DITADORES
TAKE.COM.PT | ANO 9 | NÚMERO 46
CRÍTICAS
ARTIGOS
Biografias de Ditadores
Brincar aos Ditadores
14 Der Untergang 16 Ivan Groznyy e Ivan Groznyy. Skaz vtoroy: Boyarskiy zagovor 18 Napoléon vu par Abel Gance 19 Autobiografia lui Nicolae Ceausescu 20 The Last King of Scotland 20 Vincere 21 General Idi Amin Dada: Autoportrait 21 Stalin 22 The Devil's Double 22 Mongol
64 The Great Dictator 66 Duck Soup 68 Team America: World Police 69 Bananas 69 The Interview
04 Cinema über alles . editorial 06 Os Ditadores vão ao Cinema 24 À conversa com Manuel Mozos . entrevista 32 À conversa com João Leitão . entrevista 40 Viver em Opressão 54 Brincar às Ditaduras 70 Teorias da Ditadura 84 The Man in the High Castle . tv
Teorias da Ditadura 78 Fahrenheit 451 80 V for Vendetta 82 The Childhood of a Leader 83 Brazil 83 The Hunger Games
A Ditadura em Portugal 30 Cinema: Alguns Cortes 36 Capitão Falcão 38 Capitães de Abril 39 A Vida Privada de Salazar 39 Brandos Costumes Viver em Opressão 44 Roma Città Aperta 46 The Act of Killing 48 Salò o le 120 giornate di Sodoma 50 L'armée des ombres 51 Taxi 51 El Laberinto del Fauno 52 No 52 Z 53 El Secreto de Sus Ojos 53 Before Night Falls
Director José Soares. josesoares@take.com.pt Editora Sara Galvão. Editor adjunto José Carlos Maltez. Colaboraram nesta edição António Araújo. Cátia Alexandre. Diana Martins. Filipe Lopes. João Bizarro. José Carlos Maltez. Pedro Miguel Fernandes. Pedro Soares. Sandra Gaspar. Sara Galvão. Design José Soares. Ilustração Sofia Silva. fi3d.tumblr.com Imagens Arquivo Take. Alambique. Big Picture Films. Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. Cine Mundo. Columbia TriStar Warner Portugal. Costa do Castelo Filmes. Fox Portugal. Films 4 You. iStock. LNK Audiovisuais. Lanterna de Pedra Filmes. Leopardo Filmes. NOS Audiovisuais. Midas Filmes. Nitrato Filmes. Outsider Filmes. Pris Audiovisuais. Sony Pictures Portugal. Universal Pictures Portugal. Valentim de Carvalho Multimédia. Vendetta Filmes. Imagem de capa Er ist wieder da (2015) © Constantin Film. © 2017 Take Cinema Magazine - Todos os direitos reservados. As imagens usadas têm direitos reservados e são propriedade dos seus respectivos donos.
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CINEMA ÜBER ALLES SARA GALVÃO
Quando pensamos em ditadores, pensamos sobretudo nas figuras históricas que já morreram, ou em países distantes e “diferentes” o suficiente para não nos preocuparmos. A possibilidade de podermos voltar a um regime não-democrático (ou, chamando as coisas como elas devem ser chamadas, ditadura) é por isso uma ideia remota, que raramente nos passa pela cabeça, a não ser no domínio da ficção, histórica ou distópica. Mas à luz dos últimos meses torna-se importante reflectir seriamente sobre o que significa viver em democracia. Quando atentados terroristas justificam um Estado Big Brother, ou um Presidente decreta ordens ilegais sem dar justificação, de repente os problemas não estão no passado ou do outro lado do mapa, os problemas estão à nossa frente. Tal como Hitler foi eleito democraticamente, e Salazar visto como o salvador da Pátria, os novos ditadores não aparecerão com um sinal de neon a dizer “eu sou mau”. Algumas das coisas que eles - ou elas - dizem, até fazem sentido. Cabe-nos a nós reconhecer quando nos estão a manipular contra nós mesmos, e contra as nossas liberdades. Entretanto o cinema, como sempre em tempos de mágoa, floresce. Nesta edição apresentamos aos nossos leitores, companheiros de cinefilia, os retratos que a Sétima Arte fez do Ditador e das sociedades que os sofreram, de Charlie Chaplin a Seth Rogen, deixando muitos outros bons filmes pelo meio. Porque não há lápis azul que consiga manter a verdade escondida para sempre, desfrutem… e bons filmes.
Sacanas Sem Lei, 2009
A Queda: Hitler e o Fim do Terceiro Reich, 2004
OS DITADORES VÃO AO CINEMA OU COMO A SÉTIMA ARTE TEM DEFINIDO QUEM MERECE ESSE TÍTULO JOSÉ CARLOS MALTEZ
Todos conhecemos a palavra ditador, que associamos intuitivamente a alguém que detém um poder quase absoluto sobre um país, legislando sem sofrer controlo, e usando esse poder de forma abusiva, resultando em formas de opressão, que contemplam violência, limitações às liberdades individuais, uso de censura, controlo policial e/ou militar do estado, e uma justiça arbitrária e não igualitária. Essa é, de facto, uma definição moderna, adaptada às realidades do século XX em diante. Mas nem sempre foi assim. A palavra dictator vem do latim, significando, durante a República Romana, um cargo de poderes excepcionais atribuído a um político, como forma de resposta a situações de crise, como acontecia na iminência de invasões, ou durante uma guerra civil. O conceito tem eco no cargo grego de Tirano (palavra que indiscriminadamente usamos a par da de Ditador), título atribuído a governantes em nome individual, muitas vezes chegados ao poder por revoluções populares, e que assim quebravam linhas dinásticas antigas. Tanto num como no outro caso, estes títulos não tinham então a conotação negativa que carregam hoje.
ou não na definição. São os reis tiranos se detêm poder absoluto? São os revolucionários e usurpadores de tronos libertadores ou ditadores? A resposta será sempre subjectiva, pelo que optámos pela via mais simples, concentrarmo-nos nos grandes nomes da história que, fosse qual fosse o contexto da sua época, usufruíram de um poder imenso, no qual contemplaram o uso da violência e opressão, muitas vezes engajando-se em guerras, quer internas quer externas, perpetuando-se arbitrariamente no poder, não hesitando em fazê-lo à custa das liberdades da sua própria população. Começamos, obviamente, pelo mais célebre dos ditadores da Antiga Roma, Júlio César (100-44 a.C.), mesmo que antes dele muitos outros políticos romanos tenham sido agraciados com o título. Filho de uma família nobre, Júlio César fez carreira política e militar, destacando-se pelas campanhas no exterior, como foi a guerra das Gálias. Várias vezes cônsul, acabou por entrar em conflito com o seu anterior aliado Pompeu, o que resultou numa guerra civil de quatro anos, da qual saiu como grande vencedor. Para aplacar a República nesses anos conturbados, e poder com calma aplicar as suas restruturações, Júlio César fez-se eleger cônsul sucessivamente, e por fim Ditador Vitalício, cargo no qual foi assassinado por aqueles que temiam que a República Romana estivesse a tornar-se uma monarquia. Figura dramática pelo menos desde Shakeas-
Não nos interessando tanto as definições históricas nem a evolução dos conceitos, preferimos aqui olhar para a ideia intuitiva de ditador ou tirano, tal como descrita no parágrafo inicial. É claro que ela é subjectiva e, dependendo da sensibilidade de cada um, muitos nomes podem cair 7
peare, numa peça várias vezes adaptada ao cinema, sendo a mais conhecida o filme de Joseph L. Mankiewicz (Júlio César, 1953), César viu essa peça cristalizar uma imagem onde a ambiguidade entre político popular e ambicioso pretendente a monarca é deixada em aberto. Júlio César está presente no grande ecrã desde o cinema italiano da década de 1910, apresentado como o supra-sumo da estratégia militar. A par dessa vertente, é o conflito político e o dramatismo do seu assassinato às mãos do protegido Brutus, que merecem atenção do cinema como em Júlio César (1970, Stuart Burge), num tema que rivaliza com a sua aventura romântica com a egípcia Cleópatra, que originou vários filmes, como o célebre Cleópatra (1963, Joseph L. Mankiewicz). A não esquecer está a paródia, nas animações de Astérix. Na Idade Média, tempo de monarquias instáveis, guerras constantes e regimes autocráticos, não seria difícil apontar monarcas que podemos equiparar a ditadores. Também não espanta que, para a Europa, o maior dos flagelos, e mais odiado dos homens viesse de fora, na pessoa de Genghis Khan, líder mongol de 1206 a 1227, de quem hoje sabemos muito, devido às narrativas de Marco Polo, e que unificou os povos nómadas do nordeste asiático, para fundar um império que duraria vários séculos, e entraria pela Europa dentro. Mas o cinema moderno tem-no visto como um hábil general libertador de um povo que teve de se superar para
Júlio César, 1953 8
Mongol: A ascensão de Genghis Khan, 2007 deixar as árduas condições das estepes asiáticas e procurar paragens mais vantajosas. É isso que nos mostra o filme Mongol: A ascensão de Genghis Khan (2007, Sergei Bodrov), um dos mais recentes numa série de filmes sobre o líder mongol. Destacam-se ainda O Maior Império do Mundo (1961, André de Toth) e Genghis Khan, o Conquistador (1965, Henry Levin). Tornado anedótico por Shakespeare, foi o inglês Ricardo III (rei de 1483 a 1485), símbolo do maquiavelismo palaciano, numa subida a todo o custo, que certamente exagera a realidade do personagem histórico. Em múltiplas adaptações ao cinema, destacam-se dois filmes intitulados Ricardo III, um clássico (1955, Laurence Oliver) e o outro modernista (1995, Richard Loncraine), e ainda a versão de terror gótico Tower of London (1962, Roger Corman), interpretada por Vincent Price, no papel do rei que aqui se pretendia louco.
(1945 e 1958), como unificador e visionário de uma Rússia moderna, mas também como um sádico e louco sanguinário, o segundo filme estreado num período em que a União Soviética tentava algum revisionismo da era estalinista. Podemos acrescentar ao número de usurpadores o inglês Oliver Cromwell, que o cinema nos deu no filme Cromwell (1970, Ken Hughes), e que interrompeu a monarquia britânica de 1653 a 1658, depois de várias guerras civis, após as quais instaurou um regime que ficou marcado pelo puritanismo religioso. Em França, figura marcante foi Robespierre, retratado em No Reinado do Terror/Reign of Terror (1949, Anthony Mann), como o mentor do regime de excessos revolucionários que se seguiu à Revolução Francesa de 1789. É dessa revolução que nasce a figura do génio conquistador, que relembra a de Júlio César, e que foi Napoleão Bonaparte. Napoleão fez carreira militar numa França em convulsão, para surgir como cônsul em 1799, no momento em que se punha fim ao regime do Terror. Fazendo frente às ameaças externas, Napoleão notabilizou-se como salvador, e iniciou uma expansão na qual se coroaria imperador em 1804, e que o levaria a dominar quase toda a Europa até 1815. Para uns, executor dos ideais revolucionários que tinham por objectivo o fim das casas reais europeias,
Passando a figuras pós-renascentistas, o cinema imortalizou Ivan, o Terrível, czar russo de 1547 a 1584. Considerado hoje um déspota cruel, Ivan IV foi um reformador e conquistador que unificou e engrandeceu o território da Rússia, que antes dele era apenas o Grão-Principado de Moscovo. Embora o seu cognome, Groznyy, literalmente signifique «formidável», a tradição ocidental transformou-lhe a imagem. Vemo-lo no filme de Sergei M. Eisenstein, em duas partes, Ivan o Terrível/Ivan Groznyy, 9
Napoleão, 1955
Hitler: Os Últimos Dez Dias, 1973 I (1985, Alberto Negrin) e Vencer/Vincere (2009, Marco Bellocchio), num conjunto de filmes que procuram mostrar uma personalidade carismática, arrogante e facilmente encolerizável.
para outros apenas mais um tirano com ambição desmedida, Napoleão é ainda hoje uma figura apaixonante, pelo impacto que deixou na história da Europa. O cinema não lhe foi imune, descrevendo-o de muitas perspectivas. Fosse pelas histórias de amor, como em Maria Walewska (1937, Clarence Brown), fosse pelas campanhas militares, como no épico de Tolstoi, Guerra e Paz, várias vezes adaptado ao cinema, como na versão de King Vidor (1956). Na maioria das vezes descrito como um conquistador tirano, não fosse essa a perspectiva anglófona, destacam-se obras francesas que o retratam como um herói genial, salvador da pátria, como o são os dois filmes de nome Napoleão, filmados por Abel Gance (1927) e Sacha Guitry (1955).
Em paralelo. surgia na Alemanha aquele que é talvez a figura mais paradigmática de um ditador com tudo o que isso tem de horrífico. Esse é, claro, Adolf Hitler, chanceler alemão de 1933 a 1945. Líder do Partido Nacional-Socialista (conhecido como Partido Nazi), Hitler criou um regime militarista, racista e xenófobo, que partia da retórica da superioridade do seu povo como legitimação do ataque contra os vizinhos. Inspirandose na propaganda fascista italiana, Hitler criou um estado fortemente repressivo que utilizou campos de concentração para eliminar todos os que se lhe opunham, ou que lhe eram indesejáveis, preparando o seu país para um esforço de guerra que avassalaria a Europa de 1939 a 1945 e originaria o Holocausto. Torna-se impossível enumerar uma filmografia que trate da figura de Hitler, pois é o ditador mais vezes retratado, mesmo que em cameos (por exemplo em Indiana Jones e a Grande Cruzada, de Steven Spielberg, em 1989). Entre os títulos mais importantes ficam o biográfico As Garras de Hitler/The Hitler Gang (1944, John Farrow), o dramático Hitler: Os Últimos Dez Dias/Hitler: The Last Ten Days (1973, Ennio De Concini), e, vindos já da própria Alemanha, o documento histórico Hitler - Um Filme da Alemanha/Hitler, ein Film aus Deutschland
O século XX ficou conhecido como o século das grandes ditaduras, que resultaram do final da Primeira Guerra Mundial, e originariam a Segunda. Nesse período surgiu Benito Mussolini, que liderou a Itália com mão de ferro de 1922 a 1943, criando muito do que hoje reconhecemos como a iconografia e imaginário das ditaduras modernas. Mussolini cunhou o termo «fascismo», que construiu como um regime autoritário, xenófobo, militarizado, de forte componente propagandística, assente num ideal nacionalista de saudosismo pelo passado glorioso do Império Romano. Com várias obras em Itália sobre a figura de Mussolini, como Mussolini, Último Acto/Last Days of Mussolini (1974, Carlo Lizzani), Mussolini and 10
Onde Fica a Guerra?, 1970 (1977, Hans-Jürgen Syberberg), e o emocional e quase íntimo A Queda: Hitler e o Fim do Terceiro Reich/Der Untergang (2004, Oliver Hirschbiegel), protagonizado por Bruno Ganz. Peça à parte é o simbolismo de Molokh (1999, Aleksandr Sokurov). Curiosamente, Hitler é também o mais parodiado dos ditadores, com inúmeros filmes tentando exorcizar o horror da sua acção com a ridicularização dos seus traços. Exemplos são O Falhado Amoroso/The Producers (1967, Mel Brooks) e Onde Fica a Guerra?/Which way to the Front? (1970, Jerry Lewis).
rialista capaz de rivalizar com o Ocidente. Responsável por uma política de repressão política, deportações e mortes em campos de trabalhos forçados, Estaline é para muitos equiparado a Hitler, e o cinema ocidental procura tratá-lo como tal. Exemplos são Stalin (1992, Ivan Passer) e O Divã de Estaline/Le divan de Staline (2016, Fanny Ardant). Do outro lado da cortina de ferro não faltariam exemplos de enaltecimento do líder, como Padeniye Berlina (1950m Mikheil Chiaureli) e Nezabyvaemyy 1919 god/The Unforgettable Year 1919 (1951 Mikheil Chiaureli).
Se a par destes, outros ditadores europeus contemporâneos como Franco em Espanha (1939 a 1975) e Oliveira Salazar, em Portugal (1933 a 1968), apesar (ou talvez por causa) da sua maior longevidade, não geraram tantos filmes, temos do outro lado da Europa o exemplo dos regimes comunistas, iniciados na União Soviética, principalmente com aquele que ditou as regras do regime de mão de ferro que se estenderia por toda a Europa oriental - José Estaline, líder soviético de 1924 a 1953. Com a morte prematura do mentor do regime, Lenine, Estaline tornou-se o seu sucessor, e o homem que moldaria o Marxismo à sua medida, num Estado totalitário, de partido único, e forte controlo de liberdades. Erguendo o país do subdesenvolvimento tradicional da Rússia, e passando pelos horrores da Segunda Guerra Mundial, Estaline não olhou a meios para modernizar a União Soviética, no sentido de a tornar uma potência impe-
Na China, uma ditadura do proletariado desde os anos 50, o nome mais emblemático é Mao Tsé-Tung (líder de 1949 a 1976), merecedor de enorme culto da personalidade no seu país, e que, com a habilidade de usar a ideia de uma revolução contínua, foi manobrando o aparelho de estado a seu gosto, livrando-se da oposição em sucessivas purgas internas. Na Europa, o nome mais conhecido, com os líderes do bloco comunista a terem longevidades curtas no poder, terá sido o do romeno Nicolae Ceaușescu (presidente de 1974 a 1989), infame pelo regime de terror que criou, e pelos abusos que só depois da sua morte foram denunciados, e recentemente documentado no filme Autobiografia de Nicolae Ceausescu (2010, Andrei Ujica), símbolo do exame de consciência que o cinema romeno vem fazendo à sua história. Menos polémica é a figura do jugoslavo Josip Broz Tito (presidente de 1953 a 1980), célebre pela sua figura 11
O Último Rei da Escócia, 2006 de resistente, de unificador de um país que após a sua morte implodiria, e até pela coragem de fazer frente às directivas soviéticas, o que é descrito no filme Tito i ja (1992, Goran Markovic).
Seko, no Zaire (no poder de 1965 a 1997). Mas mais infames são os nomes do sudanês Omar al-Bashir (presidente desde 1989), alegadamente responsável pelo genocídio de Darfur de 2003, e o de Idi Amin Dada, presidente do Uganda de 1971 a 1979, responsável por um regime de terror no seu país, retratado em filmes como Ascenção e Queda de Idi Amin/Rise and Fall of Idi Amin (1981, Sharad Patel) e O Último Rei da Escócia/The Last King of Scotland (2006, Kevin MacDonald).
Outros nomes emblemáticos da esfera comunista são os do cambodiano Pol Pot, do cubano Fidel Castro, e dos norte-coreanos Kim Jong-il e Kim Jong-un, cujo regime foi recentemente parodiado no filme Uma Entrevista de Loucos/The Interview (2014, Evan Goldberg e Seth Rogen). O século XX foi ainda pródigo em gerar ditaduras na América Latina, das quais resultaram alguns nomes mediáticos, como Manuel Noriega (Panamá), a dinastia Duvalier (Haiti), muitos nomes no Brasil e Argentina, e o mais mediático de todos, pelas denúncias internacionais sobre os casos dos «desaparecidos», Augusto Pinochet, ditador do Chile de 1974 a 1990, cujo regime repressivo foi várias vezes motivo de obras de cinema, como o recente Não/No (2012) de Pablo Larraín, que nos conta o fim da ditadura, com o plebiscito que ditaria o primeiro «Não» ao regime. Em África, não tendo a democracia sido uma constante nas jovens nações feitas à pressa após a Segunda Guerra Mundial, em muitas delas se poderiam apontar exemplo de ditadores, alguns ligados a regimes sanguinários, e alguns perpetuando-se no poder durante uma vida. Entre os mais mediáticos, pela sua longevidade, saltam à mente nomes como Robert Mugabe no Zimbabwe (presidente desde 1987), ou Mobutu Sese
No mundo árabe, muito antes da paranóia anti-terrorista pós-11 de Setembro, os países nascentes da partilha do Médio Oriente pelas antigas potências colonizadoras cedo se alinharam na geopolítica da Guerra Fria. Aí, os regimes pró-ocidentais da península arábica, geralmente dominados por dinastias tradicionais, não são rotulados de ditaduras no ocidente, que os vê como aliados e parceiros económicos. Do nosso lado da barreira, esse epíteto recai mais facilmente nos países controlados por figuras saídas de juntas militares, e revolucionários anti-monarquias, geralmente assentando em regimes de cariz religioso. Foi o caso de Ruhollah Khomeini (no poder de 1979 a 1989), e o regime dos Aiatolas por ele criado no Irão, e que depôs a monarquia de Mohammad Reza Pahlavi, em acontecimentos descritos no recente Argo (2012, Ben Affleck), ou o caso de Muammar al-Gadafi, líder líbio de 1969 a 2011, várias vezes em confronto directo com os Estados Unidos. Actualmente com os olhos 12
Argo, 2012
A Dupla Pele do Diabo, 2011
postos na Síria, fala-se cada vez mais na ditadura de Bashar al-Assad (no poder desde 2000), que a herdou do seu pai Hafez al-Assad (presidente de 1971 a 2000). Mas de todos, o mais mediático, graças a duas guerras com os Estados Unidos, que ficaram conhecidas como Guerras do Golfo (1990-1991 e 2003), é Saddam Hussein, presidente iraquiano de 1979 a 2003, tendo iniciado a sua presidência com uma longa e dolorosa guerra com o vizinho Irão, após o que ficou conhecido pelas purgas internas e genocídio do povo curdo. O seu regime é tratado no filme A Dupla Pele do Diabo/The Devil’s Double (2011, Lee Tamahori), onde se acompanha os crimes e impunidade do semi-louco Udai, seu alegado sucessor. A figura do ditador originou ainda a série televisiva House of Saddam (2008), que mostra a forma como o presidente se foi perpetuando no poder, sem olhar a meios. Saddam Hussein é também o ditador do Médio Oriente mais vezes parodiado, merecendo personagem próprio na série televisiva South Park (Trey Parker e Matt Stone). Noutras partes do mundo, poder-se-ia ainda falar de Suharto, presidente da Indonésia de 1967 a 1998, e em Portugal tristemente popularizado na sucessão de acontecimentos que levou à independência de Timor-Leste, em 2002. Também no Pacífico, Ferdinando Marcos, presidente das Filipinas de 1965 a 1986, é infame pela ostentação de riqueza e repressão num país abaixo do limiar de pobreza.
Muitos outros nomes se poderiam apontar, num mundo onde os regimes autoritários e o terror de estado continuam a proliferar, alguns sob o disfarce de democracias, sendo que nem sempre os nomes mais popularizados e retratados no cinema são os que mais impacto histórico tiveram. É, como tudo na política, uma questão de sensibilidade, perspectiva e até, de moda. Com a evolução da mentalidade alguns nomes agora esquecidos se tornarão mais mediáticos, enquanto outros hoje populares tenderão a cair no esquecimento. Para não falar naqueles cujo estatuto é discutido, ou nos ditadores que estão ainda por surgir. Uns e outros não deverão a sua fama a nada de positivo, mas tal como a história, também o cinema vai fazendo o seu julgamento, sempre dinâmico, sensível à mudança dos tempos.
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DER UNTERGANG
Título nacional: A Queda – Hitler e o Fim do Terceiro Reich Realização: Oliver Hirschbiegel Elenco: Bruno Ganz, Alexandra Maria Lara, Corinna Harfouch Ano: 2004
PEDRO MIGUEL FERNANDES
À partida levar a cabo um projecto como A Queda – Hitler e o Fim do Terceiro Reich era uma daquelas ideias que teria de ser tratada com pinças: ou corria bem e o resultado seria uma obra fundamental sobre um episódio particular de um dos períodos mais negros da História do século XX (a II Guerra Mundial), ou corria mal e arriscava-se a ser um fiasco tremendo. Para o bem de todos e contra as expectativas dos mais pessimistas, tudo correu pelo melhor e Oliver Hirschbiegel conseguiu fazer um filme que nos transporta, literalmente, para dentro do bunker de Hitler, onde decorre grande parte da acção do filme que retrata os últimos dias da vida de ditador e os dias posteriores à sua morte, com um pequeno flashback inicial que serve de introdução a uma das personagens do filme, Traudl Junge, uma das secretárias pessoais de Hitler. Esta breve introdução serve também outro propósito: demonstrar o fascínio que o líder nacional socialista tinha junto dos que lhe eram mais próximos, longe dos retratos de alguém diabólico.
sabiam o que estavam a fazer nem o que se estava a passar. Além desta boa direcção de actores, outro dos grandes destaques de A Queda – Hitler e o Fim do Terceiro Reich é o retrato que faz do que se passa no exterior do bunker de Hitler. Os vários episódios paralelos, mesmo que curtos, mostram uma espécie de outro lado do espelho do que se passava junto do núcleo mais próximo do ditador. Os bombardeamentos constantes, o aproximar das tropas russas, o enforcamento dos ‘traidores’ e o desespero de quem tenta salvar vidas num hospital em tempo de guerra são alguns dos exemplos. Mas há também um episódio bastante interessante, que percorre todo o filme, centrado num rapaz que no início pertence às fileiras da Juventude Hitleriana, lutando ao lado das tropas nazis, e aos poucos se vai apercebendo da realidade atroz à sua volta. Quase como se este pequeno rapaz representasse uma Alemanha adormecida perante os discursos de ódio do seu líder que de repente acorda num gigantesco pesadelo. Não será à toa que perto do final do filme esta personagem parta com a secretária de Hitler rumo a um novo começo, com as ruínas de Berlim como pano de fundo.
Um dos trunfos de A Queda – Hitler e o Fim do Terceiro Reich é precisamente essa capacidade de fugir à tentação de caricaturar o regime nazi e as suas figuras. Por exemplo, nas cenas em que a personagem de Hitler explode iradamente contra os seus subordinados (curiosamente bastante utilizadas em vídeos satíricos na Internet), nunca é algo de excessivo ou histriónico, Bruno Ganz (extraordinária interpretação) está no ponto certo de não cair no ridículo. Tal é alcançado graças a uma sobriedade nas interpretações que acaba por ser visível nos restantes elementos do elenco. Repare-se, a título de exemplo, o retrato do casal Goebbels. Todos os protagonistas são retratados como seres humanos (com uma ou outra dose de loucura que se espelha nos seus actos) e não como monstros, o que os torna muito mais aterradores do que se fossem personagens de um filme de terror. Oliver Hirschbiegel consegue alcançar este equilíbrio bastante bem, ao mesmo tempo que escapa a outra tentação: fazer dos retratados simples inocentes que não
Filme de actores, mais até do que uma mera reconstituição histórica, A Queda – Hitler e o Fim do Terceiro Reich é um daqueles filmes que prova que nem só o cinema norte-americano faz bons épicos. E prova que também é possível fazer bons filmes que contam a história a partir do lado derrotado de um conflito como a II Guerra Mundial, algo que o cinema, a não ser mais recentemente, foi capaz de fazer.
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IVAN GROZNYY E IVAN GROZNYY. SKAZ VTOROY: BOYARSKIY GOVOR
Título nacional: Ivan, o Terrível: Partes I e II Realização: Sergei M. Eisenstein Elenco: Nikolay Cherkasov, Lyudmila Tselikovskaya, Serafima Birman Ano: 1946 e 1958
JOSÉ CARLOS MALTEZ
Sergei M. Eisenstein é, hoje, principalmente conhecido por revolucionar a técnica de montagem no cinema com as suas aplicações do chamado efeito Kuleshov numa série de filmes do início da sua carreira que se inseriram no espírito da revolução russa de 1917, e de que se destacam A Greve/Stachka (1925), O Couraçado Potemkine/Bronenosets Potyomkin (1928) e Outubro/Oktyabr (1928). Já numa fase posterior da sua carreira, Eisenstein deu-nos Ivan, o Terrível, uma biografia em duas partes sobre o czar russo Ivan IV, que reinou de 1533 a 1547 como Grão-Príncipe de Moscovo, e de 1547 a 1584 como czar de toda a Rússia, título por ele criado depois de conquistar e anexar diversos territórios do que seria o futuro império russo. Com a União Soviética na Segunda Guerra Mundial, que tanto a dilacerou, foi pensado como útil à moral do povo um drama histórico que enaltecesse a grandeza da nação, fazendo-a uma história de luta contra poderes arcaicos, e dando-lhe uma espécie de força do destino. Por isso, sob encomenda do próprio Josef Stalin, Eisenstein recebeu a incumbência que se centrava no percurso do unificador da nação russa, na qual Stalin se revia como o fundador de um novo império. Filmado entre 1942 e 1944, Ivan, o Terrível estreou em 1945, para agrado de Stalin, que gostou da história pensada por Eisenstein, na qual o czar nos surge como um visionário, homem de projectos grandiosos, que tem de lutar contra forças retrógradas dos feudais boiardos, que cobardemente o tentam aniquilar. O segundo filme, de três inicialmente projectados por Eisenstein, ficou pronto em 1947, mas ao contrário do primeiro, foi detestado por Stalin, que não gostou de ver Ivan transformado num vingador paranóico que regozijava com o sangue daqueles de quem desconfiava. Ivan, o Terrível, Parte II foi banido, e só viria a ser exibido em 1958, já depois da morte de Stalin (1953), durante o chamado «Degelo de Kruschev». A metáfora do filme de Eisenstein de um líder enlouquecido assentava como uma luva à retórica vigente, em que se condenavam os excessos do anterior líder
soviético. Mas razões políticas à parte, o que mais se destaca é a opção estética de Eisenstein, que construiu o seu épico histórico com um estilo operático de grandiosidade. Ele é visível nas interpretações, nos movimentos lentos e coreografados, nos planos, estudados para mover os personagens e décor para enquadramentos imponentes, e no ritmo global, pausado, majestoso e esmagador. Com uma interpretação soberba de um magnético Nikolay Cherkasov, o resultado é, intencionalmente, desprovido de realismo, como se Eisenstein quisesse capturar poses de pinturas no seu filme, onde os personagens se comportam com a sumptuosidade de gestos e expressões que associamos ao teatro trágico e à ópera. Esse ritmo serve ainda o propósito de nos deixar absorver toda a mise en scène, que deve muito ao Expressionismo Alemão, com os seus planos oblíquos, as linhas sem esquadria do cenário, as passagens escuras, as sombras proeminentes como personagens de pleno direito, e onde os próprios personagens são angulares (Ivan poderia ser o protótipo de um vilão da Disney). Quanto à história, como dito atrás, começa por mostrar um Ivan resoluto, que irá lutar contra a tradição (a igreja, a corte, os todo-poderosos boiardos), e contra inimigos externos, para engrandecer o seu império, para no final enveredar (com uma fria e cínica meticulosidade) por uma senda de vingança contra os que o traíram. Note-se finalmente que, seja qual for o julgamento histórico que queiramos adoptar (a ideia do visionário conquistador que unificou um povo num sonho de modernidade, ou o do déspota sanguinário enlouquecido pela sede de poder), o seu cognome, no original Groznyy (Грозный) significa «formidável», foi ignorado no Ocidente, para se manter no título do filme o cognome tradicional mais a nosso gosto. ocidental, «terrível».
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NAPOLÉON VU PAR ABEL GANCE
Título nacional: Napoleão Realização: Abel Gance Elenco: Albert Dieudonné, Vladimir Roudenko, Edmond Van Daële Ano: 1927
JOSÉ CARLOS MALTEZ
Figura incontornável da história europeia, Napoleão Bonaparte é, para uns, o libertador que abanou as decadentes casas reais europeias e, para outros, o subproduto da revolução francesa que se tornou um lunático ditador. Em Portugal, é símbolo de uma invasão que transformaria o reino, e para Abel Gance, foi sobretudo um predestinado, quase messiânico, que liderou a salvação da França que saía do Antigo Regime.
crescimento de Napoleão, de criança (Vladimir Roudenko) a adulto (Albert Dieudonné), determinado, orgulhoso da sua ascendência corsa e do seu patriotismo francês, que Gance mostra como salvador da evolução, após os excessos jacobinos. O filme faz uso de documentos da época (como as cartas de Napoleão), descrevendo comícios, assembleias e outros momentos importantes aqui filmados em detalhe, onde esse valor documental quase ultrapassa o narrativo, sendo um prodígio técnico, pelos fluidos movimentos de câmara, montagem, grandes planos, planos subjectivos, múltiplas exposições, imagens caleidoscópicas e uma sequência final com tripla projecção para criar um ecrã panorâmico. Muito à frente do seu tempo, Napoleão, que pretendia ser apenas o primeiro de seis filmes, tornou-se uma das maiores referências de todos os cineastas que se seguiram.
Por isso, Napoleão é uma homenagem, carregando sinais da admiração do autor, colocando o papel do destino como determinante, como se toda a vida do futuro imperador fosse um sinal de grandeza por vir. Exemplo é o episódio onde o jovem oficial inglês Nelson avista a barcaça onde foge o jovem Napoleão e não a afunda, mostrando como a história é feita também de pequenos momentos. Num épico de 4 horas (ou mais, dependendo da versão) vemos o
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AUTOBIOGRAFIA LUI NICOLAE CEAUSESCU
Título nacional: A Autobiografia de Nicolae Ceausescu Realização: Andrei Ujica Elenco: Nicolae Ceausescu, Elena Ceausescu, Stefan Andrei Ano: 2010
PEDRO MIGUEL FERNANDES
Ao contrário do que sugere o título do filme de Andrei Ujica, A Autobiografia de Nicolae Ceausescu não é uma adaptação de uma autobiografia escrita pelo líder do Partido Comunista Romeno e da Roménia entre 1965 e 1989. Feito apenas com recurso a imagens de arquivo, das milhares de imagens que foram feitas pelo regime (o que fez de Ceausescu um dos ditadores mais filmados de sempre), Ujica faz um retrato do ditador no período que vai desde a morte de GheorghiuDej, o seu antecessor, até ao julgamento onde acompanhado pela sua companheira Elena, ambos seriam condenados à morte, no dia de Natal de 1989.
de Varsóvia, a Roménia foi um dos primeiros países do bloco socialista a receber um líder norte-americano, Richard Nixon, e chegou mesmo a condenar a invasão da Checoslováquia em 1968. Neste sentido, o título ganha uma enorme carga irónica: não é, mas podia ser uma autobiografia de Nicolae Ceausescu. Esquivando-se ao uso da voz off, A Autobiografia de Nicolae Ceausescu é uma das provas do velho ditado que diz que as imagens valem mesmo por mil palavras. Contudo, Ujica acaba por falhar num pormenor (que não estraga a fruição do filme): a falta de contextualização das imagens e personalidades que vão aparecendo. Se para quem conhece a História é fácil perceber o que se passa, quem a desconhece perde um pouco a noção dos acontecimentos. Mas não é por isso que não deixa de ser um filme obrigatório.
Não sendo uma autobiografia oficial de um líder comunista, este fabuloso exercício cinematográfico mostra, de forma coerente ao longo de três horas, inúmeros episódios de um dos regimes socialistas mais sui generis do século XX: apesar de alinhado com a União Soviética e com o Pacto
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THE LAST KING OF SCOTLAND
VINCERE
PEDRO MIGUEL FERNANDES
SARA GALVÃO
O Último Rei da Escócia é menos um filme sobre um ditador (neste caso Idi Amin, o homem que liderou com mão de ferro o Uganda durante quase toda a década de 1970), e mais um filme sobre a relação de amizade entre Idi Amin e Nicholas Garrigan, um jovem escocês que ao terminar o seu curso de Medicina decide partir para um local remoto em busca de aventura. Calha-lhe em sorte o Uganda, onde acaba por ganhar a confiança do ditador, de quem se torna médico e conselheiro pessoal. Vindo do universo do documentário (anos mais tarde iria realizar um interessante filme sobre Bob Marley), Kevin MacDonald arriscou aqui um novo terreno, mas com um resultado que não faz justiça ao material de origem.
A história da amante (e primeira esposa) de Mussolini, Ida Dalser, é quase desconhecida do público geral, tanto ou mais que o começo do famoso ditador como activista socialista. Dalser, apagada da história pelo marido, posta num manicómio e separada do filho, é aqui interpretada pela excelente Giovanna Mezzogiorno (que alguns lembrarão de Amor em Tempos de Cólera (Mike Newell, 2007). Marco Bellocchio brinca com a cronologia da narrativa, lançando flashbacks e flashforwards sem explicação ou pausa para respirar, enquanto intercala a história de Dalser com imagens de arquivo e gráficos de inspiração futurista. Um filme genial que redefine alegoria, Vencer foi nomeado para vários prémios, incluindo a Palma De Ouro em Cannes.
Título nacional: O Último Rei da Escócia (2006)
Título nacional: Vencer (2009)
Realização: Kevin MacDonald
Realização: Marco Bellocchio
Elenco: James McAvoy, Forest Whitaker, Gillian Anderson
Elenco: Giovanna Mezzogiorno, Filippo Timi, Fausto Russo Alesi
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GÉNÉRAL IDI AMIN DADA: AUTOPORTRAIT
STALIN
PEDRO SOARES
SARA GALVÃO
O general Idi Amin Dada foi um dos homens mais perigosos do mundo. À frente dos destinos do Uganda entre 1971 e 1978, este ditador implacável, sanguinário e militarista levou o país à bancarrota, à fome e à repressão. Em 1974, Barbet Schroeder fez um documentário sobre ele, ao qual deu o pertinente subtítulo de Auto-retrato. Schroeder regista o dia-a-dia de Amin, enquanto o deixa falar pelos cotovelos. A imagem que fica é a de um pacóvio, difícil de associar a 500 mil mortos. Em General Idi Amin Dada não vemos o presidente do Uganda a desfilar no Carnaval ou em cuecas como o outro - ei, esperem, em cuecas vemos -, mas vemo-lo a tocar acordeão ou a fazer uma corrida com os amigos. Enquanto objecto cinematográfico, Schroeder é quase etnográfico, sabendo que o conteúdo fala por si. Para cinema de entretenimento, veja-se antes O Último Rei Da Escócia.
Antes do “renascimento” da série televisiva, a HBO fazia filmes televisivos à la BBC. E que melhor tema se pode ter do que um assassino em série com poder absoluto numa nova sociedade fundada em ideais? Infelizmente, Estaline não envelheceu lá muito bem, e embora tenha ganho três Globos de Ouro, hoje seria lançado directamente para DVD. Da maquilhagem ao sotaque falso russo, narração por uma personagem que mal está na história (a filha Svetlana) e um guião que faz as personagens tão densas como papel machê – não esquecendo os dois compassos de banda sonora que são repetidos de dois em dois minutos – Estaline está a anos-luz de filmes como A Queda ou O Último Rei da Escócia, e esse crime – o de ser Sim, Sr. Ministro na era de House of Cards – é punível com o gulag do esquecimento.
Título nacional: General Idi Amin Dada (1974)
Título nacional: Estaline (1974)
Realização: Barbet Schroeder
Realização: Ivan Passer
Elenco: Idi Amin, Fidel Castro, Golda Meir
Elenco: Robert Duvall, Júlia Ormond, Maximilian Schell
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THE DEVIL’S DOUBLE
MONGOL
JOSÉ CARLOS MALTEZ
SARA GALVÃO
A Dupla Pele do Diabo conta-nos a história de Latif, um soldado escolhido para duplo do psicopata Uday Hussein (filho mais velho do ditador iraquiano Saddam Hussein), com Dominic Miller num duplo papel. Através de Latif testemunhamos os episódios de que os livros de história hoje falam, do gosto por tortura ao comportamento intempestivo, passando pelos excessos de festas, jogo, estupefacientes e mulheres, que Uday chegava a raptar e violar, mesmo sob a reprovação de Saddam e do seu séquito. Com personagens estereotipadas, e uma forma de narrar telenovelesca, A Dupla Pele do Diabo é um testemunho da loucura que advém da impunidade total, já que mesmo a reprovação dos mais próximos colaboradores do perpetrador é silenciosa, por todos se sentirem reféns do regime que até ali os levou.
Quem era Genghis Khan antes de conquistar meio mundo? Aparentemente, um escravo chamado Temudjin. O filme de Bodrov, Mongol, traça as origens do homem atrás do mito, romanceando os factos, e batalhas épicas com muitos cavalos, uma história de amor e a traição e vingança entre amigos de sangue. Nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2007, Mongol foi criado como a primeira parte de uma trilogia que não chegou a acontecer. Com excelentes performances de todos os actores e uma fotografia arrebatadora, Mongol é um épico “à antiga” (daqueles que se deixaram de fazer entre o fim do studio system e o primeiro Senhor dos Anéis), com espadas, suor, sangue e poeira – seria mil vezes melhor se tivesse sido realizado pelo Miguel Sapochnik (Guerra dos Tronos), mas não se pode ter tudo.
Título nacional: A Dupla Pele do Diabo (2011)
Título nacional: Mongol: A Ascensão de Genghis Khan (2007)
Realização: Lee Tamahori
Realização: Sergei Bodrov
Elenco: Dominic Cooper, Ludivine Sagnier, Raad Rawi
Elenco: Tabanobu Asano, Amadu Mamadakov, Khulan Chuluun
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A Queda: Hitler e o Fim do Terceiro Reich, 2004 23
À CONVERSA COM
MANUEL MOZOS FILIPE LOPES
Manuel Mozos conta já 30 anos ligados ao cinema. Primeiro à montagem, depois assumindo o leme da realização em que se estreou com Um Passo, Outro Passo, e Depois, em 1990. Faz parte da geração a que pertencem Pedro Costa ou Teresa Villaverde, por exemplo, e a que muitas vezes se chama a geração do Novo Cinema Novo. Entre o documentário e a ficção, a sua carreira tem sido pautada por uma solidez que impressiona, onde pontificam os filmes Xavier (1991-2002), …Quando Troveja (1999), 4 Copas (2008) ou Ruínas (2009). É dele, também, o filme de montagem dedicado aos cortes de censura no cinema feitos pelas comissões de censura do Estado Novo, intitulado Cinema - Alguns Cortes: Censura (1999), a que se seguiram, em 2014, as partes II e III. Além de tudo o resto, é funcionário do A.N.I.M. (Arquivo Nacional das Imagens em Movimento – um dos departamentos da Cinemateca Portuguesa) e foi exactamente aí, na Quinta da Cerca, concelho de Bucelas, que falámos com ele.
encontrados materiais fílmicos, de cortes de censura, e no A.N.I.M. algumas pessoas que lá trabalhavam tinham-lhes dado uma vista de olhos, mas era material que estava por ser trabalhado, nomeadamente em termos de identificação. Havia também uma pequena montagem, feita pelo então responsável pelo ANIM (que era o Filipe Boavida), com alguns cortes de cerca de 8 ou 10 filmes, ou uma coisa assim, que ele tinha alinhado e cuja duração se situava entre os 9 e os 12 minutos. A ideia era que eu visionasse o espólio da Cinemateca em relação a cortes de censura, que tinham a duração [total] de cerca de 3 a 4 horas, identificasse os filmes a que pertenciam os cortes e verificasse se era aproveitável para fazer alguma coisa que pudesse ser integrada no tal ciclo. Ao visionar o material e um bocadinho baseado no tal pequenino filme que já tinha sido feito, julguei que era mais interessante usar exclusivamente os cortes sem qualquer tipo de filmagens póstumas, nomeadamente entrevistas ou depoimentos, por exemplo, até porque a grande maioria desses cortes pertenciam a filmes estrangeiros; havia muito poucos portugueses. E pelo prazo e pelas condições que havia, os meios, etc., não dava para ter grandes ambições no sentido de convocar uma equipa para ir filmar por aí. Portanto, a ideia que ficou definida foi tentar criar-se, através de uma montagem, uma sequenciação desses cortes que de algum modo fizesse sentido, desse alguma visibilidade e nos fizesse perceber um bocadinho do que poderia ter sido a censura.
Como é que como é que começou esta aventura pelos Cortes de Censura? No final de 1998, ou princípio de 1999, ia comemorar-se os 25 anos do 25 de Abril e a Cinemateca contactou-me porque pretendia organizar um ciclo, precisamente em Abril, cuja ideia era passar filmes que tivessem sido proibidos antes da revolução. Na própria Cinemateca tinham sido 25
Depois de se ter identificado praticamente tudo (com a ajuda de alguns funcionários da Cinemateca ficou pouco por identificar) uma das coisas que também me interessou bastante foi o poder misturar cortes de filmes completamente esquecidos com outros que podem ser considerados clássicos, ou mesmo obras-primas, dando-me a possibilidade de mostrar que a censura “tocava a todos” e não era uma coisa só para alguns. Daí resultou uma espécie de híbrido, não foi? Algo que não pode ser considerado um documentário (embora seja, sem qualquer dúvida, um documento), mas que também não pode ser considerado ficção… Pois. Bom, aquilo, de algum modo poderia ser considerado um filme de montagem. Acaba por ter uma vertente documental, apesar de tudo, mas não é, de facto, um documentário per si. E também não é uma ficção, embora a maior parte do material que usei seja proveniente de ficções. De certo modo tentei criar algumas linhas na montagem que fiz, nomeadamente na passagem de uns filmes para os outros existem ligações, algumas vezes mais directas do que outras. Através do assunto, da temática, por exemplo; ou porque são excertos com uma carga mais erótica, ou relacionados através da religião, da violência, ou do que seja. Embora a analogia seja um bocado primária, é um pouco como alguém que ponha discos numa discoteca ao passar de uma faixa para outra. Sim, sim. É um pouco isso, no fundo. Faz todo o sentido. Quando em 2014 voltaste a estes cortes (e logo em dose dupla, com mais dois filmes), isso aconteceu porque pretendias usar o material que não usaste no primeiro, porque entretanto surgiu mais material, ou por uma outra razão? Aqui há sobretudo dois factores muito importantes. Um deles foi o de eu, entretanto, ter começado a trabalhar no A.N.I.M. e me ter tornado funcionário da casa. O outro tem que ver, de facto, com terem-se encontrado muitos mais materiais desde essa altura.
de espectáculos que por sua vez agregava as comissões de censura) e que, não se percebe muito bem como, talvez tivesse recolhido do lixo, não sabemos concretamente, também tinha em sua posse cortes de censura. Acaba, até, por ser um bocadinho enigmático como esses cortes que foram feitos em filmes possam estar tão dispersos. A verdade é que nós não sabíamos muito bem, até porque não haviam muitos estudos feitos sobre isso, como funcionavam os processos da censura. À medida que fomos encontrando cada vez mais cortes na colecção da Cinemateca, em materiais que estavam ainda por identificar, começámos, eu e uma colega, a Margarida Sousa, com a anuência da direcção, a investigar mais profundamente tudo isto, tomando em consideração não apenas os cortes em si mesmos, mas também os processos da censura existentes nos arquivos da Torre do Tombo referentes a todos os cortes em cinema feitos sobretudo entre 1945 e 1974, que é o período em que há mais documentação e, logo, mais informação. Este tem sido um processo longo e lento, até porque, quer eu, quer a Margarida temos outros trabalhos em mãos e não nos podemos dedicar exclusivamente a isto. De qualquer modo, aos poucos vamos conseguindo reconstruir cada vez melhor o puzzle, embora nos falte ainda percorrer um longo caminho. Nesse estudo que temos estado a fazer, tentamos perceber quais as variações, ao longo dos anos, das
Portanto, das 3 a 4 horas que existiam em 1999, hoje estamos a falar de quantas horas mais? Não consigo precisar, até porque ainda se estão a descobrir. Não é diariamente, mas há cerca de duas ou três semanas encontraram-se mais algumas latas que continham cortes. São já muitas horas, não apenas do espólio original da Cinemateca, mas também provenientes de outros lados, sobretudo de distribuidoras, claro, mas também, e curiosamente, de algumas colecções particulares. Dois casos concretos em que isto aconteceu: um foi o Filipe La Féria que encontrou no actual Politeama, ex-Olympia, latas que continham cortes de censura e nos cedeu esses cortes; outro foi o caso de uma senhora que terá sido funcionária do SNI (Secretariado Nacional de Informação, uma espécie de Ministério que teve várias designações depois desta e ao qual estava ligada a Comissão 26
comissões de censura, quem foram os censores, que pessoas eram essas, como eram feitos os cortes, como funcionava todo o mecanismo da censura.
décadas por questões de contexto histórico. Existe uma evolução do próprio cinema ao longo da história e essa evolução também existe nos censores. O aparecimento dos chamados “cinemas novos”, como é o caso da nouvelle vague francesa, o cinema brasileiro, o alemão, ou as várias correntes de países chamados de leste, são um bom exemplo. A censura deixa de ser tão pesada no lado mais erótico dos filmes, como uma rapariga em biquíni, um homem em fato de banho, ou um beijo mais prolongado, para passar a ser mais pesada em questões que tenham a ver com a cor da pele ou com a hipótese de independência de povos ou países, algo que não era tão evidente nos anos 1940 e 1950. Isto tem que ver, claro, com o surgimento dos movimentos independentistas no antigo ultramar português. Na chamada “Primavera Marcelista”, há supostamente uma maior abertura, mas isso não é lá muito evidente na prática. E há coisas que estão relacionadas com questões etárias. Nem tudo é uma censura política. A questão das idades é importante, porque às vezes são as próprias distribuidoras que promovem a censura para conseguir, por interesses comerciais, uma classificação etária mais baixa. Determinado filme que seria projectado sem cortes, mas que estava classificado para adultos, poderá não interessar a uma distribuidora, que quase implora para que sejam feitos cortes com vista a baixar a classificação etária para 13 anos. Por outro lado, os censores têm noção do grau de cultura
Encontraram cortes que, para nós, em 2017, possam parecer disparatados? Há coisas que nos podem surpreender num primeiro olhar, planos e sequências que podemos não conseguir, de imediato, perceber a razão porque foram cortados, porque a nossa mentalidade hoje é outra e aquilo é, de facto, um pouco estranho; por vezes quase ridículo ou até caricatural. Mas se aprofundarmos um pouco mais o nosso conhecimento sobre a história do país e da história universal, o contexto das situações à época, verificamos que as coisas têm uma lógica. Para além de todo um lado tenebroso que isto tem, aquilo que para nós não faz hoje grande sentido, por ser tão inócuo, tão ingénuo, acaba por fazer sentido aos olhos da altura. E há grandes diferenças entre 1945, por exemplo, e o aproximar de 1974? Há mais abertura em relação ao que se cortava ou deixava passar? Não é que haja mais abertura, embora existam períodos que são, de facto, menos pesados, mas há sempre nuances grandes ao longo das 27
do país e das suas classes, portanto sabem que determinado filme não irá ser visto por determinada classe, que mesmo que veja não perceberá nada, até devido ao analfabetismo e ao facto de os filmes serem legendados e não dobrados, o que afastava do cinema quem não sabia ler. Os critérios podem ser bastante amplos, até porque não havia um “manual do censor”. No princípio dos Anos 1940, existiam umas normas, um pouco vagas, que deviam ser seguidas. Mas essas normas não eram rígidas, até porque havia a noção de que quem era convidado para ser censor eram sempre pessoas ligadas ao regime, todas elas com uma consciência clara dos interesses do Estado.
o interesse, mas mesmo em termos de divulgação são muito restritos. Só mesmo com autorização da Cinemateca é que podem ser exibidos, até por uma complicada questão de direitos. E são muitos… MM: São muitos, de proveniências muito variadas, inclusivamente de produtoras norte-americanas muito pesadas, como é o caso da Disney. Bom, mas a ideia da Cinemateca é que por vezes se possam fazer algumas montagens, para dar a conhecer os cortes, juntando-os por temas, ou assuntos como a violência, a política, a religião, o sexo, a guerra… o que for. Eu acho que sim, mas a mim, pessoalmente, há dois assuntos que me interessava pegar e que considero muito interessantes. Um seria exclusivamente dedicado a filmes portugueses e outro a jornais de actualidades. Para ambos há material muito curioso.
Ainda podemos esperar, pelo menos, mais um tomo, ou dois, destes Cortes de Censura? Sim, quer dizer, como disseste há pouco, em 2014 fizemos mais dois. Isso teve a ver com o aproximar, novamente, de uma data significativa – os 40 anos do 25 de Abril – e com o facto de a Direcção da Cinemateca querer que se fizesse alguma coisa que ficasse ligada a essa data. Eu fiz várias propostas e acabou por se decidir avançar com esses dois filmes. No meu ponto de vista seria sempre interessante dar a conhecer, numa escala maior e mais aberta ao público. Estes filmes de montagem, ou como se lhes queira chamar, não podem ser comercializados, etc., nem seria esse
A censura nos filmes portugueses começava bastante antes do resultado final, ou seja, bastante antes de o filme estar pronto a ser visto, certo? Exactamente. No caso dos filmes portugueses, eles começavam logo a ser censurados no argumento. Caso o projecto avançasse, o realizador, ou o produtor já tomavam isso em atenção e não iam para ali inventar grandes coisas. O que não quer dizer que não houvesse 28
filmes portugueses cortados depois de feitos, mas isso acontecia, ou porque determinada cena tinha passado sem ser cortada, ou porque o realizador tentava contornar a comissão de censura e filmava coisas que não estavam previstas inicialmente. No início dos Anos 1970, houve alguns filmes em que foi assumido claramente por quem os fazia que iriam ser proibidos ou censurados. É o caso do Nojo aos Cães, do António de Macedo, de O Mal Amado do Fernando Matos Silva, do Índia, do António Faria e há um caso muito concreto, que é o do Catembe, do Faria de Almeida, que após ter sido alvo de censura ainda na fase do argumento, como era habitual, mesmo assim depois de feito foram-lhe marcados cortes em mais de 50% do filme. Fez-se uma nova montagem e a censura marcou ainda mais cortes, pelo que o filme desapareceu, com a agravante de haver a indicação de que esses cortes fossem feitos também no negativo, algo que não era muito usual acontecer. Hoje a Cinemateca tem uma versão do filme que terá cerca de 45 minutos. No caso dos jornais de actualidades, havia alguns que eram produzidos em Portugal, mas a grande maioria era comprada pelas distribuidoras portuguesas a produtoras francesas, espanholas, ou norte-americanas, onde praticamente cada major, como a Fox, ou a Paramount, tinham o seu. Factos históricos como O primeiro Sputnik foi para o Espaço, ou O Presidente Kennedy esteve em Berlim, bem como notícias sobre política, desporto, espectáculos, e alguns eventos culturais como a inauguração
de exposições de artistas mais conhecidos, como Dali ou Picasso poderiam figurar num jornal de actualidades. E tudo isso tinha que passar pelo crivo da censura. Às vezes eram blocos inteiros que desapareciam, outras, apenas algumas imagens, outras, ainda, era a locução, a dobragem para português (feita a partir da tradução do texto original), que era alterada. Considero que seria bastante interessante trabalhar estas duas vertentes. Espero conseguir fazê-lo.
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CINEMA – ALGUNS CORTES: CENSURA
Título nacional: Cinema – Alguns Cortes: Censura Realização: Manuel Mozos Elenco: Não aplicável Ano: 1999
FILIPE LOPES
Uma das frases de que nunca me esqueci foi a lapidar “o objectivo do poder é o poder”. Era uma frase proferida no final de um longo discurso feito por O’Brien, uma das personagens criadas por George Orwell para a sua obra-prima 1984 e que Richard Burton encarnou na versão para cinema realizada por Michael Radford. Esta frase adequa-se na perfeição ao poder político de todos os géneros, mas com particular ênfase para o dos regimes totalitários. Os governos ditatoriais farão tudo o que estiver ao seu alcance para se manter no poder e estes têm mais coisas ao seu alcance do que os outros, já que controlam praticamente tudo o que acontece no seu raio de acção. Manter o povo na obscuridade de conhecimento, impedi-lo de pensar em sair da sua condição de subjugação, submetê-lo a regras pesadas que impeçam a comunicação entre os seus membros ou massacrá-lo com palavras de ordem até que ele perca a capacidade de pensar livremente, tudo isto são manobras usadas para que a organização previamente estabelecida se mantenha e o poder perdure nas mãos de quem o tem.
uma hora e um quarto, cortes feitos pela censura e que haviam sido removidos de filmes tão diferentes como The Misfits / Os Inadaptados (1961, John Huston), Le Bon Dieu Sans Confession / Adeus, Mr. Dupont (1953, Claude Autant-Lara), Pinocchio / Pinóquio (1939, Walt Disney, Ben Sharpsteen e Hamilton Luske), ou O Dinheiros dos Pobres (1956, Artur Semedo), entre quase seis dezenas de títulos, uns mais conhecidos do que outros. Nessa montagem, percebia-se facilmente duas coisas: a transversalidade dos cortes – estes eram feitos independentemente dos géneros cinematográficos, do facto de a fotografia ser a preto e branco ou a cores, da qualidade artística dos filmes, ou da sua origem – e a variedade de razões que motivaram a exumação dos mesmos, o que nem sempre nos surge de uma forma automática, ou até óbvia, em alguns casos. O referido filme, apresentado em estreia absoluta, foi feito a partir de um repto lançado pela Cinemateca ao realizador, no qual lhe era proposto trabalhar nos cortes de censura que já existiam no A.N.I.M. (Arquivo Nacional das Imagens em Movimento). Quase todos eles estavam por trabalhar, pelo que teria que se fazer uma primeira identificação e perceber quais eram as obras das quais tinham sido retirados. A partir daí, Manuel Mozos teria toda a liberdade para escolher e fazer o filme que achasse melhor com os poucos meios de que dispunha. A escolha do realizador foi a de fazer um filme de montagem, sem qualquer filmagem ou gravação de som extras, pelo que o que aparece são, apenas e só, os cortes, eles mesmos dispostos numa sequenciação que Mozos achou ser a mais apropriada. Por uma questão de direitos, a possibilidade de comercializar este filme (ou os dois que se lhe seguiram, feitos pelo mesmo realizador em 2014) é praticamente nula, pelo que se aconselha vivamente o visionamento numa das exibições que a Cinemateca programar.
A censura é um dos mecanismos que os dominadores usam para impedir a agitação da ordem pública e se manterem no poder. Portugal, que esteve nas mãos de um regime totalitário durante quase cinco décadas, usou-a precisamente com esse objectivo. Se falarmos apenas em relação ao cinema no nosso país, foram milhares os cortes feitos ao longo de dezenas de anos, que esquartejaram cegamente, quer obras-primas, quer filmes “menores”, privando os espectadores, por vezes, de pedaços essenciais de película que lhes permitissem uma compreensão total da história que era contada. Muito desse material foi sendo recolhido e guardado na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema e, em 1999, quando a Revolução de Abril comemorava os seus 25 anos, houve um ciclo bastante importante nas suas salas para comemorar a efeméride. Um dos filmes projectados foi Cinema – Alguns Cortes: Censura, de Manuel Mozos, um filme de montagem que apresentava, ao longo de 31
João Leitão, Gonçalo Waddington e Nuria Leon Bernardo, foto de Mario Melo Costa
À CONVERSA COM
JOÃO LEITÃO FILIPE LOPES
Depois de Um Mundo Catita, série para televisão em seis episódios que realizou e escreveu em conjunto com Filipe Melo, João Leitão partiu para os domínios da sátira política misturada com a ambiência das histórias de super-heróis dos quadradinhos. No princípio a ideia era fazer uma nova série de televisão. Escreveu, juntamente com Nuria Leon Bernardo (escrito assim mesmo, sem qualquer acento, por conta da proveniência espanhola), 8 episódios completos que nunca chegaram a ser filmados. Apenas viu completado o episódio-piloto, em 2011, e após sucessivas promessas não cumpridas e adiamentos de um canal televisivo, colocou um ponto final na novela e saltou para o filme Capitão Falcão, que estreou em 2015 e que arrebatou seis prémios Sophia. O Capitão Falcão é um super-herói ultranacionalista que durante o Estado Novo serve Salazar e persegue todos os seus inimigos. Assenta como uma luva numa Take dedicada às ditaduras e aos ditadores.
Quando eu e a Nuria estávamos a escrever o argumento gozávamos muitas vezes, enquanto falávamos, sobre qual seria o super poder do Capitão Falcão. Porque ele não tem, de facto, um super poder… Era o dogma… (risos) Sim, era exactamente por aí. Era a casmurrice. E havia um conceito que era o de ele ser demasiado burro para perceber o conceito de derrota. Como é que tu ganhas a alguém que é demasiado burro para perceber quando perde? Que não compreende o conceito de derrota? Não ganhas. Ele é que ganha sempre. É uma personagem impossível de derrotar. (risos). Além, claro, do facto de ele fazer qualquer coisa por Salazar… ele preferiria dinamitar o país inteiro e deixar que os portugueses todos morressem do que aceitar que Portugal saísse da ditadura. Não faria sentido nenhum, para ele. Se houvesse um pequeno botão vermelho para accionar a bomba atómica portuguesa, ele pressioná-lo-ia.
O que é que tu achas que o Capitão Falcão pensaria, à luz dos olhos de hoje, sobre Salazar? Para o Capitão Falcão, Salazar é… Deus. Mesmo. Completamente. Sem sequer ter que pensar sobre o assunto, ele morreria por Salazar. Fosse à luz dos olhos da época, fosse à luz dos olhos de hoje.
No ponto de vista dele nem sequer seria uma ditadura… Ah, não! Claro que não! Ele é o herói! No seu ponto de vista, ele é o herói! Parece que não tem nada a ver, mas tem, há umas semanas estava a ver uma entrevista de uma ex-agente da CIA e ela disse uma coisa que eu acho há anos e anos e nunca tinha visto ninguém verbalizar tão bem, que é “não existem más pessoas no mundo”. Ela trabalhou décadas em
Achas que ele teria morrido, então, no 25 de Abril de 1974… 33
anti-terrorismo e verificou que os indivíduos, não interessa se são da ETA, da ISIS, se de um regime ditatorial ou de uma democracia, estão, todos eles, cem por cento convencidos que são os bons da fita. Sempre. Não existe o tipo a rodopiar o bigode e a dizer “Muahahahah, vou destruir o mundo”. Não, não. Estão sempre convencidos que estão a fazer, na pior das hipóteses, um mal necessário para o bem de todos. Eu não tenho a menor dúvida que o Salazar pensava regularmente que estava a fazer o melhor para o país. A poupar-nos às pressões estrangeiras, a pouparnos à guerra, a poupar-nos a não-sei-quê… Só que pelo meio teve partir alguns ovos para fazer a omeleta e infelizmente esses ovos foram torturar pessoas, censurar arte, censurar o nosso pensamento (quanto mais o que dizíamos ou o que fazíamos) e estupidificar um país. Parece que as pessoas às vezes se esquecem disto. Tu tens, então, uma opinião diferente do Capitão Falcão em relação ao Antigo Regime… Completamente, claro. Embora seja apartidário, os meus ideais estão na esquerda. Chateia-me, no entanto, o jogo político-partidário, por vezes nojento, que eu fui assistindo ao longo dos anos, nomeadamente através de amigos meus que se juntaram a partidos. De qualquer modo, sei, e também me foi transmitido pelos meus pais, avós, tios-avós, etc., que hoje se vive muito melhor do que no Antigo Regime. Não tenho dúvidas nenhumas disso. O filme é, obviamente, uma sátira. Achas que toda a gente percebeu isso? Infelizmente, acho que não. Há coisas que em vez de serem vistas como sátira, são levadas levam à letra por algumas pessoas e essa é uma das razões pelas quais é muito difícil fazer humor político. Eu cheguei a ver broncos do PNR a festejar. Aliás, sabes por que é que o filme acaba com um beijo? Nunca te contei a história? Não. É a história mais juvenil do mundo. Nós tínhamos lançado o episódio piloto, no MOTELx, aquilo ia ser uma série de televisão e eu e a Nuria estávamos para aí a um terço do argumento do filme. Tínhamos a história alinhada, mas ainda estávamos a trabalhar nos diálogos e ainda não estava escrito. Estou a falar com um tipo que eu não sei que é do PNR mas que percebo durante a conversa. Ele diz-me que é fã e eu digo-lhe: “olha, agradeço que sejas fã, mas espero que percebas que o que eu quero é ridicularizar tudo o que tu representas. Tudo o que tu és, é tudo o que eu quero deitar abaixo com o filme.” Mas ele não tinha percebido? Não, não. Percebeu. Percebeu e disse-me a pior coisa que me disseram na vida e partiu-me ao meio, que foi: “isso é muito bonito e eu percebo
perfeitamente, como é óbvio, mas o maior surto de entradas que tivemos no PNR foi a seguir à campanha do Gato Fedorento a gozar connosco (o cartaz no Marquês de Pombal). E aqui não tenho a menor dúvida que vai ser igual.” E eu fiquei desfeito. Lembro-me de ir ter com a Nuria e ter-lhe dito: “É pá, Nuria, temos que mudar o fim do filme. Eu quero que este gajo esteja a ver o filme e na altura em que ele está a dizer Fuck yeah!’ tenha que dizer F…!! Não! Não! Isso nããããooo!’”. E aconteceu exactamente isso. A reacção dele foi exactamente essa. Foi uma vingançazinha juvenil. Planeias continuar a fazer humor político? Tens alguma coisa pensada para cinema nesse domínio? Eu e a Nuria estamos a escrever uma longa, que parece que nunca mais conseguimos acabar, que não sendo política, tem uma mensagem social, digamos assim. Mas não é uma comédia, é uma história pesadíssima e acho que é por isso que nos está a custar. Nós escrevemos muito depressa comédia, sai-nos muito facilmente, mas este está a ser um terror, sinceramente. E podes adiantar alguma coisa mais? O meu medo é sempre o mesmo: não conseguir fazer. Estar para aqui a falar deste ou daquele projecto e depois não os conseguir fazer... Eu tenho, por exemplo, um gorila e quatro robôs animatrónicos guardados num armazém para uma longa-metragem que estou desde O MUNDO CATITA a tentar fazer. Há uns oito anos, mais ou menos. Na altura cometi o erro de dizer que estava a fazer um filme de ficção científica. Passaram oito anos. Ainda não consegui dinheiro. Esse é que é o meu medo ao falar em projectos. E o que faz a dupla João Leitão / Nuria Leon Bernardo funcionar tão bem na escrita? Gosto muito de escrever com a Nuria porque ela é pragmática e não engonha como eu, não é ansiosa, como eu, que sou extremamente ansioso. Sou um bocadinho obsessivo-compulsivo e se empancar numa cena sou capaz de estar ali semanas, ou meses, até, sem conseguir sair do mesmo sítio. A Núria tem essa capacidade muito mais pragmática de saltar para a cena seguinte. Ou de estabelecer compromissos e tomar decisões em relação à história. Eu parece que quero sempre acertar à primeira. Ela não. Às vezes é melhor abandonar, deixar amadurecer e voltar lá depois.
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CAPITÃO FALCÃO
Título nacional: Capitão Falcão Realização: João Leitão Elenco: Gonçalo Waddington, David Chan Cordeiro, José Pinto Ano: 2015
CÁTIA ALEXANDRE
Pensado inicialmente para ser um projecto televisivo e depois de ter tido muitos contratempos ao longo de mais de 6 anos, chegava em 2015 finalmente e com entusiasmo ao grande ecrã Capitão Falcão. Pelas mãos de João Leitão (realizador e co-argumentista da história) seguimos as aventuras de Capitão Falcão (Gonçalo Waddington) o primeiro superherói português ao serviço do Estado Novo, que com a ajuda com seu fiel parceiro Puto Perdiz (David Chan Cordeiro), combate todos aqueles que ousam ameaçar a Nação ao comando de António de Oliveira Salazar (José Pinto). Um projecto muito ambicioso, que marca toda a diferença no panorama nacional que arriscou fazer algo diferente daquilo que estamos habituados a ver em Portugal.
a um alto nível “Hollywood”). O overacting de Gonçalo Waddington e a performance muda de David Chan Cordeiro aumentam o nível de patetice à coisa, mas sempre com inteligência - tratando-se claramente de várias influências que passam pela série Batman dos anos 60, ou até os filmes de artes marciais de Jackie Chan, ou mesmo as expressões faciais de filmes mudos. Não esquecer também o enorme cuidado e atenção que foi dada a figurinos e cenários e a fantástica banda sonora que foi criada propositadamente para o filme. Capitão Falcão não é um filme perfeito, mas é sem dúvida algo refrescante e muito criativo, com dimensões a que não estamos acostumados a ver exploradas no cinema que se faz por cá. Graças ao seu sucesso, ganhou também ainda mais visibilidade em versão minissérie para a TV o que até poderá ser um bom indicativo no futuro. Será que o Capitão Falcão voltará ao grande ecrã com mais algumas das suas aventuras fascistas? Isso não sabemos, mas parece-me que essa poderá ser uma porta que fica em aberto... Eu não me importava nada, até poque graças a projectos como este, fica a esperança no ar de que muitos outros podem também arriscar em fazer no cinema português projectos diferentes e mais ambiciosos do que estamos habituados a ver por cá. Um super-herói meio que pateta mas muito especial, que transporta consigo o peso do espirito tuga invencível, aquele espirito que só o tuga sabe! Ficaremos então à espera para ver se o Capitão regressará para mais aventuras.
Como bom português que é, Capitão Falcão, enorme defensor de Salazar, tem nas suas mãos a missão de acabar com a onda de Comunismo em Portugal! Devoto do Regime, cheio de grande patriotismo e peculiares habilidades marciais, enfrentará os "Comuninjas" como ninguém, acabando por cair nas garras dos "Capitães de Abril" (um grupo de revolucionários com algumas semelhanças - nada óbvias - aos Power Rangers). Com o enredo passado durante os anos 60, a paranoia anticomunista está presente por toda a parte, quando para o Estado Novo, não haveria nada maior do que a luta contra a onda vermelha que ameaçava o grande Portugal. Com muito disparate e maluquice à mistura, o filme satiriza muitos dos aspectos de importância social vividos na época da ditadura (as atitudes machistas do Capitão, os valores familiares, os valores religiosos, ou até o facto de se brincar um pouco com a ingenuidade do povo da altura) de forma divertida, jogando também sempre com o factor entretenimento, não podendo deixar de falar das coreografias de pancadaria absolutamente bem coreografadas (da responsabilidade de David Chan Cordeiro e o seu grupo de duplos, surpreendentemente 37
CAPITÃES DE ABRIL
Título nacional: Capitães de Abril Realização: Maria de Medeiros Elenco: Stefano Accorsi, Joaquim de Almeida, Maria de Medeiros Ano: 2000
PEDRO MIGUEL FERNANDES
O pós-25 de abril foi um período pródigo em cinema, sobretudo na área do documentário. A queda do longo regime ditatorial criado por Salazar abriu de repente as portas à democracia e a uma ânsia de filmar que levou muitos jovens cineastas, alguns em grupos colectivos, a ir país fora para filmar um lado pouco conhecido de Portugal e a construção de um novo país, com um olhar de vingança perante o passado recente e outro de esperança em relação ao futuro.
Apesar de ser um filme sobre a revolução, Capitães de Abril não se esquiva a mostrar o que era o país sob o jugo salazarista, com vários exemplos, desde o jovem soldado que se despede da namorada revelandolhe que está prestes a ir para a guerra em África ao estudante preso e torturado pela PIDE. A polícia política é aliás quem pior sai no retrato da ditadura, mais até do que os militares que não se querem juntar ao movimento das forças armadas.
Mas foi preciso chegar ao virar do século para que alguém filmasse o dia da revolução dos cravos propriamente dito. Curiosamente Capitães de Abril não foi dirigido por um cineasta que viveu essa época enquanto realizador, antes uma actriz que fez carreira no estrangeiro. Talvez um dos títulos mais conhecidos de Maria de Medeiros enquanto realizadora, Capitães de Abril ficciona as últimas horas da ditadura e o início da nova democracia.
Rodeada de um enorme elenco, Maria de Medeiros fez um retrato honesto dos acontecimentos de 24 e 25 de Abril de 1974, o suficiente para mostrar o que efectivamente se passou naqueles dois dias. Mas talvez fosse necessário arriscar um pouco mais para que Capitães de Abril fizesse justiça aos que fizeram a revolução.
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A VIDA PRIVADA DE SALAZAR
BRANDOS COSTUMES
PEDRO SOARES
FILIPE LOPES
É muito raro Salazar aparecer no cinema de ficção português. A sua figura – e o antigo regime em geral - continuam a ser tabu. Até que surgiu Diogo Hot Jesus Morgado e A Vida Privada de Salazar. Este biopic pega no mais inusitado lado do ditador: o de mulherengo. Claro que, num país em que filme comercial é sinónimo de sexo, a opção não é de admirar. Em 20 minutos já Salazar comeu duas tipas sem que acontecesse literalmente nada. Depois continua o catálogo de actrizes: Soraia Chaves, Ana Padrão, Catarina Wallenstein,… Contexto social? Nã! Personagens secundárias ou desenvolvimento do protagonista? Qual quê! Se Jorge Queiroga assumisse o softcore porn, sempre podia ser que isto tivesse alguma piada. Mas nem isso, aqui só se vêem duas maminhas e um rabo. Surpresa: nenhuma delas pertence a Soraia Chaves.
Bom exemplo do movimento conhecido por “Cinema Novo”, que teve origem em Portugal no início da década de 1960 e assumiu como a vanguarda do Cinema no nosso país, rompendo com a ideologia do Estado Novo e com o cinema feito até então, Brandos Costumes (1974) marca a estreia nas longas-metragens de ficção de Alberto Seixas Santos. O filme conta a história de uma família burguesa, constituída por pai, mãe e duas filhas, representando, cada uma delas, uma geração diferente. À medida que presenciamos as altercações existentes entre as irmãs e a relação destas com o pai, vai sendo estabelecido um paralelismo com os acontecimentos históricos que representam a chegada ao poder, a glorificação e a morte de Salazar (que vamos seguindo através da introdução de imagens de arquivo), fazendo uma clara analogia entre este e o poder paternal.
Título nacional: A Vida Privada De Salazar (2009)
Título nacional: Brandos Costumes (1974)
Realização: Jorge Queiroga
Realização: Alberto Seixas Santos
Elenco: Diogo Morgado, Soraia Chaves, Héléna Noguerra
Elenco: Luís Santos, Isabel de Castro, Sofia de Carvalho
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O Couraรงado Potemkine, 1925
VIVER EM OPRESSÃO DITADURAS NO CINEMA JOÃO BIZARRO
O GRANDE DITADOR, CHARLIE CHAPLIN (1940) Uma sátira de Chaplin ao nazismo que já se alastrava pela Europa, à altura da sua estreia, nos Estados Unidos.
Ao longo da sua história, o cinema tem-nos presenteado com muitos filmes passados em regimes ditatoriais, baseados em ditaduras reais e também distopias ou ditaduras ficcionadas. Há no entanto aqueles que são essenciais e que deviam ser vistos por todos os amantes de cinema interessados no género. Haveriam muitos outros que poderiam aqui figurar mas estes são, para mim os obrigatórios.
CASABLANCA, MICHAEL CURTIZ (1942) Clássico do cinema que mostra a cidade de Casablanca como rota para quem queria fugir do nazismo. É lá que Rick (Humphrey Bogart) volta a encontrar Ilsa (Ingrid Bergman), uma paixão antiga.
O COURAÇADO POTEMKINE, SERGEI EISENSTEIN (1925) O Couraçado Potemkin foi apenas o segundo filme de Sergei Eisenstein, feito na altura como comemoração dos 20 anos do acontecimento nele descrito - a revolta do porto de Odessa de 1905. Os eventos que ocorreram durante esse ano serviram de catalisador para a revolução de 1917. Tudo começou quando os marinheiros se recusaram a ingerir a comida estragada que os oficiais os estavam a obrigar a comer. E o que começou como motim transformou-se numa revolta contra o regime czarista. Considerado um dos melhores filmes de todos os tempos, continua a ser um marco na história do cinema, pelo tema tratado, pelas técnicas de filmagem nele utilizadas, inovadoras para a época em que foi filmado e porque influenciou outros cineastas (Brian de Palma recriou a cena da escadaria no seu Os Intocáveis).
O HOMEM QUE VEIO DO FUTURO, FRANKLIN J. SCHAFFNER (1968) Um astronauta vai parar a um planeta dominado por macacos, onde o homem é oprimido. Tornou-se um clássico e o twist final ficou na história.
METROPOLIS, FRITZ LANG (1927) Uma parábola sobre as relações sociais numa cidade futurista. Os aristocratas vivem nas alturas, enquanto a classe trabalhadora oprimida, vive nos subterrâneos. Outro clássico da sétima arte, ainda hoje objecto de estudo.
BANANAS, WOODY ALLEN (1971) Um homem apaixona-se por uma activista politica que acha que ele é um falhado, então ele viaja para um país da América Central para se juntar à guerrilha e acaba presidente daquele país. Sendo Woddy Allen, percebe-se que é uma sátira. ESTADO DE SÍTIO, COSTA-GAVRAS (1972) Estado de Sitio é um thriller politico onde um agente americano é
Z, COSTA-GAVRAS (1969) Tem como ponto de partida o assassinato de um político liberal cometido como se de um acidente se tratasse, sendo a investigação escandalosamente encoberta por uma rede de corrupção e ilegalidade na polícia e no exército do país onde isso acontece. LARANJA MECÂNICA, STANLEY KUBRICK (1971) Distopia do mestre Kubrick, baseado na obra homónima de Anthony Burgess. Alex de Large e o seu gang espalham o terror numa Inglaterra futurista, ao som de Beethoven. Uma obra-prima cheia de “ultraviolência”.
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raptado e assassinado por um grupo de guerrilheiros de esquerda. Outro filme essencial e outro do mestre do género. De facto, Costa-Gavras imortalizou-se ao criar obras de teor politico, não tanto pelos ideais por trás dessas obras, mas pelos efeitos que esses ideais têm nas pessoas. CHOVE EM SANTIAGO, HELVIO SOTO (1976) Chileno exilado na Hungria, Helvio Soto realizou este drama sobre um homem que conduz um carro por Santiago enquanto decorre o golpe militar que derruba Salvador Allende. O HOMEM QUE VIROU SUCO, JOÃO BATISTA DE ANDRADE (1980) Um poeta popular do nordestino chega a São Paulo e sobrevive das suas poesias e folhetos. A sua vida muda quando é confundido com o operário de uma multinacional que matou o patrão numa festa. Filme brasileiro, considerado dos melhores a retratar a ditadura naquele país. MISSING - DESAPARECIDO, COSTA-GAVRAS (1982) Costa-Gavras também foi ao Chile e ganhou um Oscar de argumento adaptado (o livro original é de Thomas Hauser) ao contar a história de um jornalista norte-americano que desaparece quando descobre que a CIA tinha participado no golpe militar de 1973.
A Lista de Schindler, 1993
1984, MICHAEL RADFORD (1984) Winston Smith (John Hurt) é uma figura trágica que se atreveu a apaixonar-se numa sociedade totalitária onde as emoções são ilegais. Foi aqui que ficámos a conhecer o Big Brother.
ERA UMA VEZ UM PAÍS, EMIR KUSTURICA (1995) Fábula de Kusturica sobre os conflitos da ex-Jugoslávia. Um homem mantém um grupo de pessoas numa espécie de bunker, deste a II Guerra Mundial até aos conflitos que viriam a resultar na separação dos vários países dentro daquele país.
BRAZIL, TERRY GILLIAM (1985) Distopia do americano dos Monty Python onde uma sociedade é governada por um Estado totalitário e tecnocrata, onde tudo é controlado burocraticamente através de computadores. Nesse mundo, onde a política antiterrorista é levada ao extremo, a simples troca de um nome pode levar um inocente à prisão ou à mesmo à morte. Sam é um funcionário do estado que, ao tentar corrigir um erro administrativo, acaba por se apaixonar por uma terrorista.
TERRA E LIBERDADE, KEN LOACH (1995) Em 1936, um jovem inglês desempregado abandona Liverpool para lutar contra os fascistas na Guerra Civil espanhola. CINCO DIAS, CINCO NOITES, JOSÉ FONSECA E COSTA (1996) Adaptado do romance homónimo de Álvaro Cunhal (que o escreveu sob o pseudónimo de Manuel Tiago), retrata como se dava "o salto", a fuga à ditadura portuguesa, a caminho de França.
SALVADOR, OLIVER STONE (1986) A guerra civil de El Salvador aos olhos de Oliver Stone. Numa altura em que naquele país os direitos humanos eram desrespeitados e mulheres, crianças e membros da igreja erram mortos sem dó nem piedade e com total impunidade.
A SOMBRA DOS ABUTRES, LEONEL VIEIRA (1998) Outro filme português que ilustra bem o que era viver em Portugal no tempo da velha senhora, com a PIDE a desconfiar de tudo e de todos. NAS COSTA DO DIABO, GUILLERMO DEL TORO (2001) Durante a guerra civil espanhola, um miúdo de 12 anos é levado para um orfanato onde é maltratado pelos colegas e por um funcionário da
A LISTA DE SCHINDLER, STEVEN SPIELBERG (1993) Spielberg filma de forma irrepreensível (a preto & branco) a história de um nazi que salvou milhares de judeus. 42
Nas Costas do Diabo, 1971
As Vidas dos Outros, 2006
instituição. O fantasma de outro jovem, que foi assassinado, visita-o e pede-lhe vingança.
bloco de leste, onde a Stasi (policia secreta alemã) queria saber tudo sobre toda a gente. O filme acompanha um oficial da Stasi que espia o dia a dia de um escritor e da sua mulher.
ADEUS, LENINE, WOLFGANG BECKER (2003) Em Berlim Leste, pouco antes da queda do muro, uma mulher entra em coma e quando volta a si já o muro tinha caído e a vida na cidade tinha dado uma grande volta. Temendo que a excitação causada pelas drásticas mudanças possa voltar prejudicar-lhe a saúde, o seu filho decide esconder-lhe os mais recentes acontecimentos.
O LABIRINTO DO FAUNO, GUILLERMO DEL TORO (2006) Guillermo del Toro volta à ditadura franquista, numa altura em que a guerra civil já terminou mas um grupo de resistentes ainda se esconde nas montanhas de Navarra com o intuito de derrubar o poder. Desta vez é uma menina que vai viver para a região e tem um padrasto que é oficial fascista que luta para aniquilar os resistentes. No jardim há um labirinto que leva Ofélia para um mundo de fantasias.
A QUEDA, OLIVER HIRSCHBIEGEL (2004) Os últimos dias de Hitler, que a partir do bunker ainda acha que pode dar a volta a uma situação de derrota iminente.
A DUPLA PELE DO DIABO, LEE TAMAHORI (2011) A história de Latif Yahia que se torna duplo de Uday Hussein, filho de Saddam, conhecido por "Príncipe Negro".
O ULTIMO REI DA ESCÓCIA, KEVIN MACDONALD (2006) James McAvoy é o médico pessoal do ditador do Uganda, Idi Amin (Forest Withaker), um dos mais terríveis ditadores africanos, conhecido pelos seus actos de canibalismo. AS VIDAS DOS OUTROS, FLORIAN HENCKEL VON DONNERSMARCK (2006) Belíssimo filme sobre a vida no lado de lá do muro durante o período do 43
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ROMA, CITTÀ APERTA
Título nacional: Roma, Cidade Aberta Realização: Roberto Rossellini Elenco: Aldo Fabrizi, Anna Magnani, Marcello Pagliero Ano: 1945
FILIPE LOPES
O termo “cidade aberta” é usado normalmente numa situação de guerra, e dado a uma cidade cuja força ocupante desiste de a defender e a entrega nas mãos do inimigo, de modo a evitar o uso da força por parte deste, nomeadamente no que concerne a bombardeamentos, estando esta, assim, “aberta” à entrada do exército que a vai conquistar. Roma esteve ocupada pelos alemães durante praticamente toda a Segunda Guerra Mundial, e em 1943 foi declarada, por eles, “cidade aberta”, de modo a evitar a queda das bombas das forças aliadas, o que acabaria por acontecer, de qualquer forma, em 1944, pouco antes destas entrarem na capital italiana. É, pois, no meio deste alvoroço, que Roberto Rossellini constrói Roma, Cidade Aberta, utilizando cenários reais e chegando mesmo a incluir nas filmagens elementos da resistência italiana.
Magnani), uma mãe viúva com um grande coração, que está grávida e se presta a ajudar o recém-chegado. É enviada a chamar o padre Don Pietro Pellegrini (Aldo Fabrizi), que é necessário para fazer chegar às mãos da Resistência uma avultada quantia em dinheiro que Giorgio traz consigo. Mas as coisas não serão simples. A caça ao homem promovida pela Gestapo leva os seus homens até ao prédio onde este se esconde e a desgraça ameaça cair em cima dos que o protegem… Premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1946 e nomeado para o Óscar de Melhor Argumento (escrito por Sergio Amidei e Federico Fellini – sim, o próprio), Roma, Cidade Aberta é uma das obras maiores do cinema deste período e um marco indelével na criação de algo novo. Embora haja quem defenda que Obsessão/Ossessione (1943, Luchino Visconti), é o primeiro exemplo do Neo-realismo italiano, também há quem refute e o ache “apenas” um precursor do movimento, tal como o são obras tão díspares como Man of Aran (1934, Robert Flaherty), Tôkyô no Yado (1935, Yasujirô Ozu) ou Aniki-Bóbó (1942, Manoel de Oliveira). Sem querer entrar em polémicas, podemos dizer que o filme de Rossellini “colhe” o que já havia sido “semeado” pelo filme de Visconti. De qualquer modo, este movimento não foi algo que tenha sido pensado. É Vittorio De Sica, um dos seus nomes maiores, quem afirma “não é que um dia nos tenhamos sentado numa mesa da Avenida Venetto, o Rossellini, o Visconti e eu, e tenhamos dito: agora vamos fazer Neo-realismo. Nós mal nos conhecíamos”. O Neo-realismo foi fruto de uma época, da qual o próprio Roma, Cidade Aberta, Ladrões de Bicicletas, de Vittorio De Sica, A Terra Treme, de Luchino Visconti e Alemanha Ano Zero, também de Rossellini (estes três de 1948) são obras maiores.
Filmado com poucos meios, com os pedaços aproveitáveis de rolos de película meio estragados, com uma fotografia crua e um tom que roçava o documental, Roma, Cidade Aberta marca o início de uma nova era do cinema em Itália, bem como um movimento cinematográfico que ficou conhecido na história do cinema como Neo-realismo italiano, através do qual se tentava retratar, pela via da ficção, a realidade social e económica precária de um povo devastado pela guerra, recorrendo a pedaços dessa realidade, designadamente ao facto de a acção ser filmada em locais autênticos, ou à utilização de actores não profissionais – pessoas que faziam parte do quadro social que se pretendia representar, por exemplo. O filme de Rossellini mostra uma Roma martirizada, pós-Mussollini, ainda ocupada pelos nazis que a declararam “cidade aberta”, enquanto se espera a qualquer momento a ofensiva dos aliados que a liberte. Neste ambiente, recheado de incerteza, surge Giorgio Manfredi (Marcello Pagliero), o líder da resistência italiana, recentemente identificado e perseguido pela ocupação nazi, que procura esconderijo na casa do amigo Francesco (Francesco Grandjacquet). Este tem casamento marcado para o dia seguinte com a vizinha Pina (magnífica Anna 45
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THE ACT OF KILLING
Título nacional: O Acto de Matar Realização: Joshua Oppenheimer, Anónimo (co-realizador), Christine Cynn (co-realizador) Elenco: Anwar Congo, Herman Koto, Syamsul Arifin Ano: 2012
ANTÓNIO ARAÚJO
«A verdade é mais estranha que a ficção.» E por cada verdade que se revela neste idioma encerram-se outros tantos mistérios. A própria origem da expressão, por exemplo. Uns apontam para o diário de viagens publicado por Mark Twain em 1897, Following the Equator, como a fonte do ditado. Outros indicam o poema satírico de Lord Byron de 1823, Don Juan. A verdade estará algures a meio destas afirmações. Ou apenas contida parcialmente nas mesmas. Ou até numa fusão das duas, dando origem a uma nova versão da realidade.Esquecemo-nos frequentemente que a verdade é um conceito abstracto, em permanente mutação, dependente dos caprichos dos nossos preconceitos e percepções. É por isso que a arte, toda a arte, é fundamental para a experiência humana. Permite-nos alargar os horizontes e tomar consciência que a iluminação não nos é fornecida de forma definitiva em escritos sagrados, nem nos classificados de um qualquer jornal diário, sendo antes o fruto do reconhecimento que, em vez de respostas, devemos sempre procurar perguntas, num processo contínuo de questionamento. No cinema, o estilo documental ganhou ao longo dos anos a reputação de ser o porta-voz dos factos e do rigor. Que responsabilidade para se carregar aos ombros! O que faz o documentário que um filme de ficção não faça também? Com mais ou menos encenação ambos procuram, não a verdade cristalizada, mas as muitas verdades da natureza do Homem. Nas palavras de Werner Herzog, «Há camadas mais profundas de verdade no cinema, há verdade poética, extática. É misteriosa e esquiva, e só pode ser alcançada através da fabricação e imaginação e estilização.» Não admira, portanto, que Herzog se tenha aliado a outro gigante do género documental, Errol Morris, para ajudar a produzir e distribuir em 2012 a obra de estreia de Joshua Oppenheimer, O Acto de Matar, realizado em parceria com Christine Cynn e um anónimo indonésio — que assim permaneceu com medo de represálias. Filmado maioritariamente entre 2005 e 2011 em Medan, na província indonésia da Sumatra Setentrional, foca-se nas recordações de um conjunto de participantes nos
assassinatos de chineses e comunistas entre 1965 e 1966, na sequência de uma tentativa falhada de golpe de estado na Indonésia. No centro destas memórias está Anwar Congo, um amante de cinema americano, ex-distribuidor de filmes no mercado negro, autoproclamado gangster e confesso assassino de mais de mil pessoas. O elemento verdadeiramente surpreendente que faz de O Acto de Matar um filme essencial, ainda que perturbante, é a casualidade com que os responsáveis pela violência recordam os actos hediondos que cometeram. O manto da vitória militar e política, que ainda hoje governa o país, ofereceu-lhes um estatuto de heróis nacionais. A arrogância deste privilégio desumanizador ofusca a capacidade de empatia ou o discernimento moral para o correcto juízo ou entendimento das consequências humanas das suas acções passadas. A completar a bizarria, e perante o fascínio dos assassinos pelo cinema americano, estes aceitam a proposta de Oppenheimer para recriarem alguns dos crimes que cometeram perante as câmaras, como se de um filme de Hollywood se tratasse. Ofuscados pela luz do suposto estrelato, e cegos em relação ao facto de serem cúmplices voluntários da derradeira demonstração dos seus próprios atentados à dignidade humana, encenam assassinatos pessoais, massacres e elaborados números musicais onde ficção e realidade se misturam numa bruma onírica de verdade extática que nos dá um vislumbre da psique assustadora destes indescritíveis humanos. O simples facto deste filme existir é inacreditável. O assombramento do seu envolvimento no tema levou o realizador a estrear o documentário complementar O Olhar do Silêncio dois anos mais tarde. Mas com O Acto de Matar Joshua Oppenheimer e os seus colaboradores, mais que um simples filme, produziram um obrigatório e corajoso documento dos recantos mais negros da natureza humana. É caso para dizer que a verdade é mesmo mais estranha que a ficção.
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SALÒ O LE 120 GIORNATE DI SODOMA
Título nacional: Salò ou os 120 Dias de Sodoma Realização: Pier Paolo Pasolini Elenco: Paolo Bonacelli, Giorgio Cataldi, Umberto Paolo Quintavalle Ano: 1975
JOSÉ CARLOS MALTEZ
O controverso realizador, poeta, dramaturgo e ensaísta Pier Paolo Pasolini nunca escondeu as suas paixões e ódios, que marcam boa parte da sua obra. Comunista convicto, Pasolini teve no seu sentimento político um mote, e não espanta a sua crítica ao regime fascista de Mussolini, surgida em 1975, na forma de Salò ou os 120 Dias de Sodoma.
sob o controlo dos seus guardas e outros colaboradores, onde se contam algumas damas, profissionais do sexo, que vão contando histórias eróticas, como inspiração aos quatro mestres, para encenações brutais, seja qual for o custo para as suas vítimas. Dividido em quatro círculos infernais, ao jeito de Dante, o filme é extremamente gráfico e violento, com nudez explícita, sadismo, coprofilia, tortura, mutilações e mortes brutais, que para o autor eram a forma ideal de denunciar a decadência, desumanidade, abuso de poder, perversão e corrupção do regime fascista. O filme seria banido em muitos mercados, sendo ainda hoje objecto de controvérsia, afinal aquilo que Pasolini mais queria conseguir com as suas obras.
Nele, Pasolini transporta-nos aos dias da República de Salò, o Estado criado por Mussolini no norte de Itália, após o desembarque aliado no sul, em 1943, e que o Duce governaria até Abril de 1945. Fá-lo na sua forma subjectiva, mostrando-nos como o nome Salò (que ainda hoje é símbolo para os nostálgicos do fascismo italiano) não lhe podia ser mais odioso, ao retratá-lo como uma mansão que serve de retiro a quatro senhores fascistas (um duque, um bispo, um juiz e um autarca), que se dedicam a viver as suas mais perversas e escabrosas fantasias sexuais. Com eles estão nove rapazes e nove raparigas que passam a ser seus escravos,
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L’ARMÉE DES OMBRES
Título nacional: O Exército das Sombras Realização: Jean-Pierre Melville Elenco: Lino Ventura, Paul Meurisse, Simone Signoret Ano: 1969
PEDRO MIGUEL FERNANDES
Com O Exército das Sombras Jean-Pierre Melville (um daqueles casos de grandes realizadores que apesar do seu enorme talento deixaram uma curta obra) mergulha num território que lhe é familiar: a Resistência Francesa durante a II Guerra Mundial, movimento do qual fez parte durante o conflito. A partir da obra homónima de Joseph Kessel, o filme retrata o dia-a-dia de uma célula de resistentes, com muitas zonas cinzentas e bastante longe da mitologia e do romantismo que este tipo de movimentos costuma gerar nos seus seguidores. A extraordinária fotografia de Pierre Lhomme, onde precisamente têm preponderância os tons cinzentos (e que nos dias de hoje se tornou uma quase uma irritante regra nos filmes policiais), está lá para o provar. Em O Exército das Sombras não há explosões, nem grandes operações, antes pequenas acções de sabotagem, que mesmo sendo complexas são levadas a cabo com sobriedade, sem tiques de heroísmo. Aliás, os
heróis não são heróis como os outros, capazes de feitos sobre-humanos. Antes pessoas comuns, que fruto das circunstâncias pretendem ver o seu país livre de uma ocupação tenaz (mesmo que esta sobreviva com a conivência das autoridades oficiais), e cuja consciência os atormenta no final de cada missão, independentemente do resultado final. Neste capítulo, Jean-Pierre Melville teve a sorte de contar com um enorme elenco de actores à disposição. Não sendo o único filme sobre este período negro da história francesa, O Exército das Sombras é sem sombra de dúvidas um dos melhores. Como contraponto, seria interessante ver este filme num programa duplo com O Exército do Crime, um filme mais recente sobre um grupo semelhante.
TAXI
EL LABERINTO DEL FAUNO
DIANA MARTINS
ANTÓNIO ARAÚJO
Jafar Panahi, realizador de Taxi, encerra em si próprio a razão e conceito do filme. Tendo sido preso em 2009, Jafar foi proibido de sair do Irão; condenado a seis anos de prisão e a vinte anos de proibição de filmar. As razões? Constituía uma ameaça ao regime. Mas porque a necessidade aguça o engenho, Jafar cria este original Taxi onde, com uma câmara dentro de um táxi, de forma amadora, vai-nos mostrando os seus encontros, como condutor, nas ruas de Teerão. Encontros esses que nos surgem como temáticas em forma de dogmas, de crenças, de costumes ou, simplesmente, de sentimentos. O filme, que ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim 2015, acaba assim por ser um exercício de criatividade, de liberdade e de compreensão. Porque, no fim, todos temos direito a exprimirmo-nos.
O Labirinto do Fauno é o irmão espiritual e temático de Nas Costas Do Diabo. Depois dos fantasmas da guerra civil espanhola estamos agora em plena ditadura de Franco, no meio do conflito entre a guerrilha antifranquista e o partido do regime, a Falange Espanhola. No centro da narrativa encontramos Ofelia que após viajar com a sua grávida mãe para ir viver com o cruel Capitão Vidal vê esta adoecer gravemente. Perante a crueldade do seu padrasto e a possibilidade de perder a mãe, Ofelia refugia-se num mundo de fantasia onde encontra um jardim labiríntico habitado por criaturas fantásticas. Contrastando a crueldade da realidade com a possibilidade do sonho Guillermo del Toro oferece um final ambivalente que, em função da forma como cada espectador encara a vida, pode variar entre o mais cerrado pessimismo e o mais vibrante optimismo. Título nacional: O Labirinto do Fauno (2006)
Título nacional: Táxi de Jafar Panahi (2015)
Realização: Guillermo del Toro
Realização: Jafar Panahi
Elenco: Ivana Baquero, Ariadna Gil, Sergi López
Elenco: Jafar Panahi
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NO
Z
JOSÉ CARLOS MALTEZ
JOÃO BIZARRO
Pablo Larraín, um realizador que procura frequentemente na sua obra um ajuste de contas com o regime de Augusto Pinochet (ditador chileno de 1973 a 1990), dá-nos em Não um filme que narra a campanha eleitoral para o plebiscito de 1988, que ditaria o início da abertura democrática no Chile. Nele, Gael García Bernal é o publicitário escolhido para desenhar a campanha «Não», que aposta num conceito radical: esquecer a denúncia de duas décadas de horror, e trazer uma mensagem de mudança, moderna e alegre. Com a televisão e a publicidade em destaque, e muitas imagens de arquivo, num filme que parece ele próprio filmado clandestinamente, de câmara ao ombro, com uma montagem saltitante, e uma película que lembra o VHS dos anos 80, Não traz-nos o poder da imagem na mudança dos destinos de um país.
Z é livremente baseado na morte do activista de esquerda grego Gregoris Lambrakis, assassinado por militantes de extrema-direita após um discurso a favor da democracia no seu país, e que o governo tenta fazer passar como acidente. Gavras pega nestes eventos e traça uma alegoria sobre as violações dos direitos humanos, criando um ambiente de tensão, sentido desde o primeiro minuto. Apesar da discórdia que causou, Gavras consegui grande visibilidade com o filme, ao ponto de ter ganho 2 Óscares (Edição e Filme Estrangeiro) além da nomeação para Melhor Filme, Realizador e Argumento Adaptado. Destaque ainda para a BSO de Mikis Theodorakis. Ao fim de 48 anos, Z (a letra foi banida na Grécia durante a ditadura militar) continua a ser um dos melhores thrillers políticos de sempre.
Título nacional: Não (2012)
Título nacional: Z - A Orgia do Poder (1969)
Realização: Pablo Larraín
Realização: Costa-Gavras
Elenco: Gael García Bernal, Alfredo Castro, Luis Gnecco, Antonia Zegers
Elenco: Yves Montand, Irene Papas, Jean-Louis Trintignant
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EL SECRETO DE SUS OJOS
BEFORE NIGHT FALLS
CÁTIA ALEXANDRE
DIANA MARTINS
Surpreendeu todos em 2010, ao roubar o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro a Michael Haneke. Com uma narrativa que percorre o passado e o presente, O Segredo dos Seus Olhos divide-se entre um Buenos Aires ditatorial de 1974 comparando as suas diferenças e dificuldades com o ano de 2000, onde um caso brutal de violação e assassinato continuam a perseguir as vidas de Benjamin (Ricardo Darin), um investigador criminal cujo o caso o atormenta desde então, e Irene (Soledad Villamil) agora juíza. Mantendo sempre um clima emocional e de tensão entre personagens, o filme nunca nos entrega demasiado até chegar ao climax final, envolvendo-nos numa subtil teia cujos palpites se misturam não só com as vivências dos personagens mas também com a investigação criminal.
Antes do Anoitecer conta-nos a história de Reinaldo Arenas, poeta homossexual cubano, mal-amado do governo de Fidel Castro. Com uma vida marcada por relações mais ou menos ardentes, o filme leva-nos a uma viagem desordenada e alucinante pela vida do poeta, magistralmente interpretado por Javier Bardem. Num misto de lutas e controvérsias, Reinaldo teve de enfrentar a oposição do Governo cubano, os preconceitos sociais, humanos e políticos estabelecidos. A sua revolta e homossexualidade levaram-no assim à prisão e ao seu exílio em Nova Iorque onde se acaba por suicidar, em 1990. Um filme duro e incómodo; chocante como a realidade. Mantendo o tom de documentário, com utilização sistemática da câmara de mão, Julian Schnabel consegue assim uma obra-prima: bela e digna.
Título nacional: O Segredo dos Seus Olhos (2009)
Título nacional: Antes do Anoitecer (2000)
Realização: Juan José Campanella
Realização: Julian Schnabel
Elenco: Ricardo Darin, Soledad Villamil, Guillermo Francella
Elenco: Javier Bardem, Johnny Depp, Olatz López Garmendia
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O Grande Ditador, 1940
BRINCAR ÀS DITADURAS OU O CINEMA COMO ARMA POLÍTICA SARA GALVÃO
Uma delegação da Geórgia vai visitar Estaline. Entram, falam com ele no gabinete e vão-se embora. Assim que desaparecem corredor abaixo, Estaline começa à procura do seu cachimbo. Abre gavetas, mexe em papéis, mas não o encontra em lado nenhum. Vai à porta e chama o chefe da polícia política, Laurenti Beria. “Beria”, diz ele, “perdi o meu cachimbo. Vai atrás da delegação georgiana e vê se descobres quem o levou”. Beria afadiga-se corredor abaixo. Estaline continua à procura do cachimbo. Passados cinco minutos olha para baixo da secretária e vê-o no chão. Torna a chamar Beria. “Encontrei o cachimbo, podes deixar ir os georgianos”. “Já é tarde”, responde Beria. “Metade da delegação admitiu ter levado o seu cachimbo e a outra metade morreu no interrogatório”. (in Foice e Martelo, Ben Lewis)
ou organização faz parte das pequenas grandes alegrias de viver em democracia. Mas o que é que acontece quando a comédia decide acontecer fora de um contexto democrático, ou mesmo tomar como assunto uma ditadura e o seu chefe de Estado? A humorista Mary Hirsch disse uma vez: “O humor é uma espada de borracha - pode-se apontar sem aleijar”, mas se há algo que todos devíamos ter aprendido com o ataque terrorista à sede do Charlie Hebdo em Paris é que o humor não é tão inofensivo quanto muitos o querem fazer ver. Pelo menos, não quando liberdades individuais são ameaçadas - quer pelo país em que vivemos, ou por poderes externos. E opiniões - principalmente quando disfarçadas e normalizadas pela comédia - são extremamente perigosas. Horácio, considerado o pai da sátira literária, via-a como a ponte entre a filosofia e o público geral. É mais simples explicar o que está de errado com algo (ou alguém) através de uma caricatura, ou paródia, do que com argumentos. Levar o comportamento criticado ao extremo, ou colocá-lo num contexto pouco usual, são formas de sublinhar a incongruência do dito comportamento, tornando óbvio porque é que deve ser criticado. Como exemplo, aquando do referendo para a despenalização do aborto, os Gato Fedorento fizeram um sketch onde Ricardo Araújo Pereira inter-
Fazer humor sobre líderes e poderosos é uma tradição que já vem da Grécia Antiga. Desde as peças de Aristófanes, passando pela Saturnália, os bobos da corte na Idade Média e Renascimento (protegidos pelos poderosos para fazer pouco da corte e seus costumes), Voltaire, Jonathan Swift, Mark Twain e George Orwell, até aos dias de hoje com Saturday Night Live, The Colbert Report ou mesmo o defunto exemplo nacional do Contra-Informação, gozar com quem tem nas mãos as rédeas de um país 55
Os Grandes Aldrabões, 1933 pretava Marcelo Rebelo de Sousa, na altura “apenas” um comentador político televisivo. Simulando uma entrevista com uma jovem residente em Cascais “visivelmente impressionada com o meu brilhantismo”, e que irá fazer “algumas questões previamente ensaiadas”, Araújo Pereira começa, imitando o estilo retórico e gestos de Rebelo de Sousa, por introduzir o programa “Assim Não”:
HELOÍSA: Mas eu poderia fazê-lo? MARCELO: Podia. HELOÍSA: E o que é que me acontecia? MARCELO: Nada. HELOÍSA: Mas estava a ir contra a lei? MARCELO: Estava. HELOÍSA: E como é que a lei me punia? MARCELO: De maneira nenhuma.
MARCELO: Assim Não porquê? Porque a pergunta que nos é feita no referendo é uma pergunta mentirosa. Uma coisa é a despenalização do aborto, outra coisa é a liberalização do aborto. Concordo com a primeira parte da pergunta, discordo da segunda parte da pergunta, tenho dúvidas em relação a três vírgulas, e sou contra o ponto de interrogação. Com esta lei, a mulher pode abortar porque sim. Vou ao cinema; olha, está esgotado, vou abortar. Não podemos permitir que isto aconteça. Despenalização da mulher que aborta, a favor. Liberalização do aborto, contra. Portanto, se a pergunta fosse, “Concorda com a despenalização da mulher que aborta num sítio todo badalhoco sem condições nenhumas, eu votava que sim. Agora, num estabelecimento de saúde autorizado, não. (…) HELOÍSA: Professor, o aborto é uma coisa extremamente horrível, não é? MARCELO: É. HELOÍSA: Portanto, devia ser proibido? MARCELO: Exacto.
Em menos de dois minutos, o grupo de humoristas critica o referendo em si, os críticos do referendo e a ambiguidade da legislação em vigor - mas o principal alvo são os que acham que é possível - ou sensível - ser a favor da despenalização mas não da liberalização. Enquanto a distopia projecta medos no futuro, a comédia de cariz político olha para o presente e, perante o ridículo e a injustiça, resolve rir. Mas mesmo a comédia que não passa da caricatura à sátira pode ser perigosa em certos contextos, e não só pelo seu efeito pedagógico. Veja-se o caso do fenómeno da anedota comunista, que podia enviar o engraçadinho para umas férias nos campos de trabalhos forçados siberianos - ou, como o famoso comediante Yakov Smirnoff (inventor do famoso “reverso soviético” - In Soviet Russia, TV watches you! ) respondeu, quando Johnny 56
Carson lhe perguntou se na União Soviética podiam fazer piadas sobre o Líder: “Claro - uma vez”. Quando um governo se baseia no culto de personalidade, piadas sobre essa personalidade podem ser mais perigosas do que balas. Ditaduras são baseadas num clima do terror - mas ninguém tem medo quando se ri. A partir do momento em que se pode rir de um líder, a ilusão do poder absoluto é destruída. De repente, não temos perante nós um deus, mas um ser humano, com as falhas inerentes à sua humanidade. E seres humanos são facilmente destituídos - se não mesmo assassinados. Não é por acaso que Marx disse que a fase final de um sistema político histórico é a comédia. Se a sátira e caricatura políticas sempre estiveram presentes através de panfletos, cartoons, poesia e mesmo romances, o cinema demorou a assumir quaisquer posições anti-sistema. Afinal de contas, até sermos “libertados” pelas câmaras amadoras, a sétima arte era cara e logisticamente difícil, dominada por interesses corporativos e industriais, e facilmente controlada por governos. Sim, era fácil encontrar exemplos de filmes a gozar com o Outro - mas estamos no domínio da propaganda, não da crítica. Mesmo em tempos de paz, soft propaganda - pense-se o mito do sonho americano - é a constante.
O Ditador, 2012 57
O Falhado Amoroso, 1967
Mas quando se pensa na figura do Ditador, o cinema de comédia tem sido particularmente tímido até recentemente. É mais simples fazer filmes sobre figuras ligeiramente menos “controversas” como George W. Bush ou Richard Nixon, do que tentar fazer humor com ditadores reais, como Estaline e Hitler, que ainda estão frescos na memória da História - ou mesmo King Jong Un, que ainda está vivo. Por vezes os filmes são sobre ditadores fictícios, como Os Grandes Aldrabões/Duck Soup (1933, Leo McCarey) ou O Ditador (2012, Larry Charles); outras vezes pisam o risco, como Uma Entrevista de Loucos (2014, Evan Goldberg e Seth Rogen); outras são inconsequentes, como Bananas (1971, Woody Allen) ou O Falhado Amoroso/The Producers (1967, Mel Brooks); e outras, raras vezes, fazem-nos rir e arrepiar ao mesmo tempo, como Ele Está de Volta (2015, David Wnendt) e Terra de Cegos (2006, Robert Edwards).
Como explicar o encanto de gozar com ditadores dos últimos anos? A melhor resposta vem do próprio Hitler - e por Hitler (apesar do próprio ser um grande contador de anedotas, segundo relatos da sua secretária) queremos dizer um dos muitos Hitlers no bunker que existem no Youtube, que, num incrível momento de meta-narrativa, explode por causa do número de paródias do Hitler que existem no Youtube: “Eu pensava que a minha herança estava segura! Eu assassinei milhões. Criei uma rota de destruição pela Europa. E para quê? Para ser a última moda juvenil?” Yep, meu caro. Exactamente para isso! UM BIGODE EM COMUM Com a Segunda Guerra às portas, e a Grande Depressão pouco atrás, é tentador ver Os Grandes Aldrabões, dos Irmãos Marx, como um presságio do que estava para vir. Se bem que o filme é mais uma comédia antiguerra do que uma sátira política, com Groucho a interpretar o ditador Rufus T. Firefly, ao leme da mítica Freedonia, Os Grandes Aldrabões lança as sementes para futuros ataques a governos dúbios. Com más críticas quando estreou, foram precisas várias décadas e historiadores de cinema para o valorizar como um dos melhores filmes dos Irmãos Marx.
Há quem diga que há coisas com as quais não se deve gozar - mas o “tabu” da comédia sobre estas “encarnações do Mal” é cada vez mais atractivo. Do famoso anúncio banido do Nando’s na África do Sul, onde vemos Mugabe a divertir-se com Gadafi, Saddam Hussein e outros, até à página de Kitlers (gatos que se parecem com Hitler), a humanidade resolveu usar as gargalhadas contra os fantasmas do passado e papões do presente. 58
You Nazty Spy!, 1940 Chaplin tinha recusado a sugestão do seu produtor Alexander Korda para fazer um filme de identidade trocada sobre Hitler. Mas desesperado para regressar ao estúdio - e com o estilo retórico de Hitler como desculpa perfeita para finalmente filmar um filme sonoro - Chaplin finalmente decidiu, nas suas próprias palavras, “ridiculizar a treta mística [Nazi] sobre uma raça de sangue puro.” E continua: “Os pessimistas dizem que vou falhar - que ditadores já não têm piada, que o Mal é demasiado sério. Isto está errado. Se há uma coisa que sei é que pode-se sempre ridicularizar o Poder”.
Serão precisos mais uns anos para um novo filme de relevo aparecer, já com a (infeliz) inspiração que brotava do outro lado do Atlântico. You Nazty Spy! (1940, Os Três Estarolas) foi o primeiro filme a satirizar Hitler, lançado nove meses antes da estreia de O Grande Ditador de Charlie Chaplin – apesar de iniciar produção depois do projecto de Chaplin ter sido anunciado. Conseguiu escapar às malhas do Código Hays (nada simpático a mensagens políticas ou satíricas, ainda mais durante um período em que os EUA tinham tomado uma posição isolacionista em relação à guerra na Europa), apenas por ser uma curta-metragem. Com o mítico disclaimer inicial - Qualquer semelhança entre as personagens deste filme e quaisquer pessoas, vivas ou mortas, é um milagre -, e o slogan “Parvónia para os Parvos”, You Nazty Spy! goza abertamente com Hitler, Mussolini e Goebbels, em linhas mais de caricatura do que de sátira. Para Os Três Estarolas (e para a maioria do público americano da altura), Hitler é um palhaço que não é para ser levado a sério. No ano seguinte estrearia a sequela I’ll Never Heil Again (1941, Os Três Estarolas), onde a caricatura começa a raiar o ataque - com a famosa cena em que arrancam o bigode ao ditador Hallstone e ele grita “Devolve-me a minha personalidade!”.
Quando O Grande Ditador foi anunciado, Chaplin recebeu ameaças de morte, e teve de lutar contra distribuidores de um país que estava reticente em entrar em conflito com a Alemanha. Muitos viram o filme como propaganda pró-guerra. Mas visto à distância, o filme é um grande exemplo de “rir na cara do inimigo”, com o catártico discurso final - que para vários críticos quebra a quarta parede - a apelar para um mundo melhor. Assim que os EUA entram na guerra, as portas da crítica aberta a Hitler são escancaradas. Com o cinema a deixar cair toda a subtileza - como em Ser ou Não Ser (1942, Ernst Lubitsch), a propaganda anti-nazi chega mesmo aos desenhos animados. Der Fuehrer’s Face (1942, Jack Kinney), onde o Pato Donald tem um pesadelo onde vive na Alemanha Nazi, é
Claro está, o mais famoso filme sobre um ditador tinha estreado no ano anterior, pelo bigode-homónimo de Hitler, Charlie Chaplin. Em 1937, 59
Bananas, 1971 um dos exemplos mais famosos. E com Bugs Bunny e Herr Meets Hare (1945, Friz Freleng), somos apresentados a um estranho retrato do “Tio Joe” (aka Joseph Estaline) – representado como o único homem de que os Nazis têm medo.
o absurdo para obter gargalhadas. Claro que é impossível ignorar que a personagem de Allen se veste como Castro quando visita os EUA - mas em nenhum momento quer o regime do cubano quer os próprios EUA são criticados ou ridiculizados. Tão ou mais inofensivo do que Os Grandes Aldrabões (do qual parece ser uma homenagem), Bananas não se levanta acima da caricatura.
DOS INÍCIOS DA GUERRA FRIA ATÉ UM NOVO TIPO DE DITADORES Hitler continuou a ser o ditador preferido dos filmes dos anos seguintes - de The Producers a Adolfo & Marlene (Ulli Lommel, 1977), o bigodinho ridículo e o aspecto nada ariano prestou-se aos mais variados retratos cómicos. Mas o mundo começara a mudar, e depois de derrotado o Fascismo (pelo menos, no papel e em termos muito gerais), o mundo ocidental lidava com outra grande ameaça - o Comunismo. Gozar directamente com a União Soviética parecia demasiado arriscado, mas as ditaduras sul-americanas - e por ditaduras sul-americanas queremos dizer o regime de Fidel Castro em Cuba - estavam à mão de semear.
À medida que o muro de Berlim parece menos e menos sólido, começam a aparecer comédias sobre Estaline. Atacado pelo próprio sistema (Nikita Khrushchev fez questão, assim que assumiu o poder), o Tio Joe aparece em O Monarca Vermelho (1983, Jack Gold), um estranhíssimo filme televisivo inglês baseado nas histórias de Yuri Korotkov, e que terá vindo possivelmente na sequência do caso Bukowski (um preso político que obteve asilo no Reino Unido). Chamar a este filme uma comédia é esticar o conceito; a mais, não ajuda que tanto as situações como os locais de filmagem sejam tão terrivelmente britânicos como os sotaques. Em 1996, Filhos da Revolução (Peter Duncan) utiliza a premissa de um filho secreto de Estaline como rastilho para a comédia, mas até aos dias de hoje ainda estamos à espera de uma comédia meio-decente sobre o terrível georgiano. (Neste ano de (des)graça de 2017, a comédia The Death of Stalin (Armando Iannucci), com Steve Buscemi, que irá estrear no fim do ano, talvez seja a salvação que esperamos).
Em 1971, estreia Bananas, realizado e protagonizado por Woody Allen. A história do judeu intelectual que se envolve na revolução da ilha ficcional de São Marcos por acidente, enquanto tenta impressionar a ex-namorada activista, não apresenta uma sátira consistente - pelo contrário, no estilo a que Allen nos habituaria nos anos seguintes, utiliza a justaposição e 60
Team América: Polícia Mundial, 2004 inspirados pelos cartoons de Bugs Bunny durante a Segunda Guerra, e decidem gozar com ele abertamente (dando à posteridade a magnífica canção I’m So Ronery). Um espelho da situação política internacional, Team América joga com complexidades, e evita absolutos - ou pelo menos, goza com eles à fartazana. Evitando referências específicas a um determinado governo americano - quase que insinuando que os EUA são sempre o mesmo, independentemente de quem está na Casa Branca Parker e Stone rebelam-se contra a dicotomia do Bem vs. Mal que deixou de ter lugar no mundo pós-11 de Setembro. O discurso “Dicks, Pussies & Assholes” mostra bem as contradições com as quais temos de viver nos dias de hoje - todos odiamos que os EUA tenham de intervir em conflitos mundiais que não lhes dizem respeito, mas se não intervierem, quem é que tem o poder de o fazer? Não exactamente uma comédia, mas com um retrato ao mesmo tempo assustador e divertido de um ditador fascista, rapidamente destituído por um ditador estranhamente parecido com Karl Marx, Terra de Cegos, de Robert Edwards, é a sátira política distópica por excelência. Maximillian II (Tom Holland), filho do anterior ditador, estrela de acção, é um homem insignificante com um ego demasiado inchado, uma criança mimada que não pára para pensar se os seus desejos prejudicam, de algum modo, o xadrez nacional. Num momento do filme, quando lhe dizem que não pode assassinar o preso político Thorne, Maximillian explode:
Em Aonde é que Pára a Polícia (David Zucker, 1988), na famosa cena “Inimigos da América”, vemos um grupo de indivíduos que estarão na mira das atenções (e das comédias) dos anos 90 - Idi Amin, Muammar Gaddafi, Khomeini, Yasser Arafat, Fidel Castro e Mikhail Gorbachev. O foco da sátira cinematográfica esquecerá (momentaneamente) Hitler, para se concentrar no Médio Oriente e África. Se repararam na ausência de Saddam Hussein na sala, não se aflijam - 5 anos depois, em 1993, ele terá um lugar de destaque em Ases pelos Ares 2 (Jim Abrahams), onde é apresentado como extremamente infantilizado, parcialmente animalesco (no final do filme) e com semelhanças incríveis com a Bruxa do Este. E em 1999, Trey Parker e Matt Stone tornam Saddam no amante do Diabo, em South Park - o Filme. Também de Parker e Stone, Team América: Polícia Mundial (2004) marca o início de uma nova era na comédia política, onde nada nem ninguém está a salvo - a pós-modernidade do ataque político, por assim dizer. Escrito e filmado como um filme de acção americano, “com os maus diálogos, acontecimentos mirabolantes e vilões sem pontaria”, como disse o crítico Bill Wyman, os meninos do South Park gozam tanto com a soft propaganda de Hollywood (tanto a nacionalista como a liberal) como com a ameaça do terrorismo internacional. Na figura de Kim Jong Il, são 61
Sacanas sem Lei, 2009 facada satírica nas costas da democracia - ao tentar convencer os EUA a se tornar uma ditadura, o público apercebe-se (esperamos) que não seriam precisas grandes mudanças para tal acontecer (e em 2017 todos suspiramos e olhamos para os céus a ler isto): Porque é que vocês são tão anti-ditadura? Imaginem se a América fosse uma ditadura! Podiam deixar 1% da população deter toda a riqueza nacional. Podiam ajudar os vossos amigos ricos ao cortar nos impostos deles e a ajudá-los quando eles fazem especulações económicas e perdem. Podiam ignorar as necessidades dos pobres em relação à saúde e educação. A vossa imprensa podia parecer livre; mas seria secretamente controlada por uma pessoa e sua família. Podiam pôr escutas em telefones. Podiam torturar prisioneiros estrangeiros. Podiam falcatruar eleições. Podiam mentir sobre por que é que vão entrar em guerra. Podiam encher as vossas prisões com um certo grupo racial e ninguém se ia queixar. Podiam usar a imprensa para assustar as pessoas e fazê-las apoiar políticas que vão contra os interesses delas. Eu sei que isto é difícil de imaginar para vocês Americanos, mas por favor, tentem!”
Eu sou Maximilian o Segundo! Eu sou o salvador da Nação, o Protector das Pessoas, o Mestre de tudo o que rasteja na terra e nada no mar. E vocês f*deram-me no rabo pela última vez! Eu quero-o… Eliminado, com extrema violência, como… como… Marlon Brando! Perceberam? E, subitamente, Hitler volta à ribalta. Talvez como reacção ao excelente filme de Oliver Hirschbiegel, A Queda (2004), a sétima arte lembra-se do Ditador Supremo. Quer caricaturando Hitler como o dono de um único testículo e um penteado ridículo (Churchill: o G.I. Americano, 2004, Peter Richardson), matando-o num momento de desejo de História Alternativa (Sacanas sem Lei, 2009, Quentin Tarantino) ou largando todas as subtilezas e apresentando-o como um Lobisomem (FDR: American Badass!, 2009, Garrett Brawith), o mundo moderno resolve assumir o fascínio pelo o autor de A Minha Luta, visto na altura ainda como a personalização de um Mal Absoluto. Numa inspiração, quiçá, dos lados sauditas, em 2012, o enfant terrible Sacha Baron Cohen aposta no seu primeiro filme não-improvisado, O Ditador. Com as piadas de gosto duvidoso do costume, o ditador Aladeen (interpretado por Baron Cohen) vê-se no meio da trama de Um Príncipe em Nova Iorque, só que com muito mais sexismo. No discurso final, a
Dois anos depois, naquele que foi ou o maior desaire de distribuição de sempre, ou a melhor estratégia de marketing (ainda ninguém tem a certeza absoluta), virá Uma Entrevista de Loucos – o não exclusivo caso onde a trama à roda do filme é mil vezes melhor do que o filme em 62
Uma Entrevista de Loucos, 2014 si. Quando James Franco e Seth Rogen, produtores do filme, resolveram utilizar a figura de Kim Jong Un, mal sabiam que a Coreia do Norte os iria levar muito, muito a mal, e considerar o filme “um acto de guerra”. Após o ataque cibernético aos servidores de email da Sony (que revelou demais sobre a produtora e seus executivos, assim como detalhes sumarentos sobre determinadas produções), foi decidido que o filme não seria distribuído de todo. Claro está, o fruto proibido é o mais apetecido, e o filme acabou por ser lançado em formato digital e distribuição limitada, como que um enorme dedo do meio à ditadura norte-coreana. O retrato de Kim Jong Un, no filme, é de um compincha que gosta de Katy Perry e oferece cachorrinhos a jornalistas. Claro está, o moço é destruído com um nível de gore que não lembra à avozinha - talvez seja isso, mais do que a Katy Perry, que tenha enervado os norte-coreanos. Nunca o saberemos. A nostalgia pelos anos 80 dá-nos, em 2015, Kung Fury (David Sandberg), mais uma vez, com uma “homenagem” a Hitler, que diz “Fuck the Police”. E a nostalgia pelos anos 60 dá-nos, no nosso querido Portugal, Capitão Falcão (2011, João Leitão), a primeira comédia com o “Ilustre Português” António de Oliveira Salazar no elenco.
que a nossa época merece. Baseado numa premissa simples - Hitler acorda nos dias de hoje, entra em contacto com a modernidade, e rapidamente se transforma numa celebridade televisiva - o filme de Wnendt vai ainda mais longe do que o livro, ao colocar o actor Oliver Masucci em momentos mocumentário, entrevistando alemães, e fazendo-os concordar com ideias, bem, hitlerianas. “A História repete-se”, diz Hitler a certo momento. Mas, como o filme rapidamente mostra, não é tanto uma questão de repetição, como a dúvida que paira no ar, que é: será que alguma vez mudou? Mas não se preocupem - teremos sempre a comédia. Porque, como disse George Orwell, “Cada anedota é uma pequena revolução”.
A melhor comédia sobre um ditador em 2015, contudo, passou quase completamente debaixo do radar. Baseado no livro best-seller homónimo de Timur Vernes, Ele Está de Volta, de David Wnendt, é, de longe, o filme 63
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THE GREAT DICTATOR
Título nacional: O Grande Ditador Realização: Charles Chaplin Elenco: Charles Chaplin, Paulette Goddard, Jack Oakie Ano: 1940
ANTÓNIO ARAÚJO
Tem-se generalizado a ideia que Charlie Chaplin não foi, afinal, um dos génios da comédia da era do cinema mudo americano, oferecendo-se como alternativa os nomes de Harold Loyd e Buster Keaton. Este é um pensamento falacioso pois estes três autores constituíram os vértices de um triunvirato de génios autores que acompanharam os primeiros passos da sétima arte com capacidade empreendedora, visão e muito talento, cómico e não só. Harold Loyd executava acrobacias que desafiavam a morte; Buster Keaton encarava as suas crises com um ar estóico; Charlie Chaplin exteriorizava o seu enorme coração, doseando as gargalhadas com uma boa dose de sentimento. Talvez por isso tenha conquistado a enorme popularidade e reputação que, um século depois, joga cinicamente contra ele.
do regime de Adolf Hitler. Na verdade, à data de lançamento do filme em Outubro de 1940 os Estados Unidos da América mantinham formalmente a paz com a Alemanha Nazi. Chaplin tinha produzido uma crítica corajosa, humana e inteligente, mas potencialmente polémica dado o clima político. O próprio Reino-Unido tinha anunciado a sua proibição, mas em Março de 1941 já se encontrava em guerra com o Terceiro Reich e o filme foi estreado como parte da propaganda antinazi. A conturbada história rendilha uma série de situações que levam à troca de identidades entre um barbeiro judeu e o implacável ditador Adenoid Hynkel, de quem é sósia. Chaplin interpreta ambos os papéis tirando partido do seu grande talento físico para pequenas rábulas integradas numa narrativa simples que, no entanto, demonstra o verdadeiro regime de opressão e perseguição que então se vivia na Europa. Se o barbeiro é mais uma variação da sua habitual personagem sincera, espontânea e idealista, Hynkel é uma oportunidade para o autor reproduzir os trejeitos e maneirismos de Hitler, exacerbando a natureza inerentemente cómica dos mesmos, satirizando a sua figura sem nunca trivializar a seriedade da sua ameaça. Em boa hora Chaplin abraça o som pois, se o seu humor físico vive bem sem diálogos, o discurso final do barbeiro sob o disfarce de ditador é um verdadeiro grito de revolta contra a intolerância, a ignorância, a hostilidade e o medo. Quando colocado à frente dos microfones não anseia poder nem a vã glória de qualquer conquista à custa do atropelo da dignidade humana. Pelo contrário, convida à fraternidade e boavontade entre os homens instilando esperança onde antes pairava a negra nuvem da ameaça num apelo desesperado, angustiado e confuso perante o horrível cenário que testemunha. É uma retórica idealista que, dadas as devidas distâncias, continua incrivelmente actual e desesperadamente essencial.
A sua filmografia conta com mais de oitenta títulos, a maior parte deles curtas-metragens onde popularizou a icónica personagem Tramp, conhecido em Portugal e na Europa como Charlot, e que seria o protagonista de muitas das suas longas-metragens, incluindo a estreia em 1921 nos filmes de maior duração, O Garoto de Charlot. Chaplin resistiu durante vários anos à introdução do som no cinema e continuou a produzir filmes mudos até à década de quarenta. Foi precisamente com O Grande Ditador, em 1940, que finalmente nos ofereceu um filme totalmente sonoro. Entretanto Charlie Chaplin revelou-se como um homem dos sete ofícios e quando chega a O Grande Ditador, não só realiza e interpreta como assina o argumento, a produção e a composição da banda-sonora em colaboração com Meredith Willson. Inspirado pelo filme da propaganda nazi O Triunfo da Vontade, realizado por Leni Riefenstahl, Chaplin decide criar uma sátira condenando Adolf Hitler, Benito Mussolini e as suas lideranças fascistas e antissemitas. Em retrospectiva, O Grande Ditador parece a reação natural às acções 65
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DUCK SOUP
Título nacional: Os Grandes Aldrabões Realização: Leo McCarey Elenco: Groucho Marx, Harpo Marx, Chico Marx Ano: 1933
JOSÉ CARLOS MALTEZ
Em 1933, aquele que era o quinto filme dos Irmãos Marx, e último para a Paramount, seria talvez o ponto mais alto da sua fase mais anárquica, antes de se deixarem formatar um pouco na Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), para onde se mudariam de seguida. Realizado pelo especialista em comédia, Leo McCarey, veterano do burlesco mudo (onde trabalhara com a dupla Laurel & Hardy – Bucha e Estica – nas produções de Hal Roach) e presentemente na screwball comedy, (por exemplo realizando Com a Verdade me Enganas/The Awful Truth (1937), que lhe valeu inclusivamente um Oscar, Os Grandes Aldrabões afastava-se já dos filmes iniciais dos Marx, que eram adaptações ao grande ecrã de teatros de revista, onde números musicais se intercalavam com gags humorísticos, geralmente sem grande consistência narrativa.
intencionado, que tira a paciência a quem quer que seja, e Harpo e Chico a ajudar à confusão por entre réplicas e trocadilhos confrontacionais, mal entendidos fonéticos, acessos de raiva inusitados, e soluções de puro absurdo e surrealismo. Momentos de génio são a sequência do tribunal (onde Groucho acaba a defender Chico, o réu que ele próprio ali levara); as tentativas de Groucho ser transportado por Harpo; a sequência dos vendedores de rua, com o brilhante gag dos chapéus, onde Chico e Harpo enfrentam o antigo actor de burlesco Edgar Kennedy (estrela dos Keystone Cops de Mack Sennett); a divertida sequência do espelho, com Chico e Harpo, disfarçados de Groucho, acabando numa imitação de gestos num pretenso espelho, que lembra Max Linder em Sete Anos de Pouca Sorte/Seven Years Bad Luck (1921); e, claro, a sequência da guerra, com Groucho vestindo uniformes diferentes de cena para cena, Chico a mudar de lado só porque a comida é melhor, e Harpo vestido de homem-sanduíche com o cartaz «Join the army and see the navy», acabando tudo numa guerra de fruta.
Escrito propositadamente para cinema, Os Grandes Aldrabões demonstra um maior cuidado narrativo. Nele somos levados a conhecer a história de Freedonia, um país fictício, onde uma crise financeira leva a aristocracia a ceder à pressão da sua mais benemérita representante, a milionária Mrs. Teasdale (Margaret Dumont) que doará a sua fortuna, se for nomeado para presidente um homem em quem confia, Rufus T. Firefly (Groucho Marx). O novo presidente vai revelar, no entanto, mais interesse em cortejar a sua mecenas, que em preocupar-se em salvar o país, o que vai colidir com as aspirações do embaixador do país vizinho Sylvania (Louis Calhern), que depois de várias humilhações sofridas, decide partir para a guerra.
O resultado é um humor caótico, onde nenhum personagem está a salvo, e todas as convenções e tabus são motivo para comédia. Esta é temperada com a componente musical, onde temos sequências de enorme coreografia, com corpos de bailarinas e coros a ajudar nas diferentes partes. Um pequeno desapontamento é o papel de Zeppo, aqui menos proeminente que nos filmes anteriores, onde chegou a ser protagonista no arco romântico da narrativa. Depois deste filme, Zeppo deixaria o cinema, e a troupe de irmãos passaria a um trio, que, na MGM faria os seus títulos mais famosos de sempre.
Sem grande preocupação em estabelecer uma parábola credível, Os Grandes Aldrabões usa a ideia de um ditador arbitrário como recurso cómico, com os restantes Marx como espiões desastrados que não sabem bem para que lado trabalham. Como não podia deixar de ser, o filme torna-se um carrossel de números delirantes, de acção e diálogos descontrolados, com Groucho como o habitual charlatão, bem67
TEAM AMERICA: WORLD POLICE
Título nacional: Team America: Polícia Mundial Realização: Trey Parker Elenco: Trey Parker, Matt Stone, Elle Russ Ano: 2004
SARA GALVÃO
Nos “saudosos” tempos da administração Bush, os criadores de South Park fizeram um filme com marionetas que celebra o espírito americano de se envolver em todo e qualquer conflito mundial para salvar a Democracia e baixar os preços da gasolina nos EUA.
de Bush, em particular, ou o governo americano em geral, continua assustadoramente actual. O retrato dos terroristas como claramente “maus da fita”, com musiquinha de fundo à la Homeland, pouco ou nada mudou, com o acrescento que o início do filme em Paris seria considerado de profundo mau gosto nos dias que correm, assim como o desprezo pelos liberais, que aparecem retratados como tão ou mais extremistas que os terroristas (e se era possível ler tal como sátira em 2004, hoje é uma paródia facilmente associável ao movimento #feelthebern, aos discursos de Meryl Streep e a Alex Baldwin).
Gary Johnson, actor poliglota, é recrutado pela Team America para infiltrar uma célula terrorista no Médio Oriente e descobrir para onde estão a ir as Armas de Destruição Maciça. Mas quando a equipa de forças especiais é incapaz de prevenir um ataque no canal do Panamá, o mundo inteiro incluindo Gary - vira-se contra eles. Entretanto, na Coreia do Norte, Kim Jong Il prepara um espectáculo para a Paz, com a presença de líderes mundiais e actores de renome.
Com as melhores músicas de sempre - Pearl Arbour Sucks, Freedom Isn’t Free e o novo hino America… Fuck Yeah!, Team America é uma comédia obrigatória, perspectivas políticas à parte, nem que seja só pela cena de sexo entre marionetas mais explícita de sempre.
Nada é mais estranho do que revisitar Team America nos tempos que correm. O filme, que evita propositadamente mencionar o nome
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BANANAS
THE INTERVIEW
ANTÓNIO ARAÚJO
PEDRO SOARES
Bananas é a terceira longa-metragem realizada por Woody Allen, se contarmos com a brincadeira experimental de estreia Que Há de Novo Gatinha. Traduzindo para o cinema a persona de intelectual irritado, desajeitado e inseguro do seu humor de stand-up, Allen faz uma rara incursão à América Latina onde se vê envolvido num conflito armado de uma pequena «república das bananas» ficcional, San Marcos. Fielding Mellish quer impressionar a ativista social Nancy, interpretada por Louise Lasser. Ao viajar para San Marcos é ameaçado pelos militares e acaba salvo pelos revolucionários. A sua personalidade trapalhona não o impede de chegar à liderança do grupo nem, quando estes são bem-sucedidos, à liderança do pequeno país latino. Bananas é uma sátira hilariante da fase da carreira de Allen que nos deu títulos como O ABC do Amor, O Herói do Ano 2000 e Nem Guerra, Nem Paz.
Em 2014 a Coreia do Norte fez um (pseudo) ataque informático à Sony que fez com que The Interview tivesse a menos ortodoxa campanha publicitária de sempre. Se essa história foi plantada ou não nunca o saberemos, mas o que é certo é que muito boa gente foi ver um filme que em situações normais nem lhe tocaria com um pau de 15 metros. The Interview tem relativa graça e não é tão stoner como outras comédias de Seth Rogen e James Franco. O melhor do filme nem sequer é a caricatura de Kim Jong-Il, mas o início com Eminem e Rob Lowe a fazerem de si próprios a assumirem que são gay e careca respectivamente. A partir daqui é o que se sabe: Rogen e Franco vão entrevistar o líder da Coreia do Norte, com uma série de subplots que tentam se esforçar a sério, uma piada que já ninguém se lembra que confunde Stallone com Estaline e a música de Katy Perry a fazerem furor.
Título nacional: Bananas (1971)
Título nacional: Uma Entrevista de Loucos (2014)
Realização: Woody Allen
Realização: Evan Goldberg, Seth Rogen
Elenco: Woody Allen, Louise Lasser, Carlos Montalbán
Elenco: James Franco, Seth Rogen, Randall Park
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V de Vinganรงa, 2005
TEORIAS DA DITADURA ANTÓNIO ARAÚJO
Em 1887, o historiador, político e escritor britânico John Emerich Edward Dalberg Acton escreveu numa carta ao bispo Mandell Creighton que "o poder tem tendência a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Homens grandiosos são quase sempre homens ruins." Lord Acton, como era conhecido, não foi a primeira pessoa a exprimir o pensamento, ou variantes do mesmo, mas foi quem, pedindo emprestadas as palavras de outros, melhor exprimiu a ideia. Karl Marx, o filósofo alemão autor de Manifesto Comunista, percebeu que a história das sociedades se traduzia na história da luta de classes e escreveu em 1852, em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, que "a história repete-se, primeiro como tragédia, depois como farsa." Gostaríamos de acreditar que temos a capacidade de olhar o passado e aprender com os seus ensinamentos. Não só através dos relatos e das provas visuais, como pelas sábias palavras de homens extraordinários, fruto da sua reflexão sobre o mundo que partilhamos e onde temos muito em comum, por vezes apenas separados pela distância temporal. Hoje, mais que nunca, importa preservar a memória e os valores daquela qualidade intangível, mas serenamente reconhecível, que faz de nós humanos. O conformismo é o primeiro sinal da decadência a que o Homem se sujeita voluntariamente e a ignorância é a gasolina que alimenta violentamente a submissão das maiorias entorpecidas à vontade das minorias gananciosas.
Que maior tesouro temos que a arte como a nossa fonte de iluminação perante a névoa difusa da ameaça da soberba dos líderes mundiais, para enfrentar tanto os déspotas desavergonhados, como aqueles que o são de forma traiçoeira e dissimulada? A literatura e o cinema, desde que este existe, sempre deram as mãos numa simbiose criativa que, felizmente, nunca descurou reflectir o medo e expor as injustiças inerentes aos mais variados abusos de poder. Sobretudo na forma de ficção-científica ou fantasia, desenhando distopias assustadoramente prescientes e, muitas vezes, terrivelmente certeiras nos seus retratos inteligentes do contexto político-social em que eram produzidas. Metrópolis (Fritz Lang, 1929) é um dos primeiros títulos cinematográficos de ficção-científica a representar uma realidade distópica onde a sociedade se divide entre industriais riquíssimos que vivem em arranha-céus de luxo e trabalhadores subterrâneos que trabalham dia-e-noite para manter as máquinas que fornecem energia à cidade e qualidade de vida aos mais afortunados. Ainda hoje continua a ser uma das referências maiores de uma visão pessimista da revolução industrial, do seu papel na desumanização das sociedades e no agravar do fosso entre os que têm tudo e os que não têm nada. Esta preocupação com a progressiva mecanização dos processos de produção, e o subsequente obsoletismo da perícia humana, é também reflectida mais tarde em Tempos Modernos (Modern Times, Charles 71
Chaplin, 1936) onde o realizador interpreta um operário numa fábrica industrial que, aliada ao ritmo implacável das tarefas repetitivas, conseguiu mecanizar o almoço dos seus empregados para uma maior eficácia das suas linhas de produção. Metrópolis tinha sido acusado de propagar mensagens comunistas e em Tempos Modernos a personagem principal era preso por ser confundido com um instigador do mesmo inimigo mortal do capitalismo, sistema que começava a engordar na peugada da revolução industrial. Em 1949, na ressaca da Segunda Guerra Mundial, o escritor britânico George Orwell destila temas como nacionalismo, censura e vigilância em 1984 (Nineteen Eighty-Four), a obra que faz nascer o termo Big Brother e que teria duas adaptações importantes ao cinema — em 1956, pela mão de Michael Anderson, com Edmond O’Brien no principal papel; e em 1984, numa versão oportuna de Michael Radford, com John Hurt como o protagonista principal Winston Smith. Orwell constrói uma distopia tenebrosa onde a tirania do poder não tem rosto e o pensamento individual é perseguido pelo governo. O Ministério da Verdade tem como objectivo o obscurecimento da mesma sendo responsável pelo revisionismo histórico que mantém o estado das coisas. São a desinformação e o engano que dão força e coesão ao estado totalitário. 1984 é uma obra com um impacto cultural imensurável e as suas ramificações podem ser encontradas directa ou indirectamente em títulos como Grau de Destruição
Metrópolis, 1929 72
(Farenheit 451, François Truffaut, 1966) — também uma adaptação da obra literária do mesmo nome de Ray Bradbury; THX 1138 (George Lucas, 1971); Brazil: O Outro Lado do Sonho (Brazil, Terry Gilliam, 1985); V de Vingança (V for Vendetta, James McTeigue, 2005). O sonho utópico de melhorar o ser humano tem sido também uma constante do cinema admonitório. Este olhar ansioso em frente produziu inevitavelmente obras de antecipação científica e de fantasia futurista, encabeçadas pela controversa Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, Stanley Kubrick, 1971). Adaptada por um dos nomes mais consagrados do cinema do século XX a partir de um romance de Anthony Burgess, Laranja Mecânica traça uma visão (mais uma vez) distópica onde a delinquência juvenil é encarada pelo governo como uma doença que pode ser curada através do condicionamento comportamental. A ironia revela-se mais tarde quando o indivíduo "curado" é, ele próprio, vítima da sociedade "normal" que padece dos mesmos vícios e defeitos. Em Fuga no Século XXIII (Logan’s Run, Michael Anderson, 1976), o equilíbrio aparentemente perfeito da população humana é mantido através da implementação de um prazo de vida único para toda a população. No seu trigésimo aniversário, todas as pessoas devem-se submeter a uma cerimónia que não é mais que um suicídio ritualista involuntário em massa. Esta submissão assenta na crença que este é um ritual de purificação e renascimento, o que permite uma vivência pacífica, descontraída e
Laranja Mecânica, 1971 73
Os Filhos do Homem, 2006
O Exterminador Implacável, 1984
hedonista. Gattaca (Andrew Niccol, 1997) recupera o tema do controlo e da discriminação populacional, desta vez centrando-se na eugenia. Numa sociedade onde as crianças são concebidas através de manipulação genética para garantir que possuem os melhores traços hereditários dos seus pais, quem nasce através do método tradicional é considerado inferior e é relegado ao papel pré-determinado pela sociedade em função da qualidade dos seus genes. O conforto da distância temporal promovida por estes títulos não impede que os conceitos neles explorados sejam insidiosamente verosímeis. Há, no entanto, obras que não descartam a possibilidade de os mais terríveis atropelos estarem à espreita ao virar da esquina e apresentam visões deprimentes, por vezes de uma perversa banalidade, das potenciais consequências da corrupção moral do poder instituído, ou até mesmo de como as frágeis sociedades actuais podem sucumbir facilmente perante eventos extraordinários. Os Filhos do Homem (Children of Men, Alfonso Cuarón, 2006), baseado no romance de P. D. James, é uma ficção extremamente realista que prognostica o caos em que a humanidade pode mergulhar quando uma verdade dada como adquirida é contrariada. Num mundo onde o Homem ficou infértil, os privilegiados constroem barreiras para se protegerem da violência provocada pelas opressivas leis de imigração do Reino Unido, um dos últimos governos em funcionamento. O realismo de Cuarón é tal que não espantaria se víssemos imagens
de Os Filhos do Homem na televisão e as confundíssemos com um bloco noticioso sobre campos de refugiados esquecidos num qualquer país europeu. Recuperando o tema da manipulação genética, neste caso de uma forma mais subtil, está Nunca Me Deixes (Never Let Me Go, Mark Romanek, 2010). Adaptado por Alex Garland — realizador de Ex-Machina (2014) — a partir de um romance de Kazuo Ishiguro, Nunca Me Deixes tece uma narrativa delicada que aparenta ser um triângulo amoroso adolescente, mas que se vai revelando como uma cortante tragédia onde os dilemas políticos e sociais são ignorados para nos focarmos em questões de identidade, de ambiguidade moral e das fronteiras éticas do que constitui a dignidade humana. É um excelente retrato intimo e interior dos efeitos desumanizadores da máquina governativa em nome do progresso e de um bem maior. No entanto nem todas as obras optam pela subtileza. Em O Exterminador Implacável (The Terminator, James Cameron, 1984) é a ameaça mecânica que já estava presente no princípio do século que toma consciência e, inevitavelmente, o poder. O seu objectivo é claro e directo — acabar com a raça humana. Hollywood deixou-se fascinar pelos seres cibernéticos e continuou a produzir visões infernais de possíveis futuros controlados por governos totalitários onde homem e máquina se fundem ao serviço do poder instituído — Robocop - O Polícia do Futuro (Robocop, Paul Verhoe74
Eles Vivem, 1988 ven, 1987) —, ou onde são as próprias máquinas a subjugar os humanos construindo uma visão artificial da realidade suficientemente conformista para que este a possa aceitar — Matrix (The Matrix, The Wachowski Brothers, 1999). Por vezes a ameaça não é externa — vem de dentro. Em tempos incertos, um dos trunfos do aparelho de estado é o levantamento da suspeição. A incerteza alimenta a paranoia e nessa altura a ameaça pode já estar entre nós. Tanto o vizinho como o médico podem não ser quem aparentam. Ou mesmo o político na televisão. Assim nasceu A Terra em Perigo (Invasion of the Body Snatchers, Don Siegel, 1956), reflectindo o medo da ameaça comunista em plena guerra fria, bem como o remake A Invasão dos Violadores (Invasion of the Body Snatchers, Philip Kaufman, 1978), numa reação a um certo mal-estar e desencantamento que se vivia na década de setenta, ainda de luto pelo espírito paz & amor da década anterior. Em Eles Vivem (They Live, John Carpenter, 1988) o mestre do terror reagia à década dominada pelas políticas de Ronald Reagan e pelo florescer de uma sociedade materialista, deixando-nos uma mensagem inequívoca. O inimigo está entre nós, controla o governo e os meios de comunicação social, e pretende apenas uma coisa — a nossa submissão total por via do conformismo e do consumo. Outro grande trunfo dos governos totalitários são os meios de comunicação. Não só com o seu contributo para a desinformação do povo, mas
também no providenciar de entretenimento como bálsamo de apaziguamento social. Ainda estão para aparecer os grandes títulos que vão lidar com a herança das primeiras décadas de vida da internet e das redes sociais, mas no que respeita à televisão e ao desporto existem exemplos suficientes. E quase todos eles partilham a mesma visão do que será o derradeiro destino deste tipo de entretenimento: violência e morte. Corrida da Morte no Ano 2000 (Death Race 2000, Paul Bartel, 1975) é uma produção de Roger Corman onde Sylvester Stallone se vê envolvido numa corrida automóvel mortífera que funciona como uma crítica muito pouco subtil ao estilo de vida americano. Em Rollerball - Os Gladiadores do Século XXI (Rollerball, Norman Jewison, 1975) James Caan procura a liberdade individual e ameaça o controlo corporativo que promove um violento desporto de controlo de massas. O Gladiador (The Running Man, Paul Michael Glaser, 1987) adapta um livro de Richard Bachman, um pseudónimo de Stephen King, e coloca Arnold Schwarzenegger em pleno programa televisivo onde os concorrentes têm de literalmente correr para salvar a vida, numa combinação extrema de opressão governamental e reality TV. A Batalha Real (Batoru rowaiaru, Kinji Fukasaku, 2000) é um polémico filme japonês onde uma turma de estudantes do 9º ano lectivo são colocados pelo governo numa ilha remota e, ao longo de três dias, forçados a matarem-se mutuamente. Incrivelmente esta premissa violenta deu 75
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origem a uma série de livros juvenis sucedâneos no mercado ocidental, sendo que o mais popular é também o que bebe as suas inspirações de forma mais directa, tendo dado origem ao fenómeno The Hunger Games: Os Jogos da Fome (The Hunger Games, Gary Ross, 2012). Este título apropria-se de uma série de inspirações de pendor distópico — governo totalitário, opressão, anulação da individualidade, divisão da sociedade entre ricos e pobres, programa de televisão como instrumento de medo e de controlo de massas —para construir um produto algo descartável de entretenimento juvenil. É caso para dizer que as histórias repetem-se para que a História não se repita. Desde cedo o cinema exprimiu as suas ansiedades alimentadas, não pela destravada imaginação dos seus autores, mas pelos acontecimentos reais do dia-a-dia. Todos os sistemas são falíveis pois todos, sem excepção, dependem do Homem. Para o bem e para o mal é com a nossa natureza que temos de lidar, mas o caminho da intolerância e da ignorância nunca levou a bom porto. Que não haja equívocos, a nossa vez chegará ao fim no dia em que perdermos a liberdade. Liberdade para ler, para escrever, para falar, para opinar, para amar, para sonhar. Nem que os sonhos se transformem em pesadelos futuristas que, tal como um espelho, nos reflectem de volta os demónios que apenas vislumbramos pelo canto do olho e que aguardam ansiosamente para saltar das sombras. Matrix, 1999 77
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FAHRENHEIT 451
Título nacional: Grau de Destruição Realização: François Truffaut Elenco: Oskar Werner, Julie Christie, Cyril Cusack Ano: 1966
ANTÓNIO ARAÚJO
Fahrenheit 451 é um livro de Ray Bradbury publicado em 1953. O autor escreveu o romance por causa de suas preocupações durante a era de Joseph McCarthy. As perseguições a artistas e pessoas criativas pelo Comité de Investigação de Atividades Antiamericanas do Senado dos Estados Unidos expuseram um governo persecutório que chegou a ameaçar com queimas de livros, o que enfureceu o escritor. Estas preocupações levaram-no a refletir sobre a destruição da biblioteca de Alexandria e a vulnerabilidade dos livros, sobre o conceito de censura e supressão de ideias dissidentes, através da destruição de obras, como fizeram os Nazis, ou a perseguição e execução de escritores, como a política de repressão de Estaline. Complementado com a ameaça nuclear da Guerra Fria e com a transição da era dourada da rádio para a era dourada da televisão, meios de comunicação que o escritor via como ameaças ao interesse na leitura de literatura, estavam reunidos os ingredientes para o romance que apresenta uma sociedade americana futurista onde os livros são proibidos e existem «bombeiros» para queimar qualquer exemplar que encontrem. François Truffaut aceitou adaptar em 1966 Fahrenheit 451, que entre nós teve o título Grau de Destruição, naquela que foi a primeira produção europeia da Universal Pictures. Este foi o seu primeiro filme a cores e o seu primeiro – e único – filme em inglês, apesar de virtualmente não falar a língua. Com fotografia do mítico Nicolas Roeg, mais tarde também realizador, e música do veterano Bernard Herrmann, tem ainda a particularidade de contar com um genérico inicial falado, ao invés do habitual texto no ecrã.
lendo-os em segredo. Isto gera um conflito com a sua mulher Linda – outra vez Christie – mais preocupada com a sua popularidade e com a oportunidade de se tornar um membro da Família, um célebre programa de televisão interativo. Grau de Destruição é um produto exemplar de ficção científica admonitória. A alegoria de uma sociedade distópica onde o aparelho estatal criminalizou a leitura é o reflexo da relação da sociedade moderna com os materiais de leitura à sua disposição, tão acessíveis como ignorados. A riqueza do espólio legado ao longo de séculos de escrita por geniais autores começava a ser preterida em favor da televisão, invenção relativamente moderna nas décadas de cinquenta e sessenta. Montag, ao (re)descobrir a possibilidade de experimentar emoções raras através da leitura, percebe a ignomínia dos seus actos. A vacuidade da vivência diária é subitamente preenchida pela riqueza dos mundos que se abrem perante uma publicação. Em confronto com as amigas de Linda, acusa-as de se limitarem a viver como zombies. Bradbury e Truffaut encenam o pesadelo, ainda mais verosímil nos dias que correm, da sociedade perder o interesse na cultura para se perder no vazio intelectual da televisão – e mais tarde da internet – e da popularidade efémera. No fim, o que realmente interessa é o conhecimento. O saber e a experiência acumulados nas histórias e textos impressos para a posteridade também podem ser passados de geração em geração através da oralidade. Mesmo que se proíbam os livros os seus mistérios e encantos podem ser aprendidos por alguém para que o possa passar aos outros, o Homem como um livro em si mesmo. Grau de Destruição é, desta forma, um filme admonitório mas optimista. Enquanto a humanidade perdurar, a possibilidade do pior e esperança no melhor permanecem permanentemente de mãos dadas num tremido equilíbrio.
Guy Montag – interpretado pelo austríaco Oskar Werner – é um «bombeiro» que, ao ser questionado pela vizinha Clarisse – numa de duas personagens interpretadas por Julie Christie – se alguma vez lê algum dos textos que queima vê a sua curiosidade aguçada pela pergunta. Impelido por esta indiscrição começa a levar livros para casa, 79
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V FOR VENDETTA
Título nacional: V de Vingança Realização: James McTeigue Elenco: Natalie Portman, Hugo Weaving, John Hurt, Stephen Rea, Stephen Fry Ano: 2005
JOSÉ CARLOS MALTEZ
Em 1605, Guy Fawkes foi apanhado quando tentava fazer explodir a House of Lords, numa conspiração que lutava para repor um monarca católico no trono de Inglaterra. Fawkes foi depois torturado, enforcado e o seu corpo mutilado publicamente, tornando-se o seu nome sinónimo de traição, sendo comemorada a sua morte no dia 5 de Novembro (o dia da Gunpowder Treason), onde a sua efígie é queimada festivamente. Isto até, graças à novela gráfica V for Vendetta, escrita por Alan Moore e desenhada por David Lloyd, publicada em 1982 pela DC Comics, o nome e efígie de Guy Fawkes passarem a ter outro significado - o de um romântico lutador pela liberdade, de tempos obscuros, denegrido como terrorista pelo marketing político dos tempos vindouros. É daí que parte o filme V de Vingança, de James McTeigue, escrito pelos irmãos Wachoswski, cuja história se passa num futuro alternativo, onde a Grã-Bretanha é dominada por um regime neofascista, personificado pela pessoa do chanceler Sutler (John Hurt), e que terá nascido como resposta nacionalista a guerras e catástrofes biológicas que alteraram o equilíbrio mundial. É uma realidade de forte vigilância policial, controlo do pensamento e comportamentos, homofobia, xenofobia, repressão religiosa, e controlo da informação, com transmissões televisivas sempre presentes, onde as palavras de ordem e manipulação da realidade são constantes. Contra este estado das coisas, chamando-o frontalmente de totalitário e abusivo, levanta-se o incógnito V (Hugo Weaving) que, ressuscitando os ideais de Fawkes, vai provocar o regime numa série de atentados espectaculares, com vista a acordar a consciência do país, culminando também ele com a explosão do Parlamento. Pelo caminho vai recrutar, acidentalmente, a jovem Evey Hammond (Natalie Portman), que vai fazer uma viagem interior, de frágil presa do regime a temerária revolucionária, através da qual somos levados a conhecer a história e planos de V. Com uma Natalie Portman capaz de nos transportar na sua viagem alucinante por entre estados de espírito extremos, e um Hugo Weaving
de quem nunca vemos o rosto, mas nos prende pela força da sua voz, V de Vingança foi elogiado pela sua coragem temática, e denegrido por aqueles que nele viram um branqueamento do terrorismo. A ideia de anarquismo, subjacente ao filme, inspira ainda hoje grupos como os hackers Anonymous, e a máscara de Fawkes desenhada por David Lloyd tornou-se um símbolo icónico, passando a ser usada em manifestações internacionais anti-globalização e instituições financeiras. Com uma acção coreografada, derivada do mundo das novelas gráficas, um design visual arrojado que faz uso da noite, da sombra e dos espaços subterrâneos, com um piscar de olhos à estética expressionista, a história de V tem paralelos com a de O Fantasma da Ópera, de Gaston Leroux, onde também se estabelece uma relação (subliminarmente amorosa) mentor-protegida, da parte de um homem mascarado, que vive num mundo escondido, manipulando a sua discípula de formas psicologicamente ambíguas. Outra influência é a seminal obra de Alexandre Dumas O Conde de Monte Cristo, pela queda e renascimento do herói que passa de vítima a vingador. No final, num filme que, tal como Evey diz do seu pai, tenta contar verdades usando mentiras (a ficção), por entre a magnificência das explosões ao som da marcha «1812» de Tchaikovsky, ficam a retórica acutilante de V, e as ideias. As tais ideias às quais o uso da máscara confere uma universalidade para lá do homem que as profere. Por entre ambiguidades éticas fica no ar a pergunta sobre o que separa liberdade e terrorismo, e até onde é legítimo ir para nos libertarmos do que nos oprime. Questões cada vez mais actuais, já que, como Evey nos diz, ao contrário do homem por detrás delas, as ideias não amam.
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THE CHILDHOOD OF A LEADER
Título nacional: A Infância de um Líder Realização: Brady Corbet Elenco: Bérénice Bejo, Liam Cunningham, Stacy Martin Ano: 2015
DIANA MARTINS
A Infância de um Líder é a história, um tanto arrepiante, um tanto fascinante, baseada no conto homónimo de Jean-Paul Sarte de 1939, com o mesmo nome. Através dos olhos de um jovem rapaz americano, Prescott, começamos a vislumbrar as origens do Mal. Relembrando que estamos em 1918, em França, o filme trata subtilmente a ascensão do fascimo no século XX. O jovem Prescott, uma criança observadora e exploradora, segue os movimentos do seu pai, que trabalha para o governo dos Estados Unidos, aquando da criação do Tratado do Versalhes, acordo de paz assinado pelas potências europeias que encerrou oficialmente a Primeira Guerra Mundial.
acarinhado pela mãe e incompreendido pelo pai, vítima de uma sociedade - e infância - que não surge como sua. Brady Corbet tem aqui a sua estreia na realização, trazendo-nos uma obra sólida e gélida, repleta de cinzentos e azuis, belos e tristes. Com um trabalho de ator prévio consolidado e conjunto com grandes nomes como Lars Von Trier, Olivier Assayas ou Michael Haneke, Corbet teve a ousadia de nos mostrar a emergência do mal, sobre o prisma de um olhar de um criança, e a emergência de uma alegoria para a infância de muitos dos grandes ditadores do século XX. Também a música de Scott Walker nos transporta para um universo trágico e marcante, impondo cadência e sentido de urgência à narrativa. A palavra melancolia ou trevas é a que impera, no fim do filme. Tristes e belas. Entre o génio e a loucura.
Com a curiosidade típica de uma criança, o jovem Prescott acaba por testemunhar ambientes de adultos – frios e fatídicos – que lhe moldam a personalidade, ideais e sentimentos. Na verdade, este é um jovem pouco
82
BRAZIL
THE HUNGER GAMES
ANTÓNIO ARAÚJO
PEDRO MIGUEL FERNANDES
Este é o ponto alto da carreira do criativo Terry Gilliam. Influenciado por 1984 de George Orwell, Brazil é uma sátira distópica onde um governo totalitário exerce o controlo dos seus cidadãos através de um inacreditável excesso de burocracia e do apelo ao consumismo. O universo do filme assenta num conjunto de máquinas e sistemas antiquados que lhe oferece uma vertente de comédia slapstick onde brilham nomes como Robert De Niro, Bob Hoskins e Michael Palin. No centro deste pesadelo está Jonathan Pryce como Sam, um funcionário do estado de baixa patente que sonha com a possibilidade de se libertar da realidade deprimente da sua existência na companhia de Jill, a sua mulher de sonho, encarnada por Kim Greist. Entretanto o destino de Sam varia radicalmente em função da versão do filme que se vê: se tem um final feliz, infelizmente, vimos a versão errada.
The Hunger Games: Os Jogos da Fome é o primeiro capítulo de uma trilogia que retrata a distopia de Panem, uma federação fictícia onde todos os anos os estados membros têm de oferecer dois jovens, um de cada sexo, para competirem nos denominados Jogos da Fome, uma competição televisiva de luta até à morte onde apenas um pode sair vitorioso. Bastante semelhante à banda desenhada japonesa Battle Royale (que por sua vez deu origem a um polémico filme de culto), esta primeira parte dá a conhecer a heroína Katniss Everdeen e as suas origens. Feito a pensar num público jovem, The Hunger Games: Os Jogos da Fome tem o mérito de apresentar uma distopia a este público, mas como um todo acaba por falhar, sobretudo graças a uma montagem por vezes mais desconcertante do que cativante.
Título nacional: Brazil: O Outro Lado do Sonho (1985)
Título nacional: The Hunger Games: Os Jogos da Fome (2012)
Realização: Terry Gilliam
Realização: Gary Ross
Elenco: Jonathan Pryce, Kim Greist, Robert De Niro, Bob Hoskins, Michael Palin
Elenco: Jennifer Lawrence, Josh Hutcherson, Liam Hemsworth
83
intelectual - não deixa o espectador respirar. Não há momentos na série que sejam desprovidos de tensão - o que se torna emocionalmente cansativo e torna a série não recomendável a quem queira apenas espairecer com um conteúdo ligeiro antes de ir dormir. Afinal, estamos a falar de algo produzido pelo tipo que nos deu Blade Runner e criado pelo fulano dos Ficheiros Secretos - e escrito por um dos pais da chamada hard sci-fi.
Título nacional: O Homem do Castelo Alto Realização: Franz Spotnitz (criação) Elenco: Rupert Evans, Alexa Davalos, Rufus Sewell Ano: 2015 -
Mesmo a cinematografia - nomeada e galardoada em diversas ocasiões - é pesada, estilosa e sombria, numa mistura de anos 50 com expressionismo alemão, extrema atenção ao detalhe (nada foi deixado ao acaso na criação deste universo alternativo), e se as cenas na “nossa” realidade e nos Estados Japoneses deixam entrar algum sol e cor, a maioria da paleta de cores está nos cinza e verdes musgosos, com o vermelho algo esbatido das suásticas a saltar facilmente ao olhar. Claro está, o estilo da série grita mais forte logo nos créditos iniciais, que valem por si mesmos - os mapas pós-guerra, ícones americanos destruídos ou “conspurcados” por iconologia nazi, com Edelweiss de fundo - uma famosa canção “austríaca” que foi, de facto, criada para o filme Música no Coração (1966, Robert Wise), e que termina nas palavras irónicas “Bless my homeland forever” (“abençoa a minha nação, para sempre”). Mas o ponto forte de O Homem do Castelo Alto são mesmo os actores. Com personagens incrivelmente complexas, difícil seria não fazer um bom trabalho, mas é impossível não destacar duas performances em particular: Cary-Hiroyuki Tagawa, que interpreta o ambíguo Nobusuke Tagomi, e que viaja entre realidades, e o soberbo Rufus Sewell como Obergruppenführer John Smith, o Nazi “mauzão”, puppetmaster de vários destinos (incluindo das personagens principais Joe Blake e Juliana Crain, interpretados, respectivamente, por Rupert Evans e Alexa Davalos), que consegue inspirar simpatia na audiência pela sua complexa humanidade (sobretudo na segunda temporada, onde tem de decidir entre lealdade ao Reich e a sua própria família).
THE MAN IN THE HIGH CASTLE SARA GALVÃO
Baseado no livro homónimo de Philip K Dick, O Homem do Castelo Alto conta a história de o que teria acontecido se os Poderes do Eixo tivessem ganho a Segunda Guerra Mundial. Num mundo dividido entre o GrandeReich Nazi e os Estados Pacíficos Japoneses, misteriosas bobines de filme - produzidas (ou recolhidas) pelo misterioso Homem do Castelo Alto - mostram várias realidades alternativas, bastante diferentes entre si, incluindo a nossa… O projecto esteve vários anos na gaveta, e passou por diferentes formatos antes de chegar à sua forma actual. Em 2010, Ridley Scott (um dos presentes produtores) estava a tentar lançá-lo como uma mini-série em quatro partes com a BBC; em 2013 Franz Spotnitz junta-se à equipa e leva-o, com Scott, à SyFy; e em 2014, a Amazon, no âmbito de um programa de desenvolvimento de conteúdos originais, filma o episódio piloto que, em Outubro 2015, quando lançado, se torna no conteúdo mais visto até à data no website. Resultado? Duas temporadas de dez episódios cada e uma terceira já anunciada.
Com uma narrativa que brinca com a ideia de efeito borboleta na História, numa primeira temporada mais densa, e uma segunda que “arrebita” e começa a responder a algumas das muitas questões que ainda povoam o universo, O Homem do Castelo Alto não é para todos os gostos, mas é de uma inegável qualidade que merece a atenção daqueles que procuram algo mais que escapismo na pequena caixa da sala de estar. Quando a distopia parece estar na berra - vide a estreia recente de The Handmaid’s Tale - lembrarmo-nos que a presente realidade não é a única possível parece ser a melhor maneira para não nos deixarmos ir para onde não queremos estar.
O Homem do Castelo Alto tem, logo à partida, uma grande desvantagem em relação a outras séries - não é facilmente digerível, logo não é recomendado o binge de fim-de-semana que serve tão bem a outros conteúdos. Isto porque tanto na temática como no estilo - moroso, 85
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