação profissional? Eu comecei a trabalhar com O Som e a Fúria como montador de algumas curtas do Miguel Gomes. Depois participei também em alguns projectos da casa como actor. Por haver uma identificação na forma como cada projecto é abordado (e não necessariamente um identificação estética) foi natural que tenha sido a produtora que escolhi para mostrar o meu primeiro guião.

Espera repetir com Gambozinos o sucesso que obteve nos Festivais com Rapace e Canção de Amor e Saúde? Quando se faz um filme o objectivo é sempre mostrá-lo o mais possível. Para já não podia pedir melhor janela para a primeira apresentação. Os dados estão lançados.

A estreia de Rapace (2006) e Canção de Amor e Saúde (2009) na Quinzena dos Realizadores marcou um início de uma carreira 20




Como surgiu a decisão de desenvolver Gambozinos? O filme nasceu da minha vontade em explorar aquele terreno movediço situado entre a infância, a ingenuidade e a superstição popular.

Espera que Gambozinos chegue às salas de cinema em circuito comercial? Ainda é cedo para falar nisso, mas espero que sim.

Pode apresentar Gambozinos aos nossos leitores? O filme narra as peripécias de um rapaz de dez anos numa colónia de férias. A intromissão de elementos fantásticos vem deitar uma nova luz sobre as relações de poder, amizade e enamoramento que se estabelecem nesse contexto.

O João Nicolau trabalhou com Miguel Gomes em diversos projectos cinematográficos. Como surgiu esta relação profissional? O Miguel acompanhava o meu trabalho como montador de documentários e um dia convidou-me para trabalhar com ele numa curta-metragem, 31 (2003), cujo modo de fabricação não era o clássico em filmes de ficção. Trabalhámos com uma pequena equipa e íamos montando o filme à medida que o rodávamos.

Embora as curtas-metragens tenham bastante aderência em festivais da especialidade, estas obras raramente estreiam em circuito comercial. Sente que é essencial este percurso pelos festivais para posteriormente poder aspirar a uma estreia em circuito comercial? Não sei bem responder a esta pergunta. Talvez o circuito dos festivais, mais que uma rampa de lançamento, seja uma verdadeira alternativa a um circuito comercial que, salvo algumas excepções, é profundamente desinteressante. Ainda assim, o circuito comercial é garante de maior visibilidade para os filmes.

Como encara a nomeação de Miguel Gomes para presidir ao júri da Semana da Crítica? É obviamente um sinal de reconhecimento de um percurso inovador e singular. Gambozinos marca a terceira presença do João Nicolau na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Podemos falar de uma relação especial entre si e o certame? Não sei se é uma relação especial, sei que é um festival onde dá prazer mostrar os filmes e isso é precioso.

O que será necessário mudar para as curtas-metragens serem mais valorizadas em circuito comercial? É necessário que os distribuidores e exibidores estimulem no espectador o gosto pelo risco. Os filmes estão lá, continuam a ser produzidos. É claro que isto deveriam ser atribuições dos ministérios da Educação e da Cultura, mas o último nem sequer existe e o primeiro só recentemente incluiu nos seus programas o visionamento de alguns filmes portugueses.

Já conta com projectos para o futuro? Pode falar-nos um pouco sobre os mesmos? No próximo Verão vou rodar a minha segunda longa-metragem, John From. Não sou muito dado a falar de projectos ainda não concretizados. Direi apenas que se trata de uma história de amor antípoda.

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AS EXPECTATIVAS DE CANNES SAMUEL ANDRADE

De 15 a 26 de Maio, todas as atenções do mundo cinematográfico estarão centradas na 66.ª edição do Festival de Cannes. O maior certame de Cinema do mundo voltará a patentear glamour na habitual reunião de nomes sonantes na Croisette, a exibir obras ousadas espalhadas por diversas secções e uma Selecção Oficial robusta, apelativa e marcada pelo regresso de vários autores (Roman Polanski, os irmãos Coen, Steven Soderbergh) anteriormente consagrados no Festival. O júri, presidido este ano por Steven Spielberg (coadjuvado por nomes como Nicole Kidman, Ang Lee e Christoph Waltz), avaliará o total de vinte e um filmes em competição pela Palma de Ouro. Numa Selecção Oficial menos política (quando comparada com edições anteriores) e, à primeira vista, sem grande tendência para a denúncia da crise económica contemporânea, 2013 será pródigo em títulos onde os dramas humanos estão em plano de destaque, sendo possível realçar três temas dominantes.


e o seu filho distante numa viagem até àquele estado norte-americano; e Le Passé, do realizador Asghar Farhadi, recuperando algumas das ambiências do seu premiado Uma Separação neste drama sobre traição matrimonial e divórcio.

SEXUALIDADE, DISFUNÇÃO FAMILIAR E PASSADOS MISTERIOSOS Cannes tem provado, ao longo da sua História, não recear a exibição de filmes, na forma e no conteúdo, de forte carga sexual. E a presente edição não foge à regra: Jeune & Jolie (na foto), de François Ozon, sobre uma jovem de 17 anos que elege a prostituição como meio de descoberta pessoal; Venus in Fur, de Roman Polanski, a história de uma actriz disposta a tudo para conquistar um papel; La vie d’Adèle, de Abdellatif Kechiche, onde uma adolescente entra em conflito com os pais devido à sua relação com outra mulher; e Behind the Candelabra, de Steven Soderbergh, focado na relação do pianista Liberace com o seu jovem namorado.

E há, igualmente, a certeza de que os erros do passado não deixarão alguns protagonistas muito tranquilos. The Great Gatsby e Zulu, os filmes de abertura e encerramento do Festival respectivamente, exploram as acções passadas das suas personagens principais; Jimmy P: Psychotherapy of a Plains Indian, de Arnaud Desplechin, onde um veterano da Segunda Guerra Mundial procura reconciliar-se com a sua origem ameríndia; e La grande bellezza, de Paolo Sorrentino, centrado num escritor idoso que recorda, constamente, a sua juventude.

Outro objecto de análise em destaque é a carência de harmonia familiar, exposta nas suas várias facetas e através de géneros inesperados. Only God Forgives, thriller de Nicolas Winding Refn, onde mãe e filho se unem para vingar o homicídio de um familiar; Heli, do mexicano Amat Escalante, sobre um homem que, em busca da sua filha desaparecida, enfrenta o submundo da máfia; Shield of Straw, um “western urbano” realizado por Takashi Miike, centrado num milionário que oferece uma recompensa choruda pela morte do homem que assassinou a sua filha; Nebraska, de Alexander Payne, road movie a preto-e-branco sobre um pai 25


UM VENCEDOR AMERICANO?

NOMES FAMOSOS E CINEMA PORTUGUÊS NAS SECÇÕES PARALELAS

Outra conclusão importante a retirar, dos vinte e um filmes que compõem a Selecção Oficial deste ano, é o facto de nove serem oriundos dos EUA e/ ou com intérpretes norte-americanos, na que será uma das edições mais “americanas” e com maior star power (Leonardo DiCaprio, Ryan Gosling, Tilda Swinton, Benicio Del Toro, etc.) dos últimos tempos. Essa realidade afigura-se mais do que simples estatística, existindo já apostas de que o lote de vencedores poderá ficar determinado pelas obras que forem mais ao encontro (e do agrado) da sensibilidade artística de Steven Spielberg. Neste âmbito, Inside Llewyn Davis, dos irmãos Coen, Only Lovers Left Alive, história moderna de vampiros realizada por Jim Jarmusch, e Nebraska, de Alexander Payne, são grandes candidatos a receberem a Palma de Ouro no próximo dia 26 de Maio. E nas interpretações, o “favoritismo” para as decisões finais recai sobre nomes como Benicio Del Toro por Jimmy P: Psychotherapy of a Plains Indian (na foto), Michael Douglas e o seu Liberace em Behind the Candelabra, ou Marion Cotillard por The Immigrant.

Paralelamente à competição principal, a secção Un Certain Regard (dedicada a jovens talentos e inovação artística) tem como destaques The Bling Ring, o novo filme de Sofia Coppola protagonizado por Emma Watson, e As I Lay Dying, a mais recente experiência de James Franco como realizador. A produção portuguesa chega a Cannes através da Quinzena dos Realizadores, onde as propostas mais radicais do Festival descobrem espaço. Até Ver a Luz, de Basil da Cunha, e a curta-metragem Gambozinos, de João Nicolau, concorrem a prémios nesta secção. 3X3D (na foto), filme que Edgar Pêra co-realiza com Peter Greenaway e JeanLuc Godard, será exibido durante a Semana da Crítica.

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THE GREAT GATSBY

INSIDE LLEWYN DAVIS

ANÍBAL SANTIAGO

JOÃO PAULO COSTA

A nova adaptação de O Grande Gatsby abre a edição de 2013 do Festival de Cannes e promete andar pelas bocas dos cinéfilos ao redor do Mundo. Estará à altura das expectativas? Com um elenco composto por nomes como Leonardo DiCaprio e Carey Mulligan, o senhor Baz Luhrmann na realização e um material de origem apaixonante, é caso para esperarmos algo de muito positivo. O filme promete recuperar alguma da irreverência demonstrada por Luhrmann em Romeu e Julieta e Moulin Rouge ao apresentar a clássica história de Jay Gatsby de forma arrojada, onde não falta uma banda sonora anacrónica para as balizas históricas da narrativa, um conjunto de cenários meio barrocos e opulentos, um visual deslumbrante, muita emoção e algum romantismo. Venha daí esse filme.

Seis anos depois, os irmãos Coen regressam ao Festival de Cannes para mostrar ao Mundo o seu mais recente filme, Inside Llewyn Davis, que nos é apresentado como um drama ambientado na cena da música folk novaiorquina da década de 1960. Será também o regresso ao trabalho três anos após concluírem uma das fases mais prolíficas das suas carreiras, construída ao ritmo de uma obra por ano entre 2010 e 2007, quando assinaram Este País Não é Para Velhos, estreado precisamente na Croisette, num festival onde Joel e Ethan Coen são tradicionalmente adorados e multi-premiados pelo Juri. Resta saber se a qualidade corresponderá às expectativas que o nome dos realizadores e um elenco composto por gente como Carey Mulligan, Justin Timberlake, John Goodman e Oscar Issac (o Llewyn do título) suscitam.

Título original: The Great Gatsby

Título original: Inside Llewyn Davis

Realização: Baz Luhrmann

Realização: Joel Coen, Ethan Coen

Elenco: Leonardo DiCaprio, Tobey Maguire, Carey Mulligan, Isla Fisher, Jason Clarke

Elenco: Oscar Issac, Carey Mulligan, Justin Timberlake

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THE IMMIGRANT

ONLY LOVERS LEFT ALIVE

JOÃO PAULO COSTA

ANÍBAL SANTIAGO

Se há coisa de que James Gray não se pode queixar é da admiração de cujo seu trabalho é alvo em terras francesas, onde cada filme é geralmente recebido com um entusiasmo de que não goza na sua terra natal. Prova disso é a presença do novo The Immigrant em competição, algo que acontece com cada estreia de Gray desde o seu segundo título, Nas Teias da Corrupção, no ano 2000. Drama de época centrado numa mulher que procura a sua irmã após chegar aos Estados Unidos, The Immigrant volta a reunir Gray com Joaquin Phoenix, e junta ainda nomes como Marion Cotillard e Jeremy Renner ao elenco de um dos projectos cinematográficos que mais curiosidade desperta para 2013.

Poderíamos estar para aqui com grandes argumentos para antever Only Lovers Left Alive, mas com uma dupla de protagonistas formada por Tilda Swinton e Tom Hiddleston, e um realizador e argumentista chamado Jim Jarmusch, fica praticamente implicito que esperamos muito desta obra. Only Lovers Left Alive marca o regresso de Jarmusch à secção competitiva do certame, algo que não acontecia desde o sólido Broken Flowers (2005), uma situação que gera algumas expectativa positivas em relação a esta obra centrada num triângulo amoroso protagonizado por vampiros. Hiddleston é Adam, um músico que mantém uma relação há vários séculos com Eve, uma relação que é colocada em causa perante o surgimento da irmã de Eve. Algo parece certo, este triângulo promete estar muito longe de Edward, Jacob e Bella.

Título original: The Immigrant

Título original: Only Lovers Left Alive

Realização: James Gray

Realização: Jim Jarmusch

Elenco: Marion Cotillard, Jeremy Renner, Joaquin Phoenix

Elenco: Tom Hiddleston, Tilda Swinton, Mia Wasikowska, John Hurt, Anton Yelchin

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THE BLING RING

NEBRASKA

JOÃO PAULO COSTA

JOÃO PAULO COSTA

Nem mesmo o Leão de Ouro atribuído por Quentin Tarantino no Festival de Veneza em 2010 livrou Somewhere das mais divisivas críticas da carreira de Sofia Coppola, que este ano regressa com The Bling Ring, inspirado na história real de um grupo de adolescentes responsável pelo assalto a diversas casas de celebridades de Hollywood. Os primeiros trailers sugerem um regresso à temática da angústia teen que já dominava grande parte da obra anterior da realizadora, onde o drama e a comédia habitualmente convivem de forma harmoniosa. Se o elenco que mistura jovens actores e celebridades que se interpretam a si próprias chama naturalmente as atenções, fica também a curiosidade em relação ao derradeiro trabalho do director de fotografia recentemente falecido, o muito estimável Harris Savides.

Seria de supor que o sucesso de Os Descendentes valesse a Alexander Payne alguma liberdade nas suas produções seguintes, mas entre outras lutas com os estúdios teve de chegar a um compromisso para realizar uma versão a preto e branco a distribuir em salas de cinema (como Payne originalmente pretendia), e uma a cores mais vendável para o circuito televisivo. Nebraska apresenta-se como mais um drama em modo de road trip, ao estilo de Sideways ou As Confissões de Schmidt, onde Bruce Dern e Will Forte serão um pai e filho numa viagem em busca de um prémio de um milhão de dólares mas que, desconfiamos, servirá também para confrontar laços familiares e feridas do passado. Cannes será o espaço ideal para que esta produção relativamente modesta se possa começar a mostrar ao mundo.

Título original: The Bling Ring

Título original: Nebraska

Realização: Sofia Coppola

Realização: Alexander Payne

Elenco: Emma Watson, Taissa Farmiga, Leslie Mann

Elenco: Will Forte, Bruce Dern, Bob Odenkirk

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VENUS IN FUR

BEHIND THE CANDELABRA

JOÃO PAULO COSTA

MIGUEL REIS

Dez anos após ter conquistado a Palma de Ouro com O Pianista, o realizador polaco regressa ao Festival de Cannes para apresentar o seu novo filme. Baseado numa peça de David Ives, Venus in Fur tem apenas dois actores no elenco e relata uma conturbada sessão de casting entre um director teatral e uma actriz. Aparentemente, a tensão será o prato forte, e se recordarmos que o mesmo Polanski realizou com excelentes resultados A Noite da Vingança ou o recente O Deus da Carnificina, também adaptações teatrais centradas em pequenos grupos de personagens, as expectativas só poderão ser altíssimas. Mathieu Amalric interpreta o director, enquanto que Emmanuelle Seigner volta a ser dirigida pelo marido pela primeira vez desde A Nona Porta.

Depois de vinte e cinco filmes espalhados por quatro décadas diferentes, Steven Soderbergh traz-nos aquele que será, supostamente, o seu último trabalho antes de um longo interregno. Sem sorte entre as distribuidoras, Behind the Candelabra terá a sua estreia em sala durante o Festival de Cannes, para no dia 26 de Maio estrear na televisão por cabo norteamericana (HBO). Biografia do mais conhecido amante e companheiro do polémico pianista Liberace - interpretado por um irreconhecível Michael Douglas -, música, banhos de espuma, cirurgias plásticas, sexo e drogas juntam-se num cocktail que promete ser tão intenso quanto a vida daquele que chegou a ser o artista mais bem pago do mundo e que acabaria por falecer em 1987 devido a complicações relacionadas com o facto de ser seropositivo.

Título original: La Vénus à la fourrure

Título original: Behind the Candelabra

Realização: Roman Polanski

Realização: Steven Soderbergh

Elenco: Emmanuelle Seigner, Mathieu Amalric

Elenco: Michael Douglas, Matt Damon, Rob Lowe

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ONLY GOD FORGIVES

WARA NO TATE

ANÍBAL SANTIAGO

ANÍBAL SANTIAGO

É praticamente impossível negar que a reunião entre Ryan Gosling e Nicolas Winding Refn - após terem conquistado (quase) todos os cinéfilos com Drive - é um dos grandes condimentos de Only God Forgives. Se Drive foi bem recebido na edição de 2011 do Festival de Cannes, Only God Forgives está a ser encarado como um dos favoritos. O enredo do filme centra-se em Julien (Gosling), um indivíduo que gere um clube de boxe tailandês em Banguecoque como fachada para um negócio de contrabando de droga, que é obrigado a eliminar o responsável pelo assassinato do irmão. Only God Forgives promete não poupar na violência, tensão, drama, conflitos e confirmar que Drive marcou o início de uma bela colaboração cinematográfica entre Gosling e Refn.

Controverso, prolífico, louco, audaz, talentoso, vários são os adjectivos que poderíamos utilizar para descrever Takashi Miike e a sua carreira marcada pela diversidade e produtividade. O novo filme do cineasta, Wara no Tate, prepara-se para ser exibido na 66ª edição do Festival de Cannes e está a gerar alguma expectativa junto da comunidade cinéfila. Baseado num livro de Kazuhiro Kiuchi, o enredo centra-se em Kiyomaru, um homem que é acusado de assassinar a neta de um indivíduo poderoso, que logo oferece uma avultada recompensa a quem eliminar o primeiro. Temendo pela sua vida, Kiyomaru decide entregar-se junto da polícia, embora a sua segurança se mantenha em perigo. Wara no Tate é a segunda obra realizada por Miike a ser exibida na secção competitiva do prestigiado certame.

Título original: Only God Forgives

Título original: Wara no Tate

Realização: Nicolas Winding Refn

Realização: Takashi Miike

Elenco: Ryan Gosling, Kristin Scott Thomas, Yayaying Rhatha Phongam, Tom Burke

Elenco: Takao Osawa, Nanako Matsushima, Tatsuya Fujiwara, Tsutomo Yamakazi, Masato Ibu

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CANNES - RELEMBRANDO QUINZE PALMAS EM COLABORAÇÃO COM O CÍRCULO DE CRÍTICOS ONLINE PORTUGUESES

O ano é o de 1939. O então Ministro da Educação e Artes em França, Jean Zay, decide criar um evento cultural internacional no país que pudesse rivalizar com o Festival de Cinema de Veneza que decorria já há sete anos. Daí nasceu o Festival de Cinema de Cannes, sob a presidência de Louis Lumière, inicialmente um evento social de onde quase todos os filmes saíam premiados e que vivia na base das estrelas que anualmente passeavam pela passadeira vermelha, permitindo-lhe granjear rapidamente uma lendária reputação internacional. Mas foi apenas no ano de 1955, dezasseis depois da sua criação, que foi instaurado o agora icónico prémio Palma d’Ouro, em substituição do Grand Prix (Grande Prémio) que então premiava o melhor filme em competição no certame. Curiosamente e num festival de expressão maioritariamente europeia, foi um filme de expressão norte-americana que recebeu a primeira Palma d’Ouro: Marty, de Delbert Mann. Assim permaneceu até 1964 quando, devido a problemas de direitos de autor, a Palma d’Ouro foi novamente substituída pelo Grand Prix, para ser novamente reintroduzida em 1975 e ter permanecido até hoje como símbolo do Festival de Cinema de Cannes. A partir daí, a passadeira vermelha que adorna a Croisette tornou-se um palco privilegiado de estreia dos filmes de alguns dos actualmente melhores cineastas de sempre, com a Palma d’Ouro a reflectir o imaginário de milhões de cinéfilos em todo o mundo, como símbolo do melhor cinema que se faz em todo o mundo.

Cinquenta e três Palmas d’Ouro depois e na iminência da atribuição de uma nova ainda este mês, o Círculo de Críticos Online Portugueses (CCOP) ousou experienciar a possibilidade de trabalhar como uma espécie de júri de Cannes e humildemente tentou encontrar os melhores entre os melhores. De uma longa votação entre todas as Palmas d’Ouro já atribuídas, os actuais doze membros do CCOP anunciarão a 31 de Maio e depois de já conhecido o premiado oficial da 66.ª edição do Festival de Cannes – aqueles que consideram os melhores filmes galardoados com o prémio máximo do festival francês. O anúncio será feito no seu blogue oficial em www.ccopblogue.blogspot.com mas, antes disso, aceitaram o desafio da Take Cinema Magazine de deixar algumas palavras sobre quinze dos vencedores de Cannes que estarão no seu top. Estará por aqui o melhor entre os melhores?

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LETYAT ZHURAVLI

Título nacional: Quando Passam as Cegonhas Realização: Mikhail Kalatozov Elenco: Tatyana Samoylova, Aleksey Batalov, Vasili Merkuryev Ano: 1957

1958 NUNO REIS . CCOP

Nos anos 50 a Palme d’Or era uma novidade, mas os candidatos não eram jovens. Em 1958 competiam pela Palma nomes com créditos firmados como Ingmar Bergman, Jacques Tati, Martin Ritt e Richard Brooks. O regressado Mikhail Kalatozov destoava. Kalatozov tinha feito cinema por alguns anos, até o estalinismo o proibir. Quando a guerra acabou, estava na Mosfilm dos grandes filmes, mas a começar uma discreta carreira política. Os filmes que fez durante vinte anos contam-se pelos dedos. Contudo, nos anos 50 regressou com obras bem espaçadas e foi vencedor ex-aequo no Karlovy Vary de 1954. A melhor fase da sua carreira estava prestes a começar. Nâo é possível falar do cinema russo da primeira metade do século XX sem falar do regime político. Vendo o cinema de Vertov ou Eisenstein, duma forma ou outra, Lenine e Estaline eram obrigatoriamente apresentados como os salvadores da Rússia e mentores de uma nação vitoriosa. Com a morte de Estaline e a derrocada do mito, o cinema voltou a ser honesto. Kalatozov liderou essa mudança e Letyat Zhuravli foi o grande filme de ruptura com a propaganda do regime. Aqui os soldados russos são mostrados como pessoas normais, que sentem medo, podem ser derrotadas e morrer. Isso permitiu a milhões chorarem os seus mortos, extravasando uma dor que se acumulou por décadas sob a ilusão de um líder heróico. Além disso, também fugia ao habitual por Kalatozov ter passado uns anos nos EUA como adido cultural e se ter maravilhado com um cinema diferente. Finalmente, o director de fotografia Sergei Uruseveky foi operador de câmara na guerra e aprendeu a filmar sem tripé e com planos rápidos. Ora um apreciador da variedade americana e um operador de câmara de guerrilha, mesmo num filme tão convencional, tinham de trazer algo novo ao fechado cinema soviético. Esta é a história de Boris e Verónica. O seu amor jovem é impetuoso. Não precisam de dormir nem de comer, precisam de estar juntos.

Aproxima-se o aniversário de Verónica e Boris prepara-lhe uma surpresa. Só que ambos vão ficar surpresos quando Boris é recrutado mais cedo do que planeava, não lhes dando tempo para se despedirem. Separaramse com Verónica zangada por ele se ter alistado voluntariamente e isso vai marcar os meses seguintes de ambos. Para ele não há opção, tem de ir para a guerra e cumprir ordens. Pior é para ela que fica numa cidade cheia de lembranças, debaixo de bombardeamentos, a ser cortejada por homens que escaparam do serviço militar, a ouvir notícias do desaparecimento de Boris e se tenta redimir da culpa prestando auxílio dum hospital militar. Claro que a guerra faz vítimas. Tanto no palco de guerra, como remotamente, em quem tem os seus queridos incontactáveis. Verónica vai ouvindo as frases feitas sobre o que uma mulher soviética tem de ser, mas a provável morte de Boris - que continua sem dar notícias - foi também a morte dela. E as pessoas à volta dela não reparam, o mundo não quer saber de um indivíduo. Para completar, há uma bombástica acusação directa ao mercado de influências e compra de favores que tornava algumas figuras invisíveis ao recrutamento e aos horrores da guerra. Demolidor. Num país devastado pela guerra, quinze anos não são suficientes para esquecer a perda de um familiar, de um amigo, de um amado, de uma casa. Ou o som dos alarmes, a escuridão dos subterrâneos, a visão dos mutilados, o cheiro da Morte. Do ponto de vista emocional, não havia forma de alguém na URSS ficar imune. Setenta anos depois, do outro lado da Europa, como se pode um espectador deixar envolver nesta história? Ignorando as feridas pessoais reabertas pelo filme, sobram os elementos intemporais como uma bela história de amor, a fotografia arrojada, a interpretação emotiva de Tatyana Samoylova, e a esperança, simbolizada pelas cegonhas, que tem permitido à Humanidade superar os tempos maus. Filmes assim são para ver. Sempre.

“Com a morte de Estaline e a derrocada do mito, o cinema voltou a ser honesto.” 35


IL GATTOPARDO

Título nacional: O Leopardo Realização: Luchino Visconti Elenco: Burt Lancaster, Claudia Cardinale, Alain Delon Ano: 1963

1963 PEDRO MIGUEL FERNANDES . CCOP

Se O Leopardo, o fresco histórico escrito por Giuseppe Tomasi de Lampedusa, é uma das grandes obras literárias italianas do século XX, a sua versão cinematográfica, assinada por Luchino Visconti, não lhe fica atrás. Vencedor da Palma de Ouro em 1963, O Leopardo foi uma super produção à época e tornou-se uma das obras mais conhecidas de Visconti, mesmo não tendo sido bem recebida na altura. Centrado na figura do Príncipe de Salina, o filme relata a decadência da nobreza siciliana quando Garibaldi invade a ilha para destronar o domínio dos Bourbons. Don Fabrizio é o leopardo que dá título à obra e vê todas as revoluções passarem à sua porta, apoiando sempre os que lhe são favoráveis consoante os seus interesses. Mas mais do que um retrato ficcionado de um determinado período histórico e as convulsões sociais da altura, O Leopardo é o retrato de

um homem que assiste ao desaparecimento do seu mundo sem nada poder fazer. Se no início Don Fabrizio é um homem possante, que domina tudo e todos com a sua presença, termina quase como um fantasma que vagueia pelas ruas sozinho após uma das mais belas sequências do cinema de Visconti: a dança do príncipe com Angélica, onde quase podemos ver um prenúncio do seu final. A coroar este deslumbrante filme, um daqueles casos raros em que a versão para Cinema iguala o livro que lhe deu origem, temos um Burt Lancaster em excelente forma. Mais conhecido por outro tipo de papéis, bem diferentes dos que eram interpretados pelos dois outros actores (Spencer Tracy e Anthony Quinn) propostos pela Fox, o estúdio que financiou a obra-prima de Visconti, Lancaster tem aqui uma das suas maiores interpretações.

“(...) O Leopardo é o retrato de um homem que assiste ao desaparecimento do seu mundo sem nada poder fazer.”

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UN HOMME ET UNE FEMME

Título nacional: Um Homem e Uma Mulher Realização: Claude Lelouch Elenco: Anouk Aimée, Jean-Louis Trintignant, Pierre Barouh Ano: 1966

1966 PEDRO PONTE . CCOP

Un Homme et une Femme é um sublime retrato não apenas do amor entre duas pessoas, com bagagens emocionais e demónios pessoais próprios, mas do próprio conceito do amor. Esta história de duas almas torturadas que se encontram é um ensaio sobre a impossibilidade de encontrar a felicidade plena (se é que esta existe) quando se é assombrado pelo passado. Jean-Louis e Anne, o homem e mulher, não se apaixonam do dia para a noite, mas através de um lento e orgânico processo, por meio de olhares e mãos dadas que culminam na mais famosa cena do filme, em que ele recebe um telégrafo dela, finalmente pronta para lhe dizer que o ama. Ele volta para o seu carro, conduz Europa fora até chegar a ela e os dois fazem amor pela primeira vez. Lelouch interrompe a cena com imagens de Anne com o seu falecido marido, deixando claro que o seu corpo está com ele mas a sua mente

ainda é devota a outra pessoa. Jean-Louis apercebe-se e os dois seguem caminhos diferentes. Lelouch abstém-se várias vezes do diálogo em substituição de flashbacks, música e comentários de corridas. Esta recusa do que é dito em prol do que é mostrado torna a nossa projecção nas personagens muito fácil, com a imagem de duas pessoas a conversar com música no fundo a puxar-nos para a sua interacção sem nos distrairmos com o que estão a dizer. A cena em que Jean-Louis recebe o telégrafo é provavelmente o melhor exemplo desta intimidade por meio apenas de imagens; Lelouch põe a câmara numa varanda e filma tudo num ininterrupto plano afastado, com Jean-Louis a ler a mensagem, a levantarse da mesa e sair do salão. Não ouvimos rigorosamente nada, mas sabemos na perfeição o que está a acontecer.

“Esta história de duas almas torturadas que se encontram é um ensaio sobre a impossibilidade de encontrar a felicidade plena (...)”

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MASH

Título nacional: M.A.S.H. Realização: Robert Altman Elenco: Donald Sutherland, Elliott Gould, Tom Skerritt Ano: 1970

1970 NUNO REIS . CCOP

O termo Hospital Militar Móvel Cirúrgico nunca foi popular, mas a sigla MASH todos conhecem. Isso é devido a um livro, um filme e uma série que dominaram os anos 70 e se centravam sobre uma dessas unidades. Uma obra satírica que além de elogiar o trabalho do pessoal médico que arriscava a própria vida para salvar a dos outros, tece as mais duras críticas à participação militar americana no conflito vietnamita. Nos filmes de guerra há sempre um médico que presta assistência no local aos feridos. E depois? É deixado bem ligado no caminho das balas? A ideia por trás destas unidades era terem um mini-hospital especializado a minutos da frente de combate, de forma a melhorarem a taxa de sobrevivência. Os feridos eram transportados de jipe ou helicóptero para o MASH e, se chegassem vivos, tinham boas hipóteses de escaparem. O pessoal médico nos dias sem combates não tinha soldados para salvar e, por estarem numa zona isolada, também não tinha civis a ajudar. O trabalho era pouco e isso permitia descontrair, especialmente porque tudo serve de desculpa para relaxar num aglomerado de pessoas sem propensão para lutar e com maior equilíbrio entre sexos do que é habitual em conflitos. MASH é sobre tudo isso. Logo na abertura vemos uma enorme chegada de feridos para ganhar o respeito do espectador por estes profissionais dedicados. A música diz que o suicídio é indolor. E o paciente que era transportado numa maca é deixado cair. Tudo aponta comédia. Enquanto isso, o genérico tem uma secção enorme de “Introducing”, provando que é dada importância a um grande número de personagens e nem por isso foram procurados actores profissionais. Mas há personagens mais importantes. Começa logo com Radar, o Cabo que sabe tudo o que se passa e que é o grande responsável pelo bom funcionamento da base ao cuidado do distraído Coronel Blake. E depois há o corpo médico com Hawkeye, Duke e McIntyre, entre outros. Mas é especialmente com estes três que a base tem de ter cuidado.

Acabados de chegar por necessidade do Exército e com a obrigação moral de salvar vidas, mas com uma grande aversão à guerra, vão fazer tudo o que for possível para fugir do horror da morte. Álcool e enfermeiras são apenas dois dos ingredientes de uma festa constante. Num ano em que a competição não era particularmente forte, aconteceu a raridade de uma comédia arrecadar o galardão máximo de Cannes. No entanto, não é uma comédia no verdadeiro sentido da palavra. É uma gritante mensagem contra a guerra do Vietname (até se poderia passar lá, a única referência que coloca a acção na Coreia é textual) não mostrando o horror da guerra, mas os seus resultados imediatos. Traz-nos a loucura da guerra sem mostrar a guerra (todo o sangue é na mesa de operações, há apenas um tiro...) e assim mostra o que ela é: ridícula. Mesmo sendo apontada como uma das grandes comédias de sempre, não está livre de críticas. Primeiro a sua estrutura narrativa é muito retalhada. Tinha tantas historietas para contar, não admira que tenha voltado a brilhar em série. O outro ponto fraco é a edição de som, mas vendo quantas vezes Altman brincou com esse elemento, não admira que tenha exagerado. Quando o elenco se reúne para uma Última Ceia, ou quando se concentram num jogo de futebol, o filme ganha fluidez e um ar mais tradicional de comédia. A liberdade relativa transmite uma sensação de descontracção há muito desejada. Como se a guerra estivesse pausada para serem apenas pessoas que se divertem e convivem. MASH não ficou incólume à passagem destes quarenta anos. O desrespeito por todas as regras e muitas pessoas, ofenderá praticamente toda a gente. Contudo, em alguns aspectos de estilo continua à frente do seu tempo e do nosso. Para ser realmente apreciado deve ser visto com o filtro de quando foi feito. Na época era um grande filme, mas entretanto vimos tantos dos seus imitadores que parece ter perdido muita.

“Num ano em que a competição não era particularmente forte, aconteceu a raridade de uma comédia arrecadar o galardão máximo de Cannes.” 39


APOCALYPSE NOW

Título nacional: Apocalypse Now Realização: Francis Ford Coppola Elenco: Marlon Brando, Martin Sheen, Robert Duvall Ano: 1979

1979 CARLOS REIS . CCOP

Apocalypse Now é ainda o maior espectáculo sobre a monstruosidade jamais feito. É Ópera e Shakespere ao mesmo tempo. Não é um filme sobre o Vietname, é o Vietname ele próprio. É um filme de culto que acarreta consigo uma forte ressonância da cultura pop americana; porque o horror e a selvajaria não se limitam ao pântano mas à própria nação do criador. É a beleza e a perversidade, é o surrealismo e a autenticidade. É a insanidade de uma guerra espelhada na loucura de um homem. É o transformar de Willard (Sheen) em Kurtz (Brando), de homem são até à imagem da própria presa. É o grito de um utopista e de uma era. É o reduzir de todas as restantes obras sobre o Vietname a simples bagatelas. É a pura expressão de um génio que, depois deste napalm, não mais voltou a explodir com tanta intensidade. Uma jornada tão divertida quanto brutal, numa guerra contra não se sabe bem o quê nem porquê,

onde medo e confusão andam de mãos dadas entre a selva e o surf. Seja na sua versão original ou na posteriormente lançada Redux, ninguém consegue ficar indiferente. Actual, a sua mensagem vale – e preocupa - tanto hoje como quando venceu a Palma de Ouro em Cannes no final da década de setenta, a par de Die Blechtrommel de Volker Schlöndorff, derrotando filmes como Days of Heaven de Terrence Malick ou Woyzeck de Werner Herzog. O seu polémico making-of, talvez o mais famoso de sempre na história do cinema, com budgets a serem ultrapassados de forma astronómica e muitas complicações técnicas nas filmagens, mereceu um filme para si próprio – Heart of Darkness. Um clássico a todos os níveis, uma obra tão poderosa que não podia ser analisada de outra forma que não com frases tão curtas quanto veementes e enérgicas. “Não é um filme sobre o Vietname, é o Vietname ele próprio.”

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ALL THAT JAZZ

Título nacional: O Espectáculo Vai Começar Realização: Bob Fosse Elenco: Roy Scheider, Jessica Lange, Leland Palmer Ano: 1979

1980 JORGE RODRIGUES . CCOP

Abrindo com uma das melhores sequências de sempre em cinema – uma sessão de casting com centenas de bailarinos, onde a música e a dança reinam soberanas – All That Jazz funciona como uma carta de amor de Bob Fosse a todos os amantes do seu cinema e ao mesmo tempo como o seu próprio 8 ½, reinventando-se a si próprio no seu alter ego Joe Gideon, um lendário coreógrafo tornado realizador a meio de uma crise pessoal e profissional, enquanto monta o seu mais recente espectáculo musical ao mesmo tempo que completa a sua derradeira película. Gideon vive no limite. O seu tempo reparte-se entre o trabalho para o qual parece ter todo o tempo do mundo e para os prazeres e excessos momentâneos da vida – mulheres, drogas, álcool, tabaco – negligenciando tudo o resto. De repente, o ataque cardíaco que sofre e as múltiplas visitas de Angelique (Jessica Lange), uma espécie de Anjo

da Morte, obrigam-no a repensar a influência que tudo aquilo que ajuda a compor o seu mito e o seu génio, não será de facto aquilo que vai acabar eventualmente por arruiná-lo. All That Jazz não só combina tudo aquilo que um filme com a marca Fosse promete – montagem extraordinária, ágil e rápida, de um ritmo e urgência vitalizantes; cenas musicais enérgicas, efusivas; números de dança atléticos e extravagantes, - como nos mostra como Fosse funcionaria no seu processo de filmagem, com uma dedicação ao detalhe quase obsessiva e como o seu perfeccionismo o consumia por dentro. Acima de tudo, é a culminação perfeita de tudo o que o cinema como grande forma de arte tem para nos oferecer. A música. A energia. A beleza. A vida. All That Jazz simboliza a megalomania e a grandiosidade da Arte e mostra-nos o poder que tem de mudar as nossas vidas.

“(...) é a culminação perfeita de tudo o que o cinema como grande forma de arte tem para nos oferecer.”

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PARIS, TEXAS

Título nacional: Paris, Texas Realização: Wim Wenders Elenco: Nastassja Kinski, Harry Dean Stanton, Sam Berry, Dean Stockwell Ano: 1984

1984 NUNO REIS . CCOP

Quando se fala de Paris vem logo à memória aquela cidade que no cinema é sinónimo de romances eternos - “We’ll always have Paris” em Casablanca (1942) - a intemporal e inesquecível Cidade das Luzes que aguenta o passar dos anos como nenhuma outra - “I can never decide whether Paris is more beautiful by day or by night” in Midnight in Paris (2011). Mas se essa cidade que nos preenche o imaginário desde que os Lumiére lá começaram com as projecções - passando pelas lentes de franceses como Carné, Dassin, Godard, Eustache, Jeunet, Delpy e de turistas como Bertolucci, Donen, Minnelli, Polanski, Allen, Linklater e Haneke - não é a imagem imediata na cabeça de muito cinéfilos quando ouvem o nome sem sotaque, é porque alguém semeou a dúvida. Dizer que um só homem colocou uma Paris desconhecida no mapa é um exagero. Digamos que foram dois homens: o realizador Wim Wenders no seu pico de glória, e Sam Shepard, o actor/autor que Wenders leva nas suas odisseias em película ao deserto americano. A obra de Shepard só conseguiu visibilidade com a transposição para cinema. Dessa forma, no mesmo ano em que nos Estados Unidos a Academia o nomeava para um Oscar como actor, Cannes dava-lhes uma das poucas Palmas unânimes. Travis é um homem à deriva, tanto no sentido literal como no figurativo. No sentido literal, porque está a vaguear no deserto sem saber para onde vai. No sentido figurativo porque a sua mente estava afectada muito antes de se expor ao sol ardente. São precisos vinte e cinco minutos para ouvir a primeira palavra saída da boca de Travis e essa palavra é “Paris”, um lugar quase místico que monopoliza os pensamentos deste caminhante perdido. A Paris texana é um lugarejo que viveu sempre à sombra de uma metrópole noutro continente. O passado de Travis e o da pequena Paris estão ligados. De volta ao mundo de onde Travis fugiu, temos o irmão preocupado, a cunhada atenciosa e o filho que passou metade da vida sem ver o pai. E subitamente essa criança torna-se o

centro da história. Hunter está a caminho dos oito anos, reencontra um pai alienado e ainda não sabe da mãe. A vida que tinha esquecido e trocado por uma melhor, onde os tios faziam de pais, deixou de ser uma opção. Subitamente vê-se com dois pais e com os erros passados de outros para resolver. Ao longo do filme há várias mensagens a decifrar. Os pequenos gestos que revelam a natureza das pessoas (um caminhante engraxar todos os sapatos, a importância das poucas tabuletas e painéis) e as berrantes referências a França nas pequenas coisas, como as pessoas, a água alpina e o queijo impronunciável. E sempre a distância como obstáculo quase intransponível num tempo anterior às comunicações móveis. Algo que distingue o Texas de França, e que coloca essa Paris tão distante como a outra para o comum americano. Até que a distância desaparece, a família se encontra, e o filme se resume a duas performances magníficas de dois actores soberbos que, entre o perfeito domínio da voz e uma expressão facial comovente como poucas na historia do cinema, nos revelam o seu passado obscuro. Essa história de amor está longe de ser perfeita, mas, depois do que nos dizem, não há como não desejar um final feliz. Se não for para o casal, que seja para os indivíduos, com os pecados confessados, perdoados e prontos a seguir em frente com as suas vidas, sem fantasmas nem rancores. Será preciso viver muito mais antes de poder sequer sonhar em compreender completamente o que aqui foi dito. Neste momento o que sei é que Paris, Texas conseguiu o seu merecido lugar entre as obras intemporais da sétima arte. O visionamento deste filme é algo que se deve fazer afastado de tudo e todos. Com muitos dias pela frente para pensar no que se viu, para deixar que nos mude. O ideal seria mesmo partir numa caminhada pelo deserto e voltar passados quatro anos. Mudado, capaz de reparar o passado e construir o futuro.

“Será preciso viver muito mais antes de poder sequer sonhar em compreender completamente o que aqui foi dito.” 43


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THE MISSION

Título nacional: A Missão Realização: Roland Joffé Elenco: Robert De Niro, Jeremy Irons, Ray McAnally Ano: 1986

1986 NUNO REIS . CCOP

Num ano em que Cannes tinha a competir pela Palma Martin Scorsese, Robert Altman, Andrei Tarkovsky, Jim Jarmusch, Neil Jordan e Bruce Beresford - para não referir outras secções, num palmarés que incluiu Spike Lee, Jane Campion e Denys Arcand - a vitória de Joffé não foi fácil. Mas tinha uma história marcante, um cenário de sonho, uma banda sonora poderosa, actores de primeira linha como Jeremy Irons, Robert De Niro, Liam Neeson e Ray McAnally, e apenas foi precisa mestria a misturar todos estes ingredientes. É quase imediato o fascínio. Será logo pelos cinco minutos que a banda sonora de Ennio Morricone começa a sua missão de nos cativar, e não demora a fazer mais do que isso. Quando ouvimos o oboé de Gabriel, música lendária da sétima arte, já estamos sob o efeito de um dos grandes compositores de todos os tempos que aqui, no seu melhor trabalho, prova ser daqueles - que se contam pelos dedos das mãos - capazes de nos transformar para um mundo diferente pelos canais auditivos. Neste caso é para o mundo mágico dos Guarani, onde a floresta e as águas do Iguaçu os protegem dos corrompidos valores europeus. Gabriel é um jesuíta e parte com a tarefa de estabelecer uma missão onde outros falharam. Quer espalhar a palavra e o amor de Deus. Como inimigo tem o facto de os outros brancos na região serem mercenários interessados na captura de escravos. O mais perigoso deles era Rodrigo Mendoza, mas quis o destino que finalmente sentisse o arrependimento pelo sangue nas mãos, e procurasse o perdão divino. Enquanto na companhia de missionários jesuítas vemos a Missão de San Carlos florescer, os interesses políticos no Velho Continente são indiferentes a esse trabalho piedoso. Obcecados pelo poder e temendo a crescente influência jesuíta, os malvados portugueses querem arrasar as missões para serem senhores absolutos de um território repleto de futuros escravos, ignorantes e submissos.

O detalhe de os portugueses serem os maus da fita não interessa (teremos sempre o consolo de os espanhóis terem feito pior noutras regiões). Isto transcende nações e guerras políticas. Nem sequer é entre a Cruz e a Coroa como a História nos diz. No caso d’A Missão é entre amor e guerra, entre dar e tirar, entre Deus e o Homem. Uma batalha que com o passar do tempo parece mais ridícula por ser entre mundos completamente distintos, mundos que deviam ser intocáveis. O rumo de tal batalha pende nas mãos do Cardeal Altamirano que deve decidir entre dar autonomia aos jesuítas e causar uma guerra entre os reinos europeus e o Vaticano, ou entregar as missões a Portugal que imediatamente as reduziria a cinzas para ficar com os terrenos e os escravos. Um único homem arcar com o peso de tal decisão é imoral. Qualquer que seja a decisão, ficará com um peso nos ombros pela destruição de trabalho de séculos. É para saber o que está em causa que Altamirano visita duas missões. Com ele vamos ver o que San Miguel e San Carlos têm de melhor: índios educados, trabalho comunitário, música celestial, a formação de pessoas honestas, honradas e tementes a Deus. Foi esse trabalho que os nossos antepassados quiseram destruir. Nos seus cento e vinte e cinco minutos (atenção que já nos anos 80 era preciso esperar pelo fim dos créditos para ver o filme todo) há tempo para drama, política, guerra, para apreciar a exuberante paisagem e para conhecer as pessoas. Parece que o filme acaba num instante, contudo parece que passamos semanas ou meses entre os nativos. Mesmo nesta era de tecnologias infindáveis e acesso imediato a tudo, aquele local perdido no tempo e desprovido de bens materiais é irresistível. Ver este filme é uma experiência única que deve ser feita o mais depressa possível. Não só pela lição de História e humanidade. Para que comecem a olhar a vida de outra forma, ainda que a religião não tenha lugar no vosso coração.

“No caso d’A Missão é entre amor e guerra, entre dar e tirar, entre Deus e o Homem.” 45


THE PIANO

Título nacional: O Piano Realização: Jane Campion Elenco: Holly Hunter, Harvey Keitel, Sam Neill Ano: 1993

1993 JORGE RODRIGUES . CCOP

The Piano narra a história de Ada e da sua pequena filha Flora, que desembarcam na recém-colonizada Nova Zelândia acompanhadas de um magnífico piano. Ada é uma mulher especial, que não fala desde os seis anos, comunicando apenas através de gestos com a filha e, com o resto do mundo, através da melodia do seu piano. Por crueldade do destino, Stewart, o seu futuro marido, pretende ver-se livre do piano que lhe dá voz e identidade, abandonando-o à chuva e vendendo-o depois a um vizinho, o excêntrico Baines. Ada tratará de responder-lhe negando qualquer intimidade – e pelo contrário, surpreende Baines pela afabilidade com que o aborda, mesmo quando o filme, para nosso horror, nos mostra as suas verdadeiras intenções. Realizado e escrito por Jane Campion, não nos surpreende portanto a peculiar sensibilidade feminina, que tem maior interesse na electrizante

sensualidade do que nos aspectos carnais da história e, deste modo, nos oferece um desfecho final muito mais complexo e satisfatório. Ao dar a Ada o poder de negociar com Baines e recusar os avanços sexuais do marido, Campion começa a abrir o seu mundo. Todos os elementos de The Piano funcionam em pleno, desde a idílica fotografia de Dryburgh à magnífica composição de Nyman, uma extraordinária sinfonia de sons e silêncios que conferem à personagem a bravura emocional que a sua mudez não pode fazer. Na base do sucesso do filme estão as interpretações, particularmente a precoce vivacidade de Anna Paquin e o estonteante desempenho de Holly Hunter, pois só uma mulher de um talento inestimável conseguiria retratar tanta emoção, poder e energia sem sequer ter aberto a boca uma vez. Hipnotizante e apaixonante, The Piano é uma experiência inesquecível. “(...) uma extraordinária sinfonia de sons e silêncios (...)”

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PULP FICTION

Título nacional: Pulp Fiction Realização: Quentin Tarantino Elenco: John Travolta, Samuel L. Jackson, Bruce Willis, Uma Thurman Ano: 1994

1994 PEDRO MIGUEL FERNANDES . CCOP

Em 1992 um realizador desconhecido deu provas de ser um nome a seguir ao assinar um filme de culto intitulado Cães Danados, a história de um assalto falhado protagonizada por um grupo de criminosos que tentam descobrir quem foi o elemento que denunciou os planos. Dois anos depois esse mesmo cineasta, chamado Quentin Tarantino, conquistou o mundo ao vencer a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Considerado por muitos como uma obra-prima da década de 1990, Pulp Fiction colocou oficialmente o nome de Tarantino entre os grandes da Sétima Arte. Não só pelo feito de Cannes, ao alcance de poucos, mas por ter assinado um filme que envelheceu bem. Povoado de figuras icónicas Pulp Fiction é, como o próprio nome indica, uma homenagem a este tipo de livros, que normalmente abordam histórias de crime protagonizadas por personagens que

vivem à margem da sociedade e quase que pode ser visto como um upgrade a Cães Danados. Todos os elementos que já eram explorados na primeira longa-metragem oficial de Tarantino (a banda sonora com músicas que ficam no ouvido, apesar de não serem grandes clássicos, personagens marcantes, excelentes diálogos, uma história contada através de várias perspectivas, etc.) são aqui levados mais a fundo. Nota-se que o realizador já conta com mais meios, tem um elenco de actores com nomes sonantes, alguns dos quais na altura estavam um pouco esquecidos, como é o caso de John Travolta, que viu a sua carreira relançada com este filme. Com este filme Tarantino chegou, viu e venceu, tornando-se num dos nomes incontornáveis do cinema norte-americano das últimas décadas, goste-se ou não do seu estilo.

“Pulp Fiction colocou oficialmente o nome de Tarantino entre os grandes da Sétima Arte.”

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UNDERGROUND

Título nacional: Era Uma Vez Um País Realização: Emir Kusturica Elenco: Predrag Manojlovic, Lazar Ristovski, Mirjana Jokovic Ano: 1995

1995 CARLOS REIS . CCOP

de Ouro em Cannes. Ao bom estilo provocador de Kusturica, Bila jednom jedna zemlja - título original da obra - facilmente tornou-se o exemplo máximo da controvérsia que acompanha a vida do bósnio muçulmano de nascença, pela sua clara postura pós-Sérvia, mesmo em tempos onde tal atitude era extremamente perigosa. Independentemente da nossa opinião sobre a sua visão facciosa da História, este continua a ser o melhor filme do talentoso cineasta até à data, um glorioso exemplo de "mise en scène" aliado a uma visão única e hilariante que está constantemente a exceder a sua própria hipérbole, mostrando a facilidade com que se criam e desfazem-se heróis através de um humor tão negro quanto inteligente.

Embora convenientemente acomodado pelo multifacetado Emir Kusturica - que aqui realiza e assina o guião - para consumo internacional, esta alegoria satírica de quase três horas sobre o processo de transformação da antiga Jugoslávia desde a Segunda Guerra Mundial até a um presente recente pós-comunista, continua a ser um produto tão excessivo quanto delicioso. O enredo absurdo - e fique claro que não uso o termo num sentido depreciativo - de Era Uma Vez um País envolve um par de traficantes de armas e contrabandistas de ouro nazi - entretanto transformados em heróis comunistas -, um casamento com uma actriz em ascensão e uma cave completamente afastada da realidade, misturados numa trama tão flexível quanto teatral. Adaptado livremente de uma peça do co-autor Dusan Kovacevic, Underground continua hoje a ser o mais sarcástico e surreal filme em competição a ganhar uma Palma

“(...) o mais sarcástico e surreal filme em competição a ganhar uma Palma de Ouro em Cannes.”

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LA STANZA DEL FIGLIO

Título nacional: O Quarto do FIlho Realização: Nanni Moretti Elenco: Nanni Moretti, Emmanuelle Seigner, Zach Cohen Ano: 2001

2001 GONÇALO TRINDADE . CCOP

Não é fácil filmar a mágoa. Colocar numa tela uma história tão dramaticamente densa e triste quanto a da perda dum filho é um daqueles golpes que tanto pode cair no puro melodramatismo como numa pseudo-frieza artística que aliena o espectador, tornando o filme insípido e não aquilo que poderia ser e que, neste caso, é: um retrato extraordinário duma mágoa ordinária (perder um filho tem tanto de trágico como de comum). O filme de Moretti, que foi escrito, realizado e interpretado pelo próprio, é tão cruel quanto verdadeiro, expressando toda a tristeza que quer por interpretações magníficas, uma câmara estável que nos faz sentir mais observadores que espectadores, e uma trama simples que tem nos seus melhores momentos aqueles em que não há diálogos mas apenas imagens, e em que um simples olhar fala por mil palavras; afinal de contas, “Não há mágoa como a mágoa que não fala”,

como bem escreveu uma vez Henry Longfellow. Profundamente comovente e honesto, não deixa espaço para uma resolução feliz, nem nenhum momento em que um diz “É melhor sermos felizes, que era isso que ele teria querido”, como tantas vezes se vê; não há clichés na morte de um filho, e não há clichés no filme de Moretti. Há, apenas, uma imensa dor. Um filme fiel à vida, que tem no seu desfecho esperançoso e não feliz a maior lição que muitos filmes temem a mostrar: há perdas que não se ultrapassam, apenas se lidam. O Quarto do Filho consegue, portanto, fazer chorar as pedras da calçada não por ser melodramático mas sim um retrato honesto e real duma das maiores tragédias da vida. É ficção que se merge com o real, cinema não tanto a imitar e mais a retratar a vida; e é, como tal, simplesmente Cinema com C maiúsculo. “Não há mágoa como a mágoa que não fala”

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ELEPHANT

Título nacional: Elefante Realização: Gus Van Sant Elenco: John Robinson, Carrie Finklea, Alex Frost Ano: 2003

2003 JOÃO PINTO . CCOP

A mestria de Gus Van Sant está presente em todos os seus filmes, mas nenhum é tão transtornante e deleitosamente viciante como Elephant, um drama muito bem construído que, sem muitas falas, pinta um retrato muito realista e emotivo da crescente e constante problemática dos massacres escolares em solo norte-americano. Para além de tocar levemente em questões tão importantes e complexas como o bullying ou a negligência parental, Elephant consegue desenvolver uma trama cheia de suspense e desregramento social e emocional, que se vai tornando cada vez mais envolvente com o passar dos minutos e com o aproximar da inevitável tragédia, que mudará para sempre a vida dos vários adolescentes, de vários escalões sociais e educacionais, que vão aparecendo em cena. A tensa e emocionalmente violenta atmosfera do filme é controlada com brio e dedicação por Van Sant, que em nenhum

momento desvirtua esta obra com soluções fáceis ou elementos desestabilizadores que em nada beneficiariam o dramático resultado final e a sua fortíssima conclusão social. Baseado no Massacre do Liceu de Columbine (1999), Elephant não é um filme leve nem comercial. É uma obra muito dura e controversa mas muito interessante, que ainda hoje, é acusada de influenciar jovens frustrados a embarcarem pelo mesmo rumo que Eric Harris e Dylan Klebold adotaram em 1999 no Liceu de Columbine, mas se for visto com a devida atenção, este filme não é, no entanto, mais do que uma análise muito atenta à actual cultura de violência e aos nefastos efeitos do stress emocional nos adolescentes.

“É uma obra muito dura e controversa mas muito interessante (...)”

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4 LUNI, 3 SAPTAMÂNI SI 2 ZILE

Título nacional: 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias Realização: Cristian Mungiu Elenco: Anamaria Marinca, Laura Vasiliu, Vlad Ivanov Ano: 2007

2007 JOÃO PINTO . CCOP

O cinema romeno tem vindo a ganhar cada vez mais espaço a nível mundial porque, ao longo dos anos, têm saído deste mercado emergente algumas obras cinematográficas de grande qualidade, como The Death of Mr. Lazarescu (2005) ou o recente Beyond the Hills (2012). O drama 4 Months, 3 Weeks and 2 Days é apenas mais um exemplo de um grande filme que deriva de um país que, até à muito pouco tempo, não dava grandes cartas no mundo do cinema. A provar o grande valor desta produção, que deu a conhecer ao mundo o magistral Cristian Mungiu, está o facto de ter vencido a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 2007. O argumento desta produção é excelente, porque junta várias temáticas que lhe conferem uma elevada carga dramática e sentimental que emocionará qualquer um. 4 Months, 3 Weeks and 2 Days é também uma forte história de amizade, desespero e emoção

com um fim incerto que choca e emociona qualquer tipo de espectador, sensibilizando-o para a problemática do aborto ilegal, uma prática ainda muito comum em vários países. O seu realizador, Cristian Mungiu, fez um excelente trabalho, porque através de processos de realização simples mas eficazes conseguiu passar para a tela o drama e a tensão do argumento, bem como a pobreza instalada no país durante essa época. Com um orçamento reduzido, Mungiu conseguiu também recriar, quase na perfeição, o ambiente e as cores de uma Roménia oprimida e enclausurada num regime ditatorial em que não acreditava. Em termos de elenco tenho forçosamente que destacar as atrizes que dão o corpo e a alma por Otília (Anamaria Marinca) e Gabita (Laura Vasiliu). Em suma, 4 Months, 3 Weeks and 2 Days é um filme que choca e que sensibiliza, mas que alerta sobretudo para os perigos iminentes de um aborto clandestino.

“(...) uma elevada carga dramática e sentimental que emocionará qualquer um.”

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THE TREE OF LIFE

Título nacional: A Árvore da Vida Realização: Terrence Malick Elenco: Brad Pitt, Sean Penn, Jessica Chastain Ano: 2011

2011 TIAGO RAMOS . CCOP

Ainda antes de começar a 64.ª edição do festival de Cannes, em 2011, parecia que já a Palma d’Ouro estava decidida. Raras vezes pareceu tão evidente qual seria a decisão do júri, mas a verdade é que A Árvore da Vida já era o evento cinematográfico do ano antes de o ser efectivamente. Instalou-se o mito e a expectativa e o anúncio do primeiro filme de Terrence Malick seis anos depois de The New World entre as fileiras da competição do festival de Cannes chegou com a (quase) certeza da decisão final. Goste-se ou odeie-se (parece difícil encontrar um meio termo), é impossível ignorar a importância e a dimensão de um filme como A Árvore da Vida. Não obstante as críticas sofridas, especialmente devido ao (excessivo?) uso de imagens que dramatizam a criação do Universo, convenhamos que a estrutura narrativa do filme é bastante tradicional, servindo apenas estas imagens para transmitir outro ponto de vista da existência biológica, através da visão mais infinitesimal possível. Versado em Filosofia, o projecto de Malick é dos mais ambiciosos de sempre da História do Cinema e, ao contrário do apregoado, é bastante humilde dentro da sua intenção. Com um olhar por vezes místico e até religioso, o espectador é deslumbrado pelo ponto de vista estético e de montagem, tão megalómanos como raros. É o trabalho de um cineasta enriquecido com o de um director de fotografia como Emmanuel Lubezki. «Eu sou o Alfa e o Ómega. O princípio e o fim» versa a Bíblia no livro de Revelação (ou Apocalipse), capítulo um e versículo oito. Embora este versículo tenha como significado provável a indicação de Deus como o único capaz de prover vida eterna aos seus seguidores (isto depois de, em termos bíblicos, Deus ter vedado a Adão e Eva o acesso à Árvore da Vida, guardada por querubins), a verdade é que a amplitude de tal afirmação acaba por ilustrar o filme na visão do quase mítico cineasta. Aquilo que observamos é também esta uma tentativa de descrever o Alfa e o Ómega

(primeira e última letra do alfabeto grego) como o princípio e o fim da vida. Aí parte-se do geral para o particular e do particular para o geral, através dos olhos de uma família texana dos anos 50, transportando nessa visão a criação, expansão do Universo e o surgimento da vida na Terra. É verdade que A Árvore da Vida é o ponto de vista de um crente. Mas de que é feito o cinema senão de pontos de vista? De que é feita a vida senão de perspectivas? O que interessa aqui é a reflexão que este nos obriga. A do princípio e do fim, do Universo, da Vida e de nós. São dos pontos de vista, pelo olhar de dois protagonistas: a do pai austero e da mãe carinhosa. A vida familiar terrena tão divina quanto Deus. Tão preponderante quanto os caminhos que levaram ao surgimento da vida. Mas mesmo para os não-crentes, existe em A Árvore da Vida o deslumbre pela dimensão da vida. Seja ela Deus ou a Natureza. Seja o que for. É no fundo uma tentativa de dar lógica áquilo que por vezes nos parece, enquanto seres humanos, o caos. Em A Árvore da Vida – assumindo o ponto de vista da crença – há igualmente a transmissão do pensamento da descrença. O filme inicia-se com o ponto de vista divino, versado no livro bíblico de Jó, capítulo trinta e oito, versículo quatro: «Onde estavas tu, quando eu fundava a terra?». As mesmas palavras usadas por uma mãe para manifestar o desgosto pela perda de um filho, perante Deus: «Onde estavas tu?». As mesmas palavras que crentes e descrentes transmitem perante a existência ou confirmação da não-existência de Deus: onde estava Deus? Onde está Deus perante a injustiça e o sofrimento? Tão bonito quanto inspirador, tão profundo quanto metafísico e, no limite, tão devastador quanto é a própria Vida. Talvez não passe de uma questão de sensibilidade e cada um verá aqui algo distinto. Mas dificilmente ficará indiferente àquela que é uma das Palmas d’Ouro mais marcantes de sempre.

“Tão bonito quanto inspirador, tão profundo quanto metafísico e, no limite, tão devastador quanto é a própria Vida.” 53


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GATE OF HELL E KAGEMUSHA: VENCEDORES ASIÁTICOS EM CANNES

Ao longo da História do Festival de Cannes apenas seis filmes asiáticos lograram vencer a prestigiada Palma de Ouro. Estamos a falar de Lowly City (Neecha Nagar, 1946) de Chetan Anand (Índia), Gate of Hell (Jigokumon, 1954) de Teinosuke Kinugasa (Japão), Kagemusha (1980) de Akira Kurosawa (Japão), The Ballad of Narayama (Narayama bushikō, 1983), The Eel (Unagi, 1997), ambos de Shoei Imamura (Japão), Farewell My Concubine (Bàwáng bié jī, 1993) de Chen Kaige (China). Vale a pena recordar que aquando da entrega dos prémios dos dois primeiros, a Palma de Ouro não tinha sido instituída, tendo Lowly City e Gate of Hell vencido o Grand Prix, embora para efeitos práticos, ambos conquistaram o principal prémio do Festival. Numa edição dedicada ao Festival de Cannes, não poderíamos deixar passar em claro algumas destas clássicas obras cinematográficas, em particular Gate of Hell e Kagemusha, duas obras que surgem merecedoras dos nossos dois polegares levantados, muito ao jeito do programa televisivo do senhor Roger Ebert, cujas memórias de Cannes surgem expostas de forma bem interessante no artigo presente nesta edição da Take Cinema Magazine. Curiosamente, ou talvez não, ambas as obras cinematográficas escolhidas encontram alguns pontos em comum. Não falta uma excelente utilização das cores, um bom trabalho de fotografia, uma abordagem aos filmes de samurais que coloca o foco no drama pessoal dos personagens, histórias capazes de prender a nossa atenção e acima de tudo: momentos memoráveis de cinema. Se Rashomon desafiou as barreiras do tempo e continua a ser recordado nos dias de hoje, a verdade é que o mesmo não acontece com Gate of Hell, muitas das vezes preterido para segundo plano quando falamos de clássicos do cinema asiático, algo que levou à sua escolha em detrimento de obras clássicas como The Ballad of Narayama e Farewell My Concubine. Sem mais delongas, passamos agora para uma abordagem crítica aos filmes seleccionados.

ANÍBAL SANTIAGO

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Título original: Jigokumon Realização: Teinosuke Kinugasa Elenco: Kazuo Hasegawa, Machiko Kyo, Isao Yamagata, Yataro Kurokawa, Jun Tazaki Ano: 1954

GATE OF HELL Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1954 (na época Grand Prix), vencedor do Leopardo de Ouro no Festival de Locarno em 1954, distinguido com um Oscar honorário para "Melhor Filme Estrangeiro" lançado pela primeira vez nos Estados Unidos em 1954, Gate of Hell arrebatou prémios e elogios aquando do seu lançamento e continua a manter nos dias de hoje vários dos atributos que o levaram a conquistar (ainda que com alguma controvérsia) a crítica e o público. Visualmente sumptuoso, emocionalmente poderoso e bem construído, Gate of Hell remete-nos para o Japão do Século XII para nos apresentar uma história onde o amor obsessivo promete conduzir os seus intervenientes à desgraça, em particular o seu protagonista, Morito Endo (Kazuo Hasegawa). Gate of Hell começa por nos apresentar o contexto que antecede os acontecimentos principais da narrativa, ou seja, quando a residência do imperador em Kyoto é atacada, tendo em vista aproveitar a saída do líder e provocar um golpe de Estado. Perante esta situação torna-se necessário proteger o pai e a irmã do imperador, que se encontravam no local, tendo Kesa (Machiko Kyo) sido designada para se fazer passar por esta última, para a irmã do Imperador poder sair do local em segurança. Quem transporta Kesa é Moritoh, um samurai que procura proteger a todo o custo a mulher, que pensa ser a irmã do líder a quem jurou fidelidade. Moritoh logo acaba por ter de enfrentar uma série de obstáculos, incluindo o seu irmão (um dos membros que planeou o golpe), mantendo-se fiel ao Imperador. Com a paz restabelecida e o golpe de Estado abafado, o regente do Imperador concede a Moritoh um desejo e este logo pede para casar com Kesa, embora não a conheça

intelectualmente. O problema é que Kesa é casada com Watanabe Wataru (Isao Yamagata) e não pretende romper o casamento com o marido para ficar com Moritoh, algo que leva a um triângulo amoroso complicado, que aos poucos promete terminar em tragédia. A história de Gate of Hell é aparentemente simples, mas magnificamente construída e apresentada com uma certa dose de poesia ao espectador, com cada momento a ser cadenciado de forma cirúrgica até ao trágico desfecho que de certa forma esperamos. Escrita e realizada por Teinosuke Kinugasa, tendo como base a peça de Kan Kikuchi, Gate of Hell é daquelas obras cinematográficas que merecem e justificam facilmente as razões para os prémios que venceu e logo nos questionamos do porquê de ter caído num relativo esquecimento cinéfilo. Não falta uma magnífica e pertinente utilização das cores (os tons azuis no último terço são magníficos para adensar a narrativa), um elaborado conjunto de cenários, uma história capaz de prender a nossa atenção, onde o amor possessivo e os valores dos samurais parecem estar sempre presentes, interpretações emotivas, uma realização segura, tudo apresentado de forma belíssima, onde a tragédia ganha um je ne sais quoi de poético. A poesia vem não só das belas imagens em movimento (excelente trabalho de fotografia), filmadas em eastmancolor (foi o primeiro filme colorido japonês a ser apresentado no Ocidente), mas da própria história, 56


na qual os valores tradicionalmente associados aos samurais como a honra e fidelidade a serem muitas das vezes quebrados, em particular os do protagonista, perante um mero capricho pessoal. Não nos enganemos, Moritoh pode sentir amor pela sua amada, mas acima de tudo está em jogo um sentimento de posse, de provar o fruto proibido e subjugar a mulher, numa postura algo crítica do cineasta em relação ao tratamento dado à figura feminina na sociedade do tempo que retrata. Esta sua obsessão surge transposta em grande nível por Kazuo Hazegawa, que é capaz de explorar o argumento coeso que tem em mãos e expor a crescente dose de inquietação do seu personagem pela mulher que é alvo do seu desejo não corresponder aos seus sentimentos, ao mesmo tempo que a sua colega de elenco, Machiko Kyo, expõe toda a fragilidade e insegurança da sua personagem. Machiko Kyo interpreta uma figura assaz interessante. Kesa é uma mulher aparentemente frágil e submissa ao seu marido, mas nunca cede nos seus valores, parecendo caracterizar mais os valores dos samurais do que o seu cônjuge, e claramente mais do que Moritoh. Kesa, Moritoh e Wataru protagonizam um triângulo amoroso complexo que afasta Gate of Hell do típico filme de samurais, numa obra onde os sentimentos são habilmente cadenciados e expostos por Teinosuke Kinugasa. No primeiro terço tudo é rápido, frenético, estamos perante uma rebelião que coloca em causa o poder do Imperador. Posteriormente, tudo é apresentado de

forma lenta, por vezes preenchido por longos silêncios, de forma a dar espaço aos personagens para crescerem junto do espectador, de serem desenvolvidos e criarem dinâmicas que facilmente justificam o impacto causado pelos acontecimentos finais. Veja-se que não falta a obsessão crescente de Moritoh, a abordagem ao casamento de Kesa e Watarua (dois personagens com notórios problemas de comunicação), entre outros elementos, que facilmente prendem a nossa atenção. Estas dinâmicas escondem na sua aparente calma uma tempestade de sentimentos, uma tensão latente entre a honra, o amor, a cobiça e a obsessão, muitas das vezes próxima de um melodrama trágico, sendo tudo desenvolvido de forma subtil e sem apelar excessivamente à lamechice. Entre obsessões amorosas, valores morais, drama, tensão, boas interpretações, magníficos cenários e entusiasmantes imagens em movimento, Gate of Hell é daqueles clássicos esquecidos nas areias do tempo, que clamam por ser redescobertos e mostrar a sua relevância nos dias de hoje.

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Título original: Kagemusha Realização: Akira Kurosawa Elenco: Tatsuya Nakadai, Tsutomo Yamakazi, Kenichi Hagiwara, Jinpachi Nezu Ano: 1980

KAGEMUSHA Por vezes dá vontade de vestir o melhor fato de cerimónias para podermos assistir a um filme de Akira Kurosawa. Não que os mesmos percam valor se forem vistos de pijama, mas cada descoberta que fazemos na sua filmografia é um deleite, sobretudo as suas obras maiores, nas quais Kagemusha se insere paradigmaticamente. Tudo parece ter sido pensado ao pormenor, elaborado de forma meticulosa e com uma enorme mestria, com Kurosawa a querer mostrar que os seus anos de menor produtividade (e consenso junto da crítica) na década de 70 foram um mero percalço e a desenvolver uma obra que roça a perfeição e conquista a imortalidade apenas ao alcance das grandes obras-primas. Não deixa de ser curioso que Kurosawa tenha encontrado várias dificuldades e percalços para tirar este projecto do papel, que conseguiu o seu financiamento final graças ao apoio de dois dos seus ilustres fãs, George Lucas e Steven Spielberg. Porquê este apoio? Com uma carreira onde constam Rashomôn, Shichinin no samurai, Yôjinbô, entre muitas obras que enobrecem o seu currículo, é de apoiar cegamente um projecto pelo qual Akira Kurosawa estava apaixonado, algo que surge evidente em todo o meticuloso cuidado que colocou na elaboração do filme. Em Kagemusha, os personagens parecem mover-se por requintados quadros pintados com a maior das artes e engenhos, nos quais as cores são utilizadas de forma paradigmática, os planos compostos de forma magistral, notando-se uma procura para ser esteticamente revelante, onde a atenção ao pormenor é notória. Tendo como pano de fundo o Japão, durante o período Sengoku, Kagemusha não nos começa por poupar a nada desde o início, ao presentear-nos com um

belo plano estático, enquadrado de forma meticulosa, no qual surgem três personagens: Shingen (Tatsuya Nakadai), o seu irmão Nobukado (Tsutomo Yamakazi) e um ladrão (Nakadai) que iria ser crucificado, que o segundo salvou devido a ter bastantes semelhanças com Shingen. Ambos os personagens parecem semelhantes, distinguindo-se por ao centro estar o líder, na esquerda o seu irmão e na direita o criminoso. Estas semelhanças entre os personagens revelam-se úteis quando Shingen, um poderoso warlord e líder do clã Takeda, é mortalmente ferido num combate, sendo rapidamente substituído pelo ladrão, que é utilizado como um kagemusha. Apesar da relutância do ladrão e dos seus gestos e educação serem diferentes de Shingen, este vê-se na obrigação de assumir o papel, de forma aos homens de Shingen continuarem a manter a fé no seu líder e os inimigos (em particular Oda Nobunaga e Tokugawa Ieyasu) continuarem a recear Shingen, embora suspeitem que algo de errado se passe. O plano é simples, este terá de encarnar o personagem durante três anos, de forma a manter a unidade do clã Takeda e o respeito dos inimigos. Grande parte da narrativa é centrada na procura gradual do criminoso em assumir o papel de Shingen, descobrindo a sua capacidade de ser relevante e comandar homens, embora fora do personagem seja insignificante para aqueles que o seguem. O duplo consegue enganar as mulheres de Shingen e o seu neto, assumindo temporariamente uma 58


posição que poderia ser assumida pelo filho de Shingen, que mais tarde viria a ter um papel importante nas batalhas que colocarão o destino do clã em risco. Épico histórico que fica gravado na memória, Kagemusha surge como o resultado da paixão de um realizador pelo seu trabalho, um filme de samurais feito por alguém que tanto contribuiu para o género e tem neste filme uma das obras mais refinadas da sua carreira. É verdade que o filme tem uma duração a rondar as três horas e apresenta um ritmo lento, mas uma lentidão deliberada, pronta a explorar cada momento que os personagens têm para nos dar, para expor as suas especificidades, os seus dilemas morais ligados a questões de honra, identidade, poder, lealdade e valores, ao mesmo tempo que assistimos a um conjunto de imagens em movimento habilmente construídas. Recheado de cenários cuidados e um guarda roupa adequado, Kagemusha destaca-se pela beleza das suas imagens, pela forma meticulosa como Kurosawa esculpe as mesmas, enquanto nos inebria com uma profusão extasiante de cores que resultam em algo de belo e poético, onde o céu pode perder momentaneamente o seu tom azul e ficar vermelho, um arco íris pode aparecer onde menos se espera, e a magia do cinema se acerca do ecrã. Essa magia surge ainda exposta nas batalhas representadas, quer a batalha de Takatenjin, quer a batalha de Nagashino, onde os corpos surgem geometricamente colocados, os sentimentos bailam pelo ar,

o fora de campo é utilizado para adensar a narrativa e tudo parece resultar, incluindo o argumento bem construído e a escolha de Tatsuya Nakedai para interpretar o protagonista. Nakedai tem um desempenho de inolvidável impacto, ao interpretar o papel de Shingen e do criminoso, sobressaindo sobretudo a dar vida a este último, expondo de forma paradigmática as suas transformações, os seus dilemas morais, a forma como gradualmente este começa a assumir os maneirismos de Shingen, provando ser uma escolha acertada de Akira Kurosawa. O cineasta não acertou apenas na escolha do protagonista, tendo em Kagemusha uma obra que enobrece a sua carreira, capaz de explorar este mundo dos samurais e dos senhores da guerra numa época fervilhante do Japão, de expor as intrigas e a complexidade existente nos interiores dos clãs, de criar um universo cinematográfico belo e credível, que é capaz de nos prender durante três horas e deixar-nos a pedir por um pouco mais. Kagemusha não é apenas um dos ilustres representantes do Japão a vencer uma Palma de Ouro. Kagemusha figura por direito próprio nos grandes clássicos da História do Cinema, uma obra capaz de desafiar as barreiras do tempo e mostrar que o seu valor continua intacto em 2013, ou talvez até esteja mais apurado. Akira Kurosawa encontrou grandes dificuldades para tirar Kagemusha do papel. Curiosamente, Kagemusha também encontrará grandes dificuldades para sair da memória de quem teve a oportunidade de ver e rever esta obra-prima da Sétima Arte. 59



PESEIRISMOS ANÍBAL SANTIAGO

competitiva por I Confess (1953) e The Man Who Knew Too Much (1956, com o troféu a já ter a designação de Palma de Ouro). Como podem imaginar, Alfred Hitchcock não levou um único troféu para casa, tendo muito provavelmente se deslocado a Cannes apenas para aplaudir os colegas de profissão e comer uns canapés (esperamos que tenham sido do agrado do cineasta).

Lisboa, 18 de Maio de 2005. O Sporting Clube de Portugal disputa a final da Liga Europa no Estádio José de Alvalade perante os russos do CSKA Moscovo. A vitória final coube ao CSKA. Nesse ano, o clube de Alvalade quase venceu todos os troféus e o seu treinador, José Peseiro, passou a ser sinónimo das quase vitórias, ou se preferirem, o Peseirismo. Numa edição dedicada ao prestigiado Festival de Cannes, não poderíamos deixar de passar em branco alguns dos ilustres nomes que se deslocaram ao certame e saíram de lá de mãos a abanar (e não foi pela falta de qualidade) ou sem a Palma de Ouro (embora como podem ler no artigo sobre a História do Festival, o prémio nem sempre teve esta nomenclatura). Um dos casos mais flagrantes é Alfred Hitchcock, que viu o seu Notorious ser ignorado na edição de 1946 do Festival de Cannes, na qual, mais de uma dezena de filmes receberam ex-aequo o Grand Prix du Festival International du Film (entre os quais, Brief Encounter de David Lean e Roma, Cidade Aberta de Roberto Rossellini).

Alfred Hitchcock não foi o único nome a sair do Festival de Cannes de mãos a abanar. Veja-se o caso do prestigiado cineasta japonês Kenji Mizoguchi. Hoje em dia visto como um nome de respeito na História do Cinema, Mizoguchi foi nomeado para a secção Em Competição do Festival de Cannes (1955) pelo clássico Chikamatsu Monogatarai e saiu do Festival sem ser distinguido com o prémio principal. O cineasta japonês apenas fora nomeado uma vez, ao contrário de Alan Resnais, que esteve na secção Em Competição em sete ocasiões (como realizador) e saiu de lá sempre sem trazer o principal troféu, algo que ganha contornos de escândalo se considerarmos que Hiroshima, Mon Amour, uma das obras maiores do cineasta, foi colocada de lado, um sinal claro de Peseirismo. No entanto, vale a pena salientar que Resnais recebeu o Grand Prix Especial do Júri e o Prémio da Crítica Internacional - F.I.P.R.E.S.C.I. (ambos em 1980) por Mon Oncle D'Amérique e o Prémio excecional para o conjunto da sua carreira e da sua contribuição para

Assim de repente, não queremos imaginar a cara de Mestre “Hitch” perante esta desfeita, sobretudo se tivermos em conta que esta lenda da História do Cinema foi “gloriosamente” ignorada nos Oscars. Para consolação de Hichcock, entre os "derrotados" desta edição encontra-se o nosso Camões de Leitão de Barros (se calhar esta não é a melhor consolação). Mais tarde, Hitchcock viria a ser nomeado para secção 61


a história do cinema (2009) por Les Herbes Folles. Se José Peseiro já conseguiu vencer uma Taça da Liga, Alan Resnais claramente merece estas distinções.

participei e estive por lá”. Quem também foi ao Festival de Cannes provar acepipes foi Otto Preminger, um nome lendário da História do Cinema (que merece todas as nossas vénias), mas que saiu sem grandes glórias de Cannes. Preminger esteve em competição por Carmen Jones (1955), Advise and Consent (1962), Tell Me That You Love Me, Junie Moon (1970), mas nenhum filme trouxe um troféu (já Preminger sempre conseguiu provar os croissants).

Como podem ter reparado, vários foram os realizadores que se deslocaram a Cannes para promoverem os seus filmes e quiçá esperar pela distinção, embora se tenham ficado pelos aplausos aos colegas de profissão, trazendo na bagageira uns souvenirs e pouco mais do que isso. A viagem nunca chega a ser completamente em vão. Cannes é uma cidade com vários pontos turísticos, se estiver bom tempo os passeios até ficam mais agradáveis e os cineastas podem desfrutar do belo croissant e da baguete em território francês (ou refastelarem-se no quarto de hotel com uma garrafa de Champagne). Um dos casos dos cineastas que trouxe de França uns souvenirs (provavelmente uma Torre Eiffel em miniatura, mesmo não estando em Paris) foi o nosso João Mendes (é verdade temos um português na lista dos “peseiristas”).

A falta de distinções por parte destes cineastas em nada belisca a carreira dos mesmos, visto que o melhor filme para o júri nem sempre é o melhor filme para os espectadores, sendo que a definição de “Melhor Filme” é sempre muito subjectiva e está sujeita a um “critério largo”. A confirmar essa situação está o facto de nomes como Milos Forman, Sidney Lumet, Miklos Jancso, Alexander Sokurov, Wong Kar-Wai, Oshima Nagisa, Dino Risi, Hou Hsiao-hsien, Tsai Ming-Liang, Costa-Gravas, Takeshi Kitano, entre muitos outros, tenham estado em competição mas não lograram trazer a Palma de Ouro.

João Mendes esteve no Festival de Cannes com Parques Infantis (1946), Arte Popular Portuguesa (1955), Sintra (1958) e Rapsódia Portuguesa (1959) na secção Em Competição (Curtas-Metragens nos três primeiros) do Festival de Cannes. Sabem quais as distinções que João Mendes trouxe para Portugal? Aquela amarga vitória moral do “pelo menos

Com o aproximar do final do artigo, não podíamos deixar de lado o nosso cineasta mais conhecido ao redor do Mundo, o mestre Manoel de Oliveira. Nome maior do cinema português, Oliveira colecciona idas a Cannes, tendo estado na secção Em Competição com filmes como Os Canibais 62


(1988), O Convento (1995), A Carta (1999), Vou Para Casa (2001), O Princípio da Incerteza (2002), vários filmes, mas zero Palmas de Ouro. Manoel de Oliveira chega Cannes com “O Princípio da Incerteza” sobre as possibilidades de trazer o troféu, mas logo regressa ao “Convento” do estúdio de filmagens de mãos a abanar. Oliveira trouxe dois prémios do Festival de Cannes, o Prémio da Crítica Internacional – F.I.P.R.E.S.C.I. (por Viagem ao Princípio do Mundo) e o Prémio do Júri (por A Carta). Não ter vencido Palmas de Ouro em nada belisca a carreira de Oliveira, que tem em Cannes um bom local de lazer, divulgar os seus filmes e comer uns aperitivos. Estão assim conhecidos alguns dos realizadores com síndroma de “Peseirismo”, que vão para o Festival de Cannes com alguma esperança de trazerem a Palma de Ouro, mas “apenas” conseguiram divulgar o seu trabalho num dos festivais mais prestigiados do Mundo. Vários outros nomes poderiam ser apresentados ao longo deste artigo, mas nada como deixarmos em aberto uma janela de procura de conhecimento sobre os cineastas que dominam a bela arte do “peseirismo”, da arte do quase ganhar os grandes troféus e ficarem pelo caminho. Pelo lado positivo, sempre ficaram a conhecer de perto a Croisette e acima de tudo, divulgaram os seus filmes numa montra cinematográfica de prestígio Mundial. 63



MEMÓRIAS DE ROGER ERBERT EM CANNES CARLOS REIS

Roger Ebert visitou pela primeira vez o mais glamoroso evento cinematográfico do planeta no ano de 1972. Quinze anos depois, aquando da celebração do quadragésimo aniversário do Festival, o conceituado crítico norte-americano que faleceu recentemente devido a complicações relacionadas com um cancro, lançou um livro intitulado “Two Weeks in the Midday Sun: A Cannes Notebook”, talvez uma das obras menos divulgadas e conhecidas de Ebert, mas que aproveitamos agora para relembrar, homenageando assim tanto o Homem que marcou de forma ímpar a indústria, como descobrindo algumas curiosidades relacionadas com muitos dos realizadores e filmes que passaram pela pequena e acolhedora cidade francesa. Entre histórias repletas de bom humor – como era seu estilo, de resto – a rituais bizarros e tradições locais pouco conhecidas, Roger mostrou um lado de Cannes que poucos conheciam, entre o jet lag das estrelas e a boca aberta dos fãs. Seguem-se, então, alguns excertos da publicação.

Nota de Redacção: Traduzido e adaptado livremente por Carlos Reis a partir do livro “Two Weeks in the Midday Sun: A Cannes Notebook”.


RITUAL DE CHEGADA Todos pensam que é muito divertido cobrir o Festival de Cannes. É um daqueles eventos em que a sua essência, tal como o Super Bowl, Wimbledon ou o Derby de Kentucky, está escondida por detrás da sua lenda. Mas se o Super Bowl demorasse duas semanas, assim sim seria mais como Cannes. Tenho na mão a primeira edição da “Screen International”, acabadinha de sair, um jornal diário em língua inglesa sobre o Festival de Cannes… e tem 158 páginas. A maioria das páginas pertencem a anúncios de filmes que serão aqui mostrados, em competição ou não, e enquanto as folheio começa a crescer a minha dose anual de insegurança em relação à minha estadia. Não conseguirei ver mais do que uma fracção destes filmes. Irei perder alguns dos melhores. E irei desperdiçar o meu tempo a ver alguns dos piores. Nunca conseguirei encontrar todas as estrelas e todos os realizadores que deveria entrevistar e, se conseguir apanhar alguns bastante interessantes como Barbara Hershey ou Dusan Makavejev, os meus editores vão querer saber porque não almocei antes com a Elizabeth Taylor. Durante as próximas duas semanas, estarei a cobrir uma história sem fim nem forma. Todas as manhãs, pelas 8h30, haverá o primeiro de muitos visionamentos diários. E, todas as noites à meia-noite, uma nova festa estará a começar. O meu trabalho será pensar de duas formas de uma só vez: ser crítico de cinema, avaliando cada filme que vir e tentar encontrar alguma espécie de padrão entre eles; e ser um coscuvilheiro, descobrindo por que razão a Bo Derek apenas fez dois filmes desde 10. A única constante nesta minha batalha será o meu computador. (…) Se tiver sorte, no entanto, algo extraordinário irá acontecer-me durante este festival. Irei ver um filme que fará a minha espinha arrepiar-se com tamanha grandiosidade, saindo da sala de cinema sem palavras. Não há sítio melhor neste planeta para ver um filme que no Palais des Festivals em Cannes, com o seu ecrã três vezes maior que o normal, o seu sistema de som perfeito e, acima de tudo, a sua plateia com quatro mil pessoas que vivem apaixonadamente esta arte. 66


O VELHO PALAIS E O NOVO PALAIS (…) Seria fácil pedir às estrelas cintilantes para entrarem pela porta traseira, mas tal iria alienar o conceito do festival. No velho Palais, no fim da Croisette, as procissões nocturnas pelas escadarias acima tornaram-se um ritual de renome mundial. Para perceberam a dimensão, quando reestruturaram o novo Palais, uma das alterações foi tornar as escadas maiores e mais largas. De facto, tornaram-nas também mais inclinadas, pelo que na primeira “época” do novo Palais, até fizeram um aviso para os fotógrafos terem cuidado, não fossem tropeçar e começar uma verdadeira avalanche humana de fotógrafos e celebridades pela escadaria abaixo. Consequência disso, mais obras: reduziram o ângulo das escadas, mas ainda assim obrigavam as estrelas a ultrapassar um percurso de obstáculos, chegando em limusines, atravessando uma passadeira vermelha, subindo uma escadaria gigante, tudo isso sobre os olhares de milhares de fãs provenientes de todo a Europa, sedentos por uma oportunidade real de verem os seus heróis em carne e osso. Muitos actores e actrizes nunca estiveram num palco de teatro e, apesar da sua fama ser vasta, nunca receberam uma grande ovação; a sua chegada a Cannes é o mais parecido que eles alguma vez vão conseguir de sentir a sensação de marcar um touchdown. Algumas celebridades francesas são mesmo viciadas neste ritual, e aparecem todos os anos; Gerard Depardieu é uma visão tão familiar a passear pela Croisette no seu motociclo, que é quase uma das instituições de Cannes. Mas algumas vezes as multidões tornam-se complicadas. Quando uma celebridade de grande magnitude – alguém como Catherine Deneuve ou, digamos, Clint Eastwood – aparece, o público entra em loucura, espalha-se pelas ruas e as árvores enchem-se de fotógrafos. Num mundo de doidos, há sempre a possibilidade de alguma coisa fugir ao controlo da segurança e da organização. O ambiente torna-se desconfortável. Na noite que James Stewart veio a Cannes, em 1985, a multidão ficou tão entusiasmada com a sua presença que o “velho homem” foi empurrado de um lado para o outro dentro do cordão policial que o “protegia”. Há sempre a possibilidade de um motim quando, por exemplo, Jerry Lewis vem a Cannes. Quando cá esteve em 1983, devido ao The King of Comedy de Scorsese, ele contou-me como “trabalha” a multidão: “Tens que andar devagar. O que eles querem é ter tempo para olhar bem para ti. Se andares depressa, vão ter medo de não te ver bem, logo irão correr uns para cima dos outros… e começa o motim. Por isso, ando sempre com estilo e… devagar. Olá! Aqui estou eu! Olá, tudo bem? Olhem bem para mim! Oi companheiro, como é que estás? Assim não há chatices”. 67


CANNES EM 10 CARTAZES MIGUEL REIS

O ditado não é de agora: uma imagem vale por mil palavras. Ao longo de sessenta e seis anos de história, o Festival de Cannes ficou conhecido pelos seus cartazes oficiais tão simples e singelos quanto profundamente repletos de significados e simbolismos. Homenageando quase sempre estrelas e ícones do passado, bem como o glamour que envolve aqueles dias de agitação na cidade do sul de França, o revelar de cada cartaz oficial tornou-se praticamente um ritual anual quase tão mediático quanto o anúncio dos filmes em competição. Depois de muito pesquisar e de analisar os enigmas por detrás de cada poster, a Take Cinema Magazine escolheu aqueles que considera ser os dez cartazes mais marcantes da história do festival.


1939

1946

Este pode muito bem ser considerado o cartaz número zero do Festival de Cannes, já que acabou por promover um certame que acabou por não ocorrer devido ao início da Segunda Guerra Mundial. Estava tudo preparado para a estreia, mas o contexto político-social falou mais alto. Ilustração de Jean-Gabriel Domergue

Sete anos após a primeira tentativa, Cannes foi finalmente palco de um festival internacional de cinema, ainda que, como se pode ver no cartaz, após o Verão e não antes, como é agora tradição. Sol, mar, palmeiras, barcos e luxo espelhados num cartaz muito mais turístico do que cinematográfico. Ilustração de Leblanc

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1952

1977

O cartaz da quinta edição foi o primeiro a realçar a sua faceta internacional. De portas abertas a filmes e realizadores de todo o mundo, podemos ver na ilustração de Jean Don a representação de países como o Brasil, a Grécia, a Espanha, a Suécia, o Japão, o Uruguai, o Chile ou, obviamente, os Estados Unidos. Destaque para o “V”, que encaixa na perfeição no desenho. Ilustração de Jean Don

Ilustração original do conceituado pintor polaco Wojciech Kazimierz Siudmak, na altura ainda apenas uma jovem promessa, o cartaz da trigésima edição do festival de Riviera Francesa é, na nossa opinião, não só o mais ousado como um dos mais bonitos da história de Cannes. Sorte a do pavão de estar tão perto de tamanha Deusa. Ilustração de Wojciech Kazimierz

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1983

1985

Adaptado de um desenho do histórico cineasta japonês Akira Kurosawa, responsável por obras-de-arte intemporais como Gate of Hell ou Os Seven Samurai, o cartaz da edição de 1983 foi uma das mais claras e merecidas homenagens feitas a este nível a um realizador, quebrando ainda uma linha mais arrojada que começava a modernizar o grafismo tradicional de Cannes. Ilustração de Akira Kurosawa

Tributo ao trabalho de Eadweard Muybridge, fotógrafo inglês inventor do zoopraxiscópio e considerado o pai da película cinematográfica, graças ao seu trabalho no século XIX de simular movimento através de fotografias sequenciais, o cartaz da trigésima oitava edição do Festival parece ganhar vida com as personagens a dançarem aos poucos para fora da fita em direcção ao sol e ao mar de Cannes. Concepção de Information and Strategie

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1993

2004

Alfred Hitchcock nunca teve muitos motivos para festejar nas suas participações em Cannes - mesmo em anos em que houve múltiplos vencedores - mas a organização do Festival decidiu homenageá-lo no seu cartaz da quadragésima sexta edição dando destaque a uma foto de Cary Grant e Ingrid Bergman no seu Notorious, filme que esteve em competição no ano inaugural de Cannes. Concepção de Michel Landi

No cartaz criado pela agência de comunicação Alerte Orange, vemos uma criança e a sua sombra fantasiada de Marilyn, uma ode aos sonhos e ao poder transformador do cinema. No ano em que Tarantino foi presidente do júri e Michael Moore ganhou a Palma de Ouro para Melhor Filme, este cartaz conseguiu também deixar a sua marca. Ilustração de Alerte Orange

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2007

2013

Homenagem ao fotógrafo americano de origem letã Philippe Halsman por parte do também fotógrafo Alex Majoli, temos um conjunto de celebridades que marcaram essa e outras edições de Cannes fotografados em pleno ar. Halsman foi o autor de retratos imortais de alguns dos principais players de Hollywood, como aquela foto em que Hitchcock, um charuto e um pássaro coabitam na mesma lente. Fotografia de Alex Majoli

O cartaz da edição deste ano é provavelmente o mais romântico da história do Festival. Nele, Joanne Woodward e Paul Newman, um dos casais cinematográficos mais adorados de sempre, beijam-se numa posição invertida um para o outro, numa clara homenagem ao par que marcou presença em Cannes em 1958, o ano em que se casaram e em que contracenaram pela primeira vez no ecrã, em The Long Hot Summer. Touché! Concepção de Bronx Agence

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