Take 50

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BILLY WILDER

TAKE.COM.PT | ANO 11 | NÚMERO 50


ARTIGOS

CRÍTICAS

04 No Tempo dos Grandes Filmes . editorial 06 A Ascensão dos Deuses - Biografia de Billy Wilder 20 Double Indemnity - O livro e o filme 30 O Lado Noir de Billy Wilder 48 Os Espelhos de Billy Wilder 58 Billy Wilder, Um Austríaco em Los Angeles 72 Wilder, Brackett e Diamond

16 Mauvaise Graine 16 The Major and the Minor 17 Five Graves to Cairo 18 Double Indemnity 24 The Lost Weekend 25 Death Mills 26 The Emperor Waltz 27 A Foreign Affair 28 Sunset Boulevard 34 Ace in the Hole 36 Stalag 17 37 Sabrina 38 The Seven Year Itch 40 The Spirit of Saint Louis 41 Love in the Afternoon 42 Witness for the Prosecution 44 Some Like it Hot 52 One, Two, Three 53 Irma La Douce 54 Kiss Me, Stupid 55 The Fortune Cookie 56 The Private Life of Sherlock Holmes 68 Avanti! 69 The Front Page 70 Fedora 71 TBuddy Buddy

Director José Soares. josesoares@take.com.pt Editora Sara Galvão. Editores adjuntos José Carlos Maltez. António Araújo. Colaboraram nesta edição Aníbal Santiago. António Araújo. João Bizarro. José Carlos Maltez. Pedro Miguel Fernandes. Rui Alves de Sousa. Sandra Gaspar. Sara Galvão. Design José Soares. Ilustração Fernando Mateus. www.behance. net/fernandomateus Imagens Arquivo Take. Alambique. Big Picture Films. Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. Cine Mundo. Columbia TriStar Warner Portugal. Costa do Castelo Filmes. Fox Portugal. Films 4 You. iStock. LNK Audiovisuais. Lanterna de Pedra Filmes. Leopardo Filmes. NOS Audiovisuais. Midas Filmes. Nitrato Filmes. Outsider Filmes. Pris Audiovisuais. Sony Pictures Portugal. Universal Pictures Portugal. Valentim de Carvalho Multimédia. Vendetta Filmes. Imagem de capa Billy Wilder © Todos os Direitos Reservados ao autor. © 2019 Take Cinema Magazine - Todos os direitos reservados. As imagens usadas têm direitos reservados e são propriedade dos seus respectivos donos.

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Š Fernando Mateus


NO TEMPO DOS GRANDES FILMES SARA GALVÃO

Billy Wilder é talvez dos mais eclécticos e versáteis realizadores de Hollywood, com uma obra que vai da comédia ao drama, enchendo-nos o repertório de frases memoráveis, personagens inesquecíveis e um manual ilustrado para diálogo cinematográfico. Apesar dos seus filmes tardios não terem o fulgor das suas primeiras obras americanas — a sua quarta longa-metragem, em 1944, foi Pagos a Dobrar, seguida imediatamente por Farrapo Humano —, a filmografia de Wilder é invejável e mostra, sobretudo, o quão importante é um guião inteligente e de qualidade. Nesta edição, passamos em revista todos os filmes realizados por Wilder — da sua estreia com Mauvaise Graine, em 1934, em França, até à sua última longa, Os Amigos da Onça, em 1981. São quase 50 anos de carreira atrás das câmaras, 27 filmes (sem contar com os para o qual trabalhou como argumentista apenas), inúmeros retratos da sociedade americana que ficaram gravados na História do Cinema. Um realizador de estilo simples e eficaz, conhecido por dar aos actores a possibilidade de terem um papel fora da sua zona de conforto, cujo mérito artístico passa sobretudo por fazer parecer fácil o criar obras-primas.


Billy Wilder, 1906-2002


Billy Wilder, 1906-2002


A ASCENSÃO DOS DEUSES BIOGRAFIA DE BILLY WILDER JOÃO BIZARRO

Billy Wilder foi um americano nascido na Áustria. Argumentista, realizador, produtor, ficou conhecido pelo tom humorístico que dava aos seus filmes, muitos deles sobre temas polémicos, com críticas mordazes ao hipócrita estilo de vida americano. Entre os temas controversos que abordou, inclui-se o alcoolismo — Farrapo Humano (The Lost Weekend, 1945); campos de presos de guerra — Inferno na Terra (Stalag 17, 1953); ou a prostituição — Irma La Douce (1963); e alguns dos seus filmes, como Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950) ou O Apartamento (The Apartment, 1960), figuram entre os melhores filmes da Sétima Arte.

semita, os intelectuais judeus participavam em força na transformação cultural do império. São exemplo o psicanalista Sigmund Freud, o compositor Arnold Schönberg ou o jornalista Karl Kraus. Em 1910, deram-se importantes mudanças politicas e sociais, com o império austro-húngaro a passar por um período conturbado. Em 1914, estalou a Primeira Guerra Mundial depois do assassinato do arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do império, às mãos de uma organização nacionalista sérvia. E esta fase da história mundial é evocada por Wilder, de forma simpática e caricatural, em A Valsa do Imperador (The Emperor Waltz, 1948), o seu único filme que se desenrola na Áustria.

Samuel Wilder nasceu em 22 de Julho de 1906, em Sucha Beskidzka, uma cidade na actual Polónia, que naquela altura pertencia ao império austro-húngaro. Filho de pais judeus, o pai trabalhava na restauração e a mãe tratava da educação dos filhos. Esta era americanista desde que passou uma temporada em casa de um tio nos Estados Unidos, e começou a chamar Billy a Samuel em homenagem ao espectáculo itinerante de Buffalo Bill que tanto apreciou.

Durante esses quatro anos de guerra deu-se o sumptuoso funeral do imperador Francisco José I (1916), um contraste entre miséria e ostentação que sustentará frequentemente a sua futura obra. Em 1918, o armistício colocou fim ao Império, foi implantada a República e os territórios foram divididos. O jovem Wilder desenvolveu-se, ganhando gosto pela leitura, pelo desporto, carros, cinema, teatro e jazz. Apesar de os pais desejarem que ele fosse advogado, Billy preferiu o jornalismo e chegou a entrevistar Richard Strauss e a ser posto na rua por Sigmund Freud, que detestava jornalistas. Por mais que Viena fosse uma cidade animada, estava longe de rivalizar com Berlim. Assim, Wilder propõs ao músico de jazz Paul Whiteman escrever um artigo sobre o seu concerto

Por volta de 1909, a família instalou-se em Viena, cidade que era o laboratório de um grande ressurgimento teatral (Arthur Schitzler) e pictórico (Egon Schiele). Embora Viena fosse governada por um anti7


em Berlim a troco do pagamento da viagem. Wilder chegou a Berlim em 1926. Tinha 20 anos. Muitas cidades foram importantes na vida de Billy Wilder e ele fez delas palco de alguns dos seus filmes. Berlim é uma delas. Naquela altura, Berlim era uma cidade em ebulição, num país obcecado pelo nacionalismo. O populismo e anti-semitismo eram armas dos discordantes do comunismo. “Mein Kampf” tinha sido publicado em 1925, mas, nessa altura, o Partido Nacional Socialista de Hitler não era mais que um pequeno grupo sem futuro. Esses anos da República de Weimar (designação histórica pela qual é conhecida a república estabelecida na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial) foram de grande riqueza artística. Das experimentações da escola de Bauhaus às indagações teatrais de Max Reinhardt, dos romances de Stefan Sweig às poesias de Gottfried Benn, dos retratos de Otto Dix às abstracções de Paul Klee, as artes estavam em mudança. O cinema alemão era um dos melhores do mundo, com 200 filmes produzidos por ano, sendo um dos expoentes máximos Fritz Lang, que tinha acabado de realizar Metropolis (1927). A corrente artística que estava na moda era o expressionismo, projecção de uma subjectividade que tendia a deformar a realidade para inspirar no espectador uma reacção emocional de estranheza, tendo o cinema mudo alemão sofrido a sua influência.

Marlene Dietrich e Billy Wilder no set de A Foreign Affair 8


Billy Wilder and Ginger Rogers no set de The Major and the Minor Em resposta ao expressionismo, o verismo — uma escola italiana que pretendia representar a realidade, incluindo o quotidiano, o feio e o vulgar — impôs-se sobre os criadores. Wilder adoptou este ponto de vista e explorou uma Berlim sórdida, grotesca, burlesca e pitoresca. Nessa cidade, a droga e os travestis estavam na moda. Cada um tentava intrujar o próximo e a prostituição e a corrupção gozavam de uma situação privilegiada. O cinismo era um modo de vida e Wilder, mais voyeur que perverso, fez o que tinha a fazer, chegando a tornar-se dançarino-gigolô para conseguir escrever um artigo sobre esse tema.

Mais argumentos para uma série de filmes alemães e franceses se seguiram nos quatro anos seguintes, mas quando os Nazis chegaram ao poder, em 1933, Wilder, como tantos outros judeus ligados às artes (e não só), teve de fugir. Em Paris, ele realizou o seu primeiro filme, Mauvaise Graine (1934), em parceria com Alexander Esway, antes de seguir para os Estados Unidos após uma breve passagem pelo México. Durante os primeiros anos em Hollywood, Billy Wilder alojou-se em casa do actor alemão Peter Lorre, que o ajudou no inglês e foi colaborando com argumentistas que traduziam o seu trabalho. Foi assim que surgiram, por exemplo, Music in the Air (Joe May, 1934) ou A Lotaria do Amor (The Lottery Lover, Wilhelm Thiele, 1935). Em 1937, a Paramount propôs-lhe trabalhar com o ex-crítico de teatro nova-iorquino Charles Brackett. Desta colaboração surgiram comédias românticas como A Oitava Mulher do Barba Azul (Bluebeard's Eighth Wife, Ernst Lubitsch, 1938), Meia-Noite (Midnight, Mitchell Leisen, 1939), Ninotchka (Ernst Lubitsch, 1939) e Bola de Fogo (Ball of Fire, Howard Hawks, 1941). Provavelmente, o trabalho mais pessoal de Wilder durante este período foi A Minha História (Hold Back the Dawn, Mitchell Leisen, 1941), um drama convincente sobre um refugiado europeu (interpretado por Charles Boyer) retido no México que usa as suas artimanhas para

Por essa altura, o seu irmão Wilhelm emigrou para Nova Iorque e Billy continuou em Berlim a colaborar para diversos jornais, onde escrevia sobre desporto, teatro e cinema, chegando a escrever um grande artigo sobre os filmes de Erich von Stroheim, cujo realismo implacável o fascinava. Também foi colaborador anónimo em cerca de cinquenta argumentos e aconselhou-se com Carl Meyer, autor de O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, Robert Wiene, 1920). Em 1929, o seu nome apareceu pela primeira vez no genérico de um filme, Der Teufelsreporter (Ernest Laemmle, 1929) e no ano seguinte apareceu creditado como co-argumentista no filme Menschen am Sonntag (1930), de Edgar G. Ulmer e Robert Siodmak.

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Jack Lemmon e Billy Wilder seduzir uma professora americana (Olivia de Havilland) com o objectivo de se casar e poder entrar nos Estados Unidos.

Pagos a Dobrar é um filme contado pelo assassino, construído pelo seu percurso criminoso, num misto de reportagem e confissão. Foca-se a mudança de identidade, a mentira e a corrupção. Cada personagem comete ou denuncia um crime cujo motivo é o sexo e o dinheiro. Wilder contratou Barbara Stanwyck, que tinha descoberto no plateau de Bola de Fogo, e Edward G. Robinson, figura emblemática do thriller, mas deulhes papéis diferentes daqueles a que estavam habituados. Do mesmo modo, escolheu Fred MacMurray, um actor de comédia, para vestir a pele da personagem principal, o anti-herói que inverte a sua função profissional — descobrir os que tentam enganar a seguradora — para se tornar um vigarista e um assassino. Pagos a Dobrar foi um sucesso de crítica e de bilheteira e Wilder foi nomeado para os Óscares de Melhor Argumento e Melhor Realização.

Em 1942, Wilder e Brackett iniciaram uma nova fase: Wilder dirigia, Brackett produzia, e o argumento era partilhado por ambos. O primeiro filme neste formato foi A Incrível Susana (The Major and the Minor, 1942), seguindo-se Cinco Covas no Egipto (Five Graves to Cairo, 1943), um thriller de guerra. No ano seguinte surgiu um dos melhores film noir de sempre, Pagos a Dobrar (Double Indemnity, 1944). Nesse ano, muitas produções concretizaram uma nova tendência: o film noir e os autores que a consagraram eram geralmente de origem europeia. Filmaram melodramas ou thrillers num estilo muito marcado por pormenores formais do cinema alemão anterior ao Nazismo. O aspecto do pesadelo aproximava-se do naturalismo. Estas obras pessimistas costumavam projectar uma estrutura dramática influenciada por O Mundo a Seus Pés (Citizen Kane, Orson Welles, 1941): voz off e flashbacks. Wilder adoptou esta atitude em Pagos a Dobrar, a adaptação de um romance policial de James M. Cain. O seu parceiro, Charles Brackett, não se sentia inspirado pelo tema sórdido e foi substituído por Raymond Chandler, que escreveu um argumento distinto dos estereótipos ligados ao género policial. A relação entre Wilder e Chandler não foi fácil, com este a acusar o primeiro de o tratar como subalterno, mas a colaboração foi eficaz.

Apesar de ser conhecido pelas comédias que produziu e realizou, não foi este género que consagrou Billy Wilder como realizador em Hollywood, mas sim os seus filmes negros. O sucesso de Pagos a Dobrar contribuiu para impor este movimento que surgia há algum tempo e que iria desabrochar em 1944 com a estreia de outros filmes de cineastas da Europa Central: Laura (Otto Preminger, 1944), A Mulher Desconhecida (Phantom Lady, Robert Siodmak, 1944) ou Suprema Decisão (The Woman in the Window, Fritz Lang, 1944). Marcadas pelo estilo 10


Billy Wilder com Gloria Swanson e Cecil B. DeMille no set de Sunset Boulevard germânico, todas estas obras tinham o cunho do seu autor, e o sórdido não aparecia da mesma forma. Preminger juntava-lhe uma sofisticação de gelo. Siodmak e Lang brincavam com o onirismo ou apelavam à psicanálise. Wilder optava por um realismo inquietante, colocando a ficção criminal ao nível de uma reportagem, o que dava ao filme um reflexo da realidade que recusava todo o romantismo.

em que uma aristocrata prussiana se apaixona por um representante americano desejoso de vender um gramofone ao imperador austrohúngaro. Nesse mesmo ano assina A Sua Melhor Missão (A Foreign Affair, 1948), comédia romântica passada na Berlim ocupada. O início da década de 50 marcou o fim da colaboração entre Wilder e Brackett, não sem antes deixarem mais uma vez a marca com aquele que será, provavelmente, o seu melhor filme. Crepúsculo dos Deuses é um conto mordaz de um argumentista desempregado que concorda em ir viver com uma excêntrica ex-estrela do cinema mudo que quer que ele escreva o argumento do seu regresso ao mundo do cinema. O filme é narrado pelo cadáver do argumentista, que se encontra a flutuar, de bruços, numa piscina. A força da narrativa ainda é considerada por muitos críticos como o retrato mais fiel do mundo do cinema: o melhor filme sobre filmes. William Holden teve aqui o primeiro papel importante da sua carreira. Notável também o realizador Erich von Stroheim como o mordomo/ex-marido/ex-realizador de Norma Desmond (Von Stroheim, de facto, dirigiu Gloria Swanson no inacabado filme mudo Queen Kelly, com um segmento deste filme a ser mostrado em Crepúsculo dos Deuses). Mas é o desempenho deliberadamente exagerado de Swanson como a trágica Norma, que se destaca no que às interpretações diz respeito e, tudo somado, faz deste filme uma das obras-primas da

Wilder começava a deixar a sua marca, e conseguiu igualar o sucesso de Pagos a Dobrar no ano seguinte com Farrapo Humano, um retrato angustiante da luta de um homem contra o alcoolismo. Ele não mostra que o alcoolismo cria um corte nocivo com a realidade. Em vez disso, indica que quem bebe está a atravessar uma realidade bem mais terrível: a sua própria indolência. A realização não deixa de julgar a personagem pela sua indolência, mais do que pelo seu vício. Ray Milland fez a interpretação de uma vida, tendo o filme arrecadado quatro Óscares: Melhor Filme; Realizador; Argumento e Actor Principal. Apesar de ser um dos realizadores em alta, naquela altura, Wilder fez uma pausa de três anos na carreira para se juntar ao exército, servindo como Coronel na Divisão de Psicologia Militar, em Berlim. O seu primeiro filme após cumprir o serviço militar foi A Valsa do Imperador (The Emperor Waltz, 1948), uma comédia musical com Bing Crosby e Joan Fontaine 11


Billy Wilder e Marilyn Monroe no set de Some Like It Hot história do cinema. Apesar de ter tido onze nomeações, Crepúsculo dos Deuses só arrecadou três estatuetas douradas, sendo uma delas a de Melhor Argumento.

Hepburn. Logo a seguir, Wilder fez um filme encomendado pela Fox, à qual a Paramount o emprestou, O Pecado Mora ao Lado (The Seven Year Itch, 1954). O êxito do filme deveu-se à actriz principal, Marilyn Monroe, e à famosa cena no respiradouro do metro, onde o vestido levantado expõe umas coxas inolvidáveis.

O êxito de Wilder impeliu o seu irmão Wilhelm a deixar os negócios em Nova Iorque e a rumar a Hollywood. Produziu e assinou dezasseis filmes de série B, sem importância nem talento. Wilder lamentava o mimetismo do único sobrevivente da família, mas nunca interveio no seu destino. A partir de 1951, Wilder passou a produzir os seus próprios filmes, começando com O Grande Carnaval (Ace in the Hole, 1951), uma parábola mordaz sobre o fascínio do público pelo mórbido e a maneira como os jornalistas o exploram. Público e crítica reagiram mal, e este foi o primeiro fracasso da carreira de Wilder, apesar de o argumento do filme ter sido nomeado ao Óscar.

Deu-se a ruptura com a Paramount e, nos anos 50, o estatuto de cineasta independente em Hollywood não era habitual. Mas Wilder esteve na origem de sucessos comerciais que o ajudaram a ter alguma liberdade. Para a Warner Bros rodou um filme diferente dos que fizera até então, o único registo biográfico da sua carreira. Trata-se de A Águia Solitária (The Spirit of Saint Louis, 1957), onde James Stewart interpreta o famoso aviador Charles Lindbergh, cujo voo solitário de 1927, entre Nova Iorque e Paris, é a peça central em torno da qual Wilder construiu uma história de primeira categoria.

A sua sinceridade não o impediu de ser astuto e ganhou novamente fôlego ao adaptar uma peça de teatro de sucesso que se desenrola num campo de prisioneiros durante a Segunda Guerra Mundial, Inferno na Terra. O filme foi um sucesso e William Holden venceu o Óscar de Melhor Actor. Com este novo fôlego, Wilder voltou a adaptar uma peça de teatro, Sabrina (1954), contando com interpretações de Humphrey Bogart (com o qual não se deu muito bem, embora isso não se note no filme) e Audrey

Com Ariane (Love in the Afternoon, 1957), Wilder começou a trabalhar com um novo parceiro de escrita, I. A. L. Diamond, embora esta primeira colaboração entre ambos seja geralmente considerada como um dos seus momentos mais baixos. Esta homenagem às comédias sofisticadas de Lubitsch, baseada no romance Ariane, de Claude Anet, apresentava um envelhecido Gary Cooper como um playboy americano que vive em 12


Jack Lemmon, Billy Wilder e Walter Matthau no set de Buddy Buddy

Audrey Hepburn e Billy Wilder no set de Sabrina

Paris, onde se apaixona por uma jovem violoncelista (Audrey Hepburn) e contrata inadvertidamente o seu pai, um detective particular (Maurice Chevalier) para a investigar. Ainda em 1957, Wilder rodou Testemunha de Acusação (Witness for the Prosecution), um drama de tribunal brilhantemente estruturado, baseado numa obra de Agatha Christie.

comédia dramática e usou o Cinemascope a preto e branco para obter um realismo ao estilo do verismo. É um filme mórbido e desencantado onde todos bebem, fornicam (excepto o empregado) e se fazem passar por aquilo que não são, num seguimento de clausuras físicas e mentais, cada uma mais feia que a outra. Através de um paradoxo tipicamente americano, este filme implacável para com as instituições do país foi recompensado com uma série de Óscares, dos quais três vão para Billy Wilder: Produção, Realização e Argumento.

O filme seguinte foi Quanto Mais Quente Melhor (Some Like it Hot, 1959), que foi, não só uma das comédias mais bem-sucedidas da década, como ainda é considerada uma das melhores comédias da história do cinema. Esta farsa sexual desenfreada mostra Tony Curtis e Jack Lemmon a fugir de uns mafiosos vestindo-se de mulheres e infiltrando-se no meio de uma banda feminina. No meio dos dois mete-se uma sedutora, mas vulnerável, cantora interpretada por Marilyn Monroe naquele que seria o papel mais lucrativo da sua carreira. Mais umas nomeações aos Óscares para o currículo do realizador/argumentista.

O anticomunismo é um tema recorrente nos filmes de Wilder. O modelo soviético nunca o fascinou. Desde a sua participação em Ninotchka, de Lubitsch, sempre o rejeitou. Mas, embora forte individualista, nunca denunciou ninguém na famosa “caça às bruxas”. Quando realizou o filme seguinte, Um, Dois, Três (One, Two, Three, 1961), as suas indirectas contra a União Soviética eram tão ferozes que a crítica de esquerda o censurou. Esta sátira não se limita a ridicularizar a URSS. Os Estados Unidos também levam uma boa ensaboadela. O presidente da CocaCola alemã quer investir no mercado soviético e, quando acolhe a filha do seu patrão, esta apaixona-se, casa e fica grávida de um comunista até o transformar num ardente capitalista. Este filme seria um fracasso comercial, uma vez que o Muro de Berlim estava a ser construído, e o público não estava interessado em rir com a Guerra Fria.

A década de 60 iniciou-se com outro dos grandes filmes da carreira de Wilder. O Apartamento conta a história de um empregado arrivista que empresta o apartamento aos seus superiores para que estes possam cometer adultério. Esta ideia surgira-lhe quinze anos antes ao ver Breve Encontro (Brief Encounter, David Lean, 1945) e, com o abrandamento da censura, conseguiu, finalmente, pô-la em prática. Tratou-a como uma 13


Irma La Douce tem a prostituição como tema central. Da comédia musical francesa original, Wilder e I. A. L. Diamond só conservaram a estrutura. Abandonaram as canções, juntaram personagens secundárias e situações caricatas e escabrosas. Shirley MacLaine é a prostituta (papel que lhe valeu uma nomeação ao Óscar) e Jack Lemmon é o polícia que lhe tenta acabar com o negócio. O provocante Beija-me, Idiota (Kiss me, Stupid, 1964) foi o filme que se seguiu. Foi muito criticado e condenado pelos defensores da moral e bons costumes, acabando por também ser um fracasso nas bilheteiras, sendo mais um filme que viria a ser apreciado com o passar dos anos. Wilder e Diamond voltariam à ribalta com Como Ganhar um Milhão (The Fortune Cookie, 1966), no qual Jack Lemmon interpreta um operador de câmara de TV que é ferido por um jogador enquanto cobria um jogo de futebol, e o seu cunhado (Walter Matthau) fá-lo fingir-se paralítico para obter uma indemnização por perdas e danos. A dupla Lemmon/Matthau criou uma química tão forte que muitos cineastas voltariam a juntá-los. Após quatro anos afastado, Wilder regressou em 1970 com A Vida Privada de Sherlock Holmes (The Private Life of Sherlock Holmes), com co-argumento de Diamond. Inventaram várias aventuras à volta da intimidade da personagem criada por Conan Doyle, mostrando outro

Billy Wilder e Shirley MacLaine no set de Irma La Douce 14


lado da lenda, revelando um herói manipulado pelos outros e pouco apto a resolver enigmas. Os seus últimos filmes seriam Amor à Italiana (Avanti!, 1972), Primeira Página (The Front Page, 1974), onde voltou a juntar Lemmon e Matthau, O Segredo de Fedora (Fedora, 1978) e Os Amigos da Onça (Buddy Buddy, 1981), novamente com a dupla que celebrizou. Durante a sua carreira, Billy Wilder foi nomeado para vinte Óscares da Academia, tendo recebido seis estatuetas douradas. Na 60ª edição da cerimónia, em 1988, Wilder recebeu o Irving G. Thalberg Memorial Award. Crepúsculo dos Deuses, Quanto Mais Quente Melhor, Pagos a Dobrar e O Apartamento, aparecem na lista dos 100 melhores filmes de sempre do American Film Institute. Billy Wilder faleceu em 2002, aos 95 anos, mas a maioria dos seus filmes perdurará para sempre e Wilder continuará a ser conhecido como um dos maiores cineastas da história do cinema. Billy Wilder com os 3 Óscares ganhos pelo filme The Apartment 15


MAUVAISE GRAINE

THE MAJOR AND THE MINOR

RUI ALVES DE SOUSA

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Mauvaise Graine é a estreia pouco vista de Billy Wilder na realização, a meias com Alexander Esway. Wilder não considerava este um “filme a sério”, e esta tragicomédia sobre ladrões de automóveis na Paris dos anos 30 empalidece se confrontada com as suas obras-primas, mas não é por isso que deixa de ser reveladora do seu génio humorístico. Há elementos que seriam aperfeiçoados no futuro, patentes na maneira utilizada para esconder os plot points: em objetos, em olhares pouco discretos e outras subtilezas presentes em momentos humorísticos bem conseguidos. Há mais aqui do que uma simples “curiosidade arqueológica”. E é a oportunidade de encontrar a novíssima Danielle Darrieux, que aos 17 anos era uma estrela em ascensão, e que, com o tempo, seria um dos maiores ícones do cinema francês.

Com A Incrível Susana Billy Wilder arrancou com o pé direito a sua carreira de realizador em Hollywood, depois de uma primeira experiência em França e de vários anos de argumentista na cidade dos sonhos. Não sendo uma obra-prima, é uma brilhante comédia de enganos protagonizada por uma mulher (encarnada por uma extraordinária Ginger Rogers) que se faz passar por criança para comprar um bilhete de comboio mais barato e acaba “adoptada” pelo major Kirby (Ray Milland), que não se apercebe do equívoco. O alvoroço que Susana causa na escola militar onde vai parar, assim como no noivado de Kirby, dá pano para mangas para Wilder se apresentar num novo papel e mostrar o que iria ser no futuro: autor de um dos mais cínicos e mordazes olhares sobre a sociedade e um verdadeiro herdeiro de Lubitsch.

Título internacional: Bad Seed (1934)

Título nacional: A Incrível Susana (1942)

Realização: Billy Wilder, Alexander Esway

Realização: Billy Wilder

Elenco: Danielle Darrieux, Pierre Mingand, Raymond Galle

Elenco: Ginger Rogers, Ray Milland, Rita Johnson

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Título nacional: Cinco Covas no Egipto Realização: Billy Wilder

FIVE GRAVES TO CAIRO

Elenco: Franchot Tone, Anne Baxter, Akim Tamiroff, Erich von Stroheim Ano: 1943

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Fora do seu ambiente, em plena Segunda Guerra Mundial, Billy Wilder apresentava um filme sobre esse conflito, adaptado (por Wilder e Charles Brackett) de uma peça de Lajos Biró, que antes resultara em Hotel Imperial (1927), de Mauritz Stiller, ambientado no conflito mundial anterior. Mas porque é de Wilder que falamos, Cinco Covas no Egipto foge às convenções dos filmes de guerra para se focar nas dinâmicas dos protagonistas num espaço fechado (o interior de um hotel — e aí o filme “denuncia” logo a sua origem na dramaturgia) onde se movimentam o soldado britânico salvo de morrer de insolação Bramble (um Franchot Tone pouco carismático), o egípcio dono do hotel Farid (Akim Tamiroff a deter as réplicas cómicas com que Wilder consegue sempre “domesticar” o drama) e a criada francesa Mouche (uma Anne Baxter pouco confortável nesse papel), sem grandes simpatias por nenhum dos lados.

Quando Bramble veste, sem querer, a pele de um espião alemão ao serviço de Rommel (Erich von Stroheim, a brilhar no seu papel preferido — o do aristocrático alemão entre o cavalheirismo e a crueldade), seguese o suspense do tanto que há a descobrir, do que não queremos que se revele e de não sabermos quem poderá mudar de lado, com um Bramble intrépido, uma Mouche imprevisível e os alemães a serem o que se quer nos filmes, isto é, desconfiados e sempre prontos a fuzilar alguém. Longe do melhor Wilder, Cinco Covas no Egipto é um interessante filme de propaganda (com um discurso final moralizante claramente dirigido ao público) que nos mostra, de modo leve e num enredo envolvente, como uma força alemã organizada e aparentemente invencível pode ser batida pelo improviso e espírito de sacrifício.

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Título nacional: Pagos a Dobrar Realização: Billy Wilder

DOUBLE INDEMNITY

Elenco: Fred MacMurray, Barbara Stanwyck, Edward G. Robinson Ano: 1944

ANTÓNIO ARAÚJO

Pagos a Dobrar contém conspiração, traição, homicídio, amor e sexo — ou pelo menos tanta insinuação de sexo quanto era permitida pelo Código da Produção Cinematográfica americana — na sua narrativa de um realismo cru e inusitado, e no seu retrato um crime (longe de) perfeito. Esta obra decisiva para a expressão pública no grande ecrã do resvalar de personagens falíveis e humanas para o outro lado da moralidade foi adaptada do romance de James M. Cain que, por sua vez, se baseou no julgamento de 1927 onde dois criminosos reais quase perfeitos, Ruth Snyder e Judd Grey, se denunciaram um ao outro, acabando ambos na cadeira eléctrica. Charles Brackett, o colaborador habitual de Billy Wilder, detestou o material e o realizador acabou a trabalhar na escrita do argumento com Raymond Chandler, com quem também veio a ter uma relação atribulada.

irónica revela a essência do film noir em toda a sua glória — ganância que leva ao homicídio, adultério, traição, um investigador bem informado e, no final, a retribuição sobre os amantes criminosos. A curiosidade de Pagos a Dobrar é que estes não são gangsters nem criminosos de profissão, apenas cidadãos comuns corrompidos pela soberba e pela luxúria. Um exemplo do seu amadorismo são os paranóicos encontros no supermercado, depois do crime cometido, em que os amantes desconfiam de qualquer anónimo transeunte. Não há aqui propriamente um herói ou um agente da integridade: todas as personagens são mais ou menos venais. Walter é um homem de vistas curtas e pouca ambição, o alvo perfeito para sucumbir aos encantos de Phyllis e à sua promessa ilusória de excitação. A incapacidade de tomar consciência dos seus próprios erros exacerba o pathos do seu desfecho, corrompido absolutamente pela amante, aparentemente isenta de qualquer sentido de moral, tornando-se assim Barbara Stanwick numa das maiores referências de femmes fatales no film noir.

Fred MacMurray é Walter Neff, um vendedor de seguros que se apaixona por Phyllis Dietrichson, a femme fatale de serviço interpretada por Barbara Stanwyck, usando uma peruca loira que serviu anteriormente Marlene Dietrich. Esta dona de casa provocante deseja a morte ao seu marido e Walter concorda em ajudá-la, utilizando os conhecimentos inerentes à sua profissão para tentar rentabilizar o homicídio através de uma cláusula da apólice de um seguro de vida forjado pelo par que duplica o pagamento em alguns casos particulares. Edward G. Robinson, por sua vez, é Barton Keyes, o chefe de Walter com especial queda para desvendar processos fraudulentos.

O tom fatalista conta com as contribuições decisivas da fotografia de John F. Seitz, aprisionando as personagens em barras de prisão virtuais com as tiras de luz que passam pelas persianas na cena do confronto entre os amantes, bem como da música dramática de Miklós Rózsa. Contas feitas, Walter foi poupado do desfecho inevitável, sendo excluída da montagem final uma cena que mostrava a execução do vendedor de seguros. Nas próprias palavras de Wilder: “Filmei tudo aquilo na câmara de gás, a execução, (...) com uma precisão tremenda. Mas depois apercebi-me de que já estava tudo terminado. Já tinha a minha citação final, do lado de fora do escritório, quando Neff cai quando caminha para o elevador e nem sequer consegue acender um fósforo. E à distância conseguimos ouvir as sirenes, sejam elas de uma ambulância ou de um carro da polícia, sabemos que já terminou. Não havia necessidade da câmara de gás.”

Wilder não idealiza Walter nem dá oportunidade ao espectador de criar empatia com ele pois, dada a estrutura em analepses, somos informados imediatamente na cena de abertura do filme da imoralidade e fracasso das suas acções. Aqui não há qualquer mistério no que respeita ao desfecho da narrativa: o próprio Walter revela-nos a sua confissão conforme efectua uma gravação fonográfica para Keyes. A sua narração 19


Double Indemnity, 1944


DOUBLE INDEMNITY O LIVRO E O FILME ANÍBAL SANTIAGO

Walter Neff: "Sim, matei-o. Matei-o por dinheiro — e por uma mulher — e não fiquei como o dinheiro e não fiquei com a mulher. Bonito, não é? "

O livro é da autoria de James M. Cain. A fita é realizada por Billy Wilder e conta com um argumento inspirado na obra literária, escrito pelo cineasta e por Raymond Chandler. Ao colocarmos lado a lado o livro e o filme é possível observarmos algumas diferenças entre ambos, algo completamente natural numa adaptação de material literário para o grande ecrã. A começar pelos nomes das personagens. O Walter Huff de Cain passa a ser Walter Neff, enquanto Phyllis Nirdlinger torna-se Phyllis Dietrichson na marcante fita do realizador oriundo da Galícia, embora a alma destes exemplares noir seja a mesma. Walter é duro e deixa-se apaixonar pela femme fatale em ambas as obras. Phyllis é manipuladora e sedutora, quer no livro, quer no filme. Se a fita for visionada antes da leitura do livro, é praticamente certo que a tarefa de dissociar os personagens dos seus intérpretes será assaz complicada, sobretudo quando estamos perante os protagonistas, seja pelas interpretações marcantes de Fred MacMurray e Barbara Stanwyck, ou pela capacidade do argumento em transportar as especificidades de Walter e Phyllis para a tela.

Se Walter Neff ficou sem o dinheiro e a mulher fatal, já os leitores e os espectadores de Double Indemnity continuarão a ter a oportunidade de revisitar o livro e o filme que partilham entre si o nome e a essência. Ambos contam com uma atmosfera de malaise, personagens de moral ambígua, a femme fatale, um protagonista aparentemente duro, traições, ou seja, muitos ingredientes associados aos noir. No cerne das duas obras encontra-se o plano que Walter e Phyllis efectuam para eliminar o esposo desta. O primeiro é um vendedor de seguros aparentemente perspicaz, que tem no momento em que se desloca a casa de Mr. Nirdlinger/Dietrichson, para renovar o seguro automóvel do mesmo, o episódio-charneira da sua existência. É nessa ocasião que conhece Phyllis e desde aí fica plantada a semente para um jogo de sedução que desemboca na morte do esposo da antiga enfermeira. Tudo é planeado para parecer um acidente, com vista a que a viúva receba a indemnização dupla do título e os amantes possam mais tarde viver felizes para sempre. Claro que, ao estarmos numa obra noir, o destino da dupla não é a felicidade, mas sim a perdição ou a infelicidade, com os dois a percorrerem alguns caminhos tortuosos até chegarmos ao desfecho.

Na película, Billy Wilder começa o enredo in media res, com Walter a encontrar-se ferido, em visível mau estado, enquanto se desloca até ao local de trabalho, onde se prepara para utilizar o gravador de Barton Keyes (Edward G. Robinson), o seu superior e amigo, para confessar os 21


Double Indemnity, 1944 seus crimes, ou seja, aquilo que o atormenta. A narração em off é um recurso transversal a uma miríade de filmes noir. Double Indemnity não é excepção, com o enredo a ser apresentado a partir do ponto de vista do vendedor de seguros. No caso do livro, o ponto de vista é o mesmo, tal como a narração ao bom estilo hard boiled, ainda que James M. Cain opte por colocar a personagem principal a narrar os episódios desde o momento em que chegou a casa de Mr. Nirdlinger. Não obstante, o autor deixa claro que o protagonista e narrador já sabe o desfecho dos acontecimentos que está a relatar, algo notório desde a primeira página, quando Walter salienta "Decidi correr até lá. Foi assim que cheguei a esta Casa de Morte, de que têm estado a ler nos jornais. Não parecia uma Casa de Morte quando a vi. Era apenas uma casa espanhola, como todas as outras na Califórnia (...)", qual depoimento que nos torna cúmplices de tudo aquilo que está a ser exposto e aguça a nossa curiosidade em relação ao modo como esse espaço adquiriu uma designação pouco lisonjeira.

a obra literária foi inicialmente publicada em oito partes na revista Liberty, tendo sido parcialmente inspirada num homicídio que ocorreu em 1927, em particular, o assassinato do esposo de Ruth Snyder. O homicídio foi perpetrado por esta e o amante, com ambos a terem como objectivo receberem a indemnização do seguro de vida de Albert. Cain traz um vendedor de seguros para o interior da trama e coloca-o num berbicacho que tem tudo para correr mal. Existem algumas diferenças a pontuarem os actos de Walter no livro e no filme. Por exemplo, o plano do protagonista para eliminar Phyllis. No filme, ele desloca-se até à casa desta. No livro, o vendedor de seguros efectua um plano bem mais elaborado, que visa a obtenção de álibis sólidos, a utilização de um carro que não lhe pertence e atirar a femme fatale para a morte. Por sua vez, na fita, Neff salienta que conta com uma empregada de cor, enquanto na obra literária é mencionado um filipino, com as diferenças entre os dois trabalhos a irem desde pequenos pormenores a elementos de maior relevo.

A localização da habitação é a mesma no livro e no filme, tal como as motivações do vendedor para se deslocar à "casa de morte” e a utilização precisa do protagonista como narrador de serviço. No entanto, importa realçar algumas das diferenças entre o exemplar da autoria de James M. Cain e a película de Billy Wilder. Dividida em catorze capítulos,

O que também conta com algumas mudanças, seja por razões criativas ou restrições inerentes ao Código Hays, é a ligação que se forma entre Lola (a filha de Mr. Dietrichson ou Mr. Nirdlinger) e o protagonista. Se na película o sentimento de culpa e a preocupação do vendedor de seguros marcam a relação da dupla, já na obra de James M. Cain é bem saliente 22


Double Indemnity, 1944 que este ama a jovem, embora não seja totalmente correspondido pela mesma. Uma personagem que é mais desenvolvida no livro é Nino Zachetti, o jovem com quem Lola se encontra envolvida. Note-se a ligação do passado deste ao de Phyllis e uma descrição mais gráfica do envolvimento destes dois — algo que não consta na fita —, ou o destaque atribuído a este estar a concluir a tese e ter contraído um empréstimo junto de uma empresa de Walter. No filme, este pauta-se sobretudo pelo comportamento arisco, inclusive junto do protagonista. A unir as duas obras encontra-se o facto de Lola formar inicialmente algumas suspeitas no que diz respeito à possibilidade do amado ter participado no assassinato do progenitor.

seria praticamente impossível manter o final do livro, sobretudo à luz das imposições do Código Hays, com Billy Wilder a optar por um desfecho igualmente impactante e típico dos noir, ou seja, eivado de desesperança. Billy Wilder e Raymond Chandler contaram com uma relação conturbada durante a elaboração do argumento (algo que serviu de material para a peça Billy Ray), ainda que a colaboração tenha sido extremamente proveitosa. Chandler nem era a primeira escolha do cineasta. Charles Brackett saiu do projecto — voltaria a colaborar com Wilder em Farrapo Humano (The Lost Weekend, 1945) —, após ter participado no primeiro tratamento do argumento, enquanto Cain, o autor do livro, parecia reunir a preferência do realizador. A escolha acabou por recair em Chandler, um autor com uma larga experiência nos noir, com a dupla a contribuir para um dos mais emblemáticos filmes do subgénero. Alguns diálogos foram mantidos, ou praticamente não conheceram alterações (como a fala citada no início do texto), outros passaram por algumas modificações, mas é notório que existiu toda uma capacidade de transportar o ambiente da obra literária para o filme. O talento de Chandler e Wilder para as palavras assemelha-se à capacidade de James M. Cain para criar um noir envolvente, com livro e filme a contarem com diversos elementos associados ao subgénero e a contribuírem para a marca deixada pelo mesmo.

Outro elemento que conhece algumas alterações é Keyes, com o analista de seguros, responsável por avaliar as queixas, a ganhar um relevo mais acentuado na película, onde é praticamente o mentor do protagonista e amigo pessoal do mesmo. No livro, este começa a desconfiar de algo, é igualmente perspicaz e confia em Walter, embora as dinâmicas entre ambos não sejam tão desenvolvidas. Apesar disso, na obra de James M. Cain encontramos uma animosidade de Keyes para com o dono da seguradora, o filho do anterior proprietário, que não constava de modo tão acentuado na fita e permite expor outras "camadas" da personagem. Também o desenlace das duas obras difere. Diga-se que 23


Título nacional: Farrapo Humano Realização: Billy Wilder

THE LOST WEEKEND

Elenco: Ray Milland, Jane Wyman, Phillip Terry Ano: 1945

RUI ALVES DE SOUSA

Ao contrário de outros dramas sociais, Farrapo Humano sobreviveu ao contexto em que foi criado. Esta história de um alcoólico (Ray Milland) e das suas artimanhas para conseguir saciar o seu vício despertou a atenção de Billy Wilder ao ler o livro numa viagem de comboio. O resultado é uma experiência emocionante que mantém uma sensação de desespero fantasmagórico incutida pelo desenvolvimento da narrativa, os planos utilizados e a assombrosa banda sonora de Miklos Rózsa.

abandonar a ideia do suicídio num final feliz forçado, convencendo a sua amada, com duas ou três frases que soam a falso, que a sua jornada das trevas acabou. Apesar disso, e de alguns diálogos demasiado explicativos (algo estranho em Wilder), não se danifica tudo o que de bom encontrámos até então: um retrato impiedoso e negro de uma vida torturada. Ficam alguns grandes momentos de Cinema — como a fabulosa cena em que Milland, que assiste a uma ópera, vê todos os atores do espetáculo como se fossem réplicas do seu casaco com a garrafa que deixou na receção da sala a dançar de um lado para o outro. Felizmente que O Grande Carnaval (Ace in the Hole, 1951), talvez o filme mais cínico de Wilder, não teve o seu poderoso final alterado — pode ter sido um flop, mas resiste hoje como uma obra-prima.

Vendo o filme hoje, percebemos que houve refilmagens das últimas cenas, e isso nota-se quando, depois de acompanharmos toda a viagem até às profundezas mais obscuras (e horripilantes) da vida daquele viciado com tanta atenção aos detalhes psicológicos, nos deparamos com um final insólito. Apesar de todas as dificuldades que Milland passa para conseguir deixar a bebida uma e outra e outra vez, vemo-lo de repente

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Título Internacional: Death Mills Realização: Billy Wilder

DEATH MILLS

Ano: 1945

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Alemão de nascença, filho de judeus austríacos e nascido numa povoação do que hoje é o sul da Polónia, Billy Wilder parece ter na sua biografia muito do que foi a transformação da Europa a meio do século XX. E foi com essa motivação que o realizador, então naturalizado norteamericano, voltou à Alemanha, em 1945, para filmar a realidade dos campos de concentração nazis, no momento em que as forças aliadas os libertaram, num registo que o afasta completamente daquilo que dele habitualmente esperamos.

amontoados de corpos ou a realidade do que era feito com tudo aquilo que dos corpos era retirado (do cabelo aos dentes, terminando nas próprias cinzas utilizadas como fertilizantes). Com imagens de visitas de chefes militares, de consultas médicas e de prisioneiros a mostrar, em primeira mão, algumas das práticas a que eram submetidos, é interessante como a palavra “judeu” não é mencionada, referindo-se que pessoas de todas as nacionalidades, credos e afiliações políticas por eles passaram. Se poucas vezes a espécie humana, de um modo tão organizado e massivo, desceu tão baixo, Death Mills (que na versão original alemã — Die Todesmühlen — é creditado a Hanus Burger), filmado para ser mostrado na Alemanha e depois dobrado para inglês, é um impressionante documento de um horror que esperamos que nunca mais precise de ser documentado.

Se esta descrição já sugere um documentário de horror, as imagens mostram isso mesmo. De descrições (em off) dos crimes praticados sobre os prisioneiros à documentação visual dos locais onde tal aconteceu, o que mais impressiona são mesmo as imagens dos esqueletos vivos em que muitos prisioneiros se tornaram, bem como os

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Título nacional: A Valsa do Imperador Realização: Billy Wilder

THE EMPEROR WALTZ

Elenco: Bing Crosby, Joan Fontaine, Roland Culver Ano: 1948

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Seis anos após a estreia na realização nos EUA com A Incrível Susana, período durante o qual realizou três filmes em tons de negro — os três em géneros distintos: a guerra em Cinco Covas no Egipto, o noir em Pagos a Dobrar e o drama social em Farrapo Humano —, Billy Wilder regressou às comédias e aos filmes marcados pela influência de Ernst Lubitsch.

a deliciosa sequência da dança dos empregados da estalagem quando a porta do quarto se fecha no primeiro andar? Construído em torno de Bing Crosby, quase como se de um veículo para o actor-cantor se tratasse, A Valsa do Imperador é contudo um filme onde quem brilha mais é a sua parceira Joan Fontaine, que ganha aos pontos à grande vedeta.

Bem ao jeito do seu mentor, em A Valsa do Imperador Wilder transportanos para a Áustria imperial, palco de tantas e tão boas obras-primas “lubitschianas". Mas os tempos eram outros e os gags e trocadilhos vão muito mais longe num filme onde o tenente sedutor é um vendedor americano a quem não falta uma viúva alegre para conquistar, com uma fabulosa trama em pano de fundo protagonizada pelos cães dos dois que mais não é do que a representação do que todos estão verdadeiramente à procura. E que melhor homenagem poderia ser feita a Lubitsch do que

Primeiro filme a cores de Wilder, mesmo não sendo dos mais conhecidos, tem o suficiente para agradar aos fãs do autor e aos mais nostálgicos do cinema de Lubitsch, verdadeiro homenageado neste regresso luminoso aos tempos do império cuja queda levou a Europa a mergulhar de novo nas trevas e a perder toda uma cultura que seria mais tarde resgatada no cinema por alguns dos seus maiores génios.

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Título nacional: A Sua Melhor Missão Realização: Billy Wilder

A FOREIGN AFFAIR

Elenco: Jean Arthur, Marlene Dietrich, John Lund Ano: 1948

ANÍBAL SANTIAGO

A cidade de Berlim, após a Segunda Guerra Mundial, surge como uma das protagonistas de A Foreign Affair, com Wilder a captar algumas das especificidades deste espaço, sem nunca descurar a mistura de leveza e peso dramático que percorre o enredo desta obra onde um soldado (Lund), uma congressista (Arthur) e uma cantora de um clube nocturno (Dietrich) se envolvem num triângulo amoroso. Lund imprime carisma, um estilo conquistador e espirituoso ao seu John. Arthur transmite com acerto a atitude inicialmente contida e bastante rigorosa da sua Phoebe, uma congressista que se desloca ao território para avaliar a moral das tropas, com a intérprete a convencer quando a protagonista se começa a soltar um pouco mais. Por sua vez, Dietrich insere uma faceta sedutora, misteriosa, maliciosa, delicada e pragmática à sua Erika, uma mulher intimamente ligada ao Terceiro Reich.

Phoebe pretende descobrir quem está a ajudar a artista, algo que a conduz a procurar o auxílio de John, embora não saiba que este se encontra envolvido com a segunda. Estão estabelecidas as bases para um triângulo amoroso que muito tem dos filmes de Wilder, bem como para uma miríade de mal-entendidos, revelações e momentos recheados de romantismo. Temos ainda alguns números musicais e uma exposição eficiente do quanto o meio e o contexto influenciam as personagens. A cinematografia realça este contraste entre luz e sombras que pontua o filme e o comportamento de algumas figuras, um pouco à imagem dos cenários interiores, inclusive o Lorelei, um espaço onde a personagem de Dietrich coloca a nu os encantos e os desencantos desta cidade que serve de palco para uma obra extremamente recomendável de Billy Wilder.

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Título nacional: Crepúsculo dos Deuses Realização: Billy Wilder

SUNSET BOULEVARD

Elenco: William Holden, Gloria Swanson, Erich von Stroheim Ano: 1950

ANTÓNIO ARAÚJO

Apesar da presença de Crepúsculo dos Deuses no panteão do film noir, e da abertura que revela um crime com uma assombrada narração em off que recorre à analepse para revelar a história que levou àquele desfecho, esta obra realizada em 1950 por Billy Wilder é única por utilizar a estética e os elementos dos filmes negros para desconstruir um universo que o realizador bem conhecia: o da indústria cinematográfica. Nomeadamente o culto fugaz da celebridade e a superficialidade com que as estrelas de antanho eram esquecidas e substituídas, especialmente na transição sísmica do cinema mudo para o sonoro — tema também explorado mais tarde no musical Serenata à Chuva (Singin' in the Rain, 1952), num tom mais jovial.

que ela nutre por ele, e alimentando a crença na farsa do seu regresso à ribalta. A ambição de Joe não o impede de ceder à tentação de ganhar dinheiro fácil, abdicando da sua liberdade e subjugando-se ao papel de macaco de companhia, substituindo o animal literal que até então executava a mesma função — e ao assistir ao enterro surreal do primata, Joe tem um vislumbre do seu próprio destino. Voltando ao início, que é também o seu fim, podemos encontrar a primeira de várias cenas icónicas de Crepúsculo dos Deuses. Joe narra os acontecimentos que levaram à sua própria morte, flutuando fantasmagoricamente na piscina e num purgatório metafísico que dá voz a mais uma personagem trágica do film noir que, apesar da possível redenção, acaba por encontrar a morte na sequência das suas próprias opções. Outros momentos marcantes e altamente citáveis são servidos por Norma Desmond — “I am big. It's the pictures that got small.”; “We didn't need dialogue. We had faces!”; “All right, Mr. DeMille, I'm ready for my close-up.” —, mas nenhum será tão célebre como aquele em que a diva ensandecida desce as escadas de forma dramática e concede um último e inesquecível grande plano.

Ao retirar da reforma a estrela dos filmes mudos Gloria Swanson para interpretar o papel de Norma Desmond, Wilder, o colaborador habitual Charles Brackett e D. M. Marshman Jr. desenharam uma narrativa que estabelece alguns paralelos entre o elenco e as suas personagens. Norma vive sob o brilho do seu estrelato há muito extinto, mas mantido pela sua ilusão delirante e pelo logro do mordomo Max von Mayerling, seu antigo realizador e primeiro marido, agora reduzido a servir Norma numa relação de fascinante complexidade. Não é coincidência, portanto, que Max tenha sido interpretado por Erich von Stroheim, veterano actor e realizador de cinema mudo que tinha dirigido Gloria Swanson em 1929 em A Raínha Kelly (Queen Kelly), um dos seus famosos papéis. William Holden, um actor na mó de baixo por altura da produção, interpretou Joe Gillis, um aspirante a argumentista sem sucesso na sua tentativa de vender os guiões que escreve. Ao cruzar-se por acaso com Norma, cria-se uma relação profissional entre os dois — Norma planeia o regresso ao grande ecrã com um argumento que escreveu e que Joe, ao perceber a potencial fonte de rendimento, se ofereceu para editar —, mas que rapidamente se transforma numa relação de dependência: Joe vai aceitando presentes e vestuário caro oferecidos por Norma, apesar de não reciprocar o amor

A perversidade da relação entre Joe e Norma chocou meia Hollywood, apesar da outra metade ter aceitado participar na crítica velada de Billy Wilder à fábrica de sonhos em que o próprio se movia. Além de inúmeras referências a nomes bem conhecidos da indústria cinematográfica, encontramos no elenco nomes como Buster Keaton e Cecil B. DeMille, este último central à trama, e visitamos o interior dos famosos estúdios da Paramount Pictures. Ironicamente, Crepúsculo dos Deuses viria a ser reconhecido pela indústria que visava, tendo sido nomeado para onze Óscares e conquistado três estatuetas: Cenografia e direcção artística, Argumento e Banda-sonora, para Franz Waxman.

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Sunset Boulevard, 1950


O LADO NOIR DE BILLY WILDER ANTÓNIO ARAÚJO

Quando o primeiro estudo exaustivo em inglês sobre film noir apareceu em 1979 — Film Noir, An Encyclopedic Reference to the American Style (Alain Silver, Elizabeth Ward) —, o termo era ainda desconhecido fora das escolas de cinema. Com o impacto acrescido de um movimento neo-noir em desenvolvimento nos anos oitenta, começou-se finalmente a adoptar o termo inventado por alturas do fim da Segunda Guerra Mundial pelos franceses, críticos sempre astutos do cinema produzido na América do Norte. A popularidade do existencialismo e da psicologia freudiana junto de uma audiência susceptível após uma depressão económica e uma guerra mundial ajudaram a definir os contornos temáticos deste género tardiamente reconhecido no seu país de origem. Tendo como inspiração literária as obras policiais hard-boiled — de nomes como Dashiell Hammett ou Raymond Chandler —, bebeu também influências de filmes do expressionismo alemão — de realizadores como Fritz Lang ou F. W. Murnau —, bem como do realismo poético trazido pelos autores europeus que viriam a ser decisivos na estética do film noir do período clássico — o próprio Lang, Otto Preminger, Robert Siodmak, Max Ophüls, Jaques Tourneur, Jean Renoir ou Billy Wilder.

Pagos a Dobrar (Double Indemnity, 1944): “Não faço apenas um tipo de filmes e não tenho noção de padrões. Não temos noção de que ‘Este filme será deste género.’ Estamos a tentar fazer um filme que entretenha o mais possível. Se temos algum tipo de estilo, os mais perspicazes detectá-loão.” Não obstante, Wilder acabou por contribuir com títulos importantes para a história do film noir. Se Pagos a Dobrar e Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950) são referências maiores e incontornáveis — tendo definido padrões e lugares-comuns largamente imitados posteriormente —, na sua restante filmografia encontramos outros títulos onde as fronteiras da categorização e tipificação são mais difusas, mas que ainda assim possuem elementos característicos dos filmes negros: Farrapo Humano (The Lost Weekend, 1945) e O Grande Carnaval (Ace in the Hole, 1951). O lado noir de Billy Wilder é constituído por crime e paixão (como não podia deixar de ser), mas não é povoado exclusivamente por femmes fatales e criminosos mais ou menos amadores. Com a excepção do agente de seguros Walter Neff (Fred MacMurray) em Pagos a Dobrar, os protagonistas trágicos dos filmes negros de Wilder são ambiciosos homens das letras — Joe Gillis (William Holden) é um aspirante a argumentista em Hollywood em Crepúsculo dos Deuses, uma desconstrução do estrelato efémero na indústria cinematográfica; Don

Assim, no seu auge, o film noir não era um género definido, uma corrente ou uma estética, mas sim o reflexo cinematográfico de um certo negrume e pessimismo. Recuperando uma citação de Billy Wilder a propósito de 31


Double Indemnity, 1944 Birnan (Ray Milland) é um alcoólico aspirante a romancista em Farrapo Humano, uma descida aos infernos do vício e da obsessão; Chuck Tatum (Kirk Douglas) é um jornalista na mó de baixo sem escrúpulos em O Grande Carnaval, uma sátira algo presciente sobre os limites éticos do jornalismo. Curiosamente, antes ser dada a oportunidade a Wilder para realizar, este era já um argumentista bem-sucedido em Hollywood.

quatro Óscares, incluindo Melhor Filme, valendo ao autor as suas duas primeiras estatuetas — Argumento e Realização — numa carreira que contaria com um total de seis vitórias em vinte e uma nomeações da Academia. Continuando a colaboração na escrita com Charles Brackett iniciada no princípio do seu percurso profissional, a adaptação de Wilder do romance de Charles R. Jackson arrasta-nos para uma espiral de autodestruição em que Don Birnan, no papel que valeu a Ray Milland o seu primeiro Óscar, abdica das réstias de escrúpulos morais que o mantinham à tona, optando por mentir e roubar para conseguir apenas mais um trago de álcool. Inovador, por retratar o alcoolismo com seriedade pela primeira vez num filme de Hollywood, mas também pelo uso do teremim na banda sonora de Miklós Rózsa, Farrapo Humano contraria, no entanto, o desfecho trágico tão caro ao film noir. No final imposto pelas normas do Código Hays, com a ajuda e o amor inquestionável de Helen St. James (Jane Wyman), Don encontra, contra todas as expectativas, a força de vontade para negar o desfecho previsível de quem se entrega desenfreadamente à bebida em busca de inspiração ou do sentido para a vida.

Pagos a Dobrar revela a essência do film noir em toda a sua glória — ganância que leva ao homicídio, adultério, traição, um investigador bem informado e, no final, a retribuição sobre os amantes criminosos. Não só Walter é uma personagem de vistas curtas e pouca ambição, condenado assim que sucumbe aos encantos de Phyllis, como Barbara Stanwick, ao corromper absolutamente o seu amante, aparentemente isenta de qualquer sentido de moral, tornou-se numa das maiores referências de femmes fatales do género. Género que, muito antes da sua definição ou do estigma que passou a apontar estes filmes como produtos de segunda categoria, foi reconhecido pela Academia com nomeações para os Óscares: Pagos a Dobrar contou com sete nomeações, incluindo Melhor Filme e Melhor Realizador, não tendo no entanto levado nenhum prémio para casa.

Com Crepúsculo dos Deuses, Wilder voltou a colocar-se no panteão do film noir, muito embora oferecendo uma perspectiva refrescante que, não obstante se focar no desvendar de um mistério relacionado com um crime, se revela como uma mordaz crítica à indústria cinematográfica

Farrapo Humano, a quarta-longa metragem realizada por Wilder, arrecadou 32


de Hollywood. A estrela dos filmes mudos Gloria Swanson voltou ao grande ecrã para interpretar o papel central de Norma Desmond numa narrativa que ecoa elementos da vida real. A sua relação com o Joe Gillis, um aspirante a argumentista sem sucesso, chocou meia Hollywood, apesar da outra metade ter aceite participar através de pequenos cameos na crítica velada de Billy Wilder à fábrica de sonhos que todos alimentava. Ironicamente, Crepúsculo dos Deuses viria a ser reconhecido pela indústria que visava, tendo sido nomeado para onze Óscares e conquistado três estatuetas, incluindo Melhor Argumento. Apesar deste prémio, Wilder e Brackett tinham tido um desentendimento fracturante sobre a edição de uma montagem a incluir no filme. Wilder ganhou a discussão e afirmou nunca mais trabalhar com Charles Brackett a partir de então, promessa que viria a cumprir. O Grande Carnaval será, talvez, o filme menos celebrado do lado noir de Billy Wilder. Esta sátira conta com Kirk Douglas no papel principal de Chuck Tatum, um jornalista citadino que se vê “aprisionado” ao trabalhar para um jornal de uma pequena cidade no Novo México e que o destino leva a cruzar-se com um homem aprisionado (literalmente) numa caverna. A ambição desmedida de Chuck é o ingrediente necessário e suficiente para que explore a situação, transformando o que seria um salvamento rotineiro num circo mediático ao longo de uma semana inteira, manipulando tudo e todos. Inclusivamente a aspirante a femme fatale Lorraine Minosa, interpretada por Jan Sterling, a esposa do desafortunado homem que também vê neste acontecimento uma oportunidade para acelerar a sua fuga da vida rotineira que não a seduz. Inspirado num caso verídico e nomeado a um Óscar pelo argumento, este é mais um trabalho cínico e zangado de Billy Wilder que, talvez por causa do retrato verosímil da humanidade que o realizador desenhou tão habilmente, foi acolhido por uma crítica dividida, bem como um resultado aquém na bilheteira. Durante a década de cinquenta, e até ao fim da sua carreira no princípio da década de oitenta, Billy Wilder virou o seu cinema para paragens mais cómicas, muitas delas escritas com uma nova parceria — I. A. L. Diamond —, e continuou com uma carreira de sucesso crítico e comercial. Não obstante a nova inclinação para as comédias, estas seriam normalmente apimentadas por elementos de humor negro que não só reflectem a natureza do seu autor como servem como um bom complemento ao lado noir de Billy Wilder.

Ace in the Hole, 1951

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Título nacional: O Grande Carnaval Realização: Billy Wilder

ACE IN THE HOLE

Elenco: Kirk Douglas, Jan Sterling, Robert Arthur Ano: 1951

RUI ALVES DE SOUSA

Chuck Tatum é um jornalista sedento por boas histórias. Não no sentido qualitativo que atribuímos a uma ficção exemplar, mas naquele que influencia o sucesso de vendas de um jornal e o falatório do povo. Histórias que têm muito do old sex and violence, que agarram leitores que até teriam a honra de ser os mirones de qualquer tragédia alheia. E se essas histórias faltarem, Tatum não se importa de fazer o que for preciso para inverter essa situação, como morder um cão. Ele é um jornalista ambicioso que se decide aproveitar de um pequeno jornal de Albuquerque para voltar à ribalta — que perdera devido ao “mau comportamento” que teve na sua Nova Iorque. Depois de uma série de grandes êxitos de bilheteira e crítica, Billy Wilder decidiu enveredar por uma proposta de risco: uma história de um jornalista workaholic que não olha a meios para prolongar o feito jornalístico mais importante da sua carreira, criando um autêntico circo mediático a partir do pequeno drama de um homem preso numa gruta. O problema é quando ele perder o controlo do seu “monstro” — com todas as consequências que daí surgirão.

das aparências. E não estaria Wilder a falar para o seu tempo sabendo também que isto não seria melhor nas décadas seguintes? E por isso, apesar de estreado em 1951, acreditamos que O Grande Carnaval podia ter sido feito hoje. O jornalismo em formato físico pode não estar nos seus melhores dias, e a luta pelas grandes tiragens transformou-se em concorrência de “clickbaitismo” exacerbado. Mas o sensacionalismo, a busca de entretenimento no sofrimento dos outros e a fome do público pelos “desgraçadinhos” mantêm-se no topo da cadeia alimentar de uma boa parte do jornalismo. À época, o filme foi incompreendido pelo público e pela crítica, e Billy Wilder não conseguiu recuperar deste seu primeiro grande fracasso. A Paramount ainda tentou relançar o filme meses mais tarde com outro título (do qual o mercado português tirou o seu, numa tradução literal), porém a receção pelos espectadores manteve-se fria como os escrúpulos de Tatum. Mas o tempo cura muitas feridas injustas criadas pela opinião pública, e na atualidade o filme detém um lugar de ouro entre a vasta filmografia do realizador — sendo, talvez, a mais brutal e cínica das suas obras-primas, cuja força se mantém inalterada. Não conseguimos ficar indiferentes à crueza da narrativa e à surpreendente interpretação de Kirk Douglas, cuja personagem sofre um desfecho adequado à sua condição de existência, tombando no seu local de eleição: a mais simples das redações jornalísticas. Numa proeza rara em Billy Wilder, que muito raramente quis tomar uma decisão “artística” para os seus filmes (dando mais importância à estrutura do guião), há o assombroso plano final em que Douglas cai virado para nós com os seus olhos já sem vida (como se ainda alguma restasse na realidade, antes da morte efectiva), muito forte visual e, simbolicamente falando, culminando o destino miserável do protagonista maldito — que também poderia dar uma boa história para outro Chuck Tatum qualquer.

Trata-se de um dos argumentos mais impactantes de Billy Wilder, que o assinou já depois de finda a sua fecunda relação com o argumentista Charles Brackett. Não sabemos se houve ou não desentendimentos com os dois argumentistas com quem o cineasta partilhou a autoria do filme (Walter Newman e Lesser Samuels), já que esta foi a sua única colaboração, mas é certo que o resultado final revela uma das críticas sociais mais certeiras e refinadas do seu cinema e, provavelmente, de todo o cinema dos EUA. As personagens revelam-se em várias máscaras, interesses, ambições e desesperos, à medida que a "aberração" carnavalesca começa a ser incontrolável e a descambar para um nível que Chuck e o seu ego desmedido não conseguiram prever. O "grande carnaval" do acontecimento é também o das convulsões sociais e da importância 35


Título nacional: Inferno na Terra Realização: Billy Wilder

STALAG 17

Elenco: William Holden, Don Taylor, Otto Preminger Ano: 1953

ANTÓNIO ARAÚJO

Na sequência do fracasso de bilheteira de O Grande Carnaval (Ace in the Hole, 1951), Billy Wilder pagou a factura à Paramount Pictures com Inferno na Terra, uma comédia dramática passada em cenário de guerra — a sua fatia dos lucros deste foram retidos pelo estúdio para saldar o saldo negativo daquele. Mas o sucesso desta adaptação por Wilder e Edwin Blum de uma peça da Broadway pela dupla Donald Bevan e Edmund Trzcinski, baseada nas suas experiências num campo de prisioneiros de guerra Nazi na Áustria durante a Segunda Guerra Mundial, não estava garantido à partida. Aliás, o estúdio atrasou a sua estreia por mais de um ano, receando o desinteresse do público, acabando por o exibir finalmente na sequência da mediática libertação de prisioneiros de guerra americanos da Guerra da Coreia.

William Holden, cuja carreira ganhou novo fôlego ao protagonizar para Wilder, Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950), viria a ganhar aqui o Óscar de Melhor Actor, muito embora Inferno na Terra seja um filme de conjunto, podendo encontrar-se no seu excelente elenco nomes como o realizador Otto Preminger, compatriota de Wilder, Don Taylor, actor também tornado mais tarde realizador, ou Peter Graves, celebrizado anos depois na série televisiva Missão: Impossível. Apesar da temática grave, Inferno na Terra está recheado de situações de leveza e diálogos hilariantes, balançando com mestria a fina linha entre o humor e o drama humano que retrata. Respeitando a sua natureza teatral, o filme foi rodado por ordem cronológica, o que também contribuiu para o elemento de whodunnit que encerra — os próprios actores só souberam a identidade do misterioso informador nos últimos três dias de rodagem.

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Título nacional: Sabrina Realização: Billy Wilder

SABRINA

Elenco: Audrey Hepburn, Humphrey Bogart, William Holden Ano: 1954

ANÍBAL SANTIAGO

É doce. É mordaz. É elegante. É dramático. É romântico. É protagonizado por Hepburn, Bogart e Holden. É realizado por Billy Wilder. É simplesmente encantador. Falamos de Sabrina, um romance pontuado por uma atmosfera semelhante a um conto de fadas, ainda que dotado dos habituais comentários acutilantes do realizador. Não faltam observações sobre as assimetrias sociais, o capitalismo, a fuga aos impostos, os jogos de aparências e o casamento, com o argumento a não poupar na acidez, embora contenha no seu interior uma faceta extremamente romântica. Em parte, essa vertente encontra-se ligada à personagem do título, uma jovem que partilha adjectivação com a longa-metragem: doce, sensível, delicada, sonhadora, terna, apaixonada e apaixonante.

Audrey Hepburn contribui, e muito, para estas características da protagonista, com a actriz a incutir uma certa candura e muita sensibilidade a Sabrina. Nada soa a falso, com o rosto, o olhar, o tom de voz e os gestos da intérprete a transmitirem sempre a sensação de que estamos perante uma jovem extremamente doce e romântica que nem sempre parece preparada para enfrentar o cinismo do mundo que a rodeia. Esta é a filha do motorista dos Larrabee e encontra-se apaixonada por David (Holden), o elemento mais novo do clã. O desinteresse deste passa a interesse a partir do momento em que ela regressa de Paris, algo que conduz Linus (Bogart), o irmão de David, a traçar um plano para separar o casal. Tanto Bogart com Hepburn como esta e Holden apresentam uma química e um charme notáveis enquanto formam um triângulo amoroso inesquecível. Sabrina pode não conseguir alcançar a Lua, mas atinge o nosso coração com uma precisão invejável.

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Título nacional: O Pecado Mora ao Lado Realização: Billy Wilder

THE SEVEN YEAR ITCH

Elenco: Tom Ewell, Marilyn Monroe, Evelyn Keyes Ano: 1955

SARA GALVÃO

Todos os Verões, quando o calor em Nova Iorque se torna insuportável, as esposas e pirralhos fazem o seu êxodo anual para lugares mais frescos, deixando para trás os pais e patriarcas de família, ocupados que estão com os seus empregos. O Pecado Mora ao Lado, adaptado da peça de teatro de George Axelrod, é uma comédia leve sobre adultério e os poderes perniciosos de uma imaginação excessiva, encarnados pelo homem de geralmente bons costumes, Richard Sherman (Tom Ewell). Apesar do Código Hays não ter deixado Billy Wilder mostrar o adultério em toda a sua glória (Wilder vingar-se-ia mais tarde em Avanti!), este filme tornar-se-ia num marco da comédia da época e da História do Cinema em geral, mais não seja pela icónica imagem de Marilyn Monroe e o seu vestido esvoaçante — imagem essa que, spoiler alert, não faz parte do filme em si…

O Pecado Mora ao Lado, além de ter terminado o casamento entre Monroe e Joe DiMaggio e ter provavelmente iniciado o mito e tropo da Rapariga da Porta ao Lado, continua a provocar gargalhadas nos nossos dias graças à excelente performance de Ewell e ao seu humor sofisticado e meta-narrativo. Com Sherman no meio de um ambiente que parece desenhado a fazê-lo esquecer todas as suas boas resoluções — não fumar, não beber, não dar uma de tolo atrás de rapariguinhas — e Monroe num papel, apesar de arrancado a ferros (conta a lenda), a mostrar-se como ícone consumado de desejo e tentação, O Pecado Mora ao Lado pode não ser politicamente correcto — há quem possa ter problemas com a caracterização aparentemente superficial da Rapariga ou dos retratos unidimensionais das personagens secundárias que habitam uma Nova Iorque cheia de oportunidades para pecadores — mas é impossível negar que a frescura dos seus diálogos e o kitsch da imaginação de Sherman (copiado e parodiado dos grandes filmes românticos da década) tornam este filme num objecto inegavelmente vindo da mente e sentido de humor de Billy Wilder. Frases como “Oh não. Eu não. E também não vou fumar”; “Olá, sou eu, o tomate lá de cima”; ou “A 50 dólares por hora, todos os meus casos me interessam” provocam gargalhadas intemporais, numa narrativa que se passa (quase) toda dentro de um pequeno apartamento de família com uma escada para lado nenhum.

Richard Sherman, editor de livros de bolso de qualidade duvidosa, recusa-se a aproveitar a ausência da mulher e do filho para andar atrás de rabos de saias, apesar de todos os homens à sua volta o fazerem. Infelizmente, o bom Sherman não contava com a presença de uma nova vizinha de cima, uma Rapariga sem Nome (Monroe) que não consegue lidar com a falta de ar condicionado no apartamento que alugou para as férias. Sherman não consegue esconder a sua atracção pela Rapariga e tenta conquistá-la com Rachmaninov, álcool e ar condicionado, enquanto se rebola de ciúmes ao ouvir que a mulher (na estância de férias) tem passado o seu tempo na companhia de um tal Tom MacKenzie, amigo da família. Enquanto o adultério floresce na cabeça de Sherman (ajudado pelo estudo médico da “Comichão dos Sete Anos” — a vontade de trair a parceira após sete anos de casamento), e a sua imaginação é obrigada a confrontar-se com a realidade (de Rachmaninov para Martelinhos), a Rapariga bamboleia-se pela sala dos Sherman, cheia de calor e sem se aperceber dos calores que provoca no vizinho.

Um marco cinematográfico a (re)visitar vezes sem conta, demos graças aos deuses da Sétima Arte que os planos para um remake nos anos 80 — com Al Pacino e Melanie Griffith nos papéis principais — tenham ido pela varanda abaixo.

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Título nacional: A Águia Solitária Realização: Billy Wilder

THE SPIRIT OF SAINT LOUIS

Elenco: James Stewart, Murray Hamilton, Patricia Smith Ano: 1957

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Praticamente todos os cineastas têm no conjunto da sua obra um filme que, por se afastar das características da maior parte dos filmes que realiza, pode ser considerado uma carta fora do baralho. No caso de Billy Wilder esse filme chama-se A Águia Solitária, título que não podia estar mais longe do seu universo de comédias cínicas ou noirs escuríssimos. O próprio realizador chegou a admitir que estava entre os títulos da sua filmografia que menos gostava.

praticamente desconhecido, vivendo como um eremita. Sobre a travessia em si, A Águia Solitária resulta num filme eficaz que nos consegue transmitir na perfeição a solidão de Lindbergh durante a travessia. Aliás, a segunda metade do filme, durante o voo, assim como as sequências da construção do avião, compõem o melhor de A Águia Solitária. Mas a este esqueleto, chamemos-lhe assim, falta a carne que nos outros filmes de Wilder surge sobre a forma de diálogos brilhantes. Aqui os diálogos são banais e sentimos a falta de um ou mais contrapontos à personagem de Lindbergh, como acontece noutros títulos do cineasta. O resultado é um filme de Wilder muito incaracterístico, feito em piloto automático, que, se não tivesse o seu nome nos créditos, quase poderíamos afirmar ter sido feito por um simples tarefeiro.

A Águia Solitária é um filme bastante contido, sem a mordacidade que nos habituou Wilder, a partir da história da primeira travessia do Atlântico de avião sem escala, feita por Charles Lindbergh. Em 1927, o feito transformou o jovem piloto em herói mundial, até que as suas aproximações ao regime de Hitler fizeram com que Lindbergh se tornasse uma figura polémica e, à época em que a produção avançou, fosse

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Título nacional: Ariane Realização: Billy Wilder

LOVE IN THE AFTERNOON

Elenco: Gary Cooper, Audrey Hepburn, Maurice Chevalier Ano: 1957

ANÍBAL SANTIAGO

Frank: Everything about you is perfect. Ariane: I'm too thin! And my ears stick out, and my teeth are crooked and my neck's much too long. Frank: Maybe so, but I love the way it all hangs together.

Em Love in the Afternoon, o realizador transporta-nos para o interior de Paris, um cenário que influencia, e muito, as personagens — que o digam Frank (Cooper) e Ariane (Hepburn). Ele é um conquistador nato, um magnata experiente que é regularmente seguido por um detective particular (Chevalier). Ela é jovem, inexperiente, romântica, estuda violoncelo e é filha do detective.

Esta belíssima troca de palavras permite resumir paradigmaticamente Love in the Afternoon. Até pode contar com um ou outro problema e não ser a obra mais marcante de Wilder, mas a soma das suas partes é simplesmente admirável. Estamos perante uma comédia romântica terna, marcada por um ambiente muito próximo de um conto de encantar (a remeter para Sabrina) e características transversais a diversos trabalhos do cineasta. Observem-se os mal-entendidos, o casal improvável, a mescla de drama, romance e humor, os diálogos que perduram na memória, os personagens dotados de personalidade e a banda sonora que sublinha na perfeição a atmosfera do filme.

Hepburn é a alma do filme. A actriz incute uma personalidade sonhadora, genuína, algo ingénua e doce à sua Ariane, sendo bem acompanhada por Cooper, com a diferença de idades e de vivências dos elementos que interpretam a serem acompanhada pelos sentimentos fortes que estes partilham. Os mal-entendidos entre os protagonistas são inúmeros, com a jovem a mexer com o milionário, enquanto Wilder mexe com o espectador desta obra romântica, extremamente bela e apaixonante.

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Título nacional: Testemunha de Acusação Realização: Billy Wilder

WITNESS FOR THE PROSECUTION

Elenco: Tyrone Power, Marlene Dietrich, Charles Laughton Ano: 1957

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Numa época em que os message movies, e entre eles os dramas de tribunal, tinham bastante aceitação no cinema para as massas — de referir: Doze Homens em Fúria (12 Angry Men, 1957) de Sidney Lumet; Anatomia de Um Crime (Anatomy of a Murder, 1959) de Otto Preminger; O Vento será a Tua Herança (Inherit the Wind, 1960) de Stanley Kramer e Na Sombra e no Silêncio (To Kill a Mockingbird, 1962) —, Billy Wilder saía (como fazia regularmente) da sua zona de conforto (a comédia), para adaptar uma peça de sucesso de Agatha Christie num filme que respira dentro das paredes de uma sala de audiências e gabinetes de advogados.

são apenas alguns dos muitos apontamentos deliciosos desse jogo de gato e de rato de final feliz). O que nas mãos de outro realizador seria um melodrama pesado, Wilder transforma num mistério de alguma leveza onde o apertar da corda em volta da garganta da personagem de Power é, depois, contrastado com os diálogos mordazes (aqui com Wilder a dividir créditos de argumento com Harry Kurnitz) e a anedótica relação entre advogado e enfermeira, que nos fazem quase esquecer que temos um caso de vida ou de morte diante dos olhos. Ciente da solenidade do trabalho que tinha em mãos, Wilder não se poupou a esforços para reproduzir os cenários de um tribunal inglês em painéis móveis que permitissem colocar e mover a câmara por onde o realizador quisesse, filmando longas sequências, num jogo entre rostos em close-up e planos gerais, que nos manipulam a atenção e nos enredam até ao fim. Com uma Marlene Dietrich que — não evitando um flashback “alemão” onde, mesmo de calças, é forçada a mostrar uma perna, num regresso ao legado de Anjo Azul (Der blaue Engel, 1930) de Josef von Sternberg — é a chave de toda a trama (diz-se que Marlene só não ganhou o Oscar desse ano, porque algumas particularidades da sua interpretação tiveram que permanecer em segredo, para não denunciar o final do mistério), o whodunnit típico de Agatha Christie vai-se tornando um suspense hitchcockiano (a certa altura, o crime parece-nos um MacGuffin já que nos interessa mais saber porque Dietrich testemunha contra Power que quem foi na verdade o criminoso), numa história de deslocamentos de culpa e frieza feminina, ao jeito dos seus dramas de tribunal O Caso Paradine (The Paradine Case, 1947) e o ainda mais seminal Easy Virtue (1928), onde as lições de Hitchcock levam Wilder a iludir-nos com volte-faces imprevistos que justificam mesmo a recomendação que surge após os créditos finais de não divulgar aos amigos o segredo do desenlace final.

Usando um elenco maioritariamente britânico, encabeçado pelo excêntrico e carismático Charles Laughton, e acrescentado do norteamericano Tyrone Power (naquele que seria o seu último filme antes da sua morte prematura) e da diva alemã Marlene Dietrich, Wilder decidiu não só recriar o sistema judicial britânico, com tudo o que este tem de pomposo, ritualista e pesado, como construir todo o seu filme a partir dessas peculiaridades. Testemunha de Acusação é a história de um homem afável e alegre (Power), acusado de ter morto uma viúva rica que recentemente ficara sua amiga e o fizera herdeiro da sua fortuna. O seu único alibi é a esposa (Dietrich), que pode testemunhar que ele regressou a casa antes da hora a que o crime foi cometido. O problema é que ela parece ter outros planos, e o seu testemunho é completamente ambíguo, para surpresa do esposo e dos seus defensores. Estes alicerçam-se em torno de Sir Wilfrid Roberts (Laughton), raposa velha, arrogante, teimoso e intratável, mas constantemente perseguido pela enfermeira (Elsa Lanchester, esposa de Laughton na vida real) que o vigia na convalescença de problemas cardíacos e de quem ele foge como pode (os charutos escondidos na bengala, o brandy no termos do cacau e a injecção de cálcio no charuto 43


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Título nacional: Quanto Mais Quente Melhor Realização: Billy Wilder

SOME LIKE IT HOT

Elenco: Marilyn Monroe, Tony Curtis, Jack Lemmon Ano: 1959

SARA GALVÃO

Billy Wilder filmou em 1959 aquela que é considerada por muitos como a melhor comédia de todos os tempos. Óbvio que estas apreciações valem o que valem, mas Quanto Mais Quente Melhor ficará para sempre nos anais sobre cinema.

Wilder a manter um plano fixo, quer em Curtis e Marilyn na parte de trás de uma lancha como em Lemmon e no milionário na parte da frente, e assenta a realização no diálogo. Marilyn aceita Curtis, apesar de este não ser milionário e não poder dar-lhe o luxo que ela certamente queria, e os argumentos de Lemmon são todos rejeitados pelo noivo, até que, já sem mais desculpas para apresentar, tira a peruca para aquele momento acabado de citar. Este final da farsa, tanto do saxofonista em relação a Sugar, quer do contrabaixista para o verdadeiro milionário, transforma o filme numa visão tão grotesca que passamos a aceitar aquela saudável obscenidade.

Wilder e o seu argumentista do momento, I.A.L. Diamond, contam a hilariante história de dois músicos que testemunham o Massacre de S. Valentim, em Chicago. Para não serem apanhados pelos gangsters, juntam-se a uma banda feminina que vai a caminho de Miami, tendo para isso de se disfarçar de mulheres. O argumento é inspirado num filme de Kurt Hoffmann, Fanfaren der Liebe (1951), remake alemão de uma produção francesa, Fanfare d’Amour (Richard Pottier, 1935). Enquanto a indústria cinematográfica daquela época já privilegiava os grandes espetáculos a cores, Wilder adopta o preto e branco. Também decide incluir no filme bandidos burlescos e jogar o trunfo do ambiente de época ao situar o filme nos anos 20. Muita gente na indústria ficou assustada, mas era puro engano: o filme seria um sucesso.

Depois de O Pecado Mora ao Lado (The Seven Year Itch, 1955), Billy Wilder volta a sujeitar-se aos caprichos de Marilyn Monroe, tendo chegado a dizer, quando solicitada uma nova colaboração entre ambos: “O meu médico e o meu banqueiro disseram que sou demasiado velho e demasiado rico para voltar a trabalhar com Marilyn Monroe.” Marilyn não seria a melhor actriz do mundo, mas era linda de morrer e conquistou corações por esse mundo fora com a música I Wanna Be Loved By You que seria imortalizada em Quanto Mais Quente Melhor. No reverso da medalha, o prazer em trabalhar com Jack Lemmon foi tanto que passou a fazer dele “o seu actor”, tendo-o escolhido para ser a vedeta do seu filme seguinte, O Apartamento (The Apartment, 1960) e para mais cinco colaborações nos anos seguintes.

O golpe de mestre de Wilder é retratar a paródia do filme de bandidos, ou das comédias de perseguição, fazendo em vários momentos lembrar os filmes dos irmãos Marx. Os dois músicos vestem-se de mulher e acabam por se emaranhar nos seus papéis ao ponto de perderem a noção da sua identidade. O saxofonista, interpretado por Tony Curtis, é “a confidente” de Sugar (Marilyn Monroe), que ele deseja. Para a conquistar, também se disfarça de multimilionário com voz de Cary Grant. O contrabaixista, numa representação irrepreensível de Jack Lemmon, é a parte feminina da dupla, e terá de assumir esse papel durante todo o filme, sendo mesmo cortejado por um velho milionário (Joe E. Brown), e só confessa a sua masculinidade depois de muitos pretextos para recusar pedidos de casamento. E quando confessa “Sou homem!” recebe como resposta um “Ninguém é perfeito.” Toda esta sequência final é deliciosa, com

Quanto Mais Quente Melhor, apesar de alguns elementos técnicos já ultrapassados, não envelheceu com o tempo e é uma verdadeira obraprima da comédia burlesca.

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Título nacional: O Apartamento Realização: Billy Wilder

THE APARTMENT

Elenco: Jack Lemmon, Shirley MacLaine, Fred MacMurray Ano: 1960

ANÍBAL SANTIAGO

É a partir de um espelho quebrado que Baxter (Lemmon) descobre que Miss Kubelik (MacLaine) mantém um caso com Sheldrake (MacMurray), o seu superior. O seu rosto aparece reflectido com a falha que divide o espelho em dois pedaços desiguais, embora aquilo que mais transpareça seja o quão quebrado ficou o seu coração devido a esta revelação inesperada. Baxter trabalha no departamento de contabilidade da Consolidated Life, uma seguradora situada em Nova Iorque. Raramente o encontramos a exercer o seu ofício, apesar de estar cada vez mais próximo de subir alguns andares no elevado edifício onde trabalha e na hierarquia da empresa. As razões para esta possibilidade prendem-se acima de tudo pela sua lealdade e prestabilidade, que é como quem diz, por emprestar a casa a quatro dos seus superiores para que estes possam dar as suas escapadelas com as amantes, algo explicado pelo protagonista, em voiceover, nos momentos iniciais do filme.

também surge como uma das principais forças da fita. Essa força do argumento é visível em diversas ocasiões, sendo potenciada pelo trabalho de Wilder na realização e pelos intérpretes. Veja-se o modo como as situações aparentemente simples se transformam em algo de especial: os diálogos certeiros, os comentários ácidos sobre a sociedade americana e os seus costumes (o adultério, o divórcio, as aparências, as trocas de favores, o capitalismo), ou a maneira sublime como o humor é conjugado com o drama e o romance. Wilder é exímio a trabalhar os ritmos do humor, seja através dos diálogos dos silêncios ou das situações que são criadas, bem como a abordar assuntos delicados (como o suicídio) ou a deixar sobressair a extrema humanidade de Baxter e Kubelik. Temos ainda outra figura de relevo, quase sempre em pano de fundo ou nas sombras, nomeadamente a cidade de Nova Iorque, espaço que nunca dorme, de todas as possibilidades, de amores e desilusões, onde as vésperas de Natal podem ser marcadas pela desilusão e solidão, que o digam a ascensorista e o contabilista. O design de produção e a cinematografia também estão em destaque. Note-se o local onde Baxter trabalha no início de O Apartamento, uma sala enorme, recheada de mesas e funcionários, com a cinematografia a contribuir para criar a ideia de que estamos perante um espaço imenso, sobretudo através de alguns planos bem abertos e da perspectiva forçada. E a banda sonora? É como o filme: dotada de algum romantismo e melancolia, a espaços vivaz e leve.

Lemmon insere um estilo afável, espirituoso, algo atrapalhado e educado à sua personagem, um indivíduo que tanto tem de ambicioso como de altruísta, e que conta com uma habilidade inata para se envolver em imbróglios. Este tem um fraquinho por Kubelik, a ascensorista, embora inicialmente não saiba que ela mantém um caso com Sheldrake, um indivíduo casado, que tem em MacMurray um intérprete capaz de expressar a sua faceta pragmática e pouco dada a grandes demonstrações de afecto, inclusive junto da amante. De cabelos curtos, olhar expressivo e um rosto que não se esquece com facilidade, MacLaine consegue transmitir a doçura, a humanidade e a delicadeza da sua personagem, uma ascensorista que se encontra presa a uma relação sem futuro. A actriz conta com uma química saliente com Lemmon, com a dupla a aproveitar as qualidades do argumento de Wilder e de I. A. L. Diamond, e a conseguir que acreditemos nos encontros e desencontros que pontuam as dinâmicas de Kubelik e Baxter. Diga-se que o argumento não só contribui, e muito, para o trabalho notável do elenco, como

Mas O Apartamento tem algo mais. É falso simples. Sabe prender a atenção. Sabe apaixonar. Sabe aproveitar o talento dos seus intérpretes. Sabe usar a química de Lemmon e MacLaine. Sabe fazer rir. Sabe criticar. Sabe comover. Sabe que é cinema. Provavelmente não sabe que não o vamos esquecer, mas isso sabemos nós. 47


The Apartment, 1960


OS ESPELHOS DE BILLY WILDER ANÍBAL SANTIAGO

Em certo momento de Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs, David Hand, et al., 1937) encontramos a Rainha a questionar o espelho mágico: "Magic mirror on the wall, who is the fairest one of all?" A resposta é amplamente conhecida e também ficou marcada na cultura popular: "Famed is thy beauty, Majesty. But hold, a lovely maid I see. Rags cannot hide her gentle grace. Alas, she is more fair than thee.” Quem também tem uma relação muito especial com os espelhos é Billy Wilder. Não sabemos se tinha o hábito de lhes fazer questões, mas certo é que o cineasta conta com uma enorme habilidade para conseguir que, no interior dos seus filmes, os espelhos sublinhem certas sensações, ou simplesmente transmitam alguma informação, ou contribuam para uma revelação.

permite ainda colocar em evidência o coração desfeito de Miss Kubelik, devido a não ser verdadeiramente amada por Sheldrake, com o objecto a ser sido partido numa discussão entre ambos. É uma jogada de mestre para Billy Wilder expor a desilusão que percorre o rosto do personagem principal de O Apartamento, mas também é demonstrativo do cuidado colocado nos pormenores que muito acrescentam ao filme. Os espelhos associados a uma revelação surgem ainda presentes em fitas como Quanto Mais Quente Melhor (Some Like it Hot, 1959), Como Ganhar Um Milhão (The Fortune Cookie, 1966) ou A Sua Melhor Missão (A Foreign Affair, 1948). O primeiro exemplo remete para o trecho em que Jerry segura o seu espelho de bolso para retocar o batom. No entanto, ao espreitar o espelho, o personagem interpretado por Jack Lemmon depara-se com o reflexo dos membros da máfia que podem colocar a sua vida em perigo. Diga-se que em Como Ganhar Um Milhão encontramos uma utilização muito semelhante deste objecto, em particular quando o aproveitador e desonesto advogado William H. Gingrich (Walter Matthau) descobre, a partir de um espelho de bolso, que a casa de Harry Hinkle (Jack Lemmon), o seu cliente e cunhado, está a ser vigiada por dois detectives contratados pela seguradora. São dois exemplos em que o humor também está presente, algo que contrasta com A Sua Melhor Missão. Neste caso, o espelho é utilizado

Recordemos um dos exemplos mais paradigmáticos do modo sublime como o cineasta oriundo da Galícia utiliza os espelhos, nomeadamente um trecho de O Apartamento (The Apartment, 1960). É a partir de um espelho partido que C. C. Baxter (Jack Lemmon), o protagonista, descobre que Fran Kubelik (Shirley MacLaine) mantém um caso com Jeff D. Sheldrake (Fred MacMurray), o seu superior. O seu rosto aparece reflectido com a falha que divide o espelho em dois pedaços desiguais, embora aquilo que mais transpareça seja o quão quebrado ficou o seu coração devido a esta descoberta inesperada. Diga-se que o espelho 49


Sunset Boulevard, 1950 para fins mais dramáticos, com o reflexo de Phoebe Frost (Jean Arthur) a explanar a desilusão que esta sente ao ouvir o diálogo de John Pringle (John Lund) com Erika von Schlütow (Marlene Dietrich).

não é a primeira vez que encontramos a protagonista de Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950) a olhar-se ao espelho, com estes actos a remeterem para a vaidade e o egocentrismo desta estrela esquecida do cinema mudo.

A utilização destes objectos para motivos cómicos ou reveladores não se limita aos filmes mencionados. Temos ainda o caso de Sabrina (1954), em que Linus (Humphrey Bogart) se observa ao espelho, com roupas juvenis que parecem desenquadrar-se da sua pessoa, enquanto expõe o seu plano para afastar Sabrina (Audrey Hepburn) do irmão. É um trecho de tom agridoce, em que a comédia e a tragédia estão reunidas, ou não estivéssemos perante uma obra de um cineasta exímio a reunir ingredientes dramáticos e humorísticos. Esse tom cómico é particularmente clarividente quando somos colocados perante Richard Sherman (Tom Ewell) a delirar diante de um espelho. No caso mencionado, o protagonista de O Pecado Mora ao Lado (The Seven Year Itch, 1955) compara-se a Dorian Gray e demonstra estar em pânico devido à possibilidade de poder cair em tentação e trair a esposa. Já o olhar de Norma Desmond (Gloria Swanson) perante o espelho conta com um tom trágico, sobretudo quando a encontramos rodeada de polícias e jornalistas, embora a sua única preocupação seja o seu visual, ou não estivesse completamente inebriada pelo seu ego, a sua loucura e a sua incapacidade para encarar a realidade. Vale a pena salientar que esta

Com algum esforço podemos ainda mencionar a cena de Ariane (Love in the Afternoon, 1957) em que o detective Chavasse (Maurice Chevalier) revela à filha, a jovem Ariane (Audrey Hepburn), o local onde escondeu o casaco de pele que um cliente pretende oferecer à esposa, com as duas personagens a aparecerem reflectidas no espelho do armário. O rosto da protagonista demonstra alguma curiosidade, ou não estivesse prestes a utilizar o casaco. Mais tarde, volta a colocá-lo no mesmo local, embora minta ao progenitor sobre os motivos que a conduziram a cometer este acto, com o espelho a reflectir algumas das dúvidas que as palavras da jovem não transmitem. Para além destes exemplos, podemos ainda salientar o trecho de O Grande Carnaval (Ace in the Hole, 1951) em que Tatum (Kirk Douglas) abre uma garrafa de bebida alcoólica em frente a um espelho que reflecte acima de tudo a sua sombra. Curiosamente, ou talvez não, estamos perante um protagonista que se deixou dominar pelas sombras da ambição. Walter Neff (Fred MacMurray), o protagonista de Pagos a Dobrar 50


Double Indemnity, 1944 (Double Indemnity, 1944), um vendedor de seguros, também se deixa levar pela ambição, bem como pela femme fatale (Barbara Stanwyck). “Surpreendentemente”, um dos primeiros momentos em que encontramos o casal adúltero no mesmo plano, perfeitamente enquadrado, decorre frente a um espelho. Ela coloca batom. Ele apresenta-se. É o início de uma ligação que promete terminar em tragédia e mais um exemplo da presença regular dos espelhos nos filmes de Billy Wilder. Quem também fica enamorado é Nestor Patou (Jack Lemmon), um polícia que é despedido do seu ofício devido à sua excessiva seriedade e acaba por desenvolver uma estranha ligação de proximidade com Irma La Douce (Shirley MacLane). O momento em que se observa ao espelho com o casaco que pertencia a Hippolyte (Bruce Yarnell), o antigo proxeneta da amada, é sintomático da inadequação deste indivíduo ao proxenetismo. A peça de roupa encontra-se larga e desalinhada, ou seja, tão desadequada à sua fisionomia como o protagonista de Irma La Douce (1963) ao proxenetismo, com o espelho a reflectir isso mesmo.

diminuto, um pouco à imagem dos já mencionados O Grande Carnaval e Ariane. Mas, o que responderia o espelho mágico ao ser confrontado com estes filmes? Muito provavelmente salientaria a genialidade de um cineasta versátil, hábil na construção dos diálogos, mordaz, observador da sociedade do seu tempo, simultaneamente cínico e romântico, que mescla na justa medida a comédia e o drama em diversas das suas fitas e proporciona interpretações de relevo aos seus actores e actrizes. Ou reforçaria o facto deste leque alargado de obras afirmar constantemente a sua relevância e desafiar afincadamente o tempo, algo comprovado nesta edição dedicada a Billy Wilder.

São vários os exemplos de obras de Billy Wilder em que encontramos um momento onde os espelhos assumem alguma relevância. Por vezes até alcançam um grande protagonismo, tal como em O Apartamento e em A Sua Melhor Missão. Em outras ocasiões contam com um papel 51


Título nacional: Um, Dois, Três Realização: Billy Wilder

ONE, TWO, THREE

Elenco: James Cagney, Horst Buchholz, Pamela Tiffin Ano: 1961

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Depois do enorme sucesso alcançado com O Apartamento (The Apartment, 1960), Billy Wilder fez um dos seus mais ferozes retratos da Humanidade, ao ponto de uma das personagens, um jovem comunista transformado em conde, chegar a dizê-lo com todas as letrinhas num dos comentários mais pessimistas dentro da obra do cineasta.

É este o território de Um, Dois, Três, uma das melhores comédias de Wilder, mordaz para com todos os que ataca, passada na Berlim dividida pouco tempo antes da chegada do malfadado muro. No centro da intriga está o responsável pela filial local da Coca-Cola que, prestes a conseguir o que Napoleão e Hitler não conseguiram (conquistar a Rússia), se vê a tomar conta da filha do presidente da multinacional que não quer saber de negócios ou ideologias, antes de amor e paixões de juventude, e acaba casada com um jovem comunista do outro lado da Cortina de Ferro. O caos que se segue é digno de um filme marxista (variante Groucho), num ritmo frenético que por vezes chega a dificultar a capacidade de apanhar todos os gags. O culpado? James Cagney, um actor em estado de graça num dos seus últimos papéis, a provar a razão pela qual foi um dos maiores actores de sempre.

Um, Dois, Três foi o regresso de Wilder a Berlim, onde tinha filmado A Sua Melhor Missão (A Foreign Affair, 1948). Mas se em 1948 realizara uma história assente nos escombros do pós-Guerra, em que as memórias dos que viveram na capital do Reich no período da Segunda Guerra Mundial têm um papel fundamental, em 1961 o retrato é completamente diferente, ou não fossem os tempos outros, mais virados para uma Guerra Fria no Velho Continente.

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Título nacional: Irma La Douce Realização: Billy Wilder

IRMA LA DOUCE

Elenco: Jack Lemmon, Shirley MacLaine, Lou Jacobi Ano: 1963

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Haverá de certeza uma regra não escrita que diz que “um filme de Billy Wilder com Jack Lemmon é uma comédia imperdível”. E se lhe acrescentarmos uma Shirley MacLaine no auge da sua graciosidade e beleza, o que temos? Muitos pensaram que tínhamos em Irma La Douce a repetição do sucesso que tornou O Apartamento (The Apartment, 1960) uma das obras-primas do realizador. Não é bem assim, mas anda perto.

quando Irma começa a gostar mais do Lord que do próprio Nestor, ameaçando fugir para o inexistente castelo daquele. Baseado numa peça teatral de Alexandre Breffort, com as ruas sujas, mas vibrantes, de Paris recriadas em estúdio (a lembrar uma espécie de musical clássico sem música ou canções), Irma La Douce é uma comédia de enganos, de diálogos deliciosos, personagens coloridas, uma divertida perversão total de valores como só poucos conseguem e um final surreal. Pelo meio conhecemos uma prostituta verdadeiramente doce que tem como maior sonho ter tantos clientes que o seu amado Nestor não tenha de trabalhar; um chulo ciumento cujos amigos lhe dizem que talentos divinos como os dela têm de ser partilhados; ou conversas de clientes antigos que depois da morte da esposa não tiveram mais necessidade de aparecer.

Irma La Douce (MacLaine) é uma prostituta de Paris que adopta como amante e chulo o anterior polícia caído em desgraça por excesso de inocência Nestor Patou (Lemmon). Este, para evitar que Irma se venda todas as noites, finge ser um rocambolesco lorde inglês que lhe paga principescamente pela exclusividade, com dinheiro que o próprio Nestor tem de ganhar nos dias seguintes a trabalhar no duro. O problema é

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Título nacional: Beija-me, Idiota Realização: Billy Wilder

KISS ME, STUPID

Elenco: Dean Martin, Kim Novak, Ray Walston, Felicia Farr, Cliff Osmond Ano: 1964

ANTÓNIO ARAÚJO

Beija-me, Idiota é, talvez, o filme mais subvalorizado de Billy Wilder. Considerado chocante à data de estreia, provocou reacções da Legião Nacional da Decência, a tenebrosa instituição de censura da igreja católica americana defensora da moral e dos bons costumes, que “condenou” o filme. Com a ajuda dos críticos, que o consideraram genericamente obsceno, o realizador viu-se desta vez com um fiasco nas mãos do qual raramente voltou a falar posteriormente.

oportunidade de uma vida, urdem um plano para tentar vender algumas das suas músicas à estrela que lhes caiu em sorte que envolve trocar a esposa de Orville, Zelda (Felicia Farr), pela empregada mais famosa do bar de entretenimento adulto local, Polly Pistola, interpretada por Kim Novak. Contando com novas composições dos irmãos Gershwin — Ira escreveu letras para música não publicada do falecido George —, Beija-me, Idiota diverte com os seus diálogos e situações com duplo significado, insinuações sexuais, piscadelas de olho e troca de identidades, porém não deixa de revelar mais uma vez o cinismo do realizador ao inverter os papéis da mulher casada e da prostituta numa exploração dos limites da fidelidade, deitando ao mesmo tempo um olhar crítico ao culto da fama com uma corajosa e lasciva interpretação de Dean Martin.

Passado mais de meio século, sobra uma deliciosa e subjugada comédia cuja polémica parece uma verdadeira tempestade num copo de água. Dean Martin interpreta Dino, uma versão pouco recomendável de si próprio, crooner com queda para a bebida e para as mulheres que se vê retido numa pequena povoação. Barney Millsap (Cliff Osmond) e Orville Spooner (Ray Walston) são um duo compositor musical que, perante a

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Título nacional: Como Ganhar Um Milhão Realização: Billy Wilder

THE FORTUNE COOKIE

Elenco: Jack Lemmon, Walter Matthau, Ron Rich Ano: 1966

ANÍBAL SANTIAGO

Prof. Winterhalter: “Todas estas maquinetas modernas. Falsas! Não provam nada. Antigamente, fazíamos bem melhor. Um homem dizia que estava paralizado e era simplesmente atirado num poço de serpentes. Se ele subisse dali para fora, sabíamos que tinha mentido.”

sobre a sociedade dos EUA (inclusive sobre as disputas legais), os enganos, os planos que fogem aos objectivos iniciais, as relações amorosas, a amizade, as personagens bem construídas e os episódios delirantes. Esse delírio começa desde logo quando o advogado Gingrich aproveita o facto de Harry, o seu cunhado, ter sofrido uma contusão num acidente para colocar um golpe mirabolante em prática. Se Matthau insere pragmatismo, astúcia, confiança e lábia ao seu Gingrich, já Lemmon imprime um tom ingénuo, romântico e afável ao seu Harry, um operador de câmara arrastado para o interior de um plano caótico, com Wilder a aproveitar as dinâmicas de ambos ao máximo. O título do filme remete para um biscoito da sorte chinês que é colocado perante o protagonista e reforça a improbabilidade da sua mentira perdurar. Já Como Ganhar Um Milhão é filme que permanece, que balanceia entre o cinismo e a ingenuidade, o humor e o drama, sempre sem perder o seu enorme coração.

Especialista: “E se ele não subisse?” Prof. Winterhalter: “Então perdíamos um paciente, mas encontrávamos um homem honesto.” Raro é o filme de Billy Wilder que não conta com algum diálogo memorável. Como Ganhar Um Milhão não é diferente, com a troca de falas acima citada a reunir o humor mordaz do cineasta e a sua capacidade para criar situações que perduram na memória. Vagueamos por terrenos bem conhecidos do realizador, sejam estes relacionados com as observações

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THE PRIVATE LIFE OF SHERLOCK HOLMES

Título nacional: A Vida Íntima de Sherlock Holmes Realização: Billy Wilder Elenco: Robert Stephens, Colin Blakely, Geneviève Page, Christopher Lee Ano: 1970

JOSÉ CARLOS MALTEZ

A década de 1970 não foi a mais entusiasmante no que à carreira de Billy Wilder diz respeito, mas é também nas obras ditas menores que se vê a grandeza de um autor, e tomara a quase todos terem no seu curriculum aquilo que Wilder nos deixou nos últimos anos da sua vida. É o caso do filme que inaugura a década, A Vida Íntima de Sherlock Holmes, obra que olha livremente para uma das personagens mais emblemáticas da literatura ocidental, e de quem Wilder terá sido um fã confesso.

secretos da Primeira Guerra Mundial e conhecermos o irmão Mycroft Holmes, interpretado por Christopher Lee (que assim se tornou o único actor a ter sido os dois Holmes no ecrã — para além da vítima Sir Henry Baskerville). Com um Roberth Stephens (actor de teatro, mais que de cinema) de desempenho deliciosamente afectado e um Colin Blakely a compor um Watson burlesco e algo patético, A Vida Íntima de Sherlock foge um pouco à habitual simplicidade cénica de Wilder para nos dar, para além da história — e é nos detalhes de argumento e diálogos subtilmente inteligentes que Wilder faz sempre a diferença — uma cenografia quase barroca e um travo gótico, cujas passagens por lagos cheios de nevoeiro e noites fantasmagóricas nos lembra a Hammer, ou não estivesse Christopher Lee presente.

Escrito a meias com o seu habitual parceiro de escrita, I. A. L. Diamond, A Vida Íntima de Sherlock Holmes foi uma aventura inglesa, com Wilder a deixar para trás os estúdios de Hollywood para filmar in loco, tanto em Londres como na paisagem interior britânica, incluindo passagens famosas pelos lochs escoceses. Criando um Sherlock Holmes que é mais um produto da sua imaginação que a do criador Arthur Conan Doyle — e para o qual o realizador preferiu actores pouco conhecidos que não trouxessem a Holmes e Watson pesos já estabelecidos —, A Vida Íntima de Sherlock lida com temas correntes nos anos 70 — as drogas, a homossexualidade — preterindo a intrincada ciência da dedução sherlockiana, lançando-nos numa história romântica de espionagem e perigos excêntricos que começam nos ballets russos e terminam com o monstro de Loch Ness. Tudo porque, logo no prólogo, para se livrar de uma oferta sexual, Holmes (Robert Stephens) declara ser homossexual, numa relação com Watson (Colin Blakely), a qual este vai fazer tudo para provar falsa, mesmo que pelo caminho comece a ter dúvidas sobre a sexualidade do amigo. O capítulo fecha-se na frase “I found her body quite rewarding” (“Achei o corpo dela bem compensador”), que Holmes aplica à vítima/ cliente interpretada por Geneviève Page depois de passar a noite com ela para “examinar” pistas deixadas no seu corpo. Resolvida a questão, seguimos para o mistério propriamente dito, que envolve um marido desaparecido e nos leva à Escócia, para descobrirmos submarinos

Considerado pelo próprio Wilder como o mais elegante dos seus filmes, mas mutilado na sala de montagem a ponto de lhe ter trazido lágrimas aos olhos quando o viu, A Vida Íntima de Sherlock passou ao lado do grande público, tanto por esta visão pouco canónica do príncipe dos detectives como por se ver integrado numa tendência dessa década de satirizar Holmes no cinema em obras nem sempre bem conseguidas: Encontro Marcado (They Might Be Giants, Anthony Harvey, 1971), As Aventuras do Irmão Mais Esperto de Sherlock Holmes (The Adventure of Sherlock Holmes' Smarter Brother, Gene Wilder, 1975), O Regresso de Sherlock Holmes (The Seven-Per-Cent Solution, Herbert Ross, 1976), The Strange Case of the End of Civilization as We Know It (Joseph McGrath, 1977) e Sherlock Holmes em Apuros (The Hound of the Baskervilles, Paul Morrissey, 1978), entre outros. Alheando-nos desses preconceitos, o que reencontramos hoje é um filme arriscado, mas compensador nos seus detalhes, e portador daquela originalidade elegante que Wilder conseguia sempre imprimir nos seus filmes. 57


Billy Wilder, 1906-2002


BILLY WILDER, UM AUSTRÍACO EM LOS ANGELES SARA GALVÃO

Samuel Wilder nasceu com o destino traçado. A sua mãe, grande fã da cultura americana, começou a chamar-lhe Billie desde pequeno, e o nome não só ficou como, de certo modo, definiu a personalidade do futuro realizador — atraído pelos Estados Unidos e pelo cinema que lá se fazia. Quando se mudou para Berlim, nos anos 20, para trabalhar como jornalista (e onde começaria a escrever guiões para a UFA), Billie estaria no centro da cidade mais americanizada de toda a Europa, uma metrópole cheia de artistas, sofisticação, ciência e esquerdistas (os Nazis chamar-lhe-iam “a cidade mais vermelha da Europa a seguir a Moscovo”).

“não porque estivesse a tentar armar-me em Hitchcock, mas porque não conseguimos arranjar mais ninguém.” Mas o apelo dos EUA continua: “Ouvi histórias sobre como tudo está feito por ti para realizadores em Hollywood. Dizem que até te podes sentar sem olhar para ver se há uma cadeira atrás.” No ano seguinte, Billie faria a viagem para a casa do irmão, em Long Island, e daí para Hollywood, num contrato provisório. Seria o início de um exílio voluntário que duraria a vida toda.

Para um jovem escritor, Berlim era o centro do mundo. Mas já nessa altura, o canto de sereia chamava-o para o outro lado do Atlântico. Nas suas palavras, o seu colega jornalista Hans Sahl descreve-o como: “Um jovem delgado que usava o chapéu de lado, com as mãos enterradas nos bolsos, e que agia como Americano muito antes de ter descoberto a América.” Quando se tornou impossível ignorar a ameaça Nazi na Alemanha, Billie mudou-se para Paris, onde viveu durante um ano e onde realizou a sua primeira longa-metragem: Mauvaise Graine (1934). Um filme claramente baseado nos filmes de gangsters americanos, cheio de carros a acelerar e jazz, onde Billie, segundo o próprio, teve de fazer tudo, desde produzir a supervisionar o argumento, até fazer de extra —

“Estava a nevar bastante naquela manhã em casa do meu irmão em Long Island. Olhei pela janela. Vi este carro americano enorme. Parou, e um rapaz debruçou-se na janela do carro e atirou o jornal. Portanto, a América era um lugar onde os rapazes entregavam jornais de Cadillac! Logo ali, soube que ia gostar dos Estados Unidos.”

As primeiras impressões não poderiam ter sido melhores. Diz (agora) Billy:

Rapidamente, Billy teria oportunidade de testar as suas expectativas contra a realidade. Contratado por Hollywood para trabalhar como argumentista, graças à sua experiência na UFA e tirando proveito da alta consideração por cineastas alemães da altura (estes são os anos em que Hollywood se apaixona pelo Expressionismo Alemão), Billy tem 59


Charles Brackett e Billy Wilder contudo dificuldades iniciais com a língua, um problema de tamanho considerável quando se é escritor por encomenda. Sem demoras, Billy decidiu entregar-se de corpo e alma a mergulhar na língua e cultura americanas:

cartas de amigos que diziam que eu não era um criminoso.” O cônsul olhou para tudo o que eu tinha: “É tudo?” “Eu expliquei que tinha deixado Berlim à pressa. Escrevi para a Alemanha Nazi a pedir os meus papéis, mas ninguém respondera. Eu disse-lhe que podia voltar lá para ir buscar os meus papéis, mas depois não ia precisar deles. Isto foi antes de Auschwitz, mas ele percebeu o que eu queria dizer.”

“Uma pessoa é moldada pela sua linguagem. Eu quis remodelar-me e tornar-me Americano. Eu quis recuperar o tempo perdido no qual não joguei basebol. Eu vi tanto basebol, que às vezes me lembro de jogar enquanto criança.“

Ele perguntou: “O que é que faz?”

Quando Billy se mudou para os EUA, era tarde demais para perder o sotaque, mas não para apreciar o país, embora sem deixar de o comparar (e julgar) contra a sua pátria natal. Numa adoração fundada na realidade (nem sempre cor-de-rosa), Wilder deixou-nos uma filmografia com sotaque camone e cinismo austríaco, a qual devemos sobretudo a um golpe de sorte burocrático. Quando o visto de trabalho expirou, Wilder, sem todos os papéis necessários, estava a ter problemas em não ser recambiado para casa:

Eu disse: “Sou escritor.” “O que é que escreve?” “Escrevo filmes.” Ele carimba o meu passaporte e diz: “Escreva bons filmes!”

“Fui ao escritório do cônsul americano. Estava a suar, e não era do calor. Tudo o que eu tinha, tinha deixado para trás na Alemanha e na Áustria. Tinha comigo o meu passaporte, o meu registo de nascimento e umas

“Mais tarde, descobri que ele não era o cônsul habitual, mas um vicecônsul que estava a cobrir pelo cônsul, que estava de férias.”

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“Vivi toda a minha vida a tentar o melhor possível não desapontar aquele excelente homem.” Agradecemos do fundo do coração a este burocrata anónimo e ao serviço que fez ao Cinema Mundial. ENTRE O SONHO E A REALIDADE Há uma cena, em O Pecado Mora ao Lado (The Seven Year Itch, 1955), onde Sherman (Tom Ewell) sonha tocar Rachmaninov para a Rapariga (Marilyn Monroe), seduzindo-a com o poder musical do gigante compositor. Na realidade, Sherman acaba a tocar os Martelinhos com a Rapariga, e a tentativa de sedução sai bastante mais atabalhoada do que o previsto. Wilder fez bastantes filmes que põem na ribalta as diferenças em como os Americanos se vêm a eles próprios, e como eles realmente são. Desde questionar estereótipos ou dançar neles, as personagens americanas de Wilder são um pouco como Tony Curtis e Jack Lemmon em Quanto Mais Quente Melhor (Some Like it Hot, 1959): fingem durante tanto tempo ser outra pessoa, que no fim já nem têm a certeza de quem são.

Billy Wilder e Marilyn Monroe no set do filme The Seven Year Itch

Muitas das vezes, o retrato americano é feito por oposição a outros. É 61


Stalag 17, 1953

A Foreign Affair, 1948

o caso de Inferno na Terra (Stalag 17, 1953), onde a confraternidade e dignidade dos soldados americanos está em directa oposição às dos soldados alemães, retratados pouco acima de palhaços. O nosso antiherói, Sargento Seftor (William Holden), não podia ser um retrato mais fiel de um capitalista: individualista, consegue fazer lucro no meio da adversidade, luta por si próprio e pelos seus. Apenas a presença de um elemento perturbador — o espião estrangeiro — o faz alargar o conceito de “seus” aos confrades.

A Sua Melhor Missão está repleto de ideologias — quer sejam elas considerações sobre a miscigenação entre as duas nacionalidades ou reflectindo se a natureza alemã é inerentemente maléfica. Mas é na oposição entre as duas actrizes principais que Wilder faz os mais fortes comentários, ao comparar a sua antiga pátria ao seu país anfitrião. São evidentes as frustrações que o austríaco tinha com o puritanismo americano, vindo de um mundo mais libertino e aberto sexualmente. Marlene Dietrich encarna Erika, a alemã cínica, com experiência do mundo e das suas desilusões, prática e desiludida, mas mesmo assim encantada pela propaganda vinda de Hollywood (daí os seus comentários passivo-agressivos quando conhece Phoebe). Erika goza com o amante John Pringle, mas no sarcasmo sentimos um fundo de verdade: “Eu quero ir contigo para a América. Eu quero subir à Estátua da Liberdade.” Ao que John responde: “O que tu queres é descer àquela cave em Fort Knox.” Por sua vez, Phoebe, tão americana como tarte de maçã, uma mulher criada nas vastidões do Iowa, tem muito a aprender com a sofisticação de Erika — e não só em termos de sobrancelhas.

Em A Sua Melhor Missão (A Foreign Affair, 1948) novamente os americanos são postos em confronto com os alemães, desta vez os do pós-guerra. Aqui, há duas vertentes: a primeira, o retrato da ajuda americana à Europa pós-guerra, sobretudo em território alemão; e a segunda, o confronto entre a femme fatale alemã Erika (Marlene Dietrich) e a inocente, mas arrebitada, americana Phoebe (Jean Arthur). Após uma enorme reticência em entrar na Segunda Guerra Mundial, os americanos debatiam-se agora com a ideia de funcionar como anjos da guarda do resto do mundo — o Plano Marshall decerto tinha os seus acérrimos opositores. E no início do filme, quando vemos os americanos sobrevoar uma Berlim completamente destruída, um dos sargentos faz o comentário: “Se dás um pão a um homem esfomeado é democracia; se envias com a embalagem é imperialismo.” Longe de subtilezas,

Outro filme que lida com o romance inter-cultural, desta vez em plena Guerra Fria, é Um, Dois, Três (One, Two, Three, 1961), onde C. R. MacNamara (James Cagney), patrão da Coca Cola Internacional, 62


Avanti!, 1972 departamento de Berlim, dá por si a cuidar da filha do patrão, Scarlett, uma adolescente com tendência a apaixonar-se facilmente. Claro está, a rapariga passa a fronteira e envolve-se com um comunista, Otto, com o qual casa imediatamente. O filme delicia-se em estereótipos, não só a partir da realidade do outro lado da cortina de ferro (os comunistas mais que felizes em passar para o lado ocidental), mas também do orgulho idiótico dos americanos no seu país (do relógio de cuco à mal confessada atracção pela realeza europeia).

bebemos o nosso vinho, fazemos o nosso amor…” Armbruster: “E o que é que fazem à noite?” Carlucci: “À noite voltamos para casa, para as nossas mulheres.” A falta de princípios morais apoquenta, inicialmente, Armbruster, mas claro que rapidamente cederá aos encantos da britânica Pamela Piggott (Juliet Mills). Ela, mais próxima da cultura italiana do que da de Armbruster, não hesita em chamá-lo de convencido quando um mal-entendido a leva a pensar que ele julga que a tem no papo, romanticamente falando:

Mas se em Um, Dois, Três, a cultura americana parece sair a ganhar, tal não é o caso em Amor à Italiana (Avanti!, 1972). Aqui o americano é lançado numa cultura que, à primeira vista, não faz sentido — as longas pausas para almoço, a burocracia interminável, a recusa em facilitar a vida, mesmo a língua (o americano coronel J. J. Blogeltt comenta: “Não sou contra estrangeiros falarem uma língua estrangeira. Mas gostava que todos falassem a mesma língua estrangeira.”) Armbruster Júnior, à chegada, não percebe o que o seu falecido pai viu na pacata ilha italiana. O dono do hotel tenta explicar:

“Não que esperasse subtileza vinda de ti. Afinal, és um americano. Estás acostumado a ter tudo à tua maneira. Vês alguma coisa que queres, e agarras logo. (…) Tanta mania. Tanta arrogância. Ages como se fosses dono do mundo!” Não que os Americanos não sejam capazes de depravação — em Quanto Mais Quente Melhor, o filme que começa como um filme de gangsters em Chicago e acaba como uma screwball travesti em Miami, Wilder já tinha mostrado que os Americanos tinham potencial nessa área.

Carlucci: “Aqui, não corremos para a loja da esquina para comprar uma sanduíche de frango e uma Coca-Cola. Aqui, não temos pressa. Cozinhamos o nosso esparguete, polvilhamos com o nosso Parmigiano, 63


The Lost Weekend, 1945 Horowitz, a tocar o Concerto Imperador. Sou John Barrymore… antes de os filmes o estrangularem. Sou Jesse James e os seus dois irmãos, sou os três. Sou W. Shakespeare. E lá fora já não é a Terceira Avenida, é o Nilo, Nat. O Nilo e a barcaça de Cleópatra.”

O PESADELO AMERICANO Nem só de sonhos vive o Homem, e Wilder sabia bem o quão falsas podem ser as ilusões do sonho americano. Um dos seus primeiros grandes sucessos, Farrapo Humano (The Lost Weekend, 1945), é um retrato ousado sobre alcoolismo, que arrecadaria o Óscar de Melhor Filme para o realizador austríaco. Don Birnam (Ray Milland) veio para Nova Iorque como um promissor jovem escritor, mas à medida que as recusas se acumulam, vai afogando as mágoas no álcool, primeiro para evocar a criatividade que o parece ter abandonado com o tempo, por fim para sobreviver ao aborrecimento do dia-a-dia. O peso do sonho americano esmaga este homem, que, incapaz de lidar com o fracasso e a pressão, declara que não é um drinker, mas sim um drunk. Num momento de rara franqueza para com a mulher que ama (mas pela qual é incapaz de mudar), Birnam tenta explicar-se:

Se Don Birnam encontra no álcool refúgio para a impiedade urbana americana, o refúgio de C. C. Baxter (Jack Lemmon), herói de O Apartamento (The Apartment, 1960), é a sua carreira numa megaempresa de seguros. Para Baxter, que procura a segurança e o conforto, e que está, à primeira vista, no bom caminho para alcançar o topo do Sonho Americano, o trabalhar das 9 às 5 num escritório impessoal, esforçando-se para ir subindo de piso (literal e figurativamente), chegando a emprestar as chaves do seu apartamento para os affairs do patrão, ser uma engrenagem do sistema parece ser a única maneira de viver. Nas palavras de Wilder, que decerto descrevem o seu protagonista, há pessoas que fazem tudo por dinheiro – com excepção de algumas pessoas, que fazem quase tudo por dinheiro. O interruptor que faz Baxter questionar qual o sentido da sua vida — passada no trabalho ou a comer jantares pré-cozinhados frente à televisão, sozinho — é dar por si na companhia de outra alma destruída pela grande cidade, Fran (Shirley MacLaine), e perceber que, em vez de viver como Robinson Crusoe, “naufragado numa cidade entre 8 milhões de pessoas”, chegara

“[O álcool] encolhe-me o fígado, não é, Nat? Faz vinagrete dos meus rins, yeah. Mas o que é que não faz à mente? Atira os sacos de areia borda fora para que o balão possa subir. Subitamente estou acima do ordinário, sou competente. Extremamente competente! Estou na corda bamba por cima das Cataratas de Niágara. Sou um dos grandes. Sou Miguel ngelo, a esculpir a barba de Moisés. Sou Van Gogh a pintar raios de sol puros. Sou 64


Double Indemnity, 1944

The Fortune Cookie, 1966

a altura de ser tornar um mensch, isto é, uma pessoa, um indivíduo com princípios e personalidade. Em O Apartamento — que nunca foi suposto ser uma comédia — Wilder faz o retrato da solidão americana, uma solidão “pré-fabricada” onde os americanos são representados como “bestas” (palavras do realizador) que tentam, a todo o custo, erguer-se acima das massas.

altura) e o medo — terror, quase — de uma nova Depressão, mas talvez a principal nota que dele sai é o quão Billy Wilder odiava companhias de seguros. Se bem que se olharmos para o contraponto cómico de Pagos a Dobrar, Como Ganhar um Milhão (The Fortune Cookie, 1966), temos Willie Gingrich (Walter Matthau) a justificar a desonestidade que o rodeia — “Esperar? Quem é que espera nos dias de hoje? Olhem para o Governo. Quando eles lançam um bilião de dólares para o espaço, acham que eles pagaram? Puseram tudo no cartão de crédito.”

Como não ser parte da multidão? A maneira mais óbvia, claro está, é ganhar o jogo capitalista, ou seja, tornar-se rico, de preferência sem grande esforço — Mais por Menos. Em Pagos a Dobrar (Double Indemnity, 1944), as personagens principais têm um problema, segundo Wilder: “não estão a viver o Sonho Americano, e esperam corrigir isso. O jogo é tão importante como o prémio.” Walter Neff (Fred MacMurray) é um vendedor de seguros alienado, perdido numa Califórnia estéril e culturalmente superficial, cheia de pessoas desonestas. Phyllis Dietrichson (Barbara Stanwyck) aparece como uma bóia de salvação no meio da estagnação, uma maneira de conseguir ganhar a um jogo que está viciado de início. Ambos querem o que está na prateleira de cima — e para o conseguirem alcançar ambos estão dispostos a matar. O filme, estilisticamente um travesti étnico (um noir de herança alemã, que irá desenhar o caminho para o género daí em diante), reflecte, obviamente, o clima tenso nos EUA após as falhas do New Deal (nada popular na

Outra maneira de se destacar da multidão é, claro está, a fama. E Wilder não tem papas na língua sobre esse específico assunto. Sobre os quinze minutos de Warhol deu-nos O Grande Carnaval (Ace in the Hole, 1951) e Primeira Página (The Front Page, 1974), dois filmes que mostram o quão longe um jornalista pode ir na busca de um furo, fabricando mesmo drama para vender mais jornais. Mas, claro está, o austríaco deu o seu retrato mais mordaz sobre uma certa terra mágica na costa Este dos Estados Unidos — aliás, dois retratos, que funcionam também como espelho da sua própria carreira. Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard), estreado em 1950, quando Wilder estava no pico da sua carreira, conta a história de Joe Gillis (William Holden), um escritor fantasma em mais que um sentido da 65


palavra que, após anos difíceis a tentar construir uma carreira como guionista em Hollywood, dá por si como amante/escritor particular de uma velha lenda de Hollywood, Norma Desmond (Gloria Swanson). Na decrépita mansão dela, Joe tem a oportunidade de ver por si mesmo as consequências nefastas da fama, mas, apesar disso, continua a desejá-la com todas as suas forças. No final, claro está, Joe finalmente consegue o símbolo do estatuto que sempre desejou — uma piscina, onde o seu cadáver bóia enquanto os flashes dos jornalistas estalam à sua volta — mas, infelizmente, o preço foi um bocado pesado. Mais interessante que o retrato da iludida Norma, é a forma como Wilder retrata tanto Joe como Betty, a rapariga fascinada com Hollywood. É fácil ver em Joe, o escritor, um certo alter ego de Wilder — a personagem que, quando Betty comenta que sempre ouviu dizer que ele tinha talento, responde com “Isso foi o ano passado. Este ano estou a tentar fazer pela vida.” O agente dele tinha-lhe dito que “as melhores coisas do mundo foram escritas num estômago vazio”, mas Joe está farto de passar fome. Ele viu o lado negro de Hollywood, e o lado falso, e escolheu viver do lado da ilusão. E não é o único. Betty também quer parte do sonho: “Olha para esta rua. Tudo cartão, tudo oco, tudo falso. Tudo feito com espelhos. Eu gosto mais dela do que qualquer outra rua no mundo.” Mas para ela, o desafio de se tornar parte da ilusão é ligeiramente mais complicado.

Sunset Boulevard, 1950

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Fedora, 1978 Após lições de dança, dicção, representação, o estúdio disse-lhe que não gostava do nariz dela. E, após a operação ao nariz, o estúdio não gostou de a ver actuar…

Nas palavras de Stephen Farber, a principal dádiva de Wilder para o cinema americano foi a inteligência. Os seus guiões sem efeitos especiais, baseados no poder da palavra, dificilmente conseguiriam ter lugar na indústria cinematográfica americana actual (melhor seria voltar para a sua nativa Europa), mas os seus filmes marcaram indelevelmente a história do cinema. Os Estados Unidos completaram a personalidade de Wilder e enriqueceram-no (pessoal e financeiramente), mas isso nunca o impediu de satirizar a sua pátria adoptiva. O seu olhar externo com os pés bem assentes na terra pôde retratar fielmente (e amorosamente) um país com todos os seus defeitos e qualidades; como disse Salman Rushdie:

A ideia da actriz como produto, mastigado e cuspido pelo sistema, terá uma encarnação mais negra em O Segredo de Fedora (Fedora, 1978), onde Wilder é muito menos subtil (e muito mais amargo) sobre o papel de Hollywood como promotor universal do sonho americano e do ideal de juventude eterna. Este é um filme de alguém que já esteve nos píncaros da fama, mas parece ter perdido o seu mojo. O alter ego de Wilder aqui é Barry Detweiler (William Holden novamente, um Joe Gillis envelhecido e, bem, vivo), um produtor que quer tirar Fedora, a misteriosa e reclusa estrela de cinema, da reforma. Barry não consegue lidar com o mundo à volta dele. Os seus projectos anteriores não foram realizados porque talvez “não fossem originais o suficiente. Ou talvez fossem originais demais. Tudo o que sei é que não venderam.” E, claro está, olha com desconfiança para as novas caras barbudas da indústria — que “não precisam de guião — dêem-lhes uma câmara handheld e uma lente zoom.” Os anos 70, tanto o Novo Hollywood como a era do blockbuster, marcam o início do fim para filmes como os de Billy Wilder. Para o sonho americano dele, estava na altura de acordar.

“Tendo nascido do outro lado do mundo, somos homens traduzidos. Normalmente, supõe-se que há sempre algo que se perde na tradução; agarro-me, obstinadamente, à noção de que algo também se pode ganhar.“ Afinal, talento não precisa de visto.

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Título nacional: Amor à Italiana Realização: Billy Wilder

AVANTI!

Elenco: Jack Lemmon, Juliet Mills, Clive Revill Ano: 1972

SARA GALVÃO

Se, em O Pecado Mora ao Lado (The Seven Year Itch, 1955), Billy Wilder não pôde mostrar adultério devido às leis da censura, o realizador vingou-se à grande e à francesa italiana no delicioso Amor à Italiana. Nele, Wendell Armbruster, Jr. (Jack Lemmon) tem uma missão: ir buscar o corpo do pai a Itália e trazê-lo de volta para o funeral marcado para quatro dias depois. Mas tudo conspira contra ele: o adultério secreto do pai com uma britânica, Kate, durante dez anos; a filha dessa mesma amante, Pamela Piggott (Juliet Mills), que tenta reviver o grande amor da mãe enquanto segue a sua dieta; e a cultura italiana em geral, com as suas longas pausas para almoço e uma complicadíssima burocracia. O resultado é uma comédia de costumes que acaba, evidentemente, com Wendell a deixar-se cair no mesmo dolce far niente e tentação que o pai, com banhos em pelota e muito esparguete à mistura.

Com nudez por todo os lados — são os anos 70, apesar de tudo — e piadas políticas bastante ousadas (sobre o passado fascista italiano, sobre a intervenção americana internacional, e até sobre o clima anticomunista em Hollywood), Amor à Italiana permanece, contudo, quase esquecido no contexto da obra de Wilder. Resultado talvez de estar rodeado de filmes mais sonantes, ou talvez por pertencer ao período mais tardio da cinematografia do realizador. Amor à Italiana tem, mesmo assim, diálogos rápidos e inteligentes, Jack Lemmon (e o seu traseiro desnudo) e uma leveza cómica que cai muito bem com um espresso e um digestivo, com vista para o mar.

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Título nacional: Primeira Página Realização: Billy Wilder

THE FRONT PAGE

Elenco: Jack Lemmon, Walter Matthau, Austin Pendleton Ano: 1974

ANÍBAL SANTIAGO

A peça The Front Page, de Ben Hecht e Charles MacArthur, foi alvo de diversas adaptações, como o filme homónimo realizado por Lewis Milestone (1931), ou O Grande Escândalo (His Girl Friday, 1940), de Howard Hawks, comédia screwball com uma dinâmica notável entre os elementos do elenco. Se estas fitas foram adaptadas de acordo com o período em que foram lançadas, já a película de Wilder recua para 6 de Junho de 1929, quando os jornais ainda contavam com uma relevância notória e os jornalistas se digladiavam por um furo. Nesse sentido, a sala de imprensa de um tribunal surge como palco primordial do enredo, sobretudo a partir do momento em que Earl Williams, um condenado à morte, foge da prisão. O caso mexe com quase todas as personagens. Uns por um furo jornalístico, tais como Hildy (Lemmon) e Walter (Matthau), outros para remediar os possíveis danos políticos.

Já o fugitivo apenas pretende escapar à morte e reunir-se com o seu interesse amoroso. Entre situações rocambolescas e farsantes, humor slapstick, crítica sócio-política, uma sala de imprensa em ebulição, noivos que tardam em reunir-se e muita agitação, Primeira Página não alcança o sentido de ritmo perfeito, a acutilância e o charme delirante de His Girl Friday, embora cumpra com eficácia aquilo a que se propõe. A elevar o filme encontra-se a química e as dinâmicas quase perfeitas de Lemmon e Matthau, com as personagens interpretadas pela dupla a parecerem praticamente um casal que tarda em conseguir separar-se, ou não estivessem unidos com a bênção de São Francisco de Sales. Não é dos melhores trabalhos dos intérpretes e de Wilder, mas nem por isso deixa de contar com laivos do que de melhor associamos aos mesmos.

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Título nacional: O Segredo de Fedora Realização: Billy Wilder

FEDORA

Elenco: William Holden, Marthe Keller, Hildegard Knef Ano: 1978

RUI ALVES DE SOUSA

O Segredo de Fedora, um dos filmes finais de Billy Wilder, é também uma das suas pérolas subestimadas. Wilder, então já um cineasta de outros tempos que insistia em continuar a filmar e a expor a sua visão do mundo, lutava contra toda uma Hollywood em mudança. Em 1978, o mundo e a indústria do cinema não eram os mesmos do tempo em que o realizador teve a sua “época de ouro”. Estamos num período em que os "jovens barbudos" controlam os estúdios, quando a Meca do cinema se encontrava pelas ruas da amargura.

elegia a um outro tempo, sem deixar de filmar o seu presente —e que, no nosso, continua a fazer sentido e a querer dialogar connosco. O filme é uma reflexão sobre crise de identidade(s) e uma análise à morte do cinema “do outro tempo”, dos clássicos e das vedetas do antigo star system “hollywoodesco”. Contudo, Wilder não era pessimista, e aplaudiu muitos filmes das gerações que se lhe seguiram. Sentimos é a sua saudade do antigo sistema — os anos 70 e 80 revelaram-se difíceis para que filmasse mais do que conseguiu. Esse antigo cinema, ou essa antiga forma de fazer cinema, agora relíquia de museu apenas acessível aos curiosos, tenta aqui ressuscitar. E mesmo que não o consiga a nível técnico (o estilo dos oldies não se adequa totalmente), Wilder concretiza a sua intenção num belíssimo nível moral e simbólico. Vale a pena recuperar Fedora do fundo do baú.

Mas Billy Wilder mostra que, mesmo com a sua sensibilidade estereotipadamente considerada “clássica”, ainda podia ser moderno com este filme que parece dos anos 40. Erradamente descrito, por vários críticos, como uma espécie de sequela do famoso O Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950), O Segredo de Fedora é uma bela

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Título nacional: Os Amigos da Onça Realização: Billy Wilder

BUDDY BUDDY

Elenco: Jack Lemmon, Walter Matthau, Paula Prentiss Ano: 1981

PEDRO MIGUEL FERNANDES

Se Billy Wilder sempre foi dono e senhor de um humor bastante peculiar, o seu último filme — o terceiro em que reuniu o famoso odd couple (Jack Lemmon e Walter Matthau) — permitiu levar a um novo extremo o seu humor, mais negro do que nunca.

Por aqui já percebemos que Wilder precisou de chegar ao seu último filme para abordar o mais explicitamente possível uma questão que nos seus outros filmes sempre esteve presente, mas meio escondida com o rabo de fora: o sexo.

Os Amigos da Onça é a história de um pacato assassino profissional (Matthau, numa interpretação excepcional a todos os níveis, num filme em que é ele e não Lemmon o alter ego de Wilder: poucos actores conseguem tanto com uma expressão tão inexpressiva — perdoem-nos, mas não encontramos palavra melhor — como a do assassino Trabuco) que, ao preparar o seu último trabalho na maior das calmas, tem o azar de se cruzar com um suicida (Lemmon) que não aguenta o facto de a sua mulher ter fugido com um médico especialista em frustrações sexuais (um médico louco interpretado pelo não menos louco Klaus Kinski).

Os Amigos da Onça é o filme de um realizador zangado com o seu tempo e com o rumo que as coisas tinham tomado, numa altura em que já era um peixe fora de água na Hollywood onde viveu todas as grandes transformações, do apogeu dos grandes estúdios nos anos 30 à chegada dos movie brats nos anos 60-70 e consequente queda daqueles verdadeiros impérios. Não é dos melhores títulos de Wilder, mas é mais do que uma simples curiosidade, e vale a pena, quanto mais não seja para ver o odd couple em acção.

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Billy Wilder e Charles Brackett


WILDER, BRACKETT E DIAMOND RUI ALVES DE SOUSA

O estranhíssimo livro de entrevistas que é Conversations with Wilder, do realizador Cameron Crowe, permite-nos, entre uma estrutura desconjuntada — e por vezes aleatória — do fio condutor que se tece entre os vários tópicos das conversas, descobrir alguns pormenores fascinantes da vida, obra e pensamento de Billy Wilder, um dos grandes realizadores e autores de Hollywood que, talvez por causa da sua sensibilidade europeia, conseguiu retratar as relações humanas com um sentido humorístico inigualável ou um cinismo de faca afiada.

pessoais ou pelo simples facto de o realizador não conseguir entrar em sintonia, de ideias e estilo, com esses comparsas. Apesar disso, não estamos a dizer que, com isso, os filmes sofreram as consequências. Muito pelo contrário, já que uma parte das obras-primas maiores de Wilder foram co-escritas em parcerias que não duraram mais do que aquele trabalho: a já citada adaptação da obra de James M. Cain, e que é um dos exemplos cimeiros do film noir, ou ainda o excepcional O Grande Carnaval (Ace in the Hole, 1951), um autêntico OVNI em toda a carreira de Wilder e no cinema americano do seu tempo.

Mas o cineasta, apesar de também ser ele o co-autor de uma grande maioria das suas produções, contou sempre com o apoio de argumentistas suplementares, quer em situações ocasionais, quer em colaborações mais duradouras que acabaram por influenciar o estilo dos filmes. Na parte dos colaboradores esporádicos, é de salientar que Raymond Chandler foi responsável pelo argumento de Pagos a Dobrar (Double Indemnity, 1944) — um autor que Wilder, não sabemos se com razão se por dor de cotovelo, dizia só ser bom para os diálogos e não para as histórias.

A páginas tantas das Conversations, Wilder revela a Crowe que os argumentistas com quem mais gostou de trabalhar foram os que duraram mais tempo — e se algum não fazia mais do que um filme é porque algo não tinha resultado. E na sua filmografia encontramos dois nomes que se destacam: dois argumentistas que conseguiram aliar o seu próprio génio ao de Wilder para criar, em conjunto, mais uns quantos filmes magníficos ao longo de períodos temporais alargados. Charles Brackett e I. A. L. Diamond foram os dois grandes braços direitos de escrita de Wilder, em épocas distintas.

Esta foi uma relação profissional complicada, como reza a lenda, tal como se sucedeu com os outros parceiros de escrita que não duraram muito na carreira de Wilder — quer tenha sido por desentendimentos

Distintas também são as origens de ambos na carreira do cineasta: Brackett surgiu quando Wilder era ainda um argumentista a tempo 73


Billy Wilder e Charles Brackett inteiro, a lutar pelo respeito da sua “voz” pelos realizadores para quem escrevia os argumentos (e alguns geraram também obras-primas). E terá sido esse desrespeito por alguns desses cineastas que fez com que ele quisesse tornar-se realizador das suas histórias. Já Diamond surgiu muito mais tarde, quando Wilder já tinha uma enorme reputação em Hollywood no campo da realização, com muitos prémios e honrarias várias, acompanhando-o profissionalmente até ao fim da sua carreira, auxiliando na escrita do infame Os Amigos da Onça (Buddy Buddy, 1981) e falecendo sete anos depois não conseguindo concretizar mais nenhum filme, mesmo que não tivessem faltado tentativas e intenções disso por parte de ambos. Uma das ideias mais curiosas que não passou do papel foi a de fazerem uma comédia com os irmãos Marx na ONU — teria sido perfeito, não?

da indústria permite prever, foi rápida e incisiva: trinta minutos depois de terem entrado no gabinete de Lubitsch, a dupla ficou encarregue de escrever o guião do que viria a ser uma exuberante comédia com Claudette Colbert e Gary Cooper, A Oitava Mulher do Barba Azul (Bluebeard's Eighth Wife, 1938). Wilder dizia, com muita graça, que era um dos filmes menores de Lubitsch, mas um dos mais fortes da sua autoria, e que impulsionou muito do que se seguiu. A parceria resultou, e Lubitsch, contente com o resultado, contratouos novamente para o seu projeto seguinte, que viria a ser porventura um dos mais célebres e lembrados filmes do cineasta: Ninotchka (1939), comédia com um dos papéis mais marcantes de Greta Garbo. Conta Wilder que, um dia, os dois argumentistas estavam bloqueados com a construção da história: o que poderia ser o motor central da protagonista? Lubitsch vai ao WC e sai de lá com a resposta: é o chapéu! É este elemento que tornará o filme num dos mais emblemáticos da época, num ano que é considerado dos melhores do cinema americano (quantas outras obras primas saíram em 1939!). Wilder levou para os seus argumentos seguintes, e para o seu cinema, muitas lições de Lubitsch que seriam colocadas em prática mais tarde — neste caso, a importância dos objetos como símbolos de certos aspetos fulcrais da narrativa seria uma constante, tanto nos filmes com Brackett como

Charles Brackett começou por escrever contos no Saturday Evening Post, e mais tarde foi parar ao departamento de escrita da Paramount composto por dezenas de funcionários responsáveis pela tarefa de criar argumentos, quer fossem ou não filmados e lançados. É a Manny Wolf, o diretor desse departamento, que se deve o início da relação entre Brackett e Wilder: ele apresentou-os e ordenou-lhes que fossem ter com Ernst Lubitsch para poderem ver se o famoso realizador quereria tê-los como seus argumentistas. A reunião, ao contrário do que a burocracia 74


Billy Wilder e Charles Brackett em tudo o que se seguiu. Wilder tinha um quadro com a frase "What Would Lubitsch Do?" colocado no seu gabinete para o inspirar — e, como discípulo, podemos dizer que não se saiu nada mal.

que acaba por atrair um militar (Ray Milland), num filme tão peculiar que não percebemos se será totalmente para rir ou se, lá no meio, está alguma reflexão sobre a pedofilia!

Mitchell Leisen foi um dos realizadores com quem Wilder não se entendeu, mas isso não impediu que, com Brackett, assinasse outra comédia singular, e que era a preferida da carreira da protagonista, Claudette Colbert. Meia-Noite (Midnight, 1939) é uma comédia romântica de enganos que também já cimentava alguns temas e innuendos que veríamos em filmes escritos e realizados por Wilder, e também merece mais estima do público moderno.

Entre outras pérolas assinadas por Wilder e Brackett destacam-se Cinco Covas no Egipto (Five Graves to Cairo, 1943), única incursão de ambos num cinema de aventuras que, com o passar do tempo, levou Brackett a dizer que não achava que tivesse envelhecido bem — descordamos a 100%. Seguiram-se ainda o oscarizado Farrapo Humano (The Lost Weekend, 1945), a primeira incursão de Wilder no drama social; A Valsa do Imperador (The Emperor Waltz, 1948), um musical Technicolor com Bing Crosby, filme atípico que Wilder não tinha em grande consideração; e A Sua Melhor Missão (A Foreign Affair, 1948), drama romântico com a Alemanha do pós-guerra como pano de fundo, com formidáveis desempenhos de Jean Arthur e Marlene Dietrich.

Quando decidiu enfrentar o desafio da realização “a sério”, Wilder levou Brackett consigo. O seu primeiro filme nesse campo não contava para ele, já que Mauvaise Graine (1934) — realizado “a meias” e com parcos recursos em Paris — fora uma brincadeira, coisa que Wilder não queria que se repetisse neste seu primeiro projeto em Hollywood como realizador. E assim surgiu A Incrível Susana (The Major and the Minor, 1942), que não sendo uma das suas obras-primas, não deixa por isso de ser uma comédia divertidíssima, com Ginger Rogers a pegar numa personagem surpreendente (e hoje, provavelmente, controversa): uma mulher que finge ser criança para poupar no bilhete do comboio, mas

A relação entre Wilder e Brackett terminou de forma conturbada: uma discussão acesa entre ambos foi o culminar de uma série de tensões que se sentiam na dupla. Esta frutuosa ligação profissional terminou em meia dúzia de filmes de Wilder, e o último marco dela é dos melhores, tanto de Brackett como do argumentista/realizador, Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950), história crítica ao sistema de 75


Billy Wilder e I. A. L. Diamond Hollywood com uma das personagens mais conhecidas do universo wilderiano: a diva do mudo Norma Desmond (Gloria Swanson), caída em desgraça na altura em que Gillis (William Holden) a encontra na sua mansão em Sunset Boulevard. Wilder fora avisado que fazer um filme sobre Hollywood era algo que nunca funcionava e que seria demasiado arriscado para o seu estatuto. Não deu ouvidos às más-línguas e o resultado foi um clássico magistral.

de longas-metragens, e, consequentemente, a mudança dos tempos e o fim do Production Code levou a que o cinema americano pudesse tomar algumas liberdades que antes não seriam permitidas. Não será de estranhar que, nas obras seguintes, notemos alguns “atrevimentos” maiores, no que diz respeito às referências a sexo ou até mesmo à inclusão de palavrões (isto a partir dos anos 70). Se bem que os filmes de Wilder com Diamond tenham tentado sempre adaptar-se aos tempos que estavam a retratar, aproveitando essas liberdades conquistadas em determinada altura, em nada isso afetou o seu método de trabalho e a busca pelos detalhes mais originais da escrita. É claro que em Amor à Italiana (Avanti!, 1972) não encontramos um filme tão memorável como O Apartamento (The Apartment, 1960), mas cada um destes projetos valerá o visionamento.

I. A. L. Diamond entra em cena com Ariane (Love in the Afternoon, 1957), romance que junta Audrey Hepburn, uma das atrizes preferidas de Billy Wilder, com o veterano Gary Cooper. O resultado é um dos pares mais marcantes do seu cinema, com vários momentos de antologia que rivalizam com outros filmes seus mais celebrados. Este foi o segundo e último trabalho de Hepburn com Wilder: antes houvera Sabrina (1954), co-escrito com Ernest Lehman e Samuel A. Taylor a partir da peça deste último. Ambos com grandes currículos, não voltariam a escrever para Wilder.

Com Diamond, Wilder tinha um método de trabalho na rodagem dos filmes que, segundo a esposa do primeiro, se assemelhava a um "casamento de muitos anos": Diamond nunca deixou de dar sugestões a Wilder para melhorar o que estava a ser filmado. A química entre ambos teria alguns dos mais assinaláveis sucessos de público do realizador: Quanto Mais Quente Melhor (Some Like it Hot, 1959), a comédia em que Jack Lemmon e Tony Curtis trocam de sexo é uma das melhores de sempre. Foi Diamond quem teve a ideia para a hoje mítica

A partir de Ariane notaremos uma diferença gradual: a comédia irá mudar de tom, não perdendo a subtileza e peculiaridades, mas ganhando um atributo que será fruto do facto de a relação de Wilder com Diamond durar vinte e quatro anos, o que se converteu numa dúzia 76


Me, Stupid, 1964), que Wilder colocava entre os seus trabalhos menos conseguidos, no conjunto dos que foram co-escritos com Diamond e na filmografia geral.

Billy Wilder e I. A. L. Diamond

Seguiram-se outros projetos curiosos, entre os quais Como Ganhar um Milhão (The Fortune Cookie, 1966), mais uma comédia hilariante, e a primeira que colocou Jack Lemmon a contracenar com Walter Matthau (a parceria repetir-se-ia em muitos outros filmes até à década de 90), e A Vida Íntima de Sherlock Holmes (The Private Life of Sherlock Holmes, 1970), incursão invulgar de Wilder a um registo próximo das histórias da personagem de Conan Doyle que foi montado pelos produtores sem as orientações de Wilder: segundo o próprio, o filme que imaginara era muito diferente, que apesar de ser um dos mais melancólicos e poéticos do cineasta, parece estar longe do que deveria ter sido. Depois do menos conseguido, mas divertido Amor à Italiana, ainda houve um remake eficaz e muito wilderiano de Primeira Página (The Front Page, 1974), e O Segredo de Fedora (Fedora, 1978), a elegia a uma Hollywood que já não existia. Depois disto só houve Os Amigos da Onça, filme final que, à falta de uma edição em DVD ou Blu-ray, tornou-se num filme desconhecido para a maioria do público — será que, numa perspetiva contemporânea, seria tão mau como foi considerado pela maioria dos críticos na época em que estreou? Apesar de Billy Wilder ter um estilo muito vincado e característico, muito do que de formidável tem a sua obra deve-se aos seus colaboradores. Brackett e Diamond desempenharam um papel importantíssimo na criação de algumas das ideias mais emblemáticas do cinema clássico — os filmes aí estão e na sua maioria continuam de óptima saúde.

frase final: “Ninguém é perfeito.” À falta de melhor, Wilder aceitou-a, enquanto pensariam noutra solução, uma que, no seu entender, tivesse "realmente" piada. Mas nunca surgiu uma alternativa... Felizmente, porque o resto é história — e Wilder só percebeu mesmo que aquelas palavras funcionavam ao ver a reacção explosiva do público da sessão de preview do filme em Westwood: os risos inundaram toda a sala. O já mencionado O Apartamento voltou a colocar Wilder no colo da Academia com um dos seus filmes mais complexos e fascinantes, narrativa e cinematograficamente falando. Billy Wilder considera este o pináculo criativo da sua carreira, e que nunca o voltou a atingir. Nunca conseguiu, falhando em todas as tentativas que se seguiram. Mas mesmo que não tenha surgido mais nenhuma obra-prima, não deixámos de encontrar filmes memoráveis nos anos que se seguiram. Um, Dois, Três (One, Two, Three, 1961) é uma sátira à Guerra Fria com, provavelmente, o maior número de piadas por minuto a uma velocidade estonteante num filme de Wilder, quase disparadas com a força de uma metralhadora. Tem James Cagney num surpreendente papel, tendo o actor apanhado bem o ritmo que o guião pretendia. Irma La Douce (1963) foi um grande êxito de bilheteira e é hoje um filme injustamente pouco lembrado. No ano seguinte foi a vez de Beija-me, Idiota (Kiss 77


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