Take 48

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FEMINISMOS

TAKE.COM.PT | ANO 10 | NÚMERO 48


ARTIGOS

CRÍTICAS A Luta Continua

04 Um Quarto que Seja Seu . editorial 06 Mulheres Atrás das Câmaras 12 Mulheres Bem Comportadas Raramente Fazem História 20 Revenge Movies - Filmes que se Servem Frios 64 The Handmaid's Tale . tv 66 Buffy, a Heroína de Whedon . tv

16 I Shot Andy Warhol 18 Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce 1080 Bruxelles 20 Suffragette 21 Born In Flames 22 Bend it like Beckham 22 In a world… 23 A league of their Own Mulheres de Força 34 La Passion de Jeanne D’Arc 36 Mad Max: Fury Road 37 Death Proof 38 Elizabeth 38 Erin Brokovich 39 Serenity 39 Kill Bill: Vol. 1 Kill Bill: Vol. 2 Perspectivas Femininas 42 Thelma & Louise 44 She’s Gotta Have it 45 Die Büchse der Pandora 46 Alice doesn’t live here anymore 46 Orlando 47 The Piano 47 Fried Green Tomatoes Mulheres pelo Mundo 50 Mustang 52 Persepolis 53 Banshun 54 Lady Vengeance 54 A Girl Walks Home alone at Night 55 Dayereh 55 Mononoke-hime

Director José Soares. josesoares@take.com.pt Editora Sara Galvão. Editor adjunto José Carlos Maltez. Colaboraram nesta edição António Araújo. António Pascoalinho. Cátia Alexandre. Diana Martins. Filipe Lopes. Hélder Almeida. João Bizarro. J. B. Martins. João Paulo Costa. José Carlos Maltez. Pedro Miguel Fernandes. Pedro Soares. Rui Alves de Sousa. Sandra Gaspar. Sara Galvão. Design José Soares. Ilustração Patrícia Furtado . patriciafurtado. net/ Imagens Arquivo Take. Alambique. Big Picture Films. Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. Cine Mundo. Columbia TriStar Warner Portugal. Costa do Castelo Filmes. Fox Portugal. Films 4 You. iStock. LNK Audiovisuais. Lanterna de Pedra Filmes. Leopardo Filmes. NOS Audiovisuais. Midas Filmes. Nitrato Filmes. Outsider Filmes. Pris Audiovisuais. Sony Pictures Portugal. Universal Pictures Portugal. Valentim de Carvalho Multimédia. Vendetta Filmes. Imagem de capa Kill Bill: Vol. 1 (2003) © Miramax. © 2018 Take Cinema Magazine Todos os direitos reservados. As imagens usadas têm direitos reservados e são propriedade dos seus respectivos donos.

Mulheres Controversas 58 Daisies 60 Monster 61 Feuchtgebiet 62 Teeth 62 I spit on your grave 63 Prevenge 63 Elle

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UM QUARTO QUE SEJA SEU SARA GALVÃO

Esta edição da Take é dedicada aos Feminismos. Plural, porque se é claro que o feminismo defende a igualdade entre os sexos, o modo de chegar a essa igualdade (ou mesmo o que essa igualdade significa) são pontos de discussão desde quando primeiro se lutou pelo sufrágio feminino. Há quem ache que, no mundo contemporâneo, já não há necessidade para feminismos. Enquanto escrevo, vamos na quinta nomeação de uma mulher para melhor realizador pela Academia (parabéns Greta Gerwig), e Hollywood tenta lidar com um escândalo de abuso sexual e de poder de tamanho inimaginável. Dizer que já não precisamos de feminismo é, no mínimo, nas palavras daquele grande filósofo acidental dos nossos tempos, fake news. Haviam muitos caminhos por onde escolher que filmes iriam fazer parte desta edição. Decidimos que, longe de ir pelo mais simples caminho de dedicar uma edição a filmes realizados exclusivamente por mulheres (possível, interessante, mas não necessariamente um espelho dos feminismos que nos interessam), iríamos fazer um smorgasbord de filmes que apresentam retratos femininos fora do comum. Alguns são marcados pela luta dos géneros (Liga de Mulheres), outros ousam dar voz à experiência feminina, sem desculpas nem justificações (Persépolis). Parte deles nem sequer foram estreados em Portugal. Em suma, a Take Feminismos não é para ser vista como uma tese sobre um tema que, mais uma vez, é inesgotável, mas como aperitivo às vossas próprias explorações cinematográficas. E, como sempre, bons filmes!


PersĂŠpolis, 2007


Lois Weber, 1879-1939


MULHERES ATRÁS DAS CÂMARAS JOÃO BIZARRO

Estados Unidos (1907), produziu mais ou menos 400 curta-metragens (tendo realizado algumas delas).

DOS PRIMÓRDIOS AOS NOSSOS DIAS Desde os primeiros tempos da 7ª arte, há registos de mulheres ligadas à realização, produção e escrita. Antes de a indústria cinematográfica se tornar um grande negócio, as mulheres estiveram ligadas a todos os aspectos da produção.

Já nos Estados Unidos, fundou a sua própria produtora, Solax (191014), onde supervisionou a produção de mais de 300 filmes. Em 1913, Guy-Blanché começou a fazer filmes com uma maior metragem, e terá dirigido cerca de 22 filmes com essas características. Infelizmente, poucos filmes desta produtora/realizadora sobreviveram ao tempo, mas deixou marca em muitos realizadores que vieram a seguir (Alfred Hitchcock) e influenciou muitas mulheres a seguirem uma carreira atrás das câmaras (Barbra Streisand, por exemplo).

Foram pioneiros nomes como Alice Guy Blaché (1878-1968), Lois Weber (1879-1939), Gene Gauntier (1891-1966), Helen Gardner (18851968), Mabel Normand (1894-1930), Cleo Madison (1883-1964), Grace Cunard (1893-1967), Julia Crawford Ivers (1869-1930), Ruth Ann Baldwin (1886-desconhecido), and Dorothy Davenport Reid (1895-1977).

Das curtas-metragens que sobreviveram, destacam-se Algie the Miner (1912), Canned Harmony (1912), The Sewer (1912), Matrimony's Speed Limit (1913) ou A House Divided (1913).

Destes nomes, destacaram-se os seguintes: Alice Guy-Blaché

Lois Weber

Esta pioneira do cinema foi a primeira cineasta a realizar um filme com uma narrativa, e é considerada uma visionária no uso do cronofone de Gaumont. Era secretária de Léon Gaumont e pediu permissão para testar o aparelho num dos filmes que realizou. Em menos de um ano, tornou-se produtora nos estúdios Gaumont e, até à altura em que emigrou para os

Antes de embarcar numa carreira no mundo do cinema, Lois Weber tinha sido uma criança prodígio como pianista. Em 1908, junta-se aos estúdios Gaumont, em New York, onde escreve, 7


Dorothy Arzner, 1900-1979 dirige e interpreta uma série de filmes. De seguida muda-se para Hollywood, onde se torna na realizadora mais bem paga da Universal Studios por volta de 1916. No ano seguinte cria a sua própria produtora e continua a fazer filmes que reflectiam a sua posição perante questões sociais importantes.

A ÉPOCA DOS GRANDES ESTÚDIOS Durante esta altura, as posições na indústria cinematográfica tornaramse especializadas, foram formados os primeiros sindicatos e as decisões criativas eram tomadas pelos produtores, sendo que as mulheres que tinham tirado proveito dos primeiros passos da 7ª arte, foram retiradas de posições de poder e prestígio. Haviam algumas em posições menores, como a edição, por exemplo, mas os postos de realização e produção foram praticamente dizimados. Os tempos em que uma simples secretária podia chegar a realizar um filme tinham terminado.

São exemplos disso Where are my children? (1916), que falava sobre o controlo de natalidade e o aborto; The People vs Joe Doe (1916), sobre a pena de morte; ou Hop, the Devil’s Brew (1916), sobre o consumo de drogas. Nessa altura, muitas mulheres trabalhavam noutros ramos do mundo do cinema. Figurinistas, editoras, set designers, directoras de casting, mas talvez a mais significativa, e que tinha maior número de mulheres, era a carreira de argumentista. Estima-se que nas primeiras duas décadas do século XX e nos primeiros anos da década de trinta, cerca de um quarto dos argumentistas fossem mulheres. Anita Loos (1893-1981), June Mathis (1892-1927), Frances Marion (1887-1973), Jeanie Macpherson (1884-1946), Ida May Park (1879-1954), Bess Meredyth (1890-1969), Elinor Glyn (1864-1943), Lenore Coffee (1897-1984) e Jane Murfin (1893-1955) foram alguns dos nomes importantes nesta área.

Dorothy Arzner (1900-1979), Ida Lupino (1918-1995) e Virginia Van Upp (1902-1970) estavam entre o punhado de mulheres em Hollywood que dirigiram ou produziram durante as décadas de trinta, quarenta ou cinquenta, do século XX. Dorothy Arzener começou em 1919 pela mão de William C. DeMille (irmão de Cecil B. DeMille) que lhe arranjou um emprego como estenógrafa na The Famous Players Film Company, que mais tarde se tornaria na Paramount Pictures. A seguir, chegou a argumentista e editora, com a sua primeira edição a ser no filme Sangue e Areia (Blood and Sand, 1922), com Rudolph Valentino como protagonista. O reconhecimento foi 8


imediato, ao ponto de a Paramount lhe ter dado o cargo de realizadora no filme Fashions for Women (1927), para não a perder para um estúdio rival. Arzener continuou a realizar até 1943, tendo realizado filmes como O Que Faz o Amor (Christopher Strong, 1933) ou Dança Rapariga Dança (Dance Girl Dance, 1940). Ida Lupino ficou mais conhecida como actriz, mas durante a grande época dos estúdios, também chegou a produzir e realizar filmes. A sua estreia na realização dá-se com o filme Not Wanted (1949), que também produz, devido à doença do realizador Elmer Clifton. O mesmo aconteceria com o mais conhecido Cega Paixão (On Dangerous Ground, 1951), substituindo Nicholas Ray quando este adoeceu. Ida Lupino continuou a realizar filmes e séries de TV até 1968, sendo creditada nessa função em perto de 40 títulos. Virginia Van Upp começou como actriz, ainda criança, na altura do cinema mudo, e chegou a produtora executiva nos estúdios Columbia Pictures em 1945. Como produtora, o filme mais conhecido é Gilda (1946), de Charles Vidor, e como argumentista encontramos títulos como Uma Noite em Lisboa (One Night in Lisbon, 1941) ou Um Passado que Revive (Virginia, 1941).

Ida Lupino, 1918-1995

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Maya Deren, 1917-1961

Shirley Clarke, 1917-1997 começou a ganhar força. Isso fez com que o cinema perdesse espectadores e os estúdios passassem a fazer menos filmes. Na década de 60, o studio system, com as suas grandes produções e pessoal contratado a longo prazo, chegou ao fim. Apesar da influência de mulheres atrás das câmaras ter diminuído neste período, ainda apareceram nomes que viriam a marcar as décadas seguintes, como é o caso da belga Agnès Varda, que filmou nesta altura La Pointe Courte (1955) e Cléo From 5 to 7 (1961). Nomes como Shirley Clarke e Ida Lupino continuariam a fazer filmes durante esta década.

AS INDEPENDENTES Durante o boom dos estúdios, ou época dourada, algumas mulheres trabalharam à margem de Hollywood: Maya Deren (1917-1961) foi considerada “a mãe do cinema experimental”. Com a herança do pai comprou a sua primeira máquina de filmar e, com a ajuda do marido, Alexander Hammid, realiza o seu primeiro filme, Armadilhas da Tarde (Meshes of the Afternoon, 1941), uma curtametragem de 14 minutos. Até à sua morte, realizou mais umas curtas e documentários sobre o vudu haitiano. A sua influência continuou a notar-se nas décadas seguintes, tendo o American Film Institute criado o Maya Deren Award em 1986 para premiar cineastas de cinema e vídeo independentes.

Na década seguinte, em 1972, temos o primeiro filme de estúdio realizado por uma senhora após Trouble With Angels (Ida Lupino, 1966). Tratou-se de The Heartbreak Kid e foi realizado por Elaine May. Liliana Cavani, uma realizadora italiana que já vinha a dar cartas desde a década de 60 tem, em 1974, a direcção do filme pelo qual ficou mais conhecida: O Porteiro da Noite (Il portiere di notte, 1974).

Shirley Clarke (1919-1997), em cujos filmes se incluem Skyscraper (1959) e The Cool World (1963), foi uma das primeiras cineastas a ganhar uma bolsa da Fundação de Maya Deren. Foi nomeada ao Óscar de Melhor Curta-Metragem em 1960, por Skyscaper, e venceu o Maya Deren Award em 1989, atribuído pelo American Film Institute.

Os anos 80 trouxeram para a ribalta uma série de mulheres atrás das câmaras. Amy Heckering (Fast Times at Ridgemont High, 1982); Barbra Streisand (Yentl, 1983); Sally Potter (The Gold Diggers, 1983); Susan Seidelman (Desesperadamente à Procura de Susana, 1985); Martha

No final dos anos 40, os estúdios perderam o monopólio e a televisão 10


Kathryn Bigelow, 1951 Coolige (Academia de Génios, 1985); Randa Haines (Filhos de Um Deus Menor, 1986); Penny Marshall (Jumpin’ Jack Flash e Big, 1986 e 1988) e a indiana Mira Nair (Salaam Bombay, 1988).

Os anos 2000 trouxeram a confirmação de algumas destas mulheres, como foi o caso da já referida Kathryn Bigelow, mas também Sofia Copola (O Amor É um Lugar Estranho, 2004 e Marie Antoinette, 2006), Mary Haron, que já tinha realizado Ela Baleou Andy Warhol (1996) e realizou Psicopata Americano, em 2000; Julie Taymor (Frida, 2002 e A Tempestade, 2010); Niki Caro (A Domadora de Baleias, 2002; North Country – Terra Fria, 2005; O Jardim da Esperança, 2017), realizadora que dá muito ênfase à luta pelos direitos das mulheres; Catherine Hardwicke, principalmente por Treze – Inocência Perdida (2003), ela que também realizou o primeiro capítulo da saga Crepúsculo; Patty Jenkins que realizou Monstro (2003), filme que deu o Óscar de Melhor Actriz a Charlize Theron, e em 2017 esteve aos comandos de um blockbuster, Mulher-Maravilha; Tamara Jenkins (Os Selvagens, 2007) e não podia deixar de referir Diablo Cody, uma ex-stripper que se tem destacado na escrita e produção de alguns filmes interessantes, como é o caso de Juno (2007), filme pelo qual viria a conquistar o Óscar de Melhor Argumento.

Na última década do século XX apareceram realizadoras, argumentistas e produtoras que ainda hoje dão cartas no mundo do cinema, como são os casos de Jane Campion (Um Anjo à Minha Mesa, 1990 e O Piano, 1994) e Kathryn Bigelow (Point Break, 1991), que se viria a tornar na primeira mulher a ganhar um Óscar para Melhor Realização e a ver um filme seu vencer na categoria de Melhor Filme, já neste século, com Estado de Guerra (The Hurt Locker, 2008). Mas muitas outras cineastas se destacariam, casos de Barbra Streisand, que viria a receber 7 nomeações para o Óscar pelo filme O Príncipe das Marés (The Prince of Tides, 1991), Penny Marshal com Liga de Mulheres (A League of Their Own, 1992), Nora Ephron realizando Sintonia de Amor (Sleepless in Seattle, 1993), Gillian Armstron com As Mulherzinhas (Little Women, 1994), a holandesa Marleen Gorris, primeira mulher a ver um filme seu ser nomeado para Melhor Filme Estrangeiro (Antonia’s Line, 1995), a indiana Deepa Mehta (Fogo, 1996), Kimberly Peirce (Os Rapazes Não Choram, 1999) e Mimi Leder, realizadora que, a par de Kathryn Bigelow, se celebrizou no cinema de acção (O Pacificador, 1997 e Impacto Profundo, 1998).

Actualmente, as mulheres têm cada vez mais poder e visibilidade no mundo da sétima arte e, a verdade, é que existe cinema de grande qualidade vindo do sector feminino.

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A Guerra dos Tronos, 2011-presente


MULHERES BEM COMPORTADAS RARAMENTE FAZEM HISTÓRIA SARA GALVÃO

Os tempos já não são o que eram. Depois de anos e anos a ver filmes de cowboys contra índios (ou de rebeldes contra o Lado Negro), onde era claro e nítido de que lado é que devíamos estar, parece que o século XXI não se dá bem com dicotomias a preto e branco. De facto, se há uma tendência clara no cinema e, especialmente, na televisão produzidas no pós-11 de Setembro, é o estabelecimento do anti-herói como a personagem mais representativa das complexidades do mundo moderno. Após o ataque às Torres Gémeas — e, sete anos depois, o início de uma crise económica cujas consequências ainda se sentem uma década mais tarde — o zeitgeist mudou consideravelmente. Quando membros da audiência se sentem sem poder sobre as próprias vidas, não podendo confiar em políticos e políticas, e sem quaisquer novos idealismos que os “salvem”, só há duas saídas: a primeira, o velho escapismo, que se manifesta entre nós com os filmes de super-heróis. A segunda, muito mais interessante, é o anti-herói.

recusa ser facilmente categorizado, e não deixa a moral e a ética meteremse no seu caminho (também se pode ver o sucesso do anti-herói como o triunfo de um individualismo de tendência isolacionista). Para este protagonista, os desejos pessoais estão acima das convenções sociais. Pode ser o tornar-se um traficante de droga para pagar tratamentos de saúde, como Walker White em Ruptura Total (Breaking Bad, 20082013); pode ser o assassino em série que se rege por um código de honra e mata outros assassinos, como Dexter na série do mesmo nome (2006-2013); pode ser, simplesmente, o médico anti-social e viciado em Vicodin que é obcecado por puzzles, como Gregory House em Dr. House (House MD, 2004-2012); ou então o político ambicioso que não hesita em fazer todos os possíveis — até matar — para chegar à Casa Branca, como Frank Underwood em House of Cards (2013-presente). De todas as formas, feitios e tamanhos, o anti-herói é tão popular que, se olharmos para os últimos 20 anos de Emmys, veremos os mesmos tipos de personagens ganhar prémios atrás de prémios.

O anti-herói — aqui compreendido como o protagonista que se rege por princípios morais não exactamente recomendáveis, ou como o vilão a quem damos o principal ponto de vista — funciona, ao mesmo tempo, como uma encarnação fiel dos defeitos humanos (e por isso mais facilmente identificável com a audiência) e como um avatar para os nossos desejos de rebelião. Frente a um mundo imperfeito, o anti-herói

Personagens que saem dos moldes tradicionais do herói estão longe de ser um fenómeno recente. Travis Bickle (Taxi Driver, Martin Scorsese, 1976) ou, num extremo controverso, Patrick Bateman (Psicopata Americano/American Psycho, Mary Harron, 2000) mostram que o fascínio — e existência — do anti-herói na sétima arte já vem de longe. 13


Jovem Adulta, 2011 Sempre que o status quo é questionado — quando há incerteza em relação aos valores tradicionais e o indivíduo é confrontado com a modernidade, num ritmo rápido de mudanças culturais e sociais, ou mesmo rupturas — da Segunda Guerra Mundial à Guerra do Vietname, assassinato dos Kennedys, Watergate e, claro está, as constantes recessões económicas, o cinema apressa-se a dar à audiência personagens com tantos tons de cinzento quanto a realidade que os rodeia. A novidade do século XXI vem, contudo, do facto desta tendência se ter estendido à televisão, como parte do chamado renascimento televisivo, iniciado em parte pela HBO com séries como Sete Palmos de Terra (Six Feet Under, 2001-2005) e Os Sopranos (The Sopranos, 1999-2007). As séries televisivas nos canais por cabo, onde os escritores detêm maior poder criativo — há mais tempo para desenvolver personagens e, acima de tudo, a complexidade narrativa e de caracterização tende a ser premiada — são o principal jardim onde os anti-heróis pululam e saltitam. Mais, se antes o anti-herói era uma interrogação frente ao status quo, hoje em dia nem temos a certeza de qual seja, exactamente, o status quo contra o qual nos devemos rebelar.

Men, 2007-2015) é visto pelo seu charme, anti-heroínas como a infame Hannah Horvath (Girls, 2012-2017) são julgadas pelo seu extremo egoísmo e falta de qualidades redentoras (ou elementos atractivos, tanto física como psicologicamente). Para muitos, Freddie Quell em The Master - O Mentor (The Master, Paul Thomas Anderson, 2012) é carismático, enquanto Mavis Gary em Jovem Adulta (Young Adult, Jason Reitman, 2011) é uma cabra. Ao mesmo tempo que julgamos o anti-herói enquanto personagem ficcional complexa (logo, enquanto projecção artística que ganha “pontos” o quão mais perto da realidade se aproxima), a anti-heroína é julgada por não se encaixar dentro da “gaveta” que o espectador atribui a elementos do sexo feminino — uma projecção que raramente admite seja o que for fora das habituais variações entre Virgem/Mãe e Prostituta, e que não permite uma verdadeira tridimensionalidade. Ninguém quer ser amigo do anti-herói, mas não resistimos a sentir-nos atraídos pelo seu carisma, sentido de humor e uma certa vulnerabilidade, mas pergunte-se à maioria da audiência o que pensam de uma anti-heroína tão extrema como Amy Dunne em Em Parte Incerta (Gone Girl, David Fincher, 2014) e as respostas vão ser extremamente divisivas — porque em vez de a considerarem como uma mulher ficcional, ela é vista como representação da totalidade do sexo feminino.

Mas nem sempre anti-heróis são bem-recebidos. Audiências tendem a reagir violentamente — e com extremo preconceito — a um certo tipo de anti-herói em particular: o do sexo feminino. Enquanto Don Draper (Mad 14


Em Parte Incerta, 2014 Curiosamente, a presença de anti-heroínas no grande ecrã já teve uma Idade de Ouro — os anos 30, pouco antes do estabelecimento do Código Hays, e que cresceu até nos dar o ícone inesquecível da Scarlett O’Hara em E Tudo o Vento Levou (Gone with the Wind, 1939, Victor Fleming). Mas há outras anti-heroínas na época, desde todos os filmes pré-Código da Mae West, até A Divorciada (The Divorcee, Robert Z. Leonard, 1930), sobre uma mulher que se divorcia após a traição do marido e resolve divertir-se (papel que deu o Óscar de Melhor Actriz a Norma Shearer), A Mulher que nos Perde (Baby Face, Alfred E. Green, 1933), onde Barbara Stanwyck sobe de estatuto social através da sua carinha laroca), Rainha Cristina (Queen Christina, Rouben Mamoulian, 1933), com Greta Garbo, sobre a Rainha Sueca que se vestia como homem e coleccionava amantes) e Uma Mulher Para Dois (Design For Living, Ernst Lubitch, 1933), no qual Miriam Hopkins decide viver com dois artistas — Gary Cooper e Fredric March e obrigá-los a criar. Com o estabelecimento do código de censura — sem surpresas —, os protagonistas masculinos continuam a poder ser vistos como bons e maus ao mesmo tempo, mas as femininas são reduzidas apenas a um lado do espectro.

da esfera doméstica para o mercado de trabalho enquanto os homens foram para a guerra, e que agora se recusavam a voltar para a cozinha), a femme fatale é, apesar de tudo, uma personagem secundária, a “muleta” — ou mesmo antagonista — do anti-herói do noir, que, qual Lady Macbeth, seduz o protagonista para o caminho do mal. Reduzida à esfera da sexualidade, a femme fatale seria ressuscitada para o neo-noir dos anos 80 e 90, aqui como vilãs de facto, em personagens tão memoráveis como Matty Walker (Noites Escaldantes/Body Heat, Lawrence Kasdan, 1981), Alex Forrest (Atracção Fatal/Fatal Attraction, Adrian Lyne, 1987) e Catherine Tramell (Instinto Fatal/Basic Instinct, Paul Verhoven, 1992). Sem uma corrente reconhecível por si, exemplos de anti-heroínas foram aparecendo aqui e ali durante as décadas seguintes. Com os anos 60 e o Novo Hollywood, em 1967 é-nos presenteado o casal de anti-heróis mais famoso do cinema — Bonnie e Clyde. O filme de Arthur Penn daria origem a filmes de temas semelhantes, desde Amor à Queima-Roupa (True Romance, Tony Scott, 1993), Assassinos Natos (Natural Born Killers, Oliver Stone, 1994) e, mais recentemente, a série The End of the F*cking World (2017-presente). Parte de um casal, a anti-heroína parece mais “recomendável” — não há nada mais socialmente aceite do que um casal heterossexual, afinal de contas, mesmo que roubem bancos — e estabelecerá um trope que é muitas vezes utilizado para justificar

O que nos leva a uma das mais interessantes e famosas precursoras da anti-heroína moderna: a femme fatale. Produto dos receios pós-guerra em relação ao novo poder feminino (fruto das mulheres terem saído 15


Exterminador Implacável 2: O Dia do Julgamento, 1991

Monstro, 2003

a existência da anti-heroína (e que a dilui, de certa forma) — The Man Who Made Her Do It. Do mesmo trope, surgem também famosos filmes de vingança, como Audição (Ôdishon, Takashi Miike, 1999), Hard Candy (David Slade, 2005), Mulher Violada (I Spit on Your Grave, Meir Zarchi, 1978), Kill Bill Vol. 1 e 2, (Quentin Tarantino, 2003-4), Prevenge (Alice Lowe, 2016) e, mais tangencialmente, Carrie (Brian de Palma, 1976).

Woman, Patty Jenkins, 2017) talvez esteja para breve. Nos anos 90 — das Riot Grrrl e Spice Girls — temos filmes que glorificam culturas alternativas — como Tank Girl - Uma Mulher de Armas (Tank Girl, Rachel Talalay, 1995) — e um rol imenso de filmes sobre bruxaria, iniciado, aparentemente, por As Bruxas de Eastwick (The Witches of Eastwick, George Miller, 1987), seguido de O Feitiço (The Craft, Andrew Fleming, 1996), Três Bruxas Loucas (Hocus Pocus, Kenny Ortega, 1993), e a série As Feiticeiras/Charmed (1998-2006). Parece que, após os julgamentos de Salem, há uma tentativa de tornar a figura da bruxa (algo nocivo e associado à maldade feminina) numa figura agradável — sim, há artes mágicas e glorificação das amizades adolescentes femininas, mas tirando a ocasional personagem secundária, é difícil encontrar verdadeiras anti-heroínas aqui.

Surgida nos anos 80, a heroína de acção tradicional — Ripley em Alien - O 8.º Passageiro (Alien, Ridley Scott 1979) e Sarah Connor em O Exterminador Implacável (The Terminator, 1984, James Cameron) — também irá evoluir para uma protagonista feminina que, longe — e livre — da busca da sobrevivência das suas antecessoras, não hesita em destruir percepções habituais de inocência ao pegar em armas — Matilda, em Léon, o Profissional (Léon, 1994, Luc Besson) —, dizer palavrões — Hit Girl em Kick Ass - O Novo Super-Herói (Kick Ass, Matthew Vaughn, 2010) —, ou ser o equivalente, womanising incluído, de James Bond — Lorraine em Atomic Blonde - Agente Especial (Atomic Blonde, David Leitch, 2017). Vindas da banda desenhada — Catwoman (DC), Harley Quinn (Marvel) e Red Sonja (Dynamite Entertainment) —, começam também a sair das cascas no grande ecrã, embora ainda hoje estejamos à espera de uma adaptação que faça jus às suas personalidades controversas, o que, após o sucesso da “boazinha” Diana em Mulher Maravilha (Wonder

No início do século XXI, com o genial Monstro (Monster, 2003, Patty Jenkins) a dar o mote, a anti-heroína tenta lentamente infiltrar-se no mainstream, do extremo sobrenatural e do horror — Dentes (Teeth, Mitchell Lichtenstein, 2007), Deixa-me Entrar (Låt den rätte komma in, Tomas Alfredson, 2008), Uma Rapariga Regressa de Noite Sozinha a Casa (A Girl Walks Home Alone at Night, Ana Lily Amirpour, 2014), Raw (Grave, Julie Ducournau, 2016), Thelma (Joachim Trier, 2017) —, 16


Ninfomaníaca - Partes 1 e 2, 2013 passando pelo velho conto de ambição — Cisne Negro (Black Swan, Darren Aronofsky, 2010), Eu, Tonya (I, Tonya, Craig Gillespie, 2017), Em Parte Incerta —, a mulher que utiliza a sexualidade em proveito e prazer próprio — Ninfomaníaca - Partes 1 e 2 (Nymphomaniac: Vols. I & 2, Lars Von Trier, 2013), A Criada (The Handmaiden/Ah-ga-ssi, Chan-wook Park, 2016) — até a uma anti-heroína mais subtil — a mulher como pessoa com defeitos, vista em filmes como Ingrid Goes West (Matt Spicer, 2017), Jovem Adulta (Young Adult, Jason Reitman, 2011), Colossal (Nacho Vigalondo, 2016) e Frances Ha (Noah Baumbach, 2012).

personagens completamente obcecadas por si próprias e antipáticas” (Garrett Martin, Paste Magazine). Ou Em Parte Incerta (87% no Rotten Tomatoes) — “É Fincher sexista? Não. Penso que não. Será que Em Parte Incerta pode apelar e ajudar a crescer uma certa tendência social para justificar a ideia de mulheres como ameaças? Absolutamente.” (Lesley Coffin, The Mary Sue). Porque é que não conseguimos ver a anti-heroína nos mesmos termos que o seu contraponto masculino? Há duas razões principais — e felizmente, como podemos ver da crescente recepção positiva à lufada de ar fresco trazida por este de tipo de personagens — ambas estão em transformação.

Será que a recusa em aceitar anti-heroínas continua, apesar da crescente presença na sétima arte? Olhemos para a resposta da crítica. No filme de 2013 de David Wnendt, Zonas Húmidas (Feuchtgebiete), Helen Memel, a protagonista, é tudo o que uma mulher não “deve” ser: porca, lasciva, mal-educada, rebelde. Que disseram os críticos? Apesar dos 90% no Rotten Tomatoes (no IMDB não chega às 6 estrelas), há linhas como “cansei-me do incessante narcisismo, ingenuidade e até irresponsabilidade da Helen” (Robert Roten — que também acrescenta, desnecessariamente, “Carla Juri é jeitosinha de se olhar”). Sobre a primeira temporada de Girls (novamente, 95% no Rotten Tomatoes) — “A voz inteligente e idiossincrática de Dunham funcionaria provavelmente melhor na página do que no ecrã, sem pessoas reais a encarnar as suas

A primeira, já levemente referida, é de carácter social. É difícil para uma audiência aceitar a anti-heroína no grande (e pequeno) ecrã porque não consegue aceitar a existência de anti-heroínas na vida real. As mulheres são socializadas para serem maternais, protectoras da esfera doméstica, cuidadosas, submissas. Quando confrontados por uma personagem feminina que foge a estes parâmetros — pior, se rebela contra eles — a audiência não sabe bem o que fazer. No caso de Em Parte Incerta, a caracterização imperfeita de uma 17


Girls, 2012-2017

Fleabag, 2016-presente

personagem foi vista, à vez, como antifeminista ou feminista. De repente, o filme deixa de ser uma dramatização/ficção e passa a ser uma arena para se discutirem políticas de género. Como uma mulher, em ficção, tem de ser alguém de quem se queira ser amigo, ou com quem se queira ter uma relação, ou com quem se possa praticar os eternos pecados da luxúria, falhando todas as três, personagens como Amy Dunne são criticadas por aquilo que as torna interessantes do ponto de vista dramatúrgico — o serem seres humanos complexos com defeitos mais do que visíveis.

percentagem diminuta dentro de outra percentagem já de si minúscula. E quantas vezes não há filmes com uma anti-heroína clara — como Lisbeth Salander em Millenium 1: Os Homens que Odeiam as Mulheres (The Girl with the Dragon Tattoo, 2011, David Fincher) — que, no final do filme, são “domesticadas” e colocadas em segundo plano face ao protagonista masculino? Pode-se atribuir tudo, claro está, à parca representação feminina atrás das câmaras e nas histórias que são contadas em Hollywood. É um bode de expiação simples, já que não tem uma solução rápida. Mas talvez a velha desculpa tenha um grande fundo de verdade. Em televisão, onde curiosamente a anti-heroína está a chegar em força, mulheres com falhas são mais facilmente aceites em comédias — Crazy Ex-Girlfriend (2015-presente), O Bom Lugar (The Good Place, 2016-presente), Nurse Jackie (2009-2015), Erva (Weeds, 2005-2012), UnReal (2015-presente), Uma Vida Nova (Enlightened, 2011-2013), Fleabag (2016-presente), Divorce (2016-presente), Insecure ((2016-presente) — e fazem lentamente a sua entrada e estadia em drama — além da já referida Carrie Underwood, temos também Segurança Nacional (Homeland, 2011-presente), The Americans (2013-presente), Como Defender um Assassino (How to Get Away with Murder, 2014-presente), The Girlfriend Experience (2016-presente), Guerra dos Tronos (Game of Thrones,

A segunda razão — bastante óbvia também — é que ainda não há filmes suficientes com protagonistas femininas (apenas cerca de 12% da produção de 2015, por exemplo) e, quando eles existem, tendem a cair dentro de velhas categorias que fogem de verdadeira controvérsia. Mulheres protagonistas ou estão à procura de amor, ou são heroínas de acção (tanto femininas — como a Mulher Maravilha — como masculinizadas — como a Imperatriz Furiosa em Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max Fury Road, George Miller, 2015), ou então o que os recônditos escuros da internet chamam de Mary Sues — mulheres que são aparentemente tão boas em tudo o que fazem que geralmente fazem parte de filmes de fantasia — como Hermione Granger (Harry Potter) e Rey (Star Wars). Filmes sobre anti-heroínas são, portanto, uma 18


Como Defender um Assassino, 2014-presente

House of Cards, 2013-presente

2011-presente), Jessica Jones (2015-presente) e, mais recentemente e já cancelada, I Love Dick (2016-2017). A maior parte destas séries tem mulheres guionistas e/ou criadoras — o que mostra que o problema de representação de um maior espectro de personagens femininos talvez possa ser resolvido ao deixar-se as mulheres falarem de si próprias, por si próprias. As guionistas em si, que estão muitas vezes longe de ser mulheres ditas tradicionais (veja-se a carreira de Diablo Cody, por exemplo), escrevem a partir da sua própria experiência, ou, muitas vezes, como grito de desespero contra os papéis femininos convencionais (para uma pequena amostra do que isso significa, ver o famoso Tumblr Lady Parts). Curiosamente, no caso de House of Cards, parece que os tempos fizeram já a sua marca. Enquanto na primeira temporada, Frank era claramente o protagonista, nas temporadas seguintes — e claramente na ainda por vir, se bem que mais por factores externos do que por decisão puramente criativa — Claire se torna a verdadeira pessoa de interesse da série.

ecrã, humanos com falhas, que não são construídos em função do Outro/Homem. Identificação com personagens que mostram ambição, mau-comportamento ou desdém pelas normas sociais darão a 51% da população mundial os seus Travis Bickles, Patrick Batemans e Darth Vaders, alargando a definição do que uma mulher pode ser, tanto para olhos femininos como masculinos. Resumindo: personagens completamente boas ou más não servem o novo século. Com o crescimento da internet e das redes sociais, todos os heróis têm pés de barro. Negar às personagens femininas as nuances negativas das personagens masculinas é recusar a criação de personagens femininas que interessem e atraiam as audiências modernas. A audiência feminina precisa tanto de heroínas como de vilãs. A anti-heroína dá-nos ambos.

Quando personagens femininas controversas deixarem de ser a excepção e começarem a ser vistas como projeções artísticas da realidade, tal qual os seus equivalentes masculinos, teremos finalmente chegado à verdadeira igualdade de representação de género. A audiência feminina terá finalmente retratos fiéis no pequeno e grande 19


Kill Bill - A Vinganรงa (vol. 1), 2003


REVENGE MOVIES FILMES QUE SE SERVEM FRIOS PEDRO SOARES

O mundo do Cinema sempre foi tradicionalmente um universo masculino. Se atrás das câmaras só em 1914 uma mulher se sentaria na cadeira de realizador (Lois Weber realizava então O Mercador de Veneza), à frente delas a figura feminina sempre foi altamente estereotipada, representando essencialmente a figura de mãe, esposa ou dona de casa, ou a de frágil mocinha raptada pelo vilão que o herói necessita resgatar.

É certo que nada disto é novidade, e encontramos ao longo da história da literatura vários exemplos desta fórmula, desde o folhetim de Alexandre Dumas, O Conde de Monte Cristo, ao livro-choque de Boris Vian, Irei Cuspir-vos nos Túmulos. No entanto, foi na Sétima Arte que as mulheres ganharam lugar de protagonismo. Nos anos 70, com o boom dos exploitation movies, um subgénero destes filmes de vingança ganha particular predominância: os rape and revenge movies (que, em tradução livre, será algo como filmes de violação e vingança).

Com o desenvolvimento e o estabelecimento do star system, as mulheres passam a ter outra dimensão, mas na maior parte dos casos o seu papel é sempre objectificado, tendência que se acentua a partir do pós-Primeira Guerra Mundial, com a introdução das primeiras noções de erotismo no grande ecrã. Trivialidade: em 1915, Audrey Munson aparece pela primeira vez nua num filme. Neste caso, em Inspiration.

Um dos títulos que cristaliza o filme de vingança feminino é, sem dúvida, o díptico Kill Bill – A Vingança. Aliás, o próprio Quentin Tarantino voltaria a homenagear as mulheres com À Prova de Morte, apenas três anos depois. Kill Bill é um épico do género, em que uma mulher, espancada no altar no dia do casamento, escapa à morte certa e regressa de um coma para ajustar contas com os seus atacantes. Uma das diferenças do filme de Tarantino com outros semelhantes é que, neste caso, os seus inimigos não são todos homens.

No entanto, existe um género que vai inverter esses papéis tradicionais de género. Os filmes de vingança normalmente trazem a mulher para o papel de (anti)herói, assumindo os destinos da sua vida e vingando-se do homem castrador que lhe provocou mal. Essa diferente perspectiva de ascendente pode ser vista como uma primeira tendência de feminismo no Cinema, da mesma forma que os filmes de Russ Meyer, em que, apesar da clara objetificação do corpo da mulher, estas são sempre as heroínas da contenda.

Por exemplo, em A Noiva Estava de Luto, clássico de François Truffaut que foi uma das principais influências de Tarantino para Kill Bill, a heroína do filme, interpretada por Jeanne Moreau, persegue e assassina os cinco homens que executaram o seu marido no dia do seu casamento. Tal como 21


Lady Snowblood: Vingança na Neve, 1973 Uma Thurman, também aqui a figura da noiva ganha uma conotação simbólica completamente inversa do habitual: a virgindade e a pureza do branco contrastada pelo negro do luto.

bastante particular. Com o objectivo de fazer “o maior filme comercial de todos os tempos” e de recuperar todo o dinheiro que já tinha perdido no Cinema, o realizador Bo Arne Vibenius misturou o rape and revenge movie com o pornográfico, aproveitando a legalização e popularidade que esse género atravessava na Escandinávia no início dos anos 70. O resultado é um dos filmes mais estranhos jamais feitos.

Outro filme em que o branco é simbolicamente tingido pelo vermelho do sangue é Lady Snowblood, do japonês Toshiya Fujita, outra das influências assumidas de Quentin Tarantino. Um dos principais confrontos do filme ocorre no meio de um nevão, com a alvura da neve a ser manchada pelo vermelho do sangue das vítimas da heroína.

Nos últimos tempos, a história do filme de vingança feminino tem vindo a ganhar cada vez mais episódios, à medida que a emancipação da mulher se foi consolidando no mundo ocidental. E com isso foi também ganhando em variações. Desde os mais conservadores, como Thelma e Louise, de Ridley Scott, aos mais assumidamente exploitation, como Vingança de uma Mulher, de Abel Ferrara, são muitos os exemplos. No entanto, nenhum deles teve o impacto de Hard Candy.

Lady Snowblood também é uma espécie de variação do subgénero do rape and revenge movie, já que aqui não é a heroína que é violada, mas sim a sua mãe. No entanto, ela passa a sua vida a preparar-se para vingar a progenitora. Esta variação é, aliás, uma das fórmulas mais antigas do filme de vingança. Já em A Fonte da Virgem, de Ingmar Bergman, em 1960, eram os pais que se vingavam dos violadores e assassinos da filha. E esse filme inspiraria ainda vários outros títulos, desde o clássico do gore de Wes Craven, The Last House of the Left, até ao mais ou menos esquecido filme português A Caçada do Malhadeiro.

No filme de David Slade são os papéis da tradicional fábula infantil do Capuchinho Vermelho que são invertidos. O Lobo Mau torna-se na presa, e a inocente Capuchinho (uma espécie de anti-Lolita) transforma-se no predador. Hard Candy é ainda uma interessante reflexão sobre a pedofilia e a violência de género.

Contudo, é em Thriller - A Cruel Picture que a vítima torna-se simultaneamente vingadora. A história deste filme de culto sueco é 22


Numa altura em que o papel da mulher parece estar a mudar decisivamente no seio da indústria, com as denúncias de assédio de Harvey Weinstein, Bill Cosby ou Louis CK, veremos como é que isso irá (será que irá?) influenciar os próprios filmes. Até lá, teremos sempre os filmes de vingança, aquele prato que se serve frio.

Hard Candy, 2005

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A LUTA CONTINUA


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Título nacional: Ela Baleou Andy Warhol Realização: Mary Harron

I SHOT ANDY WARHOL

Elenco: Lili Taylor, Jared Harris, Martha Plimpton, Stephen Dorff Ano: 1996

ANTÓNIO ARAÚJO

Em 1967, Valerie Solanas auto-publicou o SCUM Manifesto, um manifesto feminista radical que defende a ideia que os homens arruinaram o mundo e que cabe às mulheres resolver o problema, derrubando a sociedade existente e eliminando o género masculino. Esta obra foi pouco lida até que, em 1968, chamou a atenção do público. As opiniões sobre a sua validade dividiram-se, como sempre, mesmo no seio do movimento feminista. Houve quem defendesse Solanas e o seu texto, e houve quem o achasse demasiado radical e polarizador. Houve até quem achasse a obra, apesar de baseada em legítimas preocupações filosóficas e sociais, um bem sucedido exercício satírico. Ah!, e porque é que a obra de Valerie Solanas finalmente chamou a atenção do público em 1968? Porque esse foi o ano em que ela baleou e tentou matar Andy Warhol.

montagem inicial para nos dar a conhecer a adolescência atribulada de Valerie, momento em que revelou uma invulgar inteligência e uma visão muito particular do mundo, bem como uma excepcional capacidade para a escrita, completando mais tarde uma licenciatura em Psicologia na Universidade de Maryland. Percebendo a sua aversão ao sexo oposto — Valerie gosta de realçar amiúde que o cromossoma Y é uma versão incompleta do cromossoma X — e uma preferência sexual pelo mesmo sexo, rapidamente deixa transparecer as suas visões radicais sobre questões de identidade sexual e género. Dado que o mundo é governado desde sempre pelo patriarcado, é natural que Valerie renegue também qualquer visão conformada de comportamento social, recusando-se a trabalhar em troco de dinheiro, prostituindo-se ocasionalmente ou mendigando para sobreviver.

Inicialmente planeado como um documentário para a BBC, Ela Baleou Andy Warhol acabou por ser a estreia na realização de longas-metragens da canadiana Mary Harron (que mais tarde elevaria o romance Psicopata Americano de Bret Easton Ellis a uma brilhante adaptação cinematográfica), tendo também escrito o argumento em colaboração com Daniel Minahan — um veterano escritor e realizador televisivo norteamericano. Contando com um elenco recheado de actores como Jared Harris, no papel de Andy Warhol, Martha Plimpton, como Stevie, uma amiga de Valerie, ou Stephen Dorff, praticamente irreconhecível como a superestrela da trupe da Factory, Candy Darling, a narrativa, no entanto, foca-se implacavelmente em Lili Taylor que arrancou uma destemida interpretação no seu retrato de Valerie Solanas que lhe valeria o reconhecimento numa série de festivais, incluindo o Festival de Cinema de Estocolmo, o Festival Internacional de Cinema de Seattle e o Festival de Cinema de Sundance.

O destino coloca Valerie no caminho de dois homens que vem a encarar como duas possibilidades para chegar a um público mais alargado no sentido de atingir o seu objectivo de recrutar um exército feminista para a sua causa: o editor da Olympia Press, Maurice Girondias, e o famosíssimo artista Andy Warhol. Perante a relativa indiferença de Warhol em produzir uma peça subversiva da sua autoria, e depois de assinar um contrato pouco benéfico com Girondias, a obsessão da escritora intensifica-se, culpando os dois homens de se quererem aproveitar do seu trabalho, roubando-o. Alienando tanto amigos como detractores, Valerie atinge o ponto de ruptura, baleando o crítico de arte Mario Amaya e Warhol, que nunca viria a recuperar do incidente, tanto fisica como emocionalmente, vivendo o resto da sua vida em permanente sobressalto. Diagnosticada com esquizofrenia paranóide, Valerie serviu três anos de prisão, incluindo tratamento num hospital psiquiátrico, e veio a falecer de pneumonia em 1988, sendo hoje em dia considerada um símbolo do movimento feminista.

Funcionando como uma analepse a partir do momento imediatamente posterior ao atentado à vida de Warhol, Harron encena uma eficiente 27


JEANNE DIELMAN, 23, QUAI DU COMMERCE, 1080 BRUXELLES

Título nacional: Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles Realização: Chantal Akerman Elenco: Delphine Seyrig, Jan Decorte, Henri Storck Ano: 1975

JOÃO PAULO COSTA

Se Chantal Akerman (realizadora belga que nos deixou em 2015) se tornou numa das mais reconhecidas autoras cinematográficas europeias, Jeanne Dielman, 23, quai du commerce, 1080 Bruxelles será provavelmente a sua obra-prima — um estudo paciente e desesperante sobre uma mulher viúva que passa os seus dias praticamente sozinha a tratar, de forma rotineira, das tarefas domésticas, seja arrumando as coisas do filho adolescente, cozinhando, indo às compras ou atendendo homens em casa a quem vende o corpo, que depois lava meticulosamente após cada sessão de sexo.

centro das atenções. Delphine Seyrig, nome maior da cinematografia francesa, faz da sua protagonista um autêntico enigma cujo desespero se vai revelando de forma muito subtil nas ligeiras quebras de rotina a que vamos assistindo. Akerman, por seu turno, é genial na forma como filma a sua maravilhosa actriz aprisionada dentro do apartamento (todo o “jogo” que cria com o acender e apagar de luzes em casa roça o doentio) e, mesmo quando lhe permite sair para o exterior, nunca passa propriamente a sensação de liberdade, mas sim de novas formas de sufoco que se vão acumulando de forma quase despercebida mas implacável até culminar na única forma de libertação possível.

Muito longe de qualquer espécie de compromisso com o público, Jeanne Dielman assume de forma obsessiva as rotinas da sua protagonista e, durante três horas e meia de duração, o espectador é quase como que hipnotizado pelos seus banais afazeres diários ilustrados em planos estáticos, praticamente sem diálogos, que tornam as suas acções no

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Título nacional: As Sufragistas Realização: Sarah Gavron

SUFFRAGETTE

Elenco: Carey Mulligan, Helena Bonham Carter, Merly Streep, Ben Whishaw Ano: 2015

DIANA MARTINS

Quando só em 2018 é que as mulheres na Arábia Saudita irão ter carta de condução e, consequentemente, conduzir, filmes como As Sufragistas são fulcrais para a sociedade não esquecer lutas ou apagar realidades, tão absorvida que se torna em temas mundanos e superficiais.

Emmeline Pankhurst, interpretada por Meryl Streep. E se é verdade que o filme está cheio de lugares comuns, personagens que poderiam ser mais desenvolvidas e menos empáticas ao público, também é verdade que este filme pretendia ser um exercício de massas, um despertar de consciência moral e ética, para que todos saibamos o que são lutas, o que foram lutas, e o que há ainda por lutar.

O filme passa-se em 1912, num cenário em que os homens protestam contra o direito ao voto das mulheres, seres ainda considerados inferiores, sem direito à guarda dos filhos ou a administrar os seus bens, e privadas de sufrágio. As mulheres fazem protestos pacíficos, greves de fome, mas sem verdadeiramente conseguirem alterar nada.

Porque nunca é demais relembrar o que foi necessário à conquista do voto feminino em Inglaterra, com restrições em 1918, e finalmente aberto a todas as mulheres em 1928. Em Portugal, apenas em 1968 seria publicada a Lei que viria remover do direito ao voto qualquer discriminação em função do sexo.

No centro da narrativa temos Maud Watts (Carey Mulligan), uma mulher da classe operária, sem qualquer inclinação política. Num contexto laboral em que é oprimida e maltratada, Maud junta-se assim ao movimento da União Nacional pelo Sufrágio Feminino, na figura de

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BORN IN FLAMES

BEND IT LIKE BECKHAM

SARA GALVÃO

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Num futuro pouco distante, dez anos após uma revolução socialista pacífica nos Estados Unidos, os direitos das minorias — de género, orientação sexual e raça — estão longe de ser resolvidos. Fartas de esperarem pela mudança que não parece vir, um grupo de mulheres organiza um exército e prepara-se para tomar pela força o que sempre lhes fora recusado. A distopia de Lizzie Borden, cheia de cameos, nada tem de ficção científica ou fantasia — o mundo é como sempre foi, e Born in Flames, tirando a história secundária da revolução socialista, bem que poderia passar por um documentário em certos momentos. Infelizmente ainda bastante relevante e actual, este clássico do cinema feminista merecia decerto ser mais conhecido fora do mundo anglosaxónico.

Sempre com muito de autobiográfico, a autora Gurinder Chadha escreve e realiza habitualmente filmes que lidam com a diáspora indiana e o choque entre a cultura sikh – de que provém – e a Inglaterra. Foi o que fez no piscar de olhos ao mundo do futebol em Joga como Beckham que, pasmemo-nos, mostra uma rapariga que sonha jogar futebol a sério, contra o tradicionalismo da família que apenas quer que ela não seja falada pela comunidade. Pelo meio mostra-se algum futebol, falase da seriedade do futebol feminino, roçam-se os preconceitos com a homossexualidade feminina e o papel da família. Mas tudo isto sem ferir nem provocar. Sempre com boa disposição, o caricato de situações de telenovela, a cor e a música da Índia, e muitos sorrisos que levam ao esperado final feliz onde todos ficam amigos.

Título nacional: Born in Flames (1983)

Título nacional: Joga como Beckham (2002)

Realização: Lizzie Borden

Realização: Gurinder Chadha

Elenco: Honey, Adele Bertei, Jean Satterfield

Elenco: Parminder Nagra, Keira Knightley, Jonathan Rhys Meyers

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IN A WORLD…

A LEAGUE OF THEIR OWN

RUI ALVES DE SOUSA

SARA GALVÃO

In a World… é uma comédia sem pretensões de maior, que é não só uma homenagem a Don LaFontaine (a voz dos trailers que eternizou a expressão que intitula o filme), como também uma curiosa abordagem ao conflito entre pais e filhos quando o mercado de trabalho também se mete ao barulho. Lake Bell lança um olhar bastante pertinente e pormenorizado ao mundo das pessoas que fazem da sua voz o seu instrumento de trabalho. Nesta sua primeira longa-metragem, a realizadora e protagonista dá a conhecer o mundo da locução de uma forma satírica e divertida — e aproveita, ao mesmo tempo, para apontar algumas ideias interessantes sobre o papel das mulheres nesse meio e sobre o mais americano dos temas cinematográficos: a demanda pela concretização de um sonho.

Quando todos os jogadores de baseball foram combater na Segunda Guerra Mundial, uma liga feminina foi formada. Dottie Hinson (Davis) e a irmã Kit (Petty), de Oregon, são descobertas e levadas para Chicago para jogarem pelas Peaches, treinadas pela ex-estrela Jimmy Hugan (Tom Hanks), que passa metade da temporada demasiado bêbado para reparar no talento das suas jogadoras. Liga de Mulheres não se acanha de mostrar o sexismo que estas primeiras jogadoras sofreram quando começaram a pisar os campos habitualmente pisados por homens, e antevê como as coisas mudariam para o sexo feminino no pós-guerra — apesar de não fazer juízos de maior sobre aquelas que preferiram a vida familiar ao brilho dos holofotes desportivos. Um raro filme desportivo que aquece o coração e a alma.

Título nacional: In a World… (2013)

Título nacional: Liga de Mulheres (1992)

Realização: Lake Bell

Realização: Penny Marshall

Elenco: JLake Bell, Fred Melamed, Michaela Watkins, Rob Corddry

Elenco: Geena Davis, Lori Petty, Tom Hanks

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MULHERES DE FORÇA


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Título nacional: A Paixão de Joana d'Arc Realização: Carl Theodor Dreyer

LA PASSION DE JEANNE D’ARC

Elenco: Renée Falconetti, Eugene Silvain, André Berley Ano: 1928

RUI ALVES DE SOUSA

Num certo dia do ano de 1431, o Tribunal do Santo Ofício de Rouen, na Normandia, procedeu ao julgamento de uma pobre camponesa que foi muito falada entre todos os estratos sociais da época. Acusada de heresia, Joana d'Arc acabou por ser condenada à morte pela igreja católica. E qual foi o crime gravíssimo que ela cometeu para receber tamanha sentença do clero daquele tempo? Apenas afirmou ter tido algumas visões sagradas, em que Deus lhe contou que ela seria a sua enviada para salvar o mundo. Bastou isso para que se tornasse numa figura controversa: ela falaria a sério ou seria simplesmente louca? A Inquisição, para não haver dúvidas (ou alguma concorrência ao seu negócio), preferiu não tomar meias medidas e, como já sabemos, passou de imediato à acção. Depois disso, a história de Joana d'Arc elevou-a ao estatuto de lenda. E por mais que a História possa ainda ser susceptível a intensos debates na actualidade, uma coisa é certa: foi graças a tudo isto que se possibilitou a criação de uma das obras fundamentais do século XX. O realizador dinamarquês Carl Theodor Dreyer decidiu fazer uma adaptação ao grande ecrã que, na altura da sua estreia, foi bastante criticada e desprezada. Mas com o passar dos anos, tornar-se-ia num marco da História do cinema e, também, numa presença assídua em todas as listas que elegem os melhores filmes de todos os tempos.

de cinema que são verdadeiramente comoventes e indescritíveis, tal é a sua grandeza visual e emocional. Dreyer não nos dá uma resposta quanto à sanidade de Joana d'Arc, mas o olhar de Falconetti quase nos faz acreditar que, de facto, aquela camponesa poderia ter sido mesmo uma mensageira divina que o mundo não compreendeu. Nunca, nem antes nem depois, o cinema voltou a ter um rosto tão inesquecível como o desta actriz, que nos consegue captar de uma forma tão pouco vulgar. No ano em que A Paixão de Joana d'Arc foi lançado em França, o cinema mudo começava a ser visto como uma relíquia do passado. Já os talkies tinham entrado em força e rapidamente o resto do mundo seguiria o mesmo caminho. No entanto, um filme como este só poderia ser feito assim, com tão portentosas sequências onde o elemento mais significativo ou o mais simples pormenor se convertem numa série de planos magníficos, em que os olhares e os gestos ganham uma importância fundamental perante qualquer elemento sonoro que pudesse ser acrescentado a posteriori. Dreyer mostra, aliás, como o cinema mudo poderia ter um poder realmente especial, inalcançável com as distrações do sonoro. E a prova maior é que, 90 anos depois, e com tantas outras variações cinematográficas da mesma história (para além do exemplo americano citado, também Robert Bresson viria a adaptar o julgamento num outro filme, mais austero e factual, em 1962), A Paixão de Joana d'Arc não perdeu nenhum fulgor. Mas a escolher alguma banda sonora para o visionamento, recomenda-se a composição Voices of Light, de Richard Einhorn, que faz uma óptima junção às imagens de Dreyer.

A Paixão de Joana d'Arc recria os acontecimentos que levaram à morte da acusada sem nunca precisar de contar toda a história que antecedeu o julgamento — ao contrário do que fez Victor Fleming no drama biográfico protagonizado por Ingrid Bergman, filmado precisamente duas décadas depois do filme de Dreyer. Focando-se apenas nos vários aspectos da audiência, e retirando de cada plano toda a força sensorial possível, o realizador de Ordet (uma outra obra que lida mais a fundo com as questões da crença) conseguiu criar uma obra-prima intemporal que tem uma das interpretações mais belas já inseridas num filme: Renée Falconetti é totalmente Joana d'Arc, protagonizando momentos 35


Título nacional: Mad Max: Estrada da Fúria Realização: George Miller

MAD MAX: FURY ROAD

Elenco: Tom Hardy, Charlize Theron, Nicholas Hoult Ano: 2015

HÉLDER ALMEIDA

Mad Max está de regresso, tentando ajudar um grupo de mulheres a fugirem do seu tirano “dono”. Uma premissa simples mas que, surpreendentemente, dá origem a um dos filmes mais frenéticos e imparáveis dos últimos anos.

O que torna Estrada da Fúria num objecto tão especial e único? A sua quase interminável e nunca cansativa dose de acção, num filme que é uma perseguição de duas horas que oferece pouco tempo para recuperar o fôlego. Recheado de efeitos práticos e com um fenomenal trabalho de duplos e com um ritmo alucinante e frenético, Miller cria um exemplo perfeito do cinema de acção, dando ainda o devido destaque às suas personagens e à história. No meio ainda somos presenteados com uma bela fotografia e uma boa banda-sonora por parte de Junkie XL.

Para este quarto capítulo da saga, substitui-se Mel Gibson por Tom Hardy que, como já se sabe, é um excelente actor, conseguindo aqui prestar homenagem ao actor original ao mesmo tempo que torna a personagem sua. No entanto, é ofuscado por Charlize Theron, com a sua fabulosa Furiosa, numa personagem feminina forte e verdadeiramente kick-ass! George Miller, o criador da saga, regressa a este mundo pós-apocalíptico, deixando de lado os filmes para a família (Happy Feet), provando que ainda tem a loucura e o talento necessários para continuar a dar vida à série.

Apesar de terem passado 30 anos, Miller continua a ter a energia necessária para esta saga, tornando-se no filme de acção que servirá de exemplo para futuros projectos do género, correndo o risco de ficar para a história como um dos melhores filmes de acção de sempre, juntandose ao também enorme O Guerreiro da Estrada, o segundo filme da saga Mad Max.

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Título nacional: À Prova de Morte Realização: Quentin Tarantino

DEATH PROOF

Elenco: Kurt Russell, Vanessa Ferlito, Rose McGowan Ano: 2008

HÉLDER ALMEIDA

Parte do projecto Grindhouse, uma original colaboração entre Tarantino e Robert Rodriguez (que foi lançada apenas nos Estados Unidos e em mais outros dois países, devido ao seu fracasso comercial), chega-nos este À Prova de Morte, uma ode ao cinema série Z (como podemos confirmar pela pobre montagem, a fotografia, o som e a qualidade da fita, tudo a imitar esses filmes quando eram exibidos em salas de baixa qualidade). Esta obra de Tarantino (podemos considerá-la a mais fraca) é um filme dividido em duas partes: a parte mais série Z, com um assassino implacável a perseguir um grupo de raparigas (onde a violência é de forma bastante abusada mas eficaz) e a segunda parte, revelando ser um filme de perseguição automobilística (onde convém destacar a importante referência ao clássico Vanishing Point). Tudo acompanhado, claro está, pelos excelentes diálogos orquestrados pelo realizador e pelos seus actores.

A banda-sonora é mais uma grande prova do excelente gosto musical de Tarantino e as sequências de acção (referimo-nos à perseguição final) está muito bem executada. Kurt Russell está brilhante (a viragem “emocional” na última parte do filme é fantástica, hilariante e feita de forma convincente pelo actor). À Prova de Morte esteve presente no Festival de Cannes de 2007 e acaba por o filme mais fraco de Quentin Tarantino. No entanto, é um excelente filme, com interpretações fantásticas e dá-nos mais uma excelente viagem pelos seus diálogos, influências e forma de filmar. Acaba por ser um pequeno exercício de Tarantino, sem querer ir tão longe como as suas restantes obras.

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ELIZABETH

ERIN BROCKOVICH

SARA GALVÃO

JOÃO BIZARRO

Uma das figuras mais imponentes da história inglesa, a Rainha Isabel I quase não chegava ao trono. O filme de Shekhar Kapur, com Cate Blanchett a protagonizar um papel memorável que perderia o Óscar de Melhor Actriz para Gwyneth Paltrow em A Paixão de Shakespeare (nunca esqueceremos!), retrata os anos de Isabel/Elizabeth antes de chegar ao trono, e os seus primeiros tempos como rainha. Do romance com o seu amigo de infância Robert Dudley (Joseph Fiennes) à cumplicidade com o chefe de espionagem Sir Francis Walsingham (Geoffrey Rush), Elizabeth é a história de uma jovem mulher que tem de crescer à pressa para tomar as rédeas de um país, forçando-a a abdicar de muitas coisas às quais tem apreço, mas nunca deixando desvanecer a sua forte personalidade.

Depois de ter recebido boas críticas e alguns prémios por anteriores filmes seus, como por exemplo Sexo, Mentiras e Video (Sex, Lies and Videotape, 1989) e O Falcão Inglês (The Limey, 1999), Steven Soderbergh entrava no novo milénio com as luzes apontadas a si, e em 2000 teve a oportunidade de filmar dois dos filmes mais falados do ano, Traffic – Ninguém Sai Ileso e Erin Brockovich. Erin (Julia Roberts) é uma mãe de três filhos que trabalha num pequeno escritório de advocacia. Quando descobre que a água de uma pequena cidade está a ser contaminada por uma multinacional, ela faz de tudo para ajudar aquela população contra os poderosos. Roberts venceria o Óscar de melhor actriz por este filme e, na mesma cerimónia, Soderbergh o de melhor realizador, por Traffic.

Título nacional: Elizabeth (1998)

Título nacional: Erin Brockovich (2000)

Realização: Shekhar Kapur

Realização: Steven Soderbergh

Elenco: Cate Blanchett, Geoffrey Rush, Christopher Eccleston

Elenco: Julia Roberts, Alvert Finney, Aaron Eckart

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SERENITY

KILL BILL: VOL. 1 KILL BILL: VOL. 2

HÉLDER ALMEIDA

ANTÓNIO ARAÚJO

Depois de Buffy, A Caçadora de Vampiros, Joss Whedon parte para uma série totalmente diferente. Misturando ficção científica com western, Firefly durou apenas 14 episódios, que foram suficientes para criar um seguimento de culto à sua volta, levando à criação de Serenity, sua continuação, marcando assim a estreia de Whedon na realização. Serenity continua assim a mistura entre géneros, com um toque de humor, personagens cativantes e actores em grande forma, numa aventura espacial com um bom ritmo, essencial para os fãs da série. De destacar também as fortes personagens femininas, aspecto regular no trabalho de Whedon. Longe de ser um sucesso comercial, Serenity, tal como a série, tornouse num adorado objecto de culto e também num dos melhores filmes de ficção científica da década passada.

Durante a rodagem de Pulp Fiction, Quentin Tarantino e Uma Thurman desenvolveram uma ideia base inspirada nos filmes de kung-fu dos anos setenta que colocava uma protagonista feminina no centro de uma história de vingança, depois de ter ficado às portas da morte às mãos do bando de criminosos a que pertencia. Nasceu assim o magnum opus de Tarantino, Kill Bill – A Vingança, o seu quarto filme, infelizmente partido em dois por razões comerciais. Nasceu também uma heroína icónica, A Noiva, recuperando para uma nova geração a iconografia de Bruce Lee em O Último Combate de Bruce Lee, e oferecendo uma figura de resiliência feminina num extravagante cocktail influenciado por filmes de artes-marciais, samurais, blaxploitation, spaghetti westerns, policiais americanos e animações japonesas.

Título nacional: Serenity (2005)

Título nacional: Kill Bill – A Vingança (vol. 1) e Kill Bill – A Vingança (vol. 2) (2003 e 2004)

Realização: Joss Whedon

Realização: Quentin Tarantino

Elenco: Nathan Fillion, Alan Tudyk, Chiwetel Ejiofor

Elenco: Uma Thurman, David Carradine, Lucy Liu, Michael Madsen, Daryl Hannah

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PERSPECTIVAS FEMININAS


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Título nacional: Thelma e Louise Realização: Ridley Scott

THELMA & LOUISE

Elenco: Susan Sarandon, Geena Davis, Harvey Keitel, Michael Madsen, Brad Pitt Ano: 1991

ANTÓNIO ARAÚJO

Apesar de, aparentemente, Ridley Scott não ser uma escolha óbvia para realizar esta road trip onde duas amigas do sudeste norte-americano se fazem à estrada com consequências inesperadas, convém não esquecer que em 1979 o britânico colocou Sigourney Weaver na vanguarda das heroínas modernas, ao interpretar Ellen Ripley em Alien – O 8º Passageiro, e em 1997 admitiria Demi Moore no treino intensivo de uma dura unidade de especialidade militar normalmente só acessível a homens, em G. I. Jane – Até ao Limite. A verdade é que Thelma e Louise, vinte e sete anos depois, continua tão (ou mais) relevante como à data de estreia. Escrito pela estreante Callie Khouri, que viria a vencer com este trabalho o Óscar de Melhor Argumento Original, traça um retrato marcado pelo confronto e libertação feminina em relação ao status quo instalado onde o chauvinismo e o abuso são genericamente aceites e considerados direitos constituídos.

não vivemos num mundo que acreditaria facilmente na história das amigas — que vai fazer gravitar personagens masculinas de distintas personalidades e com diferentes perspetivas sobre o acontecimento e as duas mulheres. É verdade que se encontram em Thelma e Louise homens com caracterizações redondas e equilibradas — Jimmy, o namorado de Louise interpretado por Michael Madsen, apesar da frustração de não saber o que se passa, ajuda-a e oferece-lhe um anel de noivado, percebendo finalmente recear perdê-la; ou Hal, interpretado por Harvey Keitel, o atípico polícia deste tipo de fitas, que acredita genuinamente no novelo em que as amigas se enredaram e que, no antológico momento final, grita em desespero: “Quantas vezes têm estas mulheres de serem lixadas!?” Mas a maior parte dos retratos masculinos roça a caricatura (talvez pontuados por uma desconfortável verosimilhança): o predador violento, o camionista obsceno, o marido negligente ou o ladrão sedutor — neste caso, Brad Pitt no papel que lhe deu destaque no início de carreira.

Parte do sucesso de Thelma e Louise deriva do par de protagonistas, ambas nomeadas para o Óscar de Melhor Actriz pelas suas interpretações verdadeiramente inesquecíveis. Geena Davis é Thelma, uma dona de casa sufocada pelo marido. É desorganizada e insegura, mas positiva e algo ingénua. Susan Sarandon é Louise, empregada de balcão, mais metódica, experiente, independente e cínica, marcada por um acontecimento traumatizante do seu passado do qual se recusa a falar. Apesar das diferentes personalidades, ambas se sentem insatisfeitas nas suas relações — tal como Louise diz a Thelma: “Ficamos com aquele com quem nos contentamos.” Quando partem para um fim-de-semana de pesca e relaxamento, em fuga das suas rotinas diárias, decidem parar num bar pelo caminho. Entusiasmada pela rara liberdade e pelo álcool alegremente ingerido, Thelma vê-se atacada sexualmente por Harlan, um cliente regular do bar com quem namoriscou e dançou. Ao ser salva por Louise, esta dispara sobre Harlan, matando-o. Dá-se início a uma fuga em estrada aberta em direcção ao México — ao fim e ao cabo,

No entanto, foi o retrato feminino (feminista?) que provocou as reações mais acesas da crítica. Além das vozes que aplaudiram a exposição dos estereótipos das relações entre géneros, houve quem acusasse o filme de Scott de ser uma visão misógina que retrata as mulheres como tontas e incapazes de tomarem uma decisão acertada, pagando, em última instância, o preço derradeiro. Estes argumentos terão ignorado o retrato de Thelma e Louise como duas personagens femininas fortes numa viagem de afirmação pessoal que, entre a espada e a parede, optam por uma alegre liberdade niilista ao invés da prisão virtual sancionada pela sociedade.

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Título nacional: Os Bons Amantes Realização: Spike Lee

SHE’S GOTTA HAVE IT

Elenco: Tracy Camilla Johns, Spike Lee, Tommy Redmond Hicks Ano: 1986

JOÃO PAULO COSTA

Numa altura em que muito se reclama, no seio da indústria cinematográfica norte-americana, por uma diversificação de oportunidades de trabalho para mulheres e diferentes etnias, Spike Lee já mostrava o caminho há mais de 30 anos, centrando, no seu filme de estreia, as atenções numa jovem mulher negra de Brooklyn sexualmente activa que se recusa a escolher entre um dos seus habituais parceiros sexuais.

é, por isso, e sem se pretender simplificar demasiado as coisas, uma espécie de ideal da mulher moderna e independente, ao contrário daquilo que, anos e anos mais tarde, séries como O Sexo e a Cidade nos andaram a tentar vender. Nesse aspecto, e mesmo sem conseguir sequer chegar perto de ser a sua obra-prima (há em toda a produção uma dose de amadorismo de primeira obra de baixo orçamento que se torna óbvia a espaços), Os Bons Amantes é um dos mais arrojados filmes de Lee, verdadeiramente à frente do seu tempo, que não só se tornou num grande sucesso comercial na altura (o seu modesto orçamento de 175.000 dólares rendeu mais de 7 milhões nas bilheteiras) como ainda hoje é regularmente revisitado, tendo mesmo dado origem à série com o mesmo nome que podemos actualmente ver em exibição na Netflix.

Moderno, provocador, liberto de quaisquer amarras que o prendessem aos grandes estúdios, Lee rodou Os Bons Amantes a preto e branco e começou a explorar imediatamente algumas das suas marcas visuais. E o mais extraordinário é que, é justo dizê-lo, já nessa altura lidava de forma frontal e particularmente honesta com os seus temas, fossem eles a sexualidade, a fragilidade do ego masculino ou a libertação feminina. Nola Darling, a bela protagonista interpretada por Tracy Camilla Johns,

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Título nacional: A Boceta de Pandora Realização: Georg Wilhelm Pabst

DIE BÜCHSE DER PANDORA

Elenco: Louise Brooks, Fritz Korter, Francis Lederer Ano: 1929

ANTÓNIO PASCOALINHO

Exemplo maior dos finais do Expressionismo Alemão, esta obra de Pabst é um extraordinário exemplo do que é fazer Cinema enraizado numa estética que estava em decadência, mas já com um olhar de modernidade sobre os estilos que viriam a seguir. Pabst foi à América buscar Louise Brooks, uma bailarina/corista sem aulas de representação, só pelo seu visual, para dar corpo (e sobretudo rosto) à primeira mulher fatal do Cinema, daquelas que conduzem todos os homens à perdição.

conduzir a qualquer final feliz, o que torna credível o percurso que a heroína percorre rumo ao abismo na parte final do filme. A direcção artística é notável, a fotografia ainda muito contrastada como nos tempos áureos do Expressionismo, e a história cativante e visualmente poderosa. Para além disso, o guarda-roupa e os adereços dos anos 20 são dos mais interessantes que o século XX nos ofereceu, pelo que esta história de amores funestos na alta sociedade emerge como um marco que urge redescobrir. A Criterion tem uma excelente edição em DVD, e a Cinemateca de Bruxelas conseguiu restaurar recentemente mais 19 minutos que estavam perdidos, levando a um produto final com 152 minutos. Deliciem-se com esta Lulu, vão ver que vale a pena!

Lulu é sedutora e sabe-o, levando pai e filho a apaixonarem-se por ela, mas é ao mesmo tempo uma sobrevivente ingénua, à procura de trunfos para vingar na Alemanha de Weimar, onde um cavalheiro tinha que casar com alguém da sua classe e nunca com uma corista. O argumento inspira-se em peças de Franz Wedekind (o mesmo autor de O Despertar da Primavera), e o nosso coração de espectador balança entre o fascínio pela protagonista e a constatação de que as coisas não podem, de facto,

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ALICE DOESN’T LIVE HERE ANYMORE

ORLANDO

RUI ALVES DE SOUSA

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Antes de Taxi Driver ou Touro Enraivecido, Martin Scorsese assinou este drama singular que tem uma das protagonistas mais marcantes da sua filmografia. Alice Já Não Mora Aqui é a história de uma mãe viúva que luta pela sobrevivência dela e do seu filho, enquanto ambiciona tornar-se numa cantora. É uma narrativa sobre as desilusões do mundo em que vivemos, onde os sonhos de cada um (por mais irreais que sejam) são a única forma de manter a sanidade mental no meio do caos. O imaginário cinéfilo do realizador toma também um papel preponderante (neste caso com uma citação a O Feiticeiro de Oz), mostrando como aqui não se encontra “mais uma” história inocente sobre a vida americana. Um dos primeiros filmes-chave do cinema de Scorsese que é, também, uma belíssima homenagem a todas as mulheres.

Livremente adaptado a partir do romance homónimo de Virginia Woolf, aparentemente, Orlando é a simples parábola do jovem nobre a quem a rainha Elizabeth I ordena que não envelheça, e que cumpre esse desígnio, guiando-nos por três séculos da história de Inglaterra. Mas, por baixo dessa camada, Orlando é pretexto para uma obra poética (narrativa e visualmente), cuidadosa e sumptuosamente construída, dos diálogos ao guarda-roupa, cenários e situações de fino humor, numa lógica de quase conto-de-fadas, magia subtil e inocente, e estrutura que passa por uma espécie de viagem através de temas, que a é também através de mudanças de mentalidade, com Tilda Swindon a encarnar os dois sexos, possibilitando confrontos de duplo padrão, o que o tornou símbolo de feminismo e transgénero.

Título nacional: Alice Já Não Mora Aqui (1974)

Título nacional: Orlando (1992)

Realização: Martin Scorsese

Realização: Sally Potter

Elenco: Ellen Burstyn, Kris Kristofferson, Mia Bendixsen, Alfred Lutter III

Elenco: Tilda Swinton, Billy Zane, Lothaire Bluteau, John Wood

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THE PIANO

FRIED GREEN TOMATOES

DIANA MARTINS

JOSÉ CARLOS MALTEZ

O Piano é um filme incontornável de Jane Campion, Palma de Ouro em Cannes e Óscar da Academia de Hollywood para melhor Argumento Original. Conta-nos a história de Ada McGrath, que chega à Nova Zelândia em finais do século XIX na companhia da sua filha Flora e do seu piano, por forma a casar com Stewart num casamento arranjado. Não sendo fácil de transportar o piano, Stewart vende-o a George Baines que, na verdade, tem outros interesses sexuais e amorosos. Com uma premissa relativamente clássica, Jane Campion traz ao filme um rasgo de genialidade com personagens femininas únicas: Ada é muda desde os 6 anos e comunica com o mundo essencialmente através das teclas do seu piano, numa exteriorização de um mundo íntimo e secreto para um mundo quotidiano e formal, de afirmação e reconstrução.

A partir de um livro de Fannie Flag, Jon Avnet realizou Mulheres do Sul, que nos leva aos anos 20, no conservador e patriarcal sul norte-americano, entre Alabama e Georgia. Aí destacam-se Idgie (Mary Stuart Masterson) e Ruth (Mary-Louise Parker), duas mulheres surpreendentemente assertivas para o seu tempo, e que encontram numa amizade a toda a prova a força que ambas precisam para tomarem as rédeas dos seus destinos. Com uma componente homossexual apenas aflorada no filme (embora explícita no livro), Mulheres do Sul, mostra como, gerações depois, ainda há muito a caminhar na liberalização feminina, quando uma nossa contemporânea (Kathy Bates) encontra na história passada de Idgie e Ruth, narrada pela personagem de Jessica Tandy, inspiração para fazer, pela primeira vez, frente ao marido.

Título nacional: O Piano (1993)

Título nacional: Mulheres do Sul (1991)

Realização: Jane Campion

Realização: Jon Avnet

Elenco: Holly Hunter, Harvey Keitel, Sam Neill, Anna Paquin

Elenco: Kathy Bates, Jessica Tandy, Mary Stuart Masterson, Mary-Louise Parker

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MULHERES PELO MUNDO


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Título nacional: Mustang Realização: Deniz Gamze Ergüven

MUSTANG

Elenco: Günes Sensoy, Doga Doguslu, Elit Íscan Ano: 2015

CÁTIA ALEXANDRE

Em pleno século XXI, ainda existem realidades difíceis de compreender. Adorável, mas ao mesmo tempo passando uma atmosfera de sufoco e contenção, Mustang é uma belíssima representação da chocante realidade vivida por jovens adolescentes subjugadas às regras da sociedade em que vivem, e dos desafios constantes que enfrentam por causa de um extremo conservadorismo. O filme é uma co-produção entre a Turquia e a França, e foi o primeiro trabalho da realizadora turca Deniz Gamze Ergüven, cujo o trabalho foi muito elogiado no ano de 2014 no Festival de Cannes tendo estado também nomeado posteriormente para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro esse mesmo ano.

descoberta sexual na adolescência. O facto de ser contado sob o ponto de vista das jovens faz com que seja mais brutal e sincero, possuindo tanto um lado pesado, como outro mais leve e descontraído, com alguns apontamentos de comédia quase todos provenientes da mais nova das irmãs, aqui sob uma perspectiva de heroína e aventureira disposta a lutar contra tudo o que não acha justo. Muito focado na relação bastante intimista entre as cinco jovens, são os momentos mais simples e amorosos que nos tocam mais e nos fazem colocar na pele destas personagens. Com elas vamos sentindo o peso daquele Verão, que se revelou como o último que passariam desfrutando dos prazeres de ser adolescente, ainda que sem a total liberdade de outro qualquer jovem desprovido de regras incontornáveis e difíceis de aceitar, para quem não se identifique com essa forma de pensamento.

Numa pacata aldeia Turca, cinco irmãs órfãs — Lale (Günes Sensoy), Nur (Doga Doguslu), Ece (Elit Íscan), Selma (Tugba Sunguroglu) e Sonay (Ilayda Akdogan) — encontram-se numa praia a festejar o fim do ano lectivo e o começo das tão esperadas férias de Verão. Quando uma vizinha observa a inocente diversão entre as meninas e os rapazes amigos de escola, conta à avó das mesmas, alegando que o seu comportamento teria sido inaceitável e desrespeitoso. Ao chegar a casa, são de imediato recebidas com agressividade. A revolta das irmãs, fruto da rebeldia da juventude, toma conta do dia-a-dia de cada uma e, a partir daí, as reprimendas tornam-se constantes e os castigos são cada vez mais severos, chegando ao ponto de estarem presas dentro de casa sem poderem sair. Aos poucos, a matriarca da família começa a trazer pretendentes para casa, determinada a casar as mais velhas para que possam sair de casa o mais rápido possível e comecem a experienciar um pouco daquilo que são as responsabilidades da vida adulta, consoante os mandamentos da comunidade.

Uma obra marcante, com uma subtileza visual bela e significativa, Mustang distingue-se tanto pela forma impressionante com que demonstra uma realidade, como encanta pela forma natural e sincera com que estas cinco jovens e estreantes actrizes desempenharam os seus papéis. Uma visão crua e real, absolutamente importante para um mundo onde as mulheres ainda são tratadas como objectos em muitas culturas, sem direitos ou liberdade de escolhas e expressão. Histórias como esta devem e merecem continuar a ser representadas no cinema, pois filmes destes são boas ferramentas para provocar, criar discussão e movimentar as ideias. Mustang é uma daquelas pérolas escondidas que marcam a diferença pela importância social que reflectem no panorama cinematográfico.

O triste retrato sobre uma sociedade e os seus severos costumes é aqui feito de forma bastante poderosa, mas contrastado de forma muito interessante com uma visão não só de inocência, mas também de 51


Título nacional: Persépolis Realização: Vincent Paronnaud, Marjane Satrapi

PERSEPOLIS

Elenco: Chiara Mastroianni, Danielle Darrieux, Catherine Deneuve, Simon Abkarian Ano: 2007

RUI ALVES DE SOUSA

Quando Marjane Satrapi publicou uma novela gráfica monumental que fez história a que deu o nome de Persépolis, o mundo da BD nunca mais foi o mesmo. O sucesso internacional levou a que a própria criadora fizesse a adaptação ao cinema, numa bela e fiel transposição em imagens animadas da complexidade da obra.

da mulher — algo que ainda se mantém em muitos países em 2018. Marjane decidiu seguir para outras paragens — e Persépolis lida com esse dilema social, com a protagonista que, apesar de não se rever no novo modelo socio-cultural do seu país devido aos "novos" ditames ultraconservadores, nunca consegue sentir-se totalmente bem quando está longe de casa e da sua família. Mas por isso, cada regresso que fará, mais tarde, à sua terra-natal provocará sempre um misto de estranhas sensações. E além de contar a história de um povo, temos aqui uma belíssima narrativa sobre conflitos geracionais e familiares, tendo por base a vida de uma mulher independente que queria ser muito mais do que uma vítima do Medo. Com um elenco certeiro a dar voz às memórias hilariantes ou trágicas de Satrapi, Persépolis é um objecto único no cinema de animação recente.

Em Persépolis, Marjane Satrapi fala da sua experiência de vida, relatando os anos que passou no Irão (onde nasceu e cresceu), num período que apanha o antes (com os últimos anos do reinado do Xá) e o depois da revolução islâmica ter transformado aquela sociedade de um momento para o outro. Esse acontecimento veio a alterar radicalmente a moral e os costumes da cultura do país, e tanto o livro como o filme ajudamnos a entender como Satrapi e a família enfrentaram as novas regras sociais, criadas pelo grupo de fanáticos religiosos liderados pelo ayatola Ruhollah Khomeini, que assentava, por exemplo, na repressão do papel

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Título nacional: Banshun Realização: Yasujirō Ozu

BANSHUN

Elenco: Chishū Ryū, Setsuko Hara, Yumeji Tsukioka Ano: 1949

ANTÓNIO PASCOALINHO

Poderá parecer estranho associar Ozu e feminismo, quando a sua obra no pós-guerra é de ensaio sobre o papel do tradicionalismo japonês perante o modernismo ocidental. Mas ultrapassando o olhar anacrónico de um Ocidental do século XXI, veremos que o tradicionalismo de Ozu é sobretudo de valores familiares — não é à toa que a sua obra do pósguerra se debruça sobre o papel da família —, e nessa família Ozu coloca a mulher no papel central. É a mulher que gera a vida, que agrega os vários elementos, gere os momentos e torna a casa um lar.

A Noriko de Primavera Tardia vive com pais, irmão, cunhada e sobrinhos, numa harmonia que tem apenas uma nuvem — os vizinhos já falam do facto de ela não casar. Não cedendo a pressões, Noriko explica que o seu caminho não passa por uma posição subalterna em relação a um homem. Por isso a vemos trabalhar, vestir roupas ocidentais e interessarse pelas novidades que vêm de fora. Pode parecer pouco num mundo onde ainda se arranjam casamentos e se preza a lógica patriarcal. Mas no seu jeito de filmar — numa narrativa serena, através de elipses que privilegiam os pequenos nadas, em planos fixos de ângulos baixos, como quem olha reverencialmente —, Ozu dava o mote para a força interior e silenciosa da mulher japonesa que, com a candura de Noriko, estava mais preparada que os homens para transformar a sociedade do seu país.

Para Ozu é a transformação do papel da mulher que irá transformar a sociedade no respeito pelos valores ancestrais. Isso é-nos mostrado principalmente na chamada trilogia de Noriko, conjunto de filmes nos quais a personagem principal é uma jovem mulher que busca emancipação chamada Noriko e interpretada por Setsuko Hara.

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LADY VENGEANCE

A GIRL WALKS HOME ALONE AT NIGHT

FILIPE LOPES

RUI ALVES DE SOUSA

Vingança Planeada (2005) é o derradeiro capítulo de uma trilogia que ficou conhecida como a “trilogia da vingança”, toda ela realizada pelo magnífico realizador sul-coreano, sendo os restantes tomos Em Nome da Vingança (2002) e Oldboy – Velho Amigo (2003), onde nada, à excepção da temática e do facto de serem muito, mas mesmo muito bons (e violentos), os liga entre si. O protagonismo neste terceiro capítulo é dado a uma jovem mulher (Geum-ja Lee), presa durante mais de 13 anos por um infanticídio que não cometeu e em cujo tempo passado na prisão elaborou um plano para se vingar do verdadeiro assassino. Esta personagem, ao mesmo tempo forte e frágil, angelical e perversa, é das melhores composições do cinema sul-coreano contemporâneo, como provam os muitos prémios que recebeu a actriz.

Será que na Cidade Malvada, onde reina o crime e o ódio, também pode haver espaço para o romance? Este neo-western, que mistura fantasia e alguns apontamentos mais realistas, acredita nisso. A realizadora Ana Lily Amirpour fez assim um filme pouco convencional, difícil de catalogar em qualquer género específico, que contém uma série de referências cinéfilas e que acaba por ser um exemplo claro de style over substance. É a história de uma vampira que se apaixona, mais uma panóplia de outras personagens que, com os seus dilemas, pintam a atmosfera perigosa da Cidade. Aqui temos um daqueles casos em que as histórias dos bastidores da produção poderiam dar um outro filme (talvez mais interessante), mas é impossível ficar indiferente ao estilo de Uma Rapariga Regressa de Noite Sozinha a Casa.

Título nacional: Vingança Planeada (2005)

Título nacional: Uma Rapariga Regressa de Noite Sozinha a Casa (2014)

Realização: Chan-wook Park

Realização: Ana Lily Amirpour

Elenco: Yeong-ae Lee, Min-sik Choi, Shi-hoo Kim

Elenco: Sheila Vand, Arash Marandi, Marshall Manesh, Mozhan Marnò

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DAYEREH

MONONOKE-HIME

JOSÉ CARLOS MALTEZ

ANTÓNIO ARAÚJO

Um dos mais consagrados realizadores da chamada Nova Vaga do cinema Iraniano, Jafar Panahi deu-nos em O Círculo (uma obra filmada em Teerão, mas com financiamento ocidental e banido no Irão) um olhar acutilante para a situação das mulheres numa sociedade patriarcal e sexista. O Círculo conta-nos a história de várias mulheres a contas com a justiça pelo simples facto de… serem mulheres. O mote é dado na sequência inicial, em que vemos uma senhora, numa maternidade, desgostosa, porque a filha teve uma menina. A partir daí, num realismo frio e cru, as histórias ocorrem sequencialmente, todas tocando a falta de liberdade, na triste condição de impossibilidade de decidir as suas acções, movimentos ou o uso do próprio corpo sem um homem que o legitimize.

Mononoke, na tradição da literatura clássica japonesa, designa espíritos com a capacidade de possuir pessoas, causando-lhes sofrimento, doenças e mesmo a morte. É apropriado que San, a carismática personagem feminina no centro de A Princesa Mononoke, seja assim referida pois, fruto da sua criação por lobos e o pleno contacto com a natureza que a rodeia, tem de ultrapassar o seu ódio por humanos para ajudar Ashitaka, um príncipe Emishi que se vê envolvido numa luta entre os deuses da floresta e os homens que consomem os seus recursos. Estreado no Japão em 1997, foi através do lançamento pela Miramax em 1999 deste título de travo ecológico, recheado de folclore e povoado por míticas criaturas, que o resto mundo começou a prestar atenção ao mestre Hayao Miyazaki e aos seus estúdios Ghibli.

Título nacional: O Círculo (2000)

Título nacional: A Princesa Mononoke (1997)

Realização: Jafar Panahi

Realização: Hayao Miyazaki

Elenco: Maryiam Palvin Almani, Nargess Mamizadeh, Mojgan Faramarzi

Elenco: Yôji Matsuda, Yuriko Ishida, Yûko Tanaka

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MULHERES CONTROVERSAS


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Título nacional: Jovens e Atrevidas Realização: Vera Chytilová

DAISIES

Elenco: Jitka Cerhová, Ivana Karbanová, Marie Češková, Jiřina Myšková, Marcela Březinová Ano: 1966

DIANA MARTINS

Jovens e Atrevidas é um daqueles filmes que nos mostram o mundo. Que nos incomodam, indignam-nos e, no fim, nos transformam. Se “quem vê caras não vê corações”, certamente “quem vê Jovens e Atrevidas não vê corações”.

permissivismo e um aborrecimento em relação ao formalismo e ao instituído aqui associado à juventude feminina. Observamos numa outra cena Marie e Marie a escandalizarem toda uma plateia num salão de dança com as suas coreografias caprichosamente provocadoras. Também a própria realizadora se afirmou num mundo completamente dominado por homens como Jan Němec ou Miloš Forman, com um cinema declaradamente disruptivo e uma ideologia bem marcante.

Marie e Marie, ou Marie I e Marie II, (interpretadas pelas “actrizes” não profissionais Jitka Cerhová e Ivana Karbanová) são as personagens que nos guiam neste fantástico mundo de Věra Chytilová, considerada “a primeira dama do cinema checo” e com papel fundamental na Nova Vaga de Cinema Checo, um dos movimentos mais irreverentes na Europa dos anos 60.

Esteticamente, Jovens e Atrevidas transmite-nos a sensação de estarmos numa viagem alucinante: uma mudança contínua de cores, a passagem do preto e branco para um misto histérico de acção, irreverência e a experimentação, levando-nos a cenários entre o real e o irreal, o racional e o sonho.

Na primeira cena do filme — onde se percebe logo que estaremos presente um exercício belo de cinema — as Maries concluem que está tudo mal com o Mundo e, como tal, também tudo pode estar mal com elas, levando-as a todo um desenrolar de acontecimentos e diálogos onde a premissa é unicamente esta: Marie I e Marie II podem fazer o que bem lhes apetecer. Agindo como meninas bonitas e mimadas, deliciosamente caprichosas, as personagens de Jovens e Atrevidas rompem com todas os cânones do que é socialmente aceitável, do que é politicamente correcto e das normas instituídas — afinal, se o Mundo está corrompido, todas as normas e consequentes comportamentos também o estarão. O papel da mulher na sociedade — aqui posto em causa de forma maravilhosamente irónica — é um dos principais temas subjacentes a Jovens e Atrevidas. Vemos Marie e Marie a seduzirem vários homens mais velhos apenas pelo prazer de os deixarem a suplicar por elas, pagando-lhes os dispendiosos e excêntricos jantares e numerosas chamadas de súplica; satirizando a dependência financeira feminina. No filme, vemos sempre as personagens masculinas retratados de forma formal, comedida, num contraste bem demarcado entre o excesso, o

Este contexto permite-nos ter uma sensação entre a libertinagem e a liberdade, afastada de formalismos, regras ou deveres de um mundo excessivamente regulado e normalizado. Tal como a própria Věra Chytilová referia, o mais importante seria conseguir uma liberdade total, apenas pelo prazer de tal, de se fazer o que se quer. Sem julgamentos. Castigos. Punições. Apenas pelo divertimento, pelo processo. Porque o resultado final, falhando ou não, já pressupõe uma grande viagem anterior. Jovens e Atrevidas foi considerado um filme revolucionário, e é agora um visionamento obrigatório nos círculos feministas e de culto, tendo sido lançado dois anos antes da Primavera de Praga. Chytilová foi proibida de voltar a filmar na Checoslováquia até 1975, e o filme foi banido pelas autoridades checas. Felizmente, aquando da sua morte em 2014, e com uma idade de 85 anos, Věra Chytilová era amplamente reconhecida como uma realizadora carismática e com um papel decisivo num mundo do cinema (e) num man´s world. 59


Título nacional: Monstro Realização: Patty Jenkins

MONSTER

Elenco: Charlize Theron, Christina Ricci, Bruce Dern Ano: 2003

PEDRO SOARES

Monstro é um filme sobre o lado negro da vida e pessoas cuja existência é pejada de dificuldades e contrariedades — com sexo, violência, prostituição e decadência humana — baseado na história real de Aileen Wuormos, prostituta americana que se tornou numa das primeiras serial killers. Patty Jenkins relata a sua vida, mas não como um mero biopic ilustrativo. Fá-lo antes pelo lado de dentro, tentando contextualizar os seus actos, não para os desculpar, mas para os explicar, pondo-nos para isso no seu lugar.

culmina com a prisão e consequente condenação à morte. Theron, depois de engordar quinze quilos e de umas próteses faciais, ficou irreconhecível, tornando-se com o seu andar másculo num verdadeiro Mickey Rourke de saias. O seu desempenho leva o filme muitas vezes a reboque. A Academia reconheceu-lhe o mérito e atribuiulhe o Óscar nesse ano. Monstro é um filme intenso, que nos mostra que aqueles que nos são apresentados como monstros pela comunicação social também são humanos (como Assassinos Natos, que também humanizava o serial killer, mas a partir dos media). Monstro é ainda uma espécie de manifesto feminista, num daqueles raros exemplos em que as mulheres estão em maioria: na cadeira da realização e nos principais papéis.

Aillen (Charlize Theron) é uma menina da vida desde os seus 13 anos e vítima de abusos sexuais desde os 7. Quando decide pôr um ponto final ao seu sofrimento, conhece por acaso Shelby (Christina Ricci), com quem se envolve numa relação que é pela primeira vez amorosamente agradável. Mas Aillen não resiste às adversidades da vida e acaba por cair numa espiral descendente que leva à matança dos seus clientes, e

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Título nacional: Zonas Húmidas Realização: David Wnendt

FEUCHTGEBIET

Elenco: Carla Juri, Christoph Letkowski, Marlen Kruse Ano: 2013

SARA GALVÃO

Baseado no livro de Charlotte Roche, Zonas Húmidas (do realizador alemão David Wnendt, que nos iria dar, em 2015, o também polémico Ele Está de Volta), não é um filme de fácil visionamento, e não é recomendado de maneira nenhuma a maníacos das limpezas — a não ser que estejam numa de filmes de terror. A protagonista, Helen Memel (interpretada pela genial Carla Juri, que vimos este ano em Blade Runner 2049), faz os possíveis e impossíveis para ir contra os preceitos básicos de higiene, desde esfregar-se em tampos de sanitas em casas de banho públicas até trocar de tampão (usado) com a melhor amiga. Não contente com isso, Helen também gosta de se exibir e levar o sexo a um nível básico animal de cheiros e feromonas.

fim de contas, a velha história coming of age que vemos vezes sem conta em cenários muito menos pervertidos. Ainda em negação perante o divórcio dos pais, e sem saber lidar com os problemas mentais da mãe, Helen procura revoltar-se contra tudo o que lhe fora ensinado, num grito de libertação daquilo que vê como a ditadura genética de paranóia e depressão herdada de todas as mulheres da sua família. Quando um acidente depilatório a faz ser operada de urgência no hospital, Helen conhece o enfermeiro Robin — que parece precisar de libertação tanto como ela — e tem tempo para reflectir sobre as suas memórias traumáticas de infância.

Com belíssimos planos — incluindo nos momentos mais nojentos possíveis e imagináveis (um certo mito urbano sobre a entrega de uma pizza fará muitos estômagos se revolverem) —, Zonas Húmidas é, no

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TEETH

I SPIT ON YOUR GRAVE

JOÃO PAULO COSTA

ANTÓNIO PASCOALINHO

Partindo do mito conhecido como vagina dentata (que julgamos ser suficientemente auto-explicativo), Mitchell Lichtenstein conta-nos, na sua longa-metragem de estreia, a história de uma jovem adolescente que, desde menina, possui esse mecanismo de auto-defesa contra agressores sexuais. Apesar do seu tom série B com um elenco não particularmente inspirado, Dentes acaba por se revelar um divertido olhar sobre o feminismo, recusando o estatuto da mulher como indefesa vítima social, e atribuindo-lhe um poder quase indestrutível — as suas cenas finais remetem mesmo para o universo dos super-heróis. Funcionando em muitos aspectos como sátira corrosiva, Dentes nem sempre acerta em cheio no alvo, mas nunca deixa de ser subversivamente divertido.

Este filme enquadra-se nos excessos visuais dos anos 70, mas por vezes vai longe de mais. Uma escritora é violada e humilhada por quatro energúmenos no meio da floresta, e resolve vingar-se deles um a um, das formas mais violentas possíveis. O argumento não é credível, a fotografia é péssima, pretendendo copiar o ambiente de Fim-de-Semana Alucinante (1972), e o lado amador da produção em nada contribuiu para a sua qualidade. Tornou-se rapidamente em filme de culto, censurado, proibido e só pra fãs do macabro, pela fama de ultra-violência que granjeou, mas a verdade é que pouco ou nada funciona: nem o lado de denúncia destas horríveis situações, nem o carisma dos actores (a actriz principal é a sobrinha de Buster Keaton, Camille) e muito menos o argumento. A única coisa boa é a edição em DVD.

Título nacional: Dentes (2007)

Título nacional: Mulher Violada (1978)

Realização: Mitchell Lichtenstein

Realização: Meir Zarchi

Elenco: Jess Weixler, John Hensley, Hale Appleman

Elenco: Camille Keaton, Eron Tabor, Richard Pace

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PREVENGE

ELLE

ANTÓNIO ARAÚJO

RUI ALVES DE SOUSA

Alice Lowe, perante as ansiedades da gravidez, escreveu, realizou e interpretou Prevenge enquanto estava grávida de oito meses. Confrontada com a diminuição de papéis oferecidos, inversamente proporcional ao avolumar da barriga, Lowe cozinhou uma história atípica e refrescante onde, ao invés de tingir o período pré-natal de rosa ou azul bebé, as cores optimistas de quem espera a nova vida com expectativa, o tinge de um vermelho rancoroso e vingativo, em que a criança que gera dentro de si não é mais que um lembrete amargo de uma perda irrecuperável. Sobra uma vingança sangrenta, de fino e negríssimo humor— ou seja, britânico — onde a mãe projecta no feto por nascer todas as suas ampliadas emoções num contra-ataque à discriminação, abusos e outros sentimentos de injustiça.

Ela foi o regresso em grande de Paul Verhoeven, o realizador que entrou no imaginário coletivo com os sucessos Robocop – O polícia do futuro e Desafio Total, cuja obra tem sido reavaliada seriamente pela crítica (no que toca a filmes como Soldados do Universo ou Showgirls, por exemplo). Numa interpretação excepcional, Isabelle Huppert é Michèle, uma empresária do mundo dos videojogos que tenta encontrar o homem que a violou. E o filme mostra-nos a cada momento que esta mulher tem uma personalidade mais misteriosa e perturbante do que parece — e que o jogo de “gato e rato” criado entre a vítima e o agressor pode ganhar contornos imprevisíveis. Assentando num guião exemplar na (des) construção que faz das suas personagens, Ela é uma visão cínica sobre algumas características menos bonitas das relações humanas.

Título nacional: Prevenge (2016)

Título nacional: Ela (2016)

Realização: Alice Lowe

Realização: Paul Verhoeven

Elenco: Alice Lowe, Gemma Whelan, Kate Dickie

Elenco: Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling

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THE HANDMAID’S TALE JOÃO BIZARRO

Título nacional: The Handmaid's Tale Criação: Bruce Miller Elenco: Elisabeth Moss, Yvonne Strahovski, Max Minghella Ano: 2017-presente

Baseada na obra homónima de Margaret Atwood, The Handmaid’s Tale surge em série 30 anos depois da publicação do livro. É verdade que as boas histórias nunca envelhecem, e depois de uma tentativa de adaptação ao cinema em 1990, eis que chega à televisão em plena era Trump, quando o medo do totalitarismo começa a tomar conta de muita gente. The Handmaid’s Tale é uma distopia passada numa América futurista onde, após uma crise de fertilidade, as mulheres férteis são arrancadas das suas vidas normais e vão ter de servir os mais poderosos. E quando digo servir, não falo só em serem criadas, mas a estarem sujeitas a todo o tipo de atrocidades que possamos imaginar. Estas mulheres, todas vestidas de igual, vestimenta vermelha e touca branca, de olhar vazio, pouco ou nada têm a fazer que não seja obedecer aos seus amos e venerar o fruto que poderá vir das violações a que estão sujeitas. A série é uma das mais faladas do momento, não só pelo tema que trata nem pelos prémios que tem ganho (a série fez história ao ser a primeira de um serviço de streaming, o Hulu, a vencer o Emmy de Melhor Série), mas porque é, realmente, uma excelente série, cuja primeira temporada nos agarrou do princípio ao fim, deixando elevadas expectativas para a segunda temporada prestes a sair). A criação e argumento têm a assinatura de Bruce Miller, nome associado à produção de outras séries, como Serviço de Urgência, Medium ou The 4400. Outro dos pontos fortes é o elenco, com Elizabeth Moss (também ela premiada nos Emmys e nos Golden Globe Awards), Joseph Fiennes, Max Minghela e Ann Dowd. 65


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BUFFY, A HEROÍNA DE WHEDON HÉLDER ALMEIDA

Título nacional: Buffy, Caçadora de Vampiros Criação: Joss Whedon Elenco: Sarah Michelle Gellar, Nicholas Brendon, Alyson Hannigan Ano: 1997-2003 (7 temporadas)

Depois do fracasso comercial e crítico de Buffy, A Caçadora de Vampiros (1992), o seu criador Joss Whedon fica desiludido. O filme está longe de ser o que imaginara e não consegue ser a comédia de terror que havia idealizado. Determinado a fazer com que o mundo conheça a sua ideia inicial, Whedon consegue levar Buffy para a televisão, criando uma série que ganharia um enorme seguimento de culto.

tragédias pessoais vulgares, humanizando a personagem de uma forma inesperada. Tal prova é o episódio “The Body”, na quinta temporada, escrito e realizado por Whedon, que coloca Buffy perante uma tragédia que não envolve o sobrenatural, num episódio adulto e fora do comum para uma série deste género. Apesar da sua forte presença, Buffy está acompanhada por um grupo de amigos bem desenvolvidos e interessantes: Giles, o seu mentor e uma espécie de figura paternal; Xander, o amigo apaixonado que serve de comic relief; Willow, a amiga e confidente; a sua mãe, uma forte e importante presença na sua vida; e Angel, um vampiro por quem Buffy se apaixona. Ao longo dos anos, este grupo vai aumentando, tal como o leque de vilões. E todas estas personagens apenas fortalecem Buffy, aquela que se tornaria numa das personagens femininas mas populares e adoradas da história da televisão.

Buffy é uma adolescente que pretende ter uma vida normal. No entanto, descobre que o seu destino é ser uma caçadora de vampiros e ajudar a salvar a humanidade. Assim, com a ajuda de um grupo de amigos, inicia a sua missão enquanto tenta conciliar a sua vida escolar e pessoal. Whedon traz-nos uma série cheia de referências, algo invulgar para a época, conseguindo misturar humor com fantasia e terror, enquanto cria uma série para adolescentes que sai dos moldes do género, sendo adulta quando é preciso. O humor usado por Whedon é inteligente e acaba por parodiar vários aspectos dentro dos géneros em que a série se insere. Ao longo dos seus sete anos de duração, os twists e momentos inesperados são inúmeros e consegue ainda, por vezes, arriscar e quebrar certos tabus tão presentes na altura.

Buffy durou sete temporadas, deu origem a um spinoff centrado em Angel e, após terminar, a sua história seguiu em formato banda-desenhada. Para trás fica uma série que, aparentemente, é para adolescentes, mas que se revela mais adulta e inteligente do que se esperaria, influenciando futuras séries e que tem, ao longo dos seus mais de 100 episódios, pequenos pedaços de televisão originais e únicos, com vários momentos memoráveis e que, no seu todo, moldam o caminho para outras séries do género. E assim Whedon consegue apagar da memória o filme que inicialmente criou e traz-nos uma das séries com maior culto dos anos 90, num pedaço de televisão inteligente, liderado por uma forte personagem feminina.

Sarah Michelle Gellar é a protagonista e é a escolha perfeita para a personagem, uma adolescente que se vê obrigada a crescer e a assumir responsabilidades enormes, enquanto lida com os seus problemas escolares e amorosos, ao mesmo tempo que tenta proteger a sua família e amigos, e treina para ser a definitiva caçadora de vampiros. Whedon cria assim uma personagem feminina forte e humana, capaz de lidar com vampiros e demónios, mas capaz de ser frágil perante 67


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