Take 33

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MÁFIA

TAKE.COM.PT | ANO 6 | NÚMERO 33


SAY HELLO TO OUR LITTLE MAGAZINE CARLOS REIS

Caro leitor, vamos-lhe fazer uma proposta que não pode recusar: uma edição minimalista sobre organizações criminosas no cinema e na televisão, com especial enfoque na Máfia. Porque, desde que nos conseguimos lembrar, sempre quisemos ser uns gangsters neste nosso meio. Não, não somos tão rijos como queríamos - desta vez não conseguimos, por exemplo, entrevistas de relevo para abrilhantar a patifaria que aqui vai - mas ainda assim acreditamos ter orquestrado um crime suficientemente complexo para suscitar o interesse destes detectives cinéfilos que nos acompanham regularmente. Não compensamos pecados na igreja mas sim na redacção, pelo que tentámos não deixar de fora os mais óbvios - de Bogart a De Niro, dos Corleones aos Sopranos. Mas visitámos também os criminosos mais ofuscados, os de leste e os do sol nascente, os que fazem rir e os que só se entendem (ou desentendem) em italiano. Goste-se ou não, nós dizemos o que queremos e fazemos o que dizemos. E, no meio de tanta citação infame que foi recriada neste editorial, aqui vem a dor: toca a mudar o chip e preparar não só a quarta edição dos TCN Blog Awards, como a próxima revista (Janeiro 2014). Gostavam de ver a Take abordar um tema em específico do vosso agrado? Disparem sugestões na nossa página do Facebook.



ARTIGOS

ANTEVISÕES

02 Say hello to our little magazine . editorial 06 Aprender a ser mafioso em 15 filmes 24 Loucos anos 30 26 Uma história de gangsters em Hollywood 30 Gangsters à solta em Hollywood 50 Mafiosos... mas pouco 56 Robert De Niro - O gangster com método 62 La bella mafia 68 Trilogia O Padrinho 76 A máfia que veio de leste 82 Quem se yakusa? 92 Os verdadeiros gangsters de Cassavetes 94 O gangster de chapéu e comando 98 The Sopranos

61 Malavita

CRÍTICAS 08 The public enemy 09 Scarface (1932) 10 The roaring twenties 11 On the waterfront 12 The Valachi papers 13 Scarface (1983) 14 Once upon a time in America 15 The untouchables 16 Goodfellas 17 Miller's crossing 18 Casino 19 Donnie Brasco 20 Road to Perdition 21 The departed 22 Eastern promisses 51 Married to the mob 52 The freshman 53 My cousin Vinny

54 The whole nine yards 55 The crew 63 Le conseguenze dell’amore 64 Gomorrah 65 Il Divo 66 La siciliana ribelle 67 Una vita tranquilla 84 Tôkyô nagaremono 85 Gokudo no onna-tachi 86 Dip huet seung hung 87 Sonatine 88 Mou gaan dou 89 Dalkomhan insaeng 90 Hak se wui 91 Hak se wui yi wo wai kwai

Director José Soares. josesoares@take.com.pt Editor Carlos Reis. editor@take.com.pt Editor adjunto João Paulo Costa. editor.adj@take.com.pt Colaboraram nesta edição Aníbal Santiago. Carlos Reis. João Paulo Costa. Jorge Rodrigues. Miguel Ferreira. Pedro Miguel Fernandes. Pedro Soares. Sandra Gaspar. Sara Galvão. Tiago Silva. Xico Santos. Design José Soares. Imagens Arquivo Take. Alambique. Big Picture Films. Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. Clap Filmes. Columbia TriStar Warner Portugal. Costa do Castelo Filmes. Fox Portugal. Films 4 You. iStock. LNK Audiovisuais. Lanterna de Pedra Filmes. Leopardo Filmes. ZON Lusomundo Audiovisuais. Midas Filmes. Nitrato Filmes. Pris Audiovisuais. Sony Pictures Portugal. Universal Pictures Portugal. Valentim de Carvalho Multimédia. Vendetta Filmes. Imagem de capa Still do filme White Heat de Raoul Walsh

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Š Xico Santos



APRENDER A SER MAFIOSO EM 15 FILMES Esteja a treinar para uma peça de teatro, a pensar mudar de estilo de vida, a planear vingar-se do bully que lhe moeu o juízo na escola primária ou em limpar o canastro ao desgraçado do seu colega de trabalho que lhe roubou a namorada, então esta próxima secção cinematográfica é para si. Bem, verdade seja dita, basta-lhe ser um cinéfilo curioso com uma vida normalíssima para tirar o mesmo proveito; a Take escolheu quinze filmes fundamentais que lhe podem ajudar a explorar de forma mais eficaz o criminoso que há em si. Uma coisa é certa: nunca mais vai olhar para o porta-bagagens do seu carro da mesma forma.


THE PUBLIC ENEMY

Título nacional: O Inimigo Público Realização: William A. Wellman Elenco: James Cagney, Jean Harlow, Edward Woods

1931 ANÍBAL SANTIAGO

Realizado por William A. Wellman, The Public Enemy não é apenas mais um filme de gangsters estreado na década de 30, mas sim um dos mais felizes exemplares, dando a oportunidade de James Cagney ter uma interpretação electrizante e arrebatadora, enquanto o cineasta efectua uma representação intensa dos EUA em plena Lei Seca. Wellman procura explorar o violento mundo do crime e do tráfico de bebidas alcoólicas, mostrando um território dos EUA marcado pelas transgressões à lei, onde as autoridades pouco controlam e as guerras entre gangues adensam o ambiente de crispação. Essa violência surge exposta paradigmaticamente através de Tom (Cagney) e do seu amigo de infância Matt (Woods), com Wellman por vezes a parecer mostrar a sua simpatia pelo seu protagonista, um indivíduo revoltado com tudo e com todos, que desafia o sistema e não tem barreiras para alcançar algum estatuto e

dinheiro, embora nunca deixe de ser um gangster de baixo escalão. Tom é dinamite prestes a explodir, sendo capaz de esmagar meia toranja na cara de uma companheira, matar aqueles que o afrontem e falar a uma velocidade maior do que as balas que dispara, tendo na relação com a mãe um dos poucos momentos de humanidade. The Public Enemy raramente parece querer fazer uma crítica ao seu protagonista, pelo menos até à sua moralista mensagem final, que surge antecedida por um momento arrasador a nível emocional, daqueles que ficam gravados na memória e prometem não ser esquecidos. Com um argumento de grande nível e uma realização segura de William A. Wellman, The Public Enemy surge como um filme de gangsters de excelência, onde a violência e o crime permeiam os cenários e os seus personagens.

“Wellman procura explorar o violento mundo do crime e do tráfico de bebidas alcoólicas (...)”

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SCARFACE

Título nacional: Scarface, o Homem da Cicatriz Realização: Howard Hawks Elenco: Paul Muni, Ann Dvorak, George Raft

1932 PEDRO MIGUEL FERNANDES

Se há filme de gangsters que marcou o género no início da década de1930, muito provavelmente esse título terá de ser atribuído a Scarface, de Howard Hawks, produzido por Howard Hughes. Numa altura em que a Sétima Arte ainda se estava a habituar ao som, que tinha chegado ao Cinema poucos anos antes, esta obra-prima de Hawks foi das primeiras a utilizar da melhor forma este novo recurso. E nada melhor para fazer bom uso do som do que recorrer a um filme bastante violento, onde os sons dos tiros e das explosões são essenciais para provar a força deste novo recurso. Mas cingir Scarface apenas à parte técnica (e focar apenas a questão do som é pouco, pois são claras as influências que o expressionismo alemão tem neste filme, entre outras, que fazem de Scarface a obra-prima que é) é esquecer que estamos perante um enorme filme, não apenas dentro de

um determinado género. Ao contar a história de Tony Carmonte, a dupla Hawks e Hughes criou um mito, através de uma enorme interpretação de Paul Muni, um quase estreante à data de estreia do filme, que cria um dos gangsters mais icónicos da história do Cinema. A queda e ascensão desta personagem, durante o período da Lei Seca, é não só a história de um criminoso, mas também a história de um homem solitário que vive com os seus problemas por resolver, seja a relação quase incestuosa com a irmã ou a busca de poder que o leva a pisar tudo e todos para alcançar o slogan que vê da janela: “The World Is Yours”. E nesse aspecto, ao criar uma das personagens mais fascinantes no universo dos filmes de gangsters, Scarface consegue ser muito mais do que um simples filme de entretenimento. Por debaixo de cada camada há muito a explorar, algo que é notório a cada novo visionamento.

“(...) são claras as influências que o expressionismo alemão tem neste filme (...)”

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THE ROARING TWENTIES

Título nacional: Heróis Esquecidos Realização: Raoul Walsh Elenco: James Cagney, Humphrey Bogart, Priscilla Lane

1939 PEDRO MIGUEL FERNANDES

Tal como Scarface - o Homem da Cicatriz foi um dos marcos do cinema de gangsters na década de 1930, Heróis Esquecidos não lhe fica atrás. Estreado no final dessa mesma década, numa altura em que as grandes potências da altura se preparavam para um novo conflito à escala mundial, o filme de Raoul Walsh começa quase como se fosse um documentário de propaganda, ao alertar para o que aconteceu no final da I Guerra Mundial, quando milhares de soldados norte-americanos regressaram a casa e enfrentaram um país diferente, prestes a entrar no período da Lei Seca. Este período é retratado através da história de três soldados que se conheceram no campo de batalha e mais tarde se reencontram no mundo do crime, cada um com as suas características e lugar específico nesta história. No centro da trama encontramos James Cagney, o grande actor

de filmes de gangsters durante este período, que interpreta a personagem central de Heróis Esquecidos. Mas mais do que uma trama sobre o universo criminal, onde a violência está sempre presente (em há muitas sequências de antologia para descobrir neste título), o filme de Walsh é em simultâneo uma história de amores cruzados e não correspondidos, o que acaba por dar um outro tom à fita, extravasando por vezes os limites do género. E aqui não podemos deixar de realçar o fantástico papel que é o de Panama Smith (criado por Gladys George), que mesmo sendo uma personagem relativamente secundária, é uma das mais fortes e inesquecíveis em Heróis Esquecidos, retrato de uma época negra dos EUA, a partir de um olhar dos que ficaram no outro lado da lei.

“(...) mais do que uma trama sobre o universo criminal (...)”

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ON THE WATERFRONT

Título nacional: Há Lodo no Cais Realização: Elia Kazan Elenco: Marlon Brando, Karl Malden, Lee J. Cobb

1954 PEDRO SOARES

Marlon Brando já tinha trabalhado (e brilhado) antes às mãos de Elia Kazan, na adaptação de Um Eléctrico Chamado Desejo, mas foi com Há Lodo no Cais, três anos depois e assinado pelo mesmo realizador, que Brando – fiél seguidor do método Stanilawsky - , atingiu o reconhecimento absoluto, recompensado inclusive com o Oscar. E, anos antes de O Padrinho, Brando começava já a flirtar com a máfia. O filme pinta o retrato negro da corrupção, num raio-x da actividade social de um porto norte-americano. Aí, o sindicato presidido pelo mafioso John Friendly (Lee J. Cobb) faz-se valer da chantagem, do suborno e da violência, para fazer vingar o seu negócio, em desfavor dos trabalhadores da estiva. Entre eles está o ex-boxeur e irmão de um dos braços direitos de John Friendly (Rod Steiger), Terry Malloy (Marlon Brando), um jovem ingénuo, mas de bom coração, protegido da máfia. Terry Malloy vai ter

de combater esse estigma e optar entre duas escolhas: a de delator da corrupção, mas também do seu irmão e amigos; ou a de mudo e surdo, mantendo oprimidos os trabalhadores e a bela Edie Doyle (Eva Marie Saint). Talvez a prever um futuro inassociavel à realidade da mafia, Marlon Brando é o dínamo neste thriller de moldes clássicos, sujo com o pior que há nos portos por esse mundo fora: o lodo (leia-se corrupção). Kazan filma com mestria a realidade portuária e dá a liberdade suficiente a Brando para fazer o que fazia melhor. E ele rouba para si todo o filme, num dos títulos maiores da década de 50 e do final do período clássico de Hollywood. Uma trivialidade final: é o único filme não-musical que contou com a banda-sonora do magistral Leonard Bernstein.

“O filme pinta o retrato negro da corrupção (...)”

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THE VALACHI PAPERS

Título nacional: The Valachi Papers Realização: Terence Young Elenco: Charles Bronson, Lino Ventura, Joseph Wiseman

1972 ANÍBAL SANTIAGO

Tendo como base o livro homónimo de Peter Maas, The Valachi Papers apresenta-nos à história inspirada em factos reais de Joe Valachi, um gangster de baixo escalão, que revelou pormenores até então desconhecidos sobre a Cosa Nostra e o seu funcionamento. Valachi é interpretado por um credível e sempre carismático Charles Bronson, ao longo desta obra realizada por Terence Young, que nos expõe à história do protagonista em flashbacks, enquanto este relutantemente conta na prisão alguns episódios sobre o seu envolvimento com a Cosa Nostra a um agente do FBI. The Valachi Papers coloca-nos assim perante os jogos de poder, alianças e traições no interior da Cosa Nostra, contando com um argumento nem sempre bem construído, que se revela incapaz de desenvolver algumas das subtramas e personagens secundários, enquanto Valachi nos apresenta à sua intrincada história ao longo

dos anos que esteve ao serviço da máfia. É na representação desta complexidade e violência da Cosa Nostra que o filme se revela mais eficaz, com Young a permear a narrativa de cerimónias, rituais e regras próprias no interior da organização, uma estrutura organizada que gradualmente ganha contornos mais violentos ao longo período de tempo representado (entre os anos 20 e 70), numa obra marcada por algumas liberdades históricas, personagens estereotipados e muitos crimes. Embora conte com algumas limitações a nível do seu argumento e alguns erros anacrónicos dignos de amadores, The Valachi Papers consegue superar esses problemas com uma representação eficaz da complexidade no interior da Cosa Nostra e um Charles Bronson com um desempenho de grande nível, surgindo pronto a compelir-nos a seguir o seu personagem.

“(...) numa obra marcada por algumas liberdades históricas, personagens estereotipados e muitos crimes."

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SCARFACE

Título nacional: Scarface - A Força do Poder Realização: Brian De Palma Elenco: Al Pacino, Michelle Pfeiffer, Mary Elizabeth Mastrantonio

1983 JOÃO PAULO COSTA

Mais do que um remake do original de Howard Hawks, a versão de Brian De Palma é uma revisitação dos mesmos temas com uma roupagem completamente diferente. Podemos dizer que são, cada um à sua maneira, produtos do seu tempo, e a decisão de situar a nova versão nos anos 80 entre a comunidade cubana de refugiados do regime de Castro foi uma das mais inspiradas do argumentista Oliver Stone, então como agora sempre bastante atento ao panorama político do seu país. E se é verdade que Stone manteve os princípios básicos do filme original (a ascenção e queda de um mafioso, a relação perturbadora com a irmã, a atracção por uma wasp atraente), recheou também as páginas do guião de diálogos que rapidamente entraram para o imaginário cinéfilo. Produzido como um veículo para Al Pacino desfilar todo o tipo de excessos, a escolha de De Palma como realizador caiu que nem uma luva.

Se por um lado é verdade que o habitual virtuosismo com a câmara e os temas centrais da sua obra são relegados para segundo plano, por outro fica a certeza de que mais ninguém conseguiria lidar com esta operática e violentíssima narrativa cocainómana como o americano mais do que habituado à controvérsia. E a realidade é que, discussão de méritos à parte, o Scarface de 1983 se tornou num indiscutível fenómeno de culto e ultrapassou largamente a fama do original, sendo hoje visto como uma espécie de bíblia cinematográfica nomeadamente entre o universo hiphop onde a sua escala maior do que a vida, o histrionismo de Pacino e o seu look claramente datado fizeram escola.

“(...) uma espécie de bíblia cinematográfica (...)"

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ONCE UPON A TIME IN AMERICA

Título nacional: Era Uma Vez na América Realização: Sergio Leone Elenco: Robert De Niro, James Woods, Elizabeth McGovern

1975 JOÃO PAULO COSTA

É indiscutível que o italiano Sergio Leone irá ser para sempre reconhecido pelos seus western spaghetti, nomeadamente a trilogia do Homem Sem Nome protagonizada por Clint Eastwood. No entanto, o seu derradeiro projecto, e a obra com a qual sonhou durante praticamente toda a vida, foi este épico sobre a ascenção de um grupo de jovens miúdos ao topo da hierarquia mafiosa nova-iorquina. Com uma duração de quase 4 horas (dependendo da versão) e uma narrativa que percorre quatro décadas do século passado, Era Uma Vez na América nada deve às aventuras de Leone no velho oeste e é mesmo considerada por muitos a sua verdadeira obra-prima. Duro como o foram todos os seus filmes (da violência ao abuso sexual), Era Uma Vez na América consegue ser onírico e hiper-realista, bruto e doce, cruel e ingénuo ao mesmo tempo. Mas consegue acima de tudo

aproximar-nos de forma íntima das suas personagens, mesmo quando estas cometem os actos mais horrendos. E esse extenso trabalho sobre as personagens e a narrativa, aliado a uma mestria visual e sonora (a banda sonora de Morricone é tão marcante aqui quanto em O Bom, o Mau e o Vilão) fazem deste um dos mais belos e envolventes filmes sobre a máfia alguma vez produzidos, que na altura da sua estreia foi brutalmente cortado pelo estúdio numa tentativa desesperada de reduzir a sua duração, resultando numa incompreensível salgalhada. Tendo sido mais tarde recuperada a versão original de Leone e aclamada como o trabalho de génio que é, Era Uma Vez na América permanece ainda hoje no panteão das produções dos anos 80 e da História do Cinema em geral.

"(...) um dos mais belos e envolventes filmes sobre a máfia (...)"

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THE UNTOUCHABLES

Título nacional: Os Intocáveis Realização: Brian De Palma Elenco: Kevin Costner, Robert De Niro, Sean Connery

1987 ANÍBAL SANTIAGO

Realizado por Brian De Palma, The Untouchables coloca-nos perante uma cidade de Chicago "a ferro e fogo" em plena “Lei Seca”, onde gangsters como Al Capone (De Niro) prosperam, criando uma vasta rede de influências, tendo em Eliot Ness (Costner) e a sua equipa de "Intocáveis", um adversário de peso, com estes a estarem dispostos a tudo para colocarem o mafioso atrás das grades. De Palma tem sido capaz do melhor e do pior ao longo da sua carreira, tendo nesta obra baseada em factos reais um dos bons exemplares do seu currículo, apresentando-nos a uma Chicago em convulsão, dominada pelo crime, polícias corruptos e violência, tudo apresentado com um enorme sentido estético e atenção ao pormenor. Não falta um guarda-roupa adequado à época e com enorme elegância cargo da Armani, um trabalho de fotografia bastante assertivo que é capaz de captar o clima de insegurança que

grassava na época, uma banda sonora a espaços inquietante de Ennio Morriconne, um argumento relativamente eficaz de David Mamet, para além de algumas interpretações de um nível acima da média, com Sean Connery a sobressair como o polícia Malone. Pelo meio, não faltam os célebres erros históricos, anacronismos e mortes sangrentas, enquanto De Palma parece muitas das vezes exacerbar o estilo em detrimento do conteúdo, não faltando uma homenagem à famosa cena dos degraus de Odessa de O Couraçado Potemkine. Longe de ser uma obra intocável, The Untouchables revela-se um filme de gangsters dinâmico e violento, composto por interpretações de bom nível e elevados valores de produção, onde somos transportados para uns EUA dominados pelo crime, onde um grupo de homens intrépidos procuram fazer respeitar a lei.

“(...) De Palma tem sido capaz do melhor e do pior ao longo da sua carreira (...)”

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GOODFELLAS

Título nacional: Tudo Bons Rapazes Realização: Martin Scorsese Elenco: Robert De Niro, Ray Liotta, Joe Pesci

1990 PEDRO MIGUEL FERNANDES

Baseado na história de um antigo colaborador da Máfia que se tornou informador do FBI, Tudo Bons Rapazes é um clássico dos anos 1990 e uma das obras-primas de Martin Scorsese, que voltou a juntar no elenco dois actores que protagonizaram um outro excelente filme: Robert De Niro e Joe Pesci, protagonistas de O Touro Enraivecido. Mas neste caso, apesar das excelentes interpretações da dupla, sobretudo Pesci, que ganhou um Óscar com este papel, o destaque vai para Ray Liotta, a quem coube desempenhar o papel de Henry Hill, o anti-herói do filme, que nos brinda com uma das melhores interpretações da sua carreira. A partir da história de Henry Hill o cineasta nova-iorquino cria uma espécie de álbum de família deste grupo de mafiosos, que começa com um miúdo que anseia ser gangster, figuras míticas do bairro onde vive, e acaba enredado no mundo do crime e das drogas, que acabam por levá-lo

à desgraça. A par das enormes interpretações, na sua maioria criadas em sessões de improvisação mais tarde adaptadas ao argumento, Tudo Bons Rapazes dá-nos um Scorsese em grande forma. Os habituais movimentos de câmara do realizador, que passeiam pelo cenário como se voassem por lá (uma das primeiras sequências de apresentação de um grupo de mafiosos num bar, logo ao início do filme, roça a genialidade) estão lá, assim como a banda sonora a condizer, sempre no momento certo. A par de Casino, realizado cinco anos mais tarde e também com De Niro e Pesci no elenco, este é um dos grandes filmes de Martin Scorsese da década de 1990, assim como um dos melhores filmes do género estreados na mesma década.

“(...) é um clássico dos anos 1990 e uma das obras-primas de Martin Scorsese (...)”

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MILLER’S CROSSING

Título nacional: Hisrória de Gangsters Realização: Joel e Ethan Coen Elenco: Gabriel Byrne, Albert Finney, John Turturro

1990 PEDRO MIGUEL FERNANDES

Ao terceiro filme os irmãos Coen (Joel e Ethan) resolveram capitalizar o sucesso alcançado no universo do cinema independente norte-americano para prestar homenagem a um género clássico: o filme de gangsters. E o resultado foi História de Gangsters, um filme considerado por muitos como o melhor da dupla. Nesta obra o que os irmãos Coen fazem é reescrever as regras de um género clássico através do seu olhar bastante peculiar. E todas as marcas do universo da dupla estão presentes em História de Gangsters, que mais não é do que a história de Tom, o conselheiro de um chefe mafioso que faz tudo para evitar o começo de uma guerra de gangues. Desde uma galeria de personagens como só os Coen são capazes de criar, sobretudo em pequenos momentos protagonizados por personagens mais secundários, aos diálogos fabulosos onde uma simples conversa entre

criminosos se pode tornar de repente numa discussão filosófica sobre a ética. Tudo para dar um novo olhar a um género que teve o seu período dourado algumas décadas atrás. Rodeados de um excelente elenco, onde se encontram nomes na altura já consagrados, como Albert Finney ou Jon Polito, um habitué da filmografia da dupla, ou outros que estavam a dar os primeiros passos, como John Turturro (mais tarde protagonista de outro excelente filme dos Coen, Barton Fink) ou Marcia Gay Harden, os Coen começam aqui a dar provas que não eram simples cineastas de produções independentes, pois já demonstram ter estofo para outros voos. As constantes nomeações para prémios de renome que surgem em obras posteriores provam que esta não foi uma obra fruto do acaso.

“(...) uma simples conversa entre criminosos se pode tornar de repente numa discussão filosófica (...)”

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CASINO

Título nacional: Casino Realização: Martin Scorsese Elenco: Robert De Niro, Joe Pesci, Sharon Stone

1995 ANÍBAL SANTIAGO

Realizador de grande prestígio, Martin Scorsese sabe como poucos realizar filmes sobre a máfia, tendo em Casino um feliz exemplar, marcado por uma enorme violência, palavrões e interpretações de grande nível de Robert De Niro, Joe Pesci e Sharon Stone. O crime, jogos de interesses, traições e excessos marcam o quotidiano dos personagens interpretados por este trio, enquanto Scorsese nos apresenta a uma Las Vegas dominada pela máfia e os excessos no início dos anos 80, quando Sam Rothstein (De Niro), um indivíduo com enorme perícia para o jogo, assume a gestão do Tangiers, um dos casinos mais importantes do local. Sam estabelece uma vasta rede de influências junto da máfia, autoridades e políticos, que lhe permite dirigir temporariamente um casino sem licença. Este mantém uma relação de aparente confiança com Nicky (Pesci), um gangster violento, que aos poucos vai aumentando a sua influência,

entrando em crispação com o protagonista, enquanto este último vê o seu casamento com Ginger (Stone) desfazer-se gradualmente num cenário de Las Vegas onde o luxo dos casinos é colocado em contraste com o deserto de todos os segredos. Se o deserto esconde os corpos enterrados, o Tangiers sobressai pelo glamour, enquanto assistimos à exposição dos seus bastidores, com Sam a procurar manter-se no topo, Nicky a deixa-se levar pelos seus ímpetos violentos e Scorsese a acertar na realização desta obra visceralmente violenta, marcada por assertivas narrações em off, um guarda-roupa pensado ao pormenor, uma banda sonora adequada e cheia de estilo, interpretações de bom nível e uma história capaz de prender a nossa atenção ao longo da suas quase três horas de duração.

“O crime, jogos de interesses, traições e excessos marcam o quotidiano dos personagens (...)”

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DONNIE BRASCO

Título nacional: Donnie Brasco Realização: Mike Newell Elenco: Al Pacino, Johnny Depp, Michael Madsen

1997 PEDRO SOARES

Donnie Brasco, baseado na história real do agente especial Joe Pistone, foi o último capítulo de uma série de filmes de gangsters bem-sucedidos de Al Pacino, depois de Perseguido Pelo Passado, Scarface e, claro, o segundo Padrinho. Pistone (interpretado por Johnny Depp) foi um agente do FBI que, na década de 70, se infiltrou no submundo da mafia por 7 anos, arranjando provas que serviram para condenar mais de 200 tipos. Lefty Ruggiero (Al Pacino) era um gangster importante, respeitado, com um palmarés de mortes invejável. Pelo menos era assim na sua cabeça. Com efeito, Lefty era um agiota menor, que usava fato-de-treino de ir ao Fórum Montijo ao domingo, com problemas de dinheiro e a quem poucos confiavam importantes trabalhos. Em suma, era o elo mais fraco da cadeia. E logo, o mais fácil para Pistone se infiltrar. Assim, Lefty acolheu Pistone e, rapidamente, este ultrapassou o mestre, ganhando a

confiança do importante Sonny Black (Michael Madsen). É uma espécie de fusão entre infiltrados - a vida dupla, em que a identidade falsa começa a misturar-se com a verdadeira – e O Padrinho - a relação entre a família e a “família”. Durante esses sete anos, Pistone prescindiu da vida pessoal e que ganhou com isso? Um casamento quase desfeito, um amigo assassinado, o resto da vida a viver escondido e 500 mil dólares que o IRS pilhou. Donnie Brasco podia ser assim um épico familiar, mas Mike Newell não é Sergio Leone e o seu filme é apenas uma versão light de um Era Uma Vez na América, que chega quase a parodiar o género – um diálogo sobre a proibição dos bigodes por causa dos moustache petes e outro sobre a expressão “forge'about'it”, por exemplo. A tríade Pacino, Depp e Madsen são o melhor de um filme da segunda metade dos melhores filmes sobre a máfia.

“(...) podia ser assim um épico familiar, mas Mike Newell não é Sergio Leone (...)"

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ROAD TO PERDITION

Título nacional: Caminho Para Perdição Realização: Sam Mendes Elenco: Tom Hanks, Daniel Craig, Paul Newman

2002 SARA GALVÃO

Se tivermos de resumir a história de Caminho para Perdição numa única linha, é simples: Pai tenta proteger filho vezes dois. John Rooney, sabendo que Connor Rooney lhe anda a roubar dinheiro e a matar os associados que o ameaçam desmascarar, resolve ignorar o óbvio. Michael Sullivan, empregado ao serviço de Mr. Rooney descobre que o filho Michael Jr. viu em que consiste o trabalho dele, e decide protegê-lo da vida da Máfia. No caminho os Sullivan perdem o resto da família, e Rooney perde o seu homem mais leal, mas no fim, todos os sacrifícios valeram a pena... se bem que com um preço bastante elevado.

Tudo no filme é solene, composto e teatral, até a morte que Maguire (interpretado por um assustador Jude Law) tão profissionalmente fotografa. Mas Hanks consegue hipnotizar o mais recalcitrante viciado da adrenalina, e o ritmo lento do filme grava uma impressão mental difícil de apagar. As duas electrizantes cenas à chuva, uma a quebra de inocência do jovem Sullivan, a outra o grito de liberdade de Sullivan sénior, ecoam na memória muito depois do filme acabar. Pode não ser para todos os gostos, mas para quem o souber apreciar, o travo posterior gratifica.

Um filme que é um regalo para os olhos, vagamente baseado em factos reais, e realizado por Sam Mendes, especialista em drama familiar, Caminho para Perdição é muitas vezes esquecido em favor de filmes de gangsters com mais acção, tiroteios, e perseguições a alta velocidade. Família. Família. Família.

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THE DEPARTED

Título nacional: The Departed - Entre Inimigos Realização: Martin Scorsese Elenco: Leonardo DiCaprio, Matt Damon, Jack Nicholson

2006 PEDRO SOARES

Entre Inimigos é o assumido (e consentindo) rip-off americano da triologia oriental Inflitrados, assinado por Martin Scorsese, que regressou ao gangster flick e ao que sabia fazer melhor. E, apesar dos pontos comuns e até planos semelhantes, ainda consegue ser relativamente melhor que o original, o que parecia impossível. Transportado de Hong Kong para o mundo do crime de Boston, é um policial que envolve polícias, gangsters e a versão corrupta de ambos. Do lado dos polícias destacam-se Billy Costigan (Leonardo DiCaprio), que se vai infiltrar no inimigo, e Colin Sullivan (Matt Damon), um agente exemplar que não é mais do que um informador corrupto. Do lado dos maus destaca-se Frank Costello (Jack Nicholson), o cabecilha do submundo do crime e uma espécie de encarnação do mal. O enredo é complicado, mas bem explanado; e é extremamente irónico, onde os sujos se tornam salvadores e os meninos-bonitos se revelam piores que cuspir na sopa. Lembra o film

noir, onde não há heróis imaculados, porque todos têm sempre esqueletos no armário. No equilibrar da balança (que acaba por ser o mote central de toda a intriga) está uma mulher, que funciona como elemento neutro e elo de ligação entre os dois mundos: Madolyn (Vera Farmiga), psiquiatra criminal. Mas Entre Inimigos é, sobretudo, um policial inteligente, com uma aparência calma, mas onde o coração bate a trezentos à hora. Tal e qual Martin Scorsese, um velhote que aparenta a tranquilidade dos 70 anos, mas que fala a uma velocidade estonteante. Entre Inimigos é um dos melhores Scorseses desde Casino, com grande vitalidade, e a utilizar pela primeira vez a não-linearidade do argumento (influência oriental do filme). Um conjunto de interpretações notáveis, uma banda-sonora perfeita e, finalmente, Scorsese a ganhar um Oscar, quando toda a gente pensava que ia ser mais um daqueles injustiçados para toda a vida.

“(...) um policial inteligente, com uma aparência calma, mas onde o coração bate a trezentos à hora.“

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EASTERN PROMISES

Título nacional: Promessas Perigosas Realização: David Cronenberg Elenco: Viggo Mortensen, Naomi Watts, Vincent Cassel

2007 SARA GALVÃO

do corpo humano, Promessas Perigosas mostra que a verdadeira cor da Máfia é o vermelho-sangue, um vermelho saturado e quente, contrastante com as frias, escuras e molhadas ruas londrinas. O filme não é perfeito: a voz de Tatiana a ler o diário é por vezes demasiado lamechas, e é ridículo que Russos falem entre si em inglês, mas a estrutura e o ritmo da história, aliados ao hipnotizante Nikolai (sim, mesmo vestido), fazem de Promessas Perigosas um filme obrigatório mesmo para quem não gosta de filmes de mafiosos - ou então principalmente para esses, como iniciação indolor. Tatuagens não incluídas.

Não há muitos filmes ocidentais que se dediquem exclusivamente à Máfia Russa (medo de represálias?), mas dos poucos que há, Promessas Perigosas tem decerto um lugar de honra. Não só foi realizado por DavidHorror-Visceral-Cronenberg, como possui, qual cereja no topo do bolo, uma das melhores performances de Viggo Mortensen até à data, no papel do motorista/homem de “limpezas” Nikolai. Tatiana, 14 anos, russa, morre ao dar à luz uma bebé e a parteira Anna (Naomi Watts) tenta por tudo devolver a criança à família. Seguindo o diário da rapariga, Anna dá por si a meter-se num meio onde não é de maneira nenhuma bem-vinda - no submundo londrino dos vor v zakone -, e só com a ajuda do misterioso motorista Nikolai consegue chegar a bom termo. Um filme de meios-entendidos, de sombras e agentes duplos, com sotaques cerrados pelo meio e sem medo de mostrar a vulnerabilidade

I’m just the driver.

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Š Hulton Archive


LOUCOS ANOS 30

OS GANGSTERS NO CINEMA DE HOLLYWOOD ANÍBAL SANTIAGO

Existe algo de poético e extremamente apelativo nos filmes de gangsters dos Estados Unidos da América da década de 30, com estas obras a conquistarem o público da época e a manterem uma enorme vitalidade com o decorrer dos anos. O país encontrava-se em crise, a Lei Seca proporcionava a ascensão dos gangsters dedicados ao tráfico de bebidas alcoólicas, enquanto nomes como John Dillinger, Bonnie e Clyde, Pretty Boy Floyd, Al Capone, entre outros faziam as capas dos jornais. Estes eram transgressores da lei, seres humanos que desafiavam um sistema que parecia incapaz de cuidar dos seus cidadãos, sendo perseguidos pelas autoridades e por vezes idolatrados em Hollywood, que não tinha problemas em adaptar esta realidade aos seus filmes, sobretudo a Warner Bros. Este estúdio, a par da Paramount, 20th Century Fox, RKO e Loew's Inc. (Metro Goldwyn-Mayer), dominava não só a nível de produção mas também de distribuição dos filmes, tendo nas obras de gangsters uma "especialidade", como podem verificar com maior atenção no artigo do João Paulo Costa sobre a temática. Obras como Little Caesar (1931), The Public Enemy (1931), Lady Killer (1932), alcançavam uma enorme popularidade, alçaram Edward G. Robinson e James Cagney ao estrelato, enquanto acabavam por exacerbar esta figura do anti-herói: o gangster. Em tempos de crise, esta figura dava ao espectador a oportunidade de por breves momentos ser um transgressor, de experienciar essa vida no mundo do crime, embora também seja colocado perante as repercussões desta actividade, apesar do trio de obras sugeridas não tenha o cunho moralista de muitas que encontraríamos após a implementação efectiva do Production Code, também chamado de Código Hays. A partir de 1934 assistimos a uma certa mudança nestas obras centradas nos gangsters. Os estúdios pareciam menos dispostos a investir nas mesmas, embora a Warner Bros. continuasse a ser perita nesse capítulo, assistindo-se a algumas alterações nas temáticas das obras. Passámos a ter os gangsters como antagonistas e não como protagonistas, com as forças

das autoridades a destacarem-se e a aparecerem com a "poesia" dada anteriormente aos gangsters, tal como em obras como G-Men (1935) e Bullets or Ballots (1936). Para além disso, assistimos ainda a uma maior abordagem de problemas sociais, entre os quais a pobreza, falta de condições, a brutalização do indivíduo nos centros de correcção e prisões que conduzem "à criação do criminoso", algo exposto em obras como Dead End (1937), Crime School (1938), Angels With Dirty Faces (1938), entre outras. Estas numerosas obras permitiram que se destacassem não só realizadores como Michael Curtiz, William Wyller, Raoul Walsh, Llody Bacon, mas também actores como Humphrey Bogart, James Cagney e Edward G. Robinson. É sobre este trio de actores que se centra o artigo Humphrey Bogart, James Cagney e Edward G. Robinson - Gangsters à solta em Hollywood, tendo em vista analisar de forma sucinta os papéis de gangsters que estes interpretaram e como esses papéis se integraram nas obras cinematográficas e nas carreiras dos actores, ao mesmo tempo que iremos procurar elementos transversais e dicotómicos entre o trio. Curiosamente, ambos integraram o elenco de alguns filmes em conjunto, veja-se o caso de Humphrey Bogart, que trabalhou com James Cagney em Angels With Dirty Faces, The Oklahoma Kid (1939) e The Roaring Twenties (1939). Por sua vez, "Bogie" e Robinson trabalharam juntos em obras como Bullets or Ballots (1936), Kid Galahad (1937), The Amazing Dr. Clitterhouse (1938), Brother Orchid (1940), Key Largo. Quanto a Cagney e Robinson, a dupla trabalhou apenas em Smart Money (1931). Sem mais delongas, seguimos então para as fascinantes obras deste trio, dividida em três subcapítulos: "Johnny Rocco já importunou Bogie e Bacall, mas não conseguiu a fama de Caesar Bandello", ""Ma" Jarrett quer Cody no topo do Mundo mas quem lá chegou foi James Cagney" e "Rick Blaine já foi Duke Mantee". 25


UMA HISTÓRIA DE GANGSTERS EM HOLLYWOOD ELES VIERAM DAS RUAS E TOMARAM O CINEMA DE ASSALTO, ANDANDO HÁ MAIS DE UM SÉCULO A FASCINAR ESPECTADORES DE TODO O MUNDO. JOÃO PAULO COSTA

os gangsters de The Black Hand eram desesperados incompetentes, no filme de Griffith são consideravelmente mais violentos, agressivos e… organizados. Outros exemplos foram-se popularizando pelo mundo inteiro, de onde se destaca essa magnífica série criminosa de 1915 assinada em França por Louis Feuillade, Les Vampires. Aí, apesar de utilizar elementos que roçam o sobrenatural, Feuillade oferece-nos uma das primeiras e mais sinistras representações cinematográficas de uma organização criminosa em grande escala, onde nem sempre as vítimas inocentes escapavam da violência - o título do primeiro dos seus 10 episódios, “A Cabeça Cortada”, é bastante explícito. Les Vampires é ainda hoje visto como uma obra essencial na História do Cinema e um passo importante, ainda que pouco convencional, no estabelecimento do género cinematográfico.

OS GANGSTERS VIERAM DAS RUAS Desde a invenção do cinematógrafo à criação da linguagem cinematográfica e da implementação das suas convenções narrativas ficcionais, a violência tornou-se naturalmente num dos elementos mais excitantes de representação no grande ecrã. Fossem épicos históricos sobre grandes combates, fosse transportando a violência para um contexto de realismo mais próximo do espectador. Começava dessa forma a ganhar protagonismo no cinema a figura do criminoso de rua, que precisamente às custas da sua popularidade cinematográfica se tornou globalmente conhecido como “gangster”. É hoje assumido pelos historiadores que o mais antigo exemplar sobrevivente do filme de gangsters é The Black Hand, de 1906, de Wallace McCutcheon, onde um grupo de criminosos tenta extorquir dinheiro a um talhante ameaçando-lhe a família e o negócio, e raptando a sua pequena filha, até serem apanhados pela polícia devido à própria incompetência. Apesar dos seus escassos 10 minutos e uma encenação rudimentar, o filme lançava já muitos dos tópicos que poderíamos encontrar no género. Depois de vários espécimes produzidos ao longo dos anos, foi apenas em 1912 que se realizou o primeiro grande clássico do crime nas ruas, The Musketeers of Pig Alley, do mestre D.W. Griffith, já algo mais sofisticado na encenação e na representação da violência no grande ecrã. Onde

A REALIDADE ESPELHADA NA TELA Nada surpreendente, o sucesso destas histórias de crime provinha já da literatura e a sua extensão cinematográfica seria apenas natural. Como ainda hoje sabemos, uma boa narrativa do género tem todos os condimentos para se tornar excitante: os bons e os maus, as vítimas indefesas, acção e tensão. No entanto, seria o próprio contexto social e político dos Estados Unidos a cimentar a popularidade dessas películas 26


no país. A aprovação da Lei Seca em 1920 terá sido um dos mais fortes impulsionadores do crescimento das grandes organizações criminosas, que controlavam o negócio da produção e distribuição de álcool após a sua proibição à escala nacional. A juntar a isso, o crash da bolsa em Wall Street em 1929 atirou muitas famílias para a falência, as taxas de desemprego cresceram e com ela também muitos outros negócios ilícitos. Assim, a violência na sociedade local tornava-se mais palpável do que nunca e, num país a atravessar uma profunda crise a todos os níveis, o cinema acabaria por funcionar em função dessa realidade. Foi por volta dessa altura que se começaram a fundar os principais géneros cinematográficos americanos, filmes dos grandes estúdios que se regiam por princípios bastante específicos de produção com objectivos muito distintos: se o western se tornou popular graças à evocação que fazia das grandes conquistas e dos valores tradicionais da América, e o musical devido ao escapismo que permitia ao espectador “mudar-se” para universos bem mais elegantes e mágicos, o filme de gansgters foi-o precisamente pelos motivos opostos, por espelhar a realidade das ruas, do homem comum e das suas lutas. Se até então o cinema de crime apresentava lutas clássicas do bem contra o mal, a partir daí essas histórias passariam a centrar-se mais na figura do criminoso, personagem normalmente trágica, dada aos excessos, à conquista explosiva do sonho americano contra tudo e contra todos. E entre essas produções, a Warner

destacou-se como uma espécie de estúdio oficial do cinema do género, uma espécie de selo de qualidade do produto final. Durante o período mais crítico da Grande Depressão americana, chegaram sucessos como Little Caesar e The Public Enemy, ambos de 1931, e os seus respectivos protagonistas, Edward G. Robinson e James Cagney, bem como Humphrey Bogart pouco depois, foram promovidos ao estrelato (tal como daremos conta noutras páginas desta edição). No ecrã, as suas personagens revelavam-se acima de tudo sedentas de poder e fortuna, vistas como críticas aos excessos capitalistas que tinham conduzido à ruína de milhões de americanos, humanizando-os dessa forma aos olhos do grande público. Nas ruas, criminosos reais como Al Capone, John Dillinger, Bonnie & Clyde, “Pretty Boy” Floyd ou “Baby Face” Nelson, espalhavam a violência ao mesmo tempo que começavam a entrar no imaginário colectivo como anti-heróis em luta contra um sistema em declínio, tomando o sucesso pelos próprios meios e, em certos casos, sendo mesmo ajudados pelos seus admiradores a escapar ao sistema judicial numa altura em que o FBI de J. Edgar Hoover crescia em meios e pessoal organizando autênticas caças ao homem. Para ajudar a combater a “glamourização” dos criminosos, foi implementado o chamado “Código de Produção”, normalmente conhecido como o “Código Hays”, cujo objectivo 27


passava por limpar o cinema de quaisquer ofensas à moral e costumes americanos. A partir daí, o gangster clássico deixava de ser representado como um herói de qualquer espécie, os seus actos criminosos deveriam ser severamente punidos no final de cada filme, e a violência contra vítimas indefesas ou figuras da autoridade era representada com o mínimo dos detalhes. O género, pelo menos aquele produzido dentro do sistema dos grandes estúdios, passava então a ser marcadamente moralista, os seus protagonistas julgados pelos próprios pecados. Terá sido Scarface (1932) de Howard Hawks, pela sua excessiva brutalidade (e perturbadora sexualidade, nomeadamente na sugestão de uma relação incestuosa do protagonista com a irmã), a precipitar tão apertado controle por parte do sistema de censura cinematográfica, mas a verdade é que a popularidade do género chegava não somente ao grande público, mas estendia-se também aos próprios visados, sendo que muitos dos gangsters da época se reviam divertidamente nas personagens representadas no ecrã. Entre muitas histórias que hoje se tornaram em lenda, sabe-se por exemplo que John Dillinger foi morto pelo FBI à saída do Biograph Theatre em Chicago, após ter assistido a Manhattan Melodrama, em 1934, precisamente um exemplar do género, produzido por David O. Selznick (momento que podemos ver recriado no sublime Inimigos Públicos (2009), de Michael Mann, com Johnny Depp no papel de Dillinger).

GANGSTERS DO NOSSO TEMPO Podemos dizer que terá sido essa mistura de histórias criminosas e as restrições provocadas pelo Código Hays, onde inevitavelmente o gangster seria punido pelos seus actos que originou um sub-género vulgarmente conhecido por film noir, no qual os seus heróis normalmente associados de alguma forma ao sub-mundo do crime (sejam polícias infiltrados, detectives, criminosos, pugilistas, ou simplesmente homens comuns na altura errada e no local errado) são vítimas de um destino negro, muitas vezes às mãos de mulheres de pouca confiança. A influência do clássico filme de gangsters é ainda hoje bem visível das mais variadas formas, e a imagem de tipos mal encarados, vestidos com longas gabardines (debaixo das quais normalmente escondem as armas) e chapéus na cabeça é facilmente reconhecível por qualquer espectador. Desde a apropriação e manipulação dos códigos e convenções do género feitas por cineastas europeus, nomeadamente franceses como Melville, Truffaut e Godard nas décadas de 1950 e 60, à sua recuperação e reinterpretação por parte de novas gerações de realizadores americanos que cresceram em salas de cinema (Coppola, Scorsese, De Palma, os Coen, Tarantino, etc…), o género tem sobrevivido, acompanhando de perto a evolução do submundo do crime, e irá continuar a fazê-lo pois não deixará de encontrar nos espectadores um fascínio inevitável pelos foras-da-lei. 28


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EDWARD G. ROBINSON HUMPHREY BOGART JAMES CAGNEY GANGSTERS À SOLTA EM HOLLYWOOD ANÍBAL SANTIAGO

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EDWARD G. ROBINSON - JOHNNY ROCCO JÁ IMPORTUNOU BOGIE E BACALL, MAS NÃO CONSEGUIU A FAMA DE CAESAR BANDELLO Com mais de cem obras cinematográficas no seu currículo, Edward G. Robinson, nascido em Bucareste como Emmanuel Goldenberg, foi um dos nomes de relevo na arte da representação em Hollywood. A primeira obra cujo elenco integrara é datada de 1916, o filme mudo Arms and the Woman, no qual pouco destaque viria a ter junto do público e crítica, ao contrário do que aconteceria em 1931, quando o seu protagonismo em Little Caesar viria a alçá-lo para o sucesso. Um dos papéis marcantes da carreira de Edward G. Robinson foi o de Caesar Enrico "Rico" Bandello em Little Caesar, um filme de gangsters marcante, onde temos a típica história do gangster que ascende e declina rapidamente, através da história do protagonista, um homem violento e pronto a vencer neste mundo negro. Levemente inspirado em Al Capone, Caesar procura ascender socialmente e economicamente através do mundo do crime, dirigindo-se a Chicago com o seu amigo Joe Massara (Douglas Fairbanks, Jr.), tendo em vista atingir esse desiderato. Caesar quer ascender no mundo do crime e acaba por se juntar ao gangue do perigoso Sam Vettori (Stanley Fields). Joe quer ser dançarino e conhecer mulheres, acabando por ter em Olga (Glenda Farrell) uma parceira na dança e interessa amoroso, enquanto se procura afastar do mundo do crime, acabando 31


por chocar de frente com o amigo. Com uma das interpretações mais marcantes e mediáticas da carreira de Edward G. Robinson, Little Caesar coloca-nos perante a ascensão meteórica do personagem do título no mundo do crime, até se envolver numa teia de violência. Robinson convence como este gangster duro, algo rude e pouco educado, que procura triunfar e ascender socialmente através do mundo do crime, numa obra mais preocupada em explorar a violência deste mundo do que aprofundar temáticas sociais e problemáticas ligadas aos Estados Unidos da América no final dos anos 20 e início dos anos 30, marcados por uma enorme crise financeira e a implementação da "Lei Seca" que permitira a ascensão de gangster ligados ao contrabando. Melvyn LeRoy prefere apostar na exibição da complexidade das divisões no interior do crime organizado, tendo em Caesar um elemento individual para explorar uma questão mais lata, com este personagem sempre pronto a disparar e abstémio a ser o paradigma do apelo que o mundo do crime tinha em muitos indivíduos deste tempo. O personagem causou ainda alguma polémica devido a poder-se discernir uma subtil homossexualidade de Caesar, algo visível na relação deste com Joe, desprezando o interesse do amigo pelas mulheres e até a presença feminina. Se Robinson consegue destacar-se como este gangster perigoso e mortífero, também Douglas Fairbanks Jr. consegue sobressair como um dançarino que procura afastar-se do mundo do crime, mas é constantemente arrastado para

o mesmo, numa obra marcada por personagens de carácter duvidoso, cenários povoados por personagens obscuros e a morte. Apesar de Caesar ter marcado a carreira de Edward G. Robinson e este ter vindo a interpretar vários gangsters, nem só de personagens do género se fez a carreira do actor, embora este tenha interpretado outros indivíduos que assumiram comportamentos semelhantes a estes criminosos, tal como aconteceu em obras como Bullets or Ballots e The Amazing Dr. Clitterhouse. Em Bullets or Ballots, Edward G. Robinson não interpreta um gangster mas anda lá perto ao dar vida a Johnny Blake, um polícia que finge ter sido demitido devido a ineficiência para se infiltrar no gangue de Al Kruger (Barton MacLane), descobrir quem são os líderes do grupo e desmantelar o mesmo. O filme não perde tempo a apresentar-nos a uns EUA marcados por perigosos grupos criminosos, colocando-nos perante um polícia disposto a tudo para conseguir provas para os incriminar, incluindo fazer-se passar por um gangster. Diga-se que esta foi uma boa forma para Warner Bros contornar as imposições do Código Hays, cuja implementação foi mais rigorosa a partir de 1934, conduzindo a que a glorificação dos gangsters fosse diminuída, sendo que as autoridades passaram a ser muitas das vezes o centro dos filmes de gangsters, como por exemplo podemos encontrar em G-Man (também realizado por Keighley). Em Bullets or Ballots, o contorno ao código passou por colocar um polícia a agir como um gangster, enquanto tenta 32


desmantelar o gangue de Al Kruger e descobrir quem são os verdadeiros cabecilhas ao longo desta obra assertivamente realizada por William Keighley. Estamos assim perante um gangster no seu comportamento, permitindo a Bullets or Ballots explorar o interior da organização, quer no plano financeiro, quer do ponto de vista da sua estrutura hierárquica, sendo povoada por um número alargado de pessoas, num negócio que ultrapassa e muito as negociatas dos traficantes de álcool durante a Lei Seca, tendo no negócio das apostas algo de lucrativo. Já em The Amazing Dr. Clitterhouse, Edward G. Robinson interpreta o personagem do título, um médico muito respeitado, que decide estudar o comportamento dos assaltantes durante o acto criminoso, nomeadamente, as suas motivações, a forma como agem em conjunto, entre outros aspectos, para desenvolver um livro inédito sobre a temática. Para melhor desenvolver este estudo, o médico começa a praticar pequenos assaltos até conseguir infiltrar-se no interior do grupo liderado por Jo (Claire Trevor) e por “Rocks” Valentine (Humphrey Bogart). De forma algo caricata, Clitterhouse convence os elementos do grupo que pode ser útil nos actos criminosos destes e decide participar nos assaltos, pedindo em troca que estes deixem medir a tensão arterial, temperatura, respiração, e pulsação dos criminosos, antes, durante e depois dos assaltos, enquanto ajuda o grupo de foras da lei a participar nos crimes, algo que poderá não ter os resultados que o protagonista

espera. Através do personagem de Robinson e do seu envolvimento com um grupo de criminosos que assalta vários locais da cidade, o filme consegue efectuar uma sátira ao sistema judicial norte-americano e às forças de segurança, demonstrando a ineficácia de ambos perante as brechas da lei, algo notório no tom histriónico concedido à cena do tribunal, e ao estilo incompetente dos polícias que raramente conseguem agir graças às leis que impedem a sua acção. Robinson não ficaria muito tempo afastado dos papéis de gangster, algo visível em filmes como A Slight Case of Murder (1938) e Brother Orchid (1940), ambos realizados por Lloyd Bacon. Estas duas obras, bem como Larcerny, Inc (1942, também de Bacon), apresentam alguma leveza e humor, marcando uma imagem mais leve em relação aos gangsters interpretados pelo actor, algo que viria a marcar a sua carreira. Em Brother Orchid, Edward G. Robinson dá vida a John Sarto, um gangster que após a morte de mais um elemento ligado à máfia decide viajar em direcção à Europa, para locais com classe, onde finalmente poderá aproveitar a vida. Este entrega o seu grupo criminoso para Buck (Humphrey Bogart), um homem da sua confiança. No entanto, a viagem pela Europa não corre como o esperado, com John a envolver-se numa série de maus negócios (a representação do ingénuo norte-americano que é enganado por todos os europeus não deixa de ser algo caricata), conduzindo a que o protagonista decida regressar aos EUA e voltar a 33


liderar o seu gangue, algo que não consegue devido a Buck não libertar a liderança e os vários elementos se manterem leais a este último. Quem se mantém leal a John é Flo (Ann Sothern), uma jovem mulher que este abandonou para partir em direcção à aventura na Europa. Curiosamente, Flo agora vive de forma abastada (está presente uma subtil dicotomia entre os elementos que ascendem nos EUA e o protagonista que se arruína na Europa), devido à sua relação com um indivíduo rico. Esta tem um papel fulcral quando decide reunir secretamente John e Buck, após o primeiro ter formado um gangue que rivaliza com o do antigo subordinado, algo que promete não trazer bons resultados, com o protagonista a ficar entre a vida e a morte, sendo salvo pelos elementos de um Mosteiro. Existe todo um ritmo leve a envolver a narrativa do filme, que mescla acção com algum humor e violência, mas nunca ao ponto de outras obras protagonizadas por Edward G. Robinson, tais como Little Caesar. Quem fica a interpretar mais do mesmo é Bogart, que mais uma vez dá vida a um gangster sem escrúpulos e impiedoso, que ao contrário do protagonista não parece ter salvação, sendo incapaz de despertar a nossa simpatia. A carreira de Robinson conheceria ainda várias adições de sucesso, onde não faltam obras como Double Indemnity (1944), The Woman in the Window (1945), Scarlet Street (1945) e um regresso em grande a um papel de gangster em Key Largo (1948). 34


Key Largo, um filme que reúne John Huston e Humphrey Bogart, respectivamente o realizador e o protagonista de The Maltese Falcon, um filme noir que marcou a carreira de ambos, que tem nesta obra cinematográfica mais adição enriquecedora ao currículo dos mesmos, juntando-se à equação a divinal Lauren Bacall, Edward G. Robinson e Lionel Barrymore. Tendo como base a peça homónima de Maxwell Anderson, Key Largo coloca-nos perante a visita de Frank McLoud (Humphrey Bogart), um antigo sargento, que viaja até ao Hotel Largo em Key Largo para falar com James Temple (Lionel Barrymore) e Nora Temple (Lauren Bacall), respectivamente, o pai e a viúva de um soldado falecido que combatera sob as suas ordens do protagonista na II Guerra Mundial. Em alguns momentos de enorme dor e sobriedade, Frank fala sobre os feitos do filho de James, ao mesmo tempo que forma uma certa relação de afinidade com Nora. Nora e James são duas figuras simpáticas, que procuram proteger os índios do território das autoridades, mas eles próprios vão ver-se numa situação aflitiva e claustrofóbica, quando o aproximar de uma tempestade traga não só fortes trovões e rajadas, mas também um conjunto de gangsters liderados por Johnny Rocco (Edward G. Robinson), um gangster que foi deportado dos EUA, que se apoderam do local e transforma-no num espaço claustrofóbico dominado pelo perigo. John Huston pega no espaço fechado de um hotel para transformar uma

pequena entrada num local claustrofóbico, respeitando a origem teatral da obra limitando-a no seu desenvolvimento aos espaços interiores, que são regularmente invadidos por novos elementos que trazem um adensar da incerteza em relação aos acontecimentos. No exterior, o mar marca a paisagem, dando uma sensação de beleza mas também de solidão e melancolia, que logo são extravasadas no interior do hotel quando o grupo criminoso toma conta do espaço. Com uma vasta fama a interpretar gangsters nos anos 30, entre outros papéis de relevo, Edward G. Robinson aparece pela primeira vez como actor secundário perante Humphrey Bogart, nesta fase já com a popularidade em alta, surgindo como um gangster violento, algo influenciável e pronto a fugir às autoridades, tendo conhecido um enorme fulgor durante o período da "Lei Seca", mas agora viu-se remetido a uma pouco edificante condição de foragido, esperando ansiosamente pelo ressurgir do Volstead Act e assim voltar a ser um "manda-chuva". Key Largo seria uma das muitas obras de relevo nas quais Edward G. Robinson integraria o elenco, tendo o seu nome ficado marcado na história do cinema, com os filmes de gangsters a serem um elemento de relevo no seu currículo.

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HUMPHREY BOGART - RICK BLAINE JÁ FOI DUKE MANTEE Antes de conquistar o Mundo com o seu Rick Blaine de Casablanca e até com Sam Spade em The Maltese Falcon, Humphrey Bogart granjeou uma fama notória a interpretar gangsters durante a década de 30 e início dos anos 40 do Século XX, tendo em The Petrified Forrest um dos primeiros grandes papéis de relevo. Se o típico gangster de Cagney era violento, disparava falas a enorme velocidade mas conseguia por vezes apresentar alguma humanidade (veja-se o seu Eddie Bartlett), e Robinson conseguia manter sempre alguma credibilidade e até protagonizar filmes de gangsters mais leves, já Bogart surgia quase sempre temível, com o seu olhar e expressões faciais indicadoras de pouca simpatia, tendo em Duke Mantee um gangster que chega acompanhado com o seu bando a um pequeno restaurante no Arizona, onde lida com um intelectual britânico (Leslie Howard), transformando o espaço num local claustrofóbico e marcado pelo perigo. A chegada de Bogart ao projecto foi marcada por alguns percalços, com os executivos da Warner Bros. a pretenderem outro nome mais rentável e conhecido junto do público como Edward G. Robinson, mas Leslie Howard foi decisivo para que este conseguisse o papel, pretendendo repetir a parceria que fez com "Bogie" na peça de teatro homónima na qual se baseia The Petrified Forest. É assim que se dá a entrada de Humphrey Bogart na adaptação 36


cinematográfica de The Petrified Forest, tendo neste gangster que invade o espaço fechado de um estabelecimento de restauração um personagem marcante, um assassino pronto a disparar que apenas quer fugir às autoridades, enquanto procura liderar o seu gangue e controlar os reféns. Diga-se que Edward G. Robinson, uma das possibilidades para o papel, viria mais tarde a ter um papel semelhante em Key Largo, onde Bogart, já estrela de cinema e acompanhada pela diva Lauren Bacall, já fazia de protagonista, invertendo-se os papéis. Key Largo marcou já uma fase onde o famoso ícone de Hollywood não era o antagonista, embora mais tarde ainda tivesse alguns papéis marcantes como criminoso, como poderemos verificar em The Desperate Hours (1955), um dos últimos filmes da sua carreira. O papel de criminoso viria a ficar com "Bogie" durante várias obras dos anos 30. Depois de The Petrified Forest, vários foram os filmes que Humphrey Bogart protagonizou, com muitos deles a destacarem-se mais pelo valor histórico do que pelo seu interesse a nível de entretenimento e estético, nos quais este era um gangster. Um desses exemplos é Bullets or Ballots (1936) de William Keighley, um filme onde "Bogie" interpreta Nick "Bugs" Fenner, o braço direito do mafioso Al Kruger (Barton MacLane), um indivíduo desconfiado, agressivo, pronto a matar e até a roubar um beijo ao interesse amoroso do protagonista. O filme destaca-se sobretudo pela presença de nomes como Bogart, Edward G. Robinson e Joan Blondell, enquanto Keighley

explora o interior da organização criminosa onde trabalha Fenner, quer no plano financeiro, quer do ponto de vista da sua estrutura hierárquica, sendo povoada por um número alargado de pessoas, num negócio lucrativo que ultrapassa e muito as negociatas dos traficantes de álcool durante a Lei Seca. A seguir a Bullets or Ballots, Bogart ainda interpretaria personagens de má índole em obras como Kid Galahad (1937, de Michael Curtiz) e San Quentin (1937, de Lloyd Bacon), dois personagens que pouco acrescentam ao seu currículo, ao contrário do seu Baby Face Martin em Dead End (1937), a obra baseada na peça da Broadway homónima de Sidney Kingsley. Martin é um gangster procurado pela polícia, que regressa ao bairro onde nasceu, em Nova Iorque, tendo em vista a reencontrar a mãe e a antiga namorada. A mãe rejeita-o, o seu antigo amor mudou e tornou-se numa prostituta sendo alvo do desprezo do personagem interpretado por Bogie. Este logo mostra o seu lado mais sombrio e dedicado ao crime, com Bogart a atribuir a habitual aura pouco simpática ao seu personagem, numa obra que procura efectuar uma forte crítica às assimetrias sociais nos espaços urbanos, expondo, por vezes de forma demasiado simplista, as dicotomias entre as populações mais desfavorecidas e as mais abastadas, tendo como ponto central da opulência a casa de Mr. Griswald (Minor Watson) e o seu filho, enquanto um grupo de adolescentes pratica pequenos delitos. Essas diferenças ficam paradigmaticamente 37


representadas na oposição entre a figura do filho de Griswald, familiar de um importante juiz, que conta com condições de vida e educação elevadas, em oposição aos personagens interpretados pelos "The Dead End Kids", dos quais se destaca Tommy (Billy Halop), o irmão de Drina (Sylvia Sidney), uma mulher que cuida do irmão desde muito novo, sonhando sair do bairro onde vive e que o familiar não enverede pelo mundo do crime (a história da irmã que procura cuidar do irmão é comum a diversos filmes do subgénero dos anos 30). Tommy envolve-se num conjunto de actos reprováveis juntos dos elementos da sua idade, algo que lhe promete consequências gravosas, enquanto o realizador William Wyller explora alguns dos problemas sociais, económicos e culturais dos EUA durante a década de 30, que ainda continuam bastante actuais nos dias de hoje. Em 1938, Bogart viria a interpretar mais gangsters. Em Racket Busters este interpreta John "Czar" Martin, enquanto que em The Amazing Dr. Clitterhouse, uma obra que coloca Edward G. Robinson como um médico que se comporta como criminoso, Bogart volta a interpretar um gangster muito ao estilo que interpretou ao longo da década de 30. Bogie dá vida a “Rocks” Valentine, um criminoso traiçoeiro, de completa má índole. Curiosamente, Bogie e Robinson, bem como Claire Trevor, viriam mais tarde a contracenar em Key Largo, um filme no qual Bogart assume a faceta de herói improvável, tendo em Robinson um antagonista de

peso. Ainda em 1938, Humphrey Bogart viria mais uma vez a ficar como secundário de um actor na época mais famoso do que Bogie, James Cagney. O filme em questão é Angels With Dirty Faces, onde Bogie interpreta Frazier, um advogado de má índole com uma vasta rede de influências, que procura enganar tudo e todos, incluindo o protagonista, Rocky Sullivan (James Cagney), um gangster cujo perfil será abordado mais adiante. Bogart voltaria a trabalhar com Cagney em The Oklahoma Kid (1939) e posteriormente naquele que é provavelmente um dos grandes filmes de gangsters dos anos 30, The Roaring Twenties, uma obra realizada por Raoul Walsh. No filme, Bogart e Cagney interpretam dois gangsters, embora mais uma vez o primeiro fique com o criminoso imoral e pronto a matar, enquanto o segundo tornou-se um gangster por fruto do destino. Mais do que um filme sobre gangsters, The Roaring Twenties é um magnífico retrato sobre o clima convulso do período da Grande Depressão e da chamada "Lei Seca", dominado pelo tráfico de bebidas alcoólicas e grupos criminosos a lucrarem imenso com este negócio ilegal, uma sociedade violenta, onde praticamente tudo e todos eram corrompiveis. Bogart dá vida a George Hally, um antigo combatente na II Guerra Mundial, ao lado de Eddie Bartlett (Cagney) e Lloyd Hart (Jeffrey Lynn), dois indivíduos que seguiram caminhos diferentes. Bartlett segue o caminho do crime, enquanto Lloyd ainda começa a trabalhar com este 38


último mas logo opta por uma carreira séria na advocacia. Já George é um gangster perigoso, que se alia a Eddie mas não tem problemas em trair e ser o primeiro a tentar provocar a sua morte. O papel de criminoso continuaria a perseguir a carreira de "Bogie" que em Invisible Stripes (1939) interpreta Charles Martin, que como podem adivinhar é um gangster. Terminada a década de 30, Humphrey Bogart começa os anos 40 a destacar-se como... gangster. É assim em High Sierra de Raoul Walsh, o filme que lhe permite alcançar o papel de protagonista, sendo mais uma vez alvo de um conjunto de felizes acasos. Apesar de ter demorado a se destacar, Bogart teve uma carreira marcada por alguns felizes acontecimentos, digna de alguns contos de fadas, sendo que a sua chegada a High Sierra é um deles. "Bogie" não era nem pouco mais ao menos a primeira opção do estúdio, mas perante a recusa de Paul Muni e George Raft, o estúdio entregou o papel a Humphrey Bogart, que tem em High Sierra um dos primeiros papéis de relevo como protagonista. Realizado por Raoul Walsh, que já havia dirigido Bogart em The Roaring Twenties, High Sierra surge praticamente como uma carta de amor aos filmes de gangsters dos anos 30, tendo como protagonista um criminoso numa fase descendente da sua vida. Tendo como base a obra literária homónima escrita por W.R. Burnett (o autor dos livros que serviram como base a Little Caesar e Scarface), High Sierra desenrola-se pouco

tempo depois de Roy Earle (Humphrey Bogart) ser solto da prisão e ser designado pelo seu chefe, Big Mac, um indivíduo bastante doente, para efectuar um golpe, que passa por assaltar um hotel de luxo em Trópico Springs. Para essa tarefa, Earle reúne-se com Red (Arthur Kennedy), Babe (Alan Curtis) e Marie (Ida Lupino), aos quais se junta ainda Mendonza (Cornel Wilde), que trabalha no resort. Earle não quer a presença de Marie, mas acaba por ser convencido por esta a deixá-la permanecer no grupo, embora a personagem interpretada por Lupino possa ser uma fonte de conflitos entre Red e Babe, sempre dispostos a disputar os afectos da bela mulher. Enquanto isso, Earle desenvolve uma estranha relação de amizade com os avós de Velma (Joan Leslie), uma jovem que conta com uma deficiência no pé, que se torna no alvo das afeições do gangster, que mostra um lado estranhamente humano com estes personagens, embora a jovem o rejeite. Quando chega o dia do assalto, nem tudo corre bem para o grupo criminoso, que logo é perseguido pelas autoridades, resultando na morte de dois elementos e na fuga de Earle, Marie e o pequeno Pard. Earle e Marie ainda desenvolvem uma relação sentimental que nos conduz a acreditar que, apesar dos seus actos, ainda algo de bom pode acontecer aos dois, mas o protagonista logo é perseguido pelas autoridades, culminando numa emotiva luta solitária pela sobrevivência na montanha, onde Raoul Walsh proporciona alguns 39


Sierra continua a manter uma vitalidade impressionante, pelo seu valor quer histórico, quer narrativo. Tendo como base a obra literária homónima da autoria de William R. Burnett (como já se sugeriu, o mesmo autor de Little Caesar e Scarface), High Sierra conta com o argumento do escritor e de John Huston, tendo neste elemento um dos pontoschaves para o seu sucesso, sendo capaz de transmitir o ambiente de uma época e desenvolver um personagem complexo, marcado por valores que parecem em desuso, enquanto surge numa luta solitária adornada por um bom trabalho de fotografia. Na montanha, Earl terá a sua morte ou a sua prisão, a salvação parece complicada para um homem que cometeu os seus crimes, que terá numa possível morte a sua única libertação às malhas da lei. High Sierra não nos coloca apenas perante um filme de gangsters memorável, mas também perante um Humphrey Bogart com um desempenho intenso, capaz de explorar e expor a complexidade do seu personagem, um criminoso por quem conseguimos torcer e até acreditar que pode mudar, numa obra de se tirar o chapéu. Roy Earle seria até ao momento o personagem que mais exigiu e obteve do talento de Bogart, que viria ainda a brilhar como detective Sam Spade em The Maltese Falcon (1941), No entanto, o papel que viria a mudar para sempre a vida de Humphrey Bogart chegou um ano depois: Rick Blaine, o dono do Rick's Café Américaine em Casablanca, que protagonizaria momentos intensos e eternos com Ilsa Lund (Ingrid

momentos de génio, onde a morte pode ser a salvação e a perdição do seu protagonista. Ficamos perante o homem e a montanha, filmada em todo o seu esplendor e aproveitada para Raoul Walsh exacerbar a batalha solitária entre Roy e as autoridades, um homem que luta contra tudo e contra todos, procurando sobreviver a um mundo onde já não se integra. A dureza emocional é imensa, o gangster torna-se simultaneamente herói e vilão, um personagem complexo, que dá a Humphrey Bogart um dos seus primeiros grandes papéis como protagonista, um criminoso implacável, mas ao mesmo tempo frágil, que tem nas pistolas a sua maior força e no coração a sua maior fraqueza, tendo uma personalidade forte que facilmente nos compele a torcer por si. Não era suposto ser assim, não devíamos torcer pelo gangster, mas High Sierra deixa-nos perante um criminoso que facilmente nos faz querer que tudo corra pelo melhor, embora saibamos que a sua profissão coloca-o constantemente a desafiar a morte, algo que mais tarde ou mais cedo promete trazer-lhe a desgraça. Raoul Walsh não desenvolve o típico filme de gangsters em que estes ascendem e entram em decadência rapidamente, procurando acima de tudo efectuar um estudo sobre um gangster saído da prisão, cobrindo a obra com salpicos de heist film, enquanto coloca alguma poesia nesta luta solitária do seu protagonista. Se Roy Earle parece estar prestes a dar o seu canto do cisne, já High 40


Bergman). Pelo meio, teve outros papéis marcantes como em To Have and Have Not (1944), onde viria a contracenar pela primeira vez com Lauren Bacall, uma das grandes divas de Hollywood, por quem se apaixonaria e casaria, tendo formado com esta um dos casais mais mediáticos do seu tempo. Bogie faleceu a 14 de Janeiro de 1957, mas felizmente o seu cinema continua a mantê-lo junto de nós. Os seus gangsters eram impiedosos, incapazes de salvação, a sua carreira inicialmente errática, mas destinado a grandes feitos, este não caiu em desgraça como muitos dos criminosos que interpretou, nem acabou solitário como Rick Blaine, mas sim com um sucesso enorme e uma produtora sua, a Santana, partilhando o nome do seu barco, um local onde gostava de estar a vaguear pelas águas do mar, tão imensas como o seu talento.

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JAMES CAGNEY - "MA" JARRETT QUER CODY NO TOPO DO MUNDO MAS QUEM LÁ CHEGOU FOI JAMES CAGNEY James Francis Cagney, Jr., conhecido no mundo do cinema como James Cagney, contou com uma carreira recheada de sucessos, entre os quais The Public Enemy (1931), Lady Killer (1933), Angels With Dirty Faces (1938), The Roaring Twenties (1939), Yankee Doodle Dandy (1942), 13 Rue Madeleine (1947), White Heat (1949), entre muitas obras. No final, um enorme reconhecimento do público e da crítica, várias saídas e regressos à Warner Bros., um Oscar de Melhor Actor pelo seu desempenho em Yankee Doodle Dandy, numa carreira muito marcada pelos filmes de gangsters. Não é que Cagney não fosse versátil, mas os seus desempenhos nos filmes de gangsters marcaram gerações e continuam a manter um inestimável valor nos dias de hoje. É sobre alguns desses filmes que se vai centrar este subcapítulo de Edward G. Robinson, Humphrey Bogart, James Cagney - Gangsters à solta em Hollywood. Foi exactamente como gangster que Cagney viria a despontar. The Public Enemy (1931), a sétima obra cinematográfica de James Cagney, viria a mudar a carreira do actor, que teria no seu Tom Powers um gangster violento, capaz de cometer as maiores atrocidades, disparar falas à velocidade das balas, agredir mulheres (mítica cena quando esmaga meia 42


toranja na cara da sua namorada), enquanto tenta ascender no mundo do tráfico de bebidas alcóolicas durante a chamada "Lei Seca". A falsa ideia de ascensão social e económica através do crime apenas o faz descer numa espiral trágica, tendo na mãe o único ponto de conforto e uma mulher com quem mostra alguns sinais de humanidade. Tom não é um gangster de topo, diga-se que nem é uma das figuras mais inteligentes, representando um dos muitos indivíduos que procurou neste período aproveitar-se do tráfico de bebidas, acabando por destruir várias das suas relações pessoais e permitir a James Cagney mais uma interpretação marcante na sua carreira. Curiosamente Cagney nem era a primeira opção para o papel, mas sim Edward Woods. No entanto, os actores acabaram por trocar de papéis, numa troca que resultou em cheio. Cagney surge com um desempenho de cortar a respiração ao dar vida a este gangster que adoramos odiar, um indivíduo agressivo, que esperamos o pior e o imprevisível, seja a cuspir cerveja na cara do dono de um restaurante que comprou bebida a outro fornecedor ou a esmagar uma toranja na cara de Kitty, o protagonista é dinamite prestes a explodir, alavancando o filme para um nível muito acima da média. Realizado por William A. Wellman, The Public Enemy não é apenas mais um filme de gangsters estreado na década de 30, mas sim um dos mais felizes exemplares, dando a oportunidade de James Cagney ascender ao estrelado, enquanto o cineasta efectua

uma representação intensa dos Estados Unidos da América em plena Lei Seca. Wellman procura explorar o mundo do crime e do tráfico de bebidas alcoólicas, mostrando um território dos EUA algo marcado pelo crime, onde as autoridades pouco controlam e as guerras entre gangues adensam o clima de crispação. Essa violência surge exposta não só no protagonista, com Wellman por vezes a parecer mostrar a sua simpatia por este indivíduo revoltado com tudo e com todos, que desafia o sistema e não tem barreiras para alcançar algum estatuto e dinheiro, embora nunca deixe de ser um gangster de segunda, mas também na sociedade que não o consegue integrar. The Public Enemy raramente parece querer fazer uma crítica ao seu protagonista, pelo menos até à sua moralista mensagem final, que surge antecedido por um momento arrasador a nível emocional, daqueles que ficam gravados na memória e nem o passar dos anos parece diminuir o seu efeito. Cagney voltaria a interpretar um indivíduo de cariz duvidoso em Lady Killer (1933), uma obra realizada por Roy Del Ruth, que viria a reunir Cagney com Mae Clarke, após The Plublic Enemy. Em Lady Killer, Cagney interpreta o irreverente Dan Quigley, um indivíduo que se junta a um grupo criminoso ligado ao jogo ilegal, que pratica assaltos às casas de pessoas abastadas. Perante a possibilidade de ser preso, Dan vai para Los Angeles, onde acaba por ser encontrado por um caçador de talentos em Hollywood, que o contrata como figurante. Aos poucos Dan começa 43


Faces (1938), um filme realizado por Michael Curtiz, este dá vida a Rocky Sullivan, um indivíduo que um conjunto de acasos, a sua sociedade e a sua personalidade conduziram a que se tornasse num criminoso. Quando conhecemos Rocky pela primeira vez, este ainda é um adolescente, que forma uma forte de relação de amizade com Jerry (Patt O'Brien), enquanto vivem num bairro com poucas condições. Os dois são meio rufias, conhecidos por comportamentos pouco próprios, que decidem assaltar um carregamento com canetas. Jerry consegue correr e fugir da polícia. Rocky é capturado e enviado para uma casa de correcção. Um pequeno momento acaba por ser marcante para a vida de ambos. Jerry torna-se um padre e procura ajudar as crianças e os desfavorecidos locais. Rocky forma amizades duvidosas, vagueia de prisão em prisão, até finalmente ser solto e voltar a contactar com Jerry, quinze anos depois. O mundo de Rocky é marcado pela violência. Este ainda guarda alguma humanidade e bom coração, mas procura a todo o custo regressar ao "trabalho", procurando reaver os 100 mil dólares que lhe são devidos por Frazier (Humphrey Bogart), um advogado corrupto que apenas não foi preso devido ao protagonista não o ter denunciado. Rocky envolve-se profissionalmente com este e o superior de Frazier, o mafioso Keefer (George Bancroft), ao mesmo tempo que se procura reintegrar no bairro onde viveu, onde é o ídolo de um conjunto de jovens rufias (interpretados pelos "The Dead End Kids"), para além de tentar conquistar o coração da

a ascender em Hollywood, ao mesmo tempo que inicia um romance com a actriz Lois Underwood (Margaret Lindsay). No entanto, os criminosos com quem Dan participou em alguns golpes decidem ir ter junto deste, indo envolvê-lo em problemas. Cagney interpreta com grande à vontade este personagem bastante fleumático, que é capaz de tudo para subir na carreira, gosta de Lois e é capaz de agredir Myrna (não temos uma toranja como em The Public Enemy, mas sim cabelos puxados e um pontapé). Estamos perante um papel que contém algumas características próximas dos gangsters interpretados por Cagney, tais como a agressividade e até os crimes, mas longe do Tom Powell de The Public Enemy. Se em The Public Enemy, James Cagney interpretou um gangster procurado pela polícia, já em G-Men este interpreta um agente ao serviço das forças das autoridades, numa obra efectuada para contrariar os filmes que colocavam o criminoso como protagonista ou o as autoridades praticamente impotentes perante estas figuras. A presença do actor, até então ligado aos papéis de gangster, como protagonista, um herói moldado à imagem de J. Edgar Hoover, surgiu como um pretexto para o estúdio a aproveitar a situação e promover a obra com slogans como "Cagney is Now Public Hero N.1" ou "Cagney Finds New Way to Sock Women". Ou seja, voltamos a ter presente bastante violência, mas desta vez com as autoridades a serem glorificadas. James Cagney não ficaria muito tempo afastado das obras de gangsters. Em Angels With Dirty 44


bela Laury (Ann Sheridan), hoje uma mulher encantadora, mas outrora uma jovem que este gostava de importunar. No centro da vida de Rocky encontra-se ainda a sua amizade com Jerry, com este último a funcionar como uma espécie de barómetro moral do amigo, procurando a todo o custo acreditar que este pode mudar, até os dois terem de tomar posições diferentes, sem que isso belisque a amizade entre ambos. A relação entre estes dois personagens de personalidades e destinos dicotómicas é explorada de forma assertiva pelo argumento do filme, que é capaz de aproveitar a amizade na vida real entre Cagney e Pat O'Brien para criar uma dinâmica convincente, dando espaço a cada um dos actores para brilhar. Cagney ficou marcado pelos gangsters que interpretou, tendo em Rocky Sullivan mais um papel marcante, como este gangster que dispara falas afiadas, não tem problemas em tomar atitudes agressivas, mas mantendo sempre uma certa afabilidade. É o perigo em pessoa, mas também notamos sempre que este está longe de ser o gangster sem coração. Diga-se que Angels With Dirty Faces já se insere nas obras de gangsters com um cunho fortemente moralista, que não tem problemas em expor, ainda que de forma algo simplista, os problemas da sociedade do seu tempo, tais como a dificuldade em gerir a situação dos jovens sem recursos que vivem nos bairros sociais, uma temática já abordada em filmes como Dead End e no excelente Knock On Any Door, entre muitos outros.

Os centros de correcção e as prisões surgem como espaços de brutalização, a ascensão social parece complicada pela via do trabalho, pelo que o mundo do crime acaba por se tornar um aliciante para vários jovens, que vêm em figuras como Rocky, ou na realidade em Al Capone, John Dillinger e companhia figuras de sucesso e fontes de admiração. É assim que ficamos perante uma figura como Rocky, que Michael Curtiz glorifica em certa medida, expondo o protagonista como alguém carismático, que comete erros e actos reprováveis, mas que parece sempre ter uma boa índole, até nos oferecer a um final moralista de forma a respeitar o "Código Hays" e a exibir que os actos criminosos podem e devem ser reprováveis. Com um cunho algo moralista e uma preocupação notória em explorar problemas internos da sociedade norte-americana, Angels With Dirty Faces surge como um filme de gangsters de nível elevado, onde Michael Curtiz mostra mais uma vez a sua versatilidade na realização cinematográfica e para nos oferecer finais trágicos, recheados de sentimento e personagens capazes de fazer sacrifícios por um bem maior. Cerca de um ano depois de Angels With Dirty Faces estrear nas salas de cinema, Cagney mostra que é capaz de atribuir nuances diferentes aos seus personagens, tendo em The Roaring Twenties, de Raoul Walsh, um dos exemplares mais marcantes da sua carreira. No caso de The Roaring Twenties, marca um regresso de Cagney aos papéis de gangster, com 45


este a interpretar Eddie Bartlett, numa fase em que já existia uma certa saturação por parte do actor em interpretar este tipo de personagens, embora aqui este tenha uma nuance diferente em relação aos papéis anteriores. Se em The Public Enemy este interpretou um antagonista que pretendia ser um gangster violento e de má índole, e em Angels With Dirty Faces o seu Tom Powers não parece procurar outro caminho a não ser o mundo do crime, já Eddie Barltett é um indivíduo comum, que numa série de infelizes eventos acaba por se envolver no mundo do tráfico de bebidas alcoólicas. Bartlett é um dos muitos indivíduos que regressou da I Guerra Mundial e deparou-se com uma nova realidade, com o seu emprego a ser ocupado por outra pessoa, tendo na implementação da "Lei Seca" uma oportunidade para subir no mundo do crime, através do tráfico de bebidas alcoólicas. A sua ascensão é meteórica, mas também a sua queda, sendo um personagem trágico, apaixonado pela jovem Jean Sherman (Priscilla Lane), embora esta acabe por casar com Lloyd Hart (Jeffrey Linn), um antigo colega de armas do protagonista, que até iniciou com este a carreira no mundo do crime, mas decide seguir o caminho honesto como advogado. Cagney confere ao seu personagem uma dimensão interessante, conseguindo exprimir as dicotomias que este contém no seu interior, parecendo muitas das vezes um vulcão prestes a explodir que tenta reprimir os seus ímpetos, um gangster que trafica álcool mas bebe

leite, que se apaixona por uma jovem ingénua mas apenas atrai a atenção de Panama Smith (Gladys George), uma mulher desembaraçada que trabalha num clube nocturno. Num tom semi-documental, onde parte da narrativa é mesclada com a narração de um locutor e material da época, Raoul Walsh apresenta-nos um filme de gangsters emotivo, que apresenta algumas semelhanças com outros filmes do género, que tanto sucesso efectaram durante a década de 30. O filme aborda vários problemas da sociedade norte-americana durante a década de 20, entre as quais as dificuldades de integração no mercado laboral do vasto contingente norte-americano que esteve a servir durante a Primeira Guerra Mundial, em solo europeu, algo representado não só pelo personagem de Cagney, mas também pelas notícias que passavam durante a narrativa, que ajudavam não só a conceder um tom mais próximo da realidade ao filme, mas também para reforçar a ideia de que a situação era complicada para estes homens que regressavam da frente de combate. Este foi um problema que assolou não só os Estados Unidos da América, mas também outros países que participaram no conflito, no entanto, importa manter o foco na narrativa do filme, e salientar que esta situação dos desempregados, alicerçada à Lei Seca, conduziu a que vários destes indivíduos se tenham arriscado pelo mundo do crime, num negócio onde todos pareciam ganhar, mesma a polícia que era facilmente corrompível, permitindo a proliferação deste negócio e a consequente disputa de 46


gangues pelo domínio do território. The Roaring Twenties associa ainda esta questão à Quebra do Mercado de Ações de 1929 e à crise que, curiosamente, acabou por conduzir a um certo olhar para esta figura do gangster como um herói transgressor que luta contra um sistema que não protege os seus cidadãos, numa obra onde a componente sociológica está sempre muito presente. O último papel de James Cagney como gangster a que vamos dar destaque é em White Heat, outro filme brilhantemente realizado por Raoul Walsh, que conta com o famoso actor como Arthur "Cody" Jarrett, um criminoso impiedoso. James Cagney já nos habituou a excelentes interpretações como gangster em The Public Enemy, Angels With Dirty Faces e The Roaring Twenties, mas em White Heat apresenta-nos a um criminoso distinto daqueles que interpretara anteriormente, naquele que foi um regresso em grande aos papéis do género. Este é dinamite pronto a explodir, o mal em pessoa, um indivíduo sem salvação, cujo pai enlouquecera e parece seguir o caminho do progenitor, que tem no crime o seu modo de vida e estabelece uma ligação com a sua mãe que seria digna de um estudo de Freud. "Ma" Jarrett comanda o filho, domina-o e este deixa-se dominar, anseia pelo afecto desta e procura-a proteger e ser protegido por esta, uma idosa disposta a tudo para recolocar o filho no "topo do Mundo". Margaret Wycherly interpreta a personagem com enorme sagacidade, dando a esta mulher um toque de vilania e malvadez

da qual sempre esperamos o pior, naquela que é sempre a mulher mais importante da vida do protagonista. Raoul Walsh convida-nos a entrar na psique deste personagens, oferecendo-nos um estudo do mesmo, por vezes a fazer recordar High Sierra. Em High Sierra estávamos perante Roy Earle (Humphrey Bogart), um gangster fora do seu tempo, cujos valores eram distintos dos novos criminosos, para quem a palavra contava e por quem facilmente somos compelidos a torcer. Já Cody não tem salvação, é um gangster complexo que procura o topo, mas tem no assalto ao cofre de uma fábrica de produtos químicos o seu canto do cisne. Walsh não o coloca isolado junto das montanhas como a Roy Earle, mas deixa-o isolado no topo de um estrutura composta por tanques de armazenamento de combustível, pronto para um desfecho semelhante, com as autoridades prontas a atacarem e este isolado contra tudo e todos. Roy Earle tinha valores morais, já Cody surge como um vulcão adormecido cuja erupção final promete ser devastadora, numa obra muito marcada por uma violência visceral e elementos noir, não faltando a célebre femme fatale na figura de Verna a mulher que procura ludibriar e seduzir os elementos masculinos, a fotografia marcada por uma assertiva utilização do chiaroscuro, uma atmosfera de incerteza, personagens complexos, aliados a uma realização de grande nível de Raoul Walsh. O cineasta volta a trabalhar com Cagney depois da colaboração em The 47


Roaring Twenties, o filme que iniciara o interregno do actor nos papéis de gangster e lhe dera mais um personagem complexo, que tal como Cody, e Roy Earle aparece junto de nós como uma figura trágica, um soldado que regressa da sua participação na I Guerra Mundial e já não tem o seu posto de trabalho, que ascende a traficar bebida e logo decai perante a Lei Seca, transformando-se numa figura anacrónica para o seu tempo. O final dos três filmes assinalados é semelhante, o isolamento também, com Raoul Walsh a dotar os personagens de enorme complexidade, sendo capaz de explorar os talentos que tinha junto de si. Se Bogart brilhou e deixou-nos compelidos a torcer pelo seu personagem em High Sierra, já James Cagney surge explosivo como o seu Cody, um gangster pronto a matar, que tem no crime a sua profissão, revelando-se herói e vilão, procurando o topo do mundo mas apenas conhecendo a solidão.

CONCLUSÃO James Cagney, Humphrey Bogart e Edward G. Robinson marcaram uma época em Hollywood, tendo ficado em parte marcados pelos papéis de gangsters que interpretaram com tanta argúcia, talento e na maioria dos casos empenho. O trio procurou paulatinamente afastar-se deste tipo de papéis, sendo que aquele que viria a ganhar fama mais tarde, Humphrey Bogart, seria também aquele que mais sucesso viria a alcançar, a ponto de nem a sua morte ter terminado o culto em volta do actor. Desde The Maltese Falcon a Casablanca, passando por To Have and Have Not e The Big Sleep, indo até In a Lonely Place e Knock on Any Door, sem esquecer Sabrina e Key Largo, várias foram as obras marcantes protagonizadas por Bogie. No caso da década de 30, Bogart teve quase sempre um estatuto secundário, calhando-lhe muitas das vezes ficar com o gangster impiedoso e amoral, longe de qualquer redenção possível, algo visível nas obras que integrou onde secundarizou Cagney e Robinson. Já Cagney era dinamite prestes a explodir, mas muitas das vezes um personagem condenado pelo destino, como podemos ver no seu Eddie Bartlett em The Roaring Twenties. Quanto a Robinson, por vezes os seus gangsters nem eram assim tão temíveis, destacando-se Caesar e Rocco, para além dos filmes mais leves que conduzem os seus personagens a não terem uma aura tão pesada como os elementos interpretados por Bogie. 48


As obras escolhidas para a elaboração deste artigo centram-se sobretudo nos filmes desenvolvidos nos anos 30 e 40, com especial incidência nos filmes de gangsters elaboradas na Warner Bros., uma "casa" que se pareceu especializar nos filmes do género neste período, um pouco à imagem da Universal Pictures com os filmes de terror (veja-se Dracula, Frankenstein, The Mummy, entre outros). Ao longo do período em análise, assistimos ao desenvolvimento de várias obras cinematográficas onde os mafiosos tiveram presentes, sendo inicialmente algo "glorificados", fruto do seu tempo, onde estes indivíduos faziam as parangonas dos jornais, a crise encontrava-se instalada e a "Lei Seca" parecia adensar este clima de "idolatrização" do gangster no cinema. Esta figura colocava o espectador perante o desafio à autoridade e as consequências desse desafio, algo visível em Little Caesar, uma obra que acabou por servir de inspiração/ modelo para outras obras posteriores, e The Public Enemy, onde existe um certo brilho em volta destas figuras violentas. Posteriormente, com a implementação efectiva do "Código Hays", assistimos a uma mudança gradual nos filmes do subgénero, com as autoridades a aparecerem também em destaque, mas também a uma procura maior de consciencializar socialmente o público. Ficamos assim perante um conjunto de obras que fizeram história, cujo valor vai muito para além da mera curiosidade histórica, tendo deixado marca nos espectadores e na carreira dos envolvidos, com Humphrey Bogart,

James Cagney e Edward G. Robinson a sobressaírem em grande nível. Entre gangsters trágicos ou furiosos, muita violência e consciencialização social, estes filmes que Bogart, Cagney e Robinson protagonizaram marcaram uma era em Hollywood, com os anos 30 a serem um período de ouro para os filmes de gangsters e a entrada nos anos 40 a oferecernos pérolas do quilate de High Sierra e White Heat. Fica assim concluído este artigo, onde se procurou dar a conhecer e explorar alguns dos filmes de gangsters onde constavam Humphrey Bogart, James Cagney e Edward G. Robinson, um trio de peso e inesquecível, cuja fama ultrapassou as barreiras do tempo e o talento conquistou o direito à imortalidade.

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MAFIOSOS... MAS POUCO! Normalmente a máfia não é tema para brincadeiras, mas todos sabemos que nesta arte maravilhosa que é o cinema os limites do sério são apenas uma razão para justificar qualquer travessura narrativa ou artística que dê na cabeça de um guionista mais ousado ou de um realizador sem nada a perder. Logo, não é de admirar que um universo tão complexo com o das organizações criminosas com sotaque italiano tenha dado origem ao longo dos anos às mais variadas comédias mafiosas, algumas mesmo com relativo sucesso entre a crítica e o público. A Take Cinema Magazine decidiu escolher cinco - não obrigatoriamente as cinco melhores ou mais conhecidas - que merecem um visionamento atento dos nossos leitores mais interessados no assunto. Aceitem o conselho e, pelo caminho, soltem umas gargalhadas. Até Marlon Brando o fez.


MARRIED TO THE MOB

Título nacional: Viúva... Mas Não Muito Realização: Jonathan Demme Elenco: Michelle Pfeiffer, Dean Stockwell, Matthew Modine

1988 JOÃO PAULO COSTA

Após a morte do marido, a bela Angela de Marco (Michelle Pfeiffer) encontra a oportunidade perfeita para mudar de vida, passando de “mulher de gangster” a modesta cabeleireira numa zona pobre de Manhattan, levando consigo apenas o seu jovem filho e aproveitando para cortar todos os laços com a anterior família mafiosa. O problema é que Tony Russo (Dean Stockwell), o chefe da famiglia, aproveita a sua recente viuvez para lhe fazer a corte, o que leva um jovem agente do FBI (Matthew Modine) a seguir Angela de perto numa tentativa de obter informações preciosas sobre as operações criminosas de Tony. Produzido em 1988, algures entre Something Wild e The Silence of the Lambs, Married to the Mob pertence à melhor fase da carreira de Jonathan Demme, e apesar do seu tom globalmente leve, é um óptimo exemplo das qualidades do seu realizador. Sem ser uma obra-prima, é

acima de tudo bastante divertido na forma como mergulha nos costumes algo pindéricos e excessivos da sua época e das personagens que retrata. Datado? Sem dúvida, mas essa particularidade acaba também por contribuir para muita da sua graça. Demme deixou de lado a estilização habitual de alguns dos seus trabalhos mais marcantes e deu ao elenco o espaço necessário para se/nos divertir. Se Pfeiffer espalha o seu encanto habitual em constante namoro natural com a câmara, Stockwell encontra o equilíbrio perfeito entre a sinistra imprevisibilidade de um mafioso com a “tontice” global do filme, e a presença habitualmente histérica/hilariante de Joan Cusack como Rose, a ciumenta mulher de Tony, funciona como a cereja no topo do bolo.

“Sem ser uma obra-prima, é acima de tudo bastante divertido (...)”

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THE FRESHMAN

Título nacional: O Caloiro da Máfia Realização: Andrew Bergman Elenco: Marlon Brando, Matthew Broderick, Penelope Ann Miller

1990 CARLOS REIS

Clark Kellogg é um jovem finalista do secundário que abandona a pacata terriola onde morava com a mãe e o pai adoptivo para começar um curso de cinema na majestosa Manhattan. Com pouco dinheiro no bolso e completamente perdido na azáfama de hora de ponta, decide aceitar a ajuda de um motorista com origens italianas, que por uns míseros dez dólares aceita levá-lo até às residências universitárias onde vai ficar a morar nos próximos anos. Sorte madrasta a de Clark, ou não fosse o sacana que lhe deu boleia e posteriormente roubou-lhe as malas e todo o dinheiro que tinha, o sobrinho do maior mafioso da cidade, Carmine "Tucano" Sabatini. Será, claro, o início de uma autêntica alhada que envolverá o FBI, a filha do "Tucano" e um dragão de Komodo. Realizado por Andrew Bergman, que alguns anos depois viria a realizar o afamado Striptease, O Caloiro da Máfia marcou em 1990 o regresso de Marlon Brando ao grande ecrã dez anos após o seu último papel

cinematográfico. Dizem as más línguas que tal aconteceu devido a problemas financeiros do lendário actor norte-americano relacionados com o julgamento do seu filho. Independentemente das suas motivações, a verdade é que Brando, recriando de forma leve o temível Vito Corleone, obteve aqui uma das performances mais aplaudidas da sua carreira, um regresso muito ansiado por gerações de cinéfilos. A química entre Broderick e Ann Miller convence e a narrativa, mesmo sem provocar grandes gargalhadas ou momentos românticos de relevo, acaba por revelar-se inteligente, justificando quase um revisionamento instantâneo para dar valor a vários pormenores que momentos antes tinham parecido injustificados ou absurdos. Como que um "Ferris Buller meets The Godfather", para ser visto sem grandes expectativas mas com muito interesse pelo carisma de Brando.

“(...) acaba por revelar-se inteligente, justificando quase um revisionamento instantâneo (...)"

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MY COUSIN VINNY

Título nacional: O Meu Primo Vinny Realização: Jonathan Lynn Elenco: Joe Pesci, Marisa Tomei, Ralph Macchio

1992 CARLOS REIS

Bill Gambini (Ralph Macchio) e Buddy Stan (Mitchell Whitfield) são dois amigos que, numa road trip pelos Estados Unidos num descapotável clássico, acabam por ser errada e inesperadamente acusados de homicídio. Várias confusões após terem sido detidos, uma mão cheia de coincidências infelizes e o facto de terem abandonado a área de serviço onde o funcionário foi assassinado à pressa – porque deram conta que trouxeram uma lata de atum sem pagar – acabam por torná-los nos principais suspeitos e, sem dinheiro para melhor, na necessidade de recorrer à ajuda do único advogado que conhecem: Vinny Gambini (Joe Pesci), familiar nova-iorquino de Bill que nunca defendeu ninguém em tribunal e chumbou por cinco vezes no exame da ordem. O seu jeito pouco convencional numa Alabama muito conservadora, aliado às roupas de cabedal da sua noiva (Marisa Tomei) e à atenção aos procedimentos do carrancudo juiz do caso, vai tornar este julgamento num verdadeiro

circo de tentativa e erro. Qual a relação directa de O Meu Primo Vinny com a máfia? Absolutamente nenhuma. Perguntam então os leitores qual a razão da sua inclusão nesta secção. Bem, a verdade é que Vinny Gambino tem todos os trejeitos de um mafioso divertido e foi o mais próximo que o pequeno grande Pesci teve de juntar dois amores e talentos cinematográficos: a comédia e a máfia. Com um elenco de suporte fenomenal – do xerife Bruce McGill ao juiz frankenstein Fred Gwynne, sem esquecer a talentosa Marisa Tomei que com a sua Mona Lisa arrecadou uma das mais inesperadas (e provavelmente injustificadas) conquistas da história dos Óscares -, My Cousin Vinny é uma das comédias obrigatórias dos anos noventa e sem dúvida alguma uma das mais eficazes no uso do estilo gingão italiano da Cosa Nostra. “(...) tem todos os trejeitos de um mafioso divertido (...)”

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THE WHOLE NINE YARDS

Título nacional: Falsas Aparências Realização: Jonathan Lynn Elenco: Bruce Willis, Matthew Perry, Rosanna Arquette

2000 ANÍBAL SANTIAGO

Não existe nada de transcendente ou surpreendentemente novo em The Whole Nine Yards, com o filme a destacar-se por conseguir manter uma história minimamente coerente, acertar em boa parte dos momentos de humor e aproveitar o talento de Matthew Perry para o papel de neurótico com problemas de confiança, por vezes a fazer recordar o seu Chandler Bing da série Friends. Perry surge bem acompanhado por nomes como Amanda Peet, Michael Clarke Duncan e Bruce Willis, com este último a voltar a interpretar um personagem com o habitual estilo descontraído, quase sem parecer estar a representar, enquanto dá vida a Jimmy "o Túlipa", um gangster com princípios e valores, que vai morar para a casa ao lado de Oz (Perry), um dentista que tem de lidar com uma esposa pronta a assassiná-lo, que instiga o marido a denunciar o paradeiro de Jimmy a Janni Gogolak, um gangster que o quer eliminar. Pelo caminho, Oz conhece a esposa de Jimmy, por quem se apaixona, tendo de procurar

salvar esta mulher, ao mesmo tempo que tenta manter a amizade ambígua com o criminoso, apesar deste último não estar muito disposto a lidar com traições. Ficamos assim perante uma história marcada por várias mortes e alguma violência, esbatida pelo humor negro, splastick e de situação, ao mesmo tempo que nos deparamos com algumas reviravoltas, traições e romances inesperados, numa obra leve, sem grandes pretensões que conquista exactamente pela simplicidade. Esta simplicidade não é algo de negativo, com Jonathan Lynn a saber utilizar o material que tem em mãos para desenvolver um agradável pedaço de escapismo, marcado por uma boa exploração dos relacionamentos e do carisma de elementos como Bruce Willis e Matthew Perry.

“(...) uma história marcada por várias mortes e alguma violência (...)"

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THE CREW

Título nacional: O Regresso da Máfia Realização: Michael Dinner Elenco: Richard Dreyfuss, Burt Reynolds, Carrie-Anne Moss

2000 SARA GALVÃO

O que acontece aos mafiosos que têm o azar de não morrer em serviço e atingir a idade da reforma? Se essa é uma pergunta que vos aflige, e se quiserem passar um bocadinho na companhia de Burt Reynolds, vejam O Regresso da Máfia. Bobby (Dreyfuss), Bats (Reynolds), The Brick (Dan Hedaya) e The Mouth (Seymour Cassel) tiveram os seus tempos de glória no mundo da Máfia, mas agora, a viver num hotel duvidoso em Miami (com vista para o mar), as coisas já não são bem o que eram. Ao tentar baixar a renda do apartamento que alugam, pisam sem querer - e repetidamente - os “calos” de um barão da droga sul-americano, o que os obriga a dar uma última lição ao submundo do crime antes da reforma e descansos merecido. O Regresso da Máfia não chega aos pés de RED, e não há suficientes homenagens ao mundo clássico da máfia para merecer um olhar mais demorado pelos fãs do género (tirando a piscadela de olho mais ou

menos óbvia de alguns planos-chave), mas a oportunidade de ver um elenco deste calibre, também eles com grandes êxitos no passado, de chapéu, gabardina e arma na mão, não é para desperdiçar. A pérola ocasional de diálogo, o bromance entre Reynolds e Hedaya e, claro, ver Piven pré-Entourage, tornam-nos mais condescentes com falhas como a constante voz de Dreyfuss a citar o óbvio (e a maior parte das vezes sem um pingo de humor) e a narrativa mais que batida com uma segunda trama metida às três pancadas. Não é o Padrinho, mas pode servir de folar.

Pensões são para os fracos.

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ROBERT DE NIRO O GANGSTER COM MÉTODO JOÃO PAULO COSTA

Nascido em Greenwich Village em 1943 no seio de uma família artística, Robert De Niro consolidou-se não só como um dos grandes actores da sua geração, mas também como um dos mafiosos-mor do cinema americano. Obviamente que não faltam na sua filmografia, que este ano celebra o 45º aniversário desde que foi descoberto por Brian De Palma num casting em Nova Iorque, para Greetings, dezenas de exemplos de uma versatilidade ímpar, mas sejam eles reais ou imaginários, cómicos ou extremamente agressivos, os gangsters tornaram-se rapidamente numa presença regular na sua galeria de personagens. Conhecido como um dos mais fiéis seguidores do método de Lee Strasberg, a sua descendência ítalo-irlandesa e a educação nas ruas de Nova Iorque semelhante à de um dos seus colabores favoritos, Martin Scorsese, terá contribuído sobremaneira para entrar na mente de tão violentas figuras. Dono de uma intensidade invulgar, Robert De Niro tanto pode explodir na pele de um jovem gangster de rua (Mean Streets) ou de um experiente Al Capone no auge da sua autoridade (Os Intocáveis), como revelar-se um calculista meticuloso (Goodfellas, Heat, Casino) ou simplesmente um bronco sem grande talento para o crime (Jackie Brown). De Scorsese a De Palma, de Coppola a Leone, passando por Tarantino ou Michael Mann e acabando, para já, em Luc Besson, todos estes autores souberam tirar o melhor partido do seu talento camaleónico e intensidade capazes dominar uma sala com um simples olhar na direcção certa, mesmo quando tem de ser directamente comparado ao seu ídolo Marlon Brando. Não exageramos de todo ao afirmar que a sua carreira daria por si só um número à parte da Take, e mesmo se nos últimos anos parece mais relaxado na escolha dos projectos e na entrega aos respectivos papéis, já deu provas mais do que suficientes de que será completamente impossível passar ao lado da História do Cinema. Robert De Niro é a História do Cinema. E os seus pequenos e grandes mafiosos em muito contribuem para tal.


5 FACES DE DON DE NIRO MEAN STREETS - OS CAVALEIROS DO ASFALTO (1973) Foi há 40 anos atrás que Robert De Niro explodiu no grande ecrã. Recomendado pelo seu grande amigo e colega Brian De Palma, que lhe lançou a carreira, Martin Scorsese escolheu De Niro para dar corpo a Johnny Boy, um pequeno mafioso de rua de trato difícil e capaz de partir para a violência a qualquer instante. Começamos por o ver a rebentar com uma caixa de correio, e depois ao chegar a um bar rodeado de duas belas jovens ao som dos Rolling Stones, numa das entradas em cena mais cool que se pode imaginar. Harvey Keitel, em voz off, bem nos avisa dos problemas que chegam com ele e nós, meros espectadores, não conseguimos fazer nada senão admirar o seu talento cru.

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O PADRINHO - PARTE II (1974)

A BRONX TALE - UM BAIRRO EM NOVA IORQUE (1993)

Se há maneira de perceber o grau de versatilidade do talento do actor, não precisamos de procurar além da sequela do grande sucesso de Francis Ford Coppola. Escolhido para interpretar um jovem Don Corleone dois anos após Marlon Brando ter imortalizado a personagem no primeiro filme, De Niro não só o faz de forma exemplar, mostrando ao mundo o seu absoluto domínio na composição física (os gestos e maneirismos recuperados de Brando e incluídos de forma subtil ao longo do filme), mas fá-lo em completa oposição ao seu trabalho anterior, com a energia violenta de Johnny Boy a dar corpo a uma ponderação não menos violenta e igualmente ameaçadora enquanto o seu Vito se transforma no inesquecível Don. Se Os Cavaleiros do Asfalto chamou a atenção de Hollywood, O Padrinho - Parte II colocou-o no topo do mundo, dando-lhe o seu primeiro grande sucesso e um Oscar de Melhor Actor Secundário para acompanhar.

Já mais do que estabelecido como um dos nomes maiores do cinema americano do seu tempo, Robert De Niro estreou-se há 20 anos atrás das câmaras com este discreto mas excelente filme sobre um jovem dividido entre a vida honesta e um mafioso local que o toma como discípulo. Com ecos de Era uma Vez na América e Tudo Bons Rapazes, De Niro mostra um grande controlo da câmara, tornando evidente que aprendeu bem as lições dos realizadores mais talentosos com quem trabalhou. Mesmo podendo parecer à primeira vista território demasiado familiar (até Joe Pesci faz parte do elenco), não deixa de ser um marco na sua carreira e um título a reter nessa grande filmografia. Desde então, De Niro apenas voltou a realizar O Bom Pastor (2006), também ele um título de méritos próprios.

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JACKIE BROWN (1997)

ANALYSE THIS! (1999)

Tido por muitos como a última grande interpretação do actor, De Niro revela-se que nem peixe na água sob a direcção de Tarantino (fãs assumidíssimo do seu trabalho no geral, e de Taxi Driver em particular) e das palavras que este adapta do romance do recentemente falecido Elmore Leonard. Com uma subtileza cómica impecável, o seu Louis é um pequeno criminoso que, depois de sair da prisão se associa a um traficante de armas. Apesar de secundária, a sua presença é ganha logo à partida pelo físico desengonçado e aparentes dificuldades de raciocínio. Claro que, como sempre em Tarantino, a habitual pacatez pode ser a qualquer momento interrompida por uma manifestação repentina de violência, nem que seja por motivos tão simples quanto um lugar de estacionamento. Tal como o próprio filme na carreira do seu realizador, a interpretação pode passar facilmente despercebida no contexto geral da sua obra, mas será das mais preciosas pérolas lá escondidas.

Depois de uma carreira a dar corpo a alguns dos mais inesquecíveis mafiosos do cinema, era inevitável que a certa altura se seguisse a auto-paródia. Uma Questão de Nervos é uma ligeira comédia sobre um poderoso chefe mafioso (De Niro) com crises de ansiedade que acaba no divã de um psiquiatra (Billy Crystal). Curiosamente estreado no mesmo ano em que Os Sopranos tornaram um conceito semelhante numa das melhores séries da história da televisão (e da qual daremos boa conta nestas páginas), o filme consegue manter o humor a um nível relativamente elevado e oferece-nos o prazer de ver o talentoso actor num registo mais descontraído do qual se safa bastante bem na boa companhia de Crystal e Lisa Kudrow. Infelizmente, em vez de se tratar de um intervalo entre papéis realmente marcantes, Uma Questão de Nervos marcou o início de uma entrada em projectos pouco relevantes e interpretações desinspiradas, na comédia ou fora dela, entre eles uma muito menos inspirada sequela em 2002.

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MALAVITA Título internacional: The Family Realização: Luc Besson Elenco: Robert De Niro, Michelle Pfeiffer, Dianna Agron Ano: 2013

Seja como argumentista ou produtor, os mais recentes sucessos de Luc Besson têm passado pelo cruzamento entre dos meios da grande produção americana em contexto europeu (com Taken como um de muitos exemplos). Em The Family, o francês assume desta vez as rédeas na realização, contando com o apoio diante das câmaras de actores do peso de Robert De Niro, Michelle Pfeiffer e Tommy Lee Jones, e atrás das mesmas com um produtor executivo de nome Martin Scorsese. A história: um mafioso (De Niro) e a sua família encontram-se em França ao abrigo do programa de protecção de testemunhas e tudo se desenvolve entre as dificuldades de adaptação a uma cultura e lingua tão distintas e a descoberta do seu paradeiro por uma organização criminosa sedenta de um ajuste de contas. Apresentado como uma comédia de acção, The Family aparentemente terá tudo no sítio para oferecer entretenimento de qualidade.


LA BELLA MAFIA Não seria justo abordar a conturbada relação da Cosa Nostra com a Sétima Arte sem passar pela casa de partida, ou seja, o cinema italiano e as suas mais corajosas incursões por um assunto sensível - para não dizer tabu - para todos aqueles cujo Canto dos Italianos de Goffredo Mameli representa o hino nacional. Do realista e comovente La Siciliana Ribelle ao político Il Divo, sem esquecer o conceituado e violento Gomorrah, os colaboradores da nossa revista escolheram cinco obras cinematográficas italianas que, entre as suas diferenças de contexto e de estilo, permitem oferecer ao leitor uma panorâmica geral sobre a influência e importância da máfia italiana na vida e história de um país cuja riqueza cultural contrasta em grande escala com a corrupção que corrói a sua sociedade aos mais diversos níveis. 62


LE CONSEGUENZE DELL’AMORE

Título nacional: As Consequências do Amor Realização: Paolo Sorrentino Elenco: Toni Servillo, Olivia Magnani, Adriano Giannini

2004 PEDRO MIGUEL FERNANDES

Titta di Girolamo é um homem solitário que vive num hotel suíço. No seu quotidiano bastante monótono, que inclui a entrega de uma mala cheia de dinheiro num banco local de vez em quando, faz pequenas reflexões sobre o que se passa à sua volta e acaba por se apaixonar pela empregada do bar do hotel. É esta aproximação e a paixão que daí nasce que nos leva a descobrir aos poucos a história por detrás deste misterioso homem, personagem principal de As Consequências do Amor, a obra que deu fama a Paolo Sorrentino. Este segundo filme do italiano, mais uma colaboração com Toni Servillo (com quem já tinha trabalhado na estreia e que mais tarde teria uma interpretação excepcional em Il Divo - A Vida Espectacular de Giulio Andreotti), não é propriamente um tradicional filme sobre a Máfia, que apenas aparece quase no final (o título é de certa forma irónico),

quando descobrimos as ligações do passado de Titta que o levaram ao exílio forçado na Suíça. Os clichés ficaram de parte, o que torna As Consequências do Amor um filme de certa forma arrojado na abordagem ao género. Contudo nem sempre convence, pois nota-se que a vontade de querer mostrar um certo estilo pessoal acaba por afectar o conjunto do filme, tal é a quantidade de maneirismos e uma montagem que por vezes peca pelo exagero (e acaba por funcionar melhor, por exemplo, em Il Divo). Paolo Sorrentino assina uma obra curiosa, com a ajuda de uma grande interpretação de Toni Servillo, colaborador habitual dos seus restantes filmes, mas não conseguiu evitar deixar à mostra algumas falhas de um quase principiante a mãos com uma segunda obra.

“(...) não é propriamente um tradicional filme sobre a Máfia (...)”

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GOMORRAH

Título nacional: Gomorra Realização: Matteo Garrone Elenco: Gianfelice Imparato, Salvatore Abruzzese, Toni Servillo

2008 SARA GALVÃO

Todos sabemos que a Máfia não é O Padrinho, e a realidade de uma vida de crime não é, de maneira nenhuma, glamorosa. Mario Garrone sabe disso, e em Gomorra dá-nos um olhar sobre as coisas como elas são. Infelizmente para ele, muitos dos filmes sobre a Máfia dos últimos tempos fazem exactamente a mesma coisa, e com mais sucesso, e isto pondo de lado por momentos Os Sopranos. Acrescente-se que as coisas como elas são, ou seja, a vida real, tende a ser aborrecida e inconsequente, dois pecados nominais no grande ecrã. Com uma trama de personagens de fazer inveja a um filme de Iñárritu, mas sem a paciência para nos fazer simpatizar com qualquer uma delas, Gomorra é só mais um “filme europeu”, no mau e depreciativo sentido da palavra, que por acaso é sobre uma das mais famosas máfias italianas, a Camorra. Também infelizmente, quer ser muito mais do que isso - uma

reflexão sobre a falta de sentido da vida, e a facilidade com que se deixa de fazer parte dela, sobretudo se se tiver o azar de viver num ambiente propício à criminalidade. Claro, há quem aclame Gomorra como uma pérola da cinematografia europeia, mas desconfiamos que quem o faça não esteja habituado a filmes não-americanos de todo; em Gomorra, com a falta de profundidade e humanidade das personagens, a única coisa que causa uma verdadeira impressão são os súbitos efeitos sonoros das balas, mais do que a morte das criaturas que se passeiam à frente delas.

Tony Montana!

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IL DIVO

Título nacional: Il Divo - A Vida Espectacular de Giulio Andreotti Realização: Paolo Sorrentino Elenco: Toni Servillo, Anna Bonaiuto, Giulio Bosetti

2008 CARLOS REIS

Giulio Andreotti, sete vezes Primeiro-Ministro italiano, foi uma das figuras políticas mais importantes e controversas do pós-Guerra em Itália. Il Divo, realizado pelo excêntrico Paolo Sorrentino, recria em tom satíricobiográfico o seu sétimo e último mandato enquanto Primeiro-Ministro, aquele em que enfrentou a justiça devido às suas ligações à Máfia, perdeu a eleição a Presidente da República de forma contundente e viu a sua credibilidade ser totalmente devastada pela imprensa e pelo Senado. Vencedor do Prémio do Júri no Festival de Cannes de 2008, Il Divo - A Vida Espectacular de Giulio Andreotti condensa o bem e o mal de uma personalidade singular num retrato de estilo caricato, que arranca em dificuldade - muitas personagens e demasiados simbolismos dificultam a compreensão do contexto e da narrativa a quem é apresentado pela primeira vez a todo este "circo" sociopolítico - mas termina em beleza, com magníficos diálogos - destaque para o duelo entre o fruto

do acaso e a vontade de Deus -, provocações ao espectador e várias zonas cinzentas na história de um Homem cujo poder se alimentava na sombra. Sorrentino brinca com os planos e com a respectiva sonoplastia, toma partido em enigmas ainda hoje factualmente misteriosos - como o encontro d'O Papa Negro com "A Besta" - e choca o espectador contrariando imagens a desmentidos verbais. Andreotti acaba por servir a Sorrentino enquanto espelho ustório de uma Itália cujo sistema político continua autista, fechado em si próprio, acima da justiça e dos tribunais; prova disso mesmo foi Andreotti, condenado posteriormente aos acontecimentos relatados no filme a mais de vinte anos de prisão pelo envolvimento com a Máfia em vários crimes, mas que acabaria no entanto por ver a sua sentença ser anulada pelo Senado, que o considerou intocável. Destaque final para o papelão de Toni Servillo, napolitano cuja carreira neste género criminal tem-se revelado intocável. “(...) condensa o bem e o mal de uma personalidade singular (...)”

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LA SICILIANA RIBELLE

Título nacional: La Siciliana Ribelle Realização: Marco Amenta Elenco: Veronica D’Agostino, Gérard Jugnot, Marcello Mazzarella

2008 CARLOS REIS

La Siciliana Ribelle narra a história verídica de Rita Atria, uma rapariga cujo testemunho e diários de adolescência foram fundamentais para colocar atrás das grades dezenas dos mais influentes mafiosos sicilianos, naquela que foi até hoje uma das operações anti-máfia de maior sucesso em Itália, decorria o ano de 1992. O que começou como uma demanda por vingança de uma jovem rapariga cujo pai e irmão - também eles mafiosos respeitados no meio - tinham visto o feitiço virar-se contra o feiticeiro em disputas locais, acaba por acompanhar o crescimento interior e exterior de Rita, contra tudo e contra todos, até fazer-se justiça. Bastante fiel à história que lhe dá origem, The Sicilian Girl revela-se uma experiência cinematográfica que presta tributo de forma competente à curta mas significativa vida de uma heroína para muitos desconhecida. Partindo de um documentário do final dos anos noventa também realizado por Marco Amenta, o realizador italiano oferece agora uma

versão ficcionada de uma epopeia judicial e criminal que comoveu um país, dando tempo às personagens para criar laços com a audiência, focando-se sempre no ponto de vista de Rita, deixando quase todos os crimes relatados pela mesma ao critério da imaginação do espectador. Não há distracções com planos violentos ou chocantes, deixando toda a atenção numa mão cheia de interpretações fenomenais, como as dos experientes Gerard Jugnot ou Marcello Mazzarella. Curiosamente, acaba por ser a protagonista Veronica D'Agostino a deixar algo a desejar, muitas vezes num overacting desnecessário pouco adequado à fragilidade emocional em que a sua personagem se encontrava. Ainda assim, nada que o deva afastar de um relato fidedigno obrigatório para qualquer curioso sobre a relação desavergonhada entre a máfia siciliana e o estado italiano.

“(...) uma versão ficcionada de uma epopeia judicial e criminal que comoveu um país (...)"

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UNA VITA TRANQUILLA

Título internacional: A Quiet Life Realização: Claudio Cupellini Elenco: Toni Servillo, Marco D’Amore, Francesco Di Leva

2010 CARLOS REIS

Rosario Russo (Toni Servillo) é o dono de um restaurante italiano perto de Frankfurt, na Alemanha, figura simpática e querida para todos os que o conhecem. Ninguém faz ideia que, quinze anos antes, Rosario era um mafioso com trinta e dois assassinatos na carteira e um estatuto ímpar no meio. Mas quando o feitiço virou-se contra o feiticeiro e a sua cabeça ficou a prémio, desapareceu do radar napolitano para proteger a sua família e começou esta nova vida, uma vida tranquila, longe de tudo e todos, com uma nova identidade, uma nova família e um novo ofício. Mas o passado volta agora para acertar contas na pele do seu filho Diego, também ele um criminoso em ascensão na máfia, o único que tinha conhecimento do paradeiro de Rosario. Realizado por Claudio Cupellini, Una Vita Tranquilla revela-se um thriller criminal dividido em duas partes com um ritmo totalmente antagónico: uma primeira de construção de identidades, que arde

lentamente entre planos longos - destaque para o da cozinha - e uma bela fotografia, mas algo cansativa narrativamente para o espectador na sua excessiva serenidade; e uma segunda, onde o ambiente tornase intenso, as máscaras caiem e o espectador é presenteado com um final corajoso. Longe de ser uma obra-prima, A Quiet Life (a fita não tem ainda distribuição ou título em território nacional) é, ainda assim, um belo exemplo cinematográfico da influência de um passado criminoso na vida de um "novo" ser, de uma relação pai-filho deturpada pela máfia e das vulnerabilidades a que um homem se sujeita por aqueles que ama. Comandado por um fantástico Toni Servillo, é ele o maior trunfo da história; nos seus olhos sentimos a frustração e a dor de uma personagem que sabe que o fim está próximo. Uma alternativa similar, mas muito competente, para os adeptos de A History of Violence.

“(...) um belo exemplo cinematográfico da influência de um passado criminoso na vida de um "novo" ser (...)"

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Os filmes sobre a Máfia sempre foram um tema mais ou menos recorrente em Hollywood, mas foi a trilogia O Padrinho, que marcou o género. Existe um antes e um depois dos filmes de Francis Ford Coppola, que passaram a servir de modelo a todos os outros que vieram a seguir. E Marlon Brando, na pele de Don Vito Corleone, passou a ser o padrinho a quem todos os mafiosos seguintes vieram pedir a benção.

TRILOGIA O PADRINHO

UMA OFERTA QUE NINGUÉM PODE RECUSAR PEDRO SOARES

Existe um episódio na quarta série do Family Guy em que Petter Griffin, quase a morrer afogado trancado numa sala de pânico a encher aos poucos de água, faz uma confissão ao resto da família: afinal, ele não gostou lá muito de O Padrinho. As reações são automáticas e durante minuto e meio tenta-se perceber como é que ele não gostou dum “filme perfeito”. De facto, é assim que decorre qualquer discussão com alguém que diga o mesmo, que não gostou do filme. Sentimo-nos chocados, indignados e revoltados. É que a trilogia de Coppola, especialmente os dois primeiros títulos, são mesmo filmes perfeitos. E é impossível não gostar. Com o primeiro filme lançado originalmente em 1972 e o último em 1990, O Padrinho – adaptado originalmente do romance homónimo de Mario Puzo, num raro caso em que o filme é mesmo melhor que o livro – , é um épico sobre a família Corleone, desde a sua origem na Sicília, até ao seu estabelecimento em Nova Iorque como uma dos nomes mais influentes do sub-mundo do crime organizado durante três gerações. Aclamados pela crítica e pelo público, os três filmes receberam, ao todo, dez Oscares (incluindo os de melhor actor, melhor realizador e melhor filme) e outras catorze nomeações. E até dois Razzies (ambos para Sofia Coppola, enquanto pior revelação e pior actriz secundária, o que a deixou traumatizada, afastada de vez da representação e obcecada em realizar filmes sobre adolescentes alienados pelos focos da fama), o que mostra

o quão completos foram. Se a prestação de Sofia Coppola se destacou pela negativa, do lado oposto várias outras se destacaram pela positiva. A começar logo por Marlon Brando, claro, na pele do patriarca Corleone, que com a sua boca cheia de favas se tornou num ícone de todos os mafiosos, fazendo ofertas irrecusáveis e estabelecendo a sua família em Nova Iorque, lançando as raízes para o que viria depois. Seria também o princípio do fim da carreira de Brando, que ainda teria no mesmo ano O Último Tango Paris. A seguir veio um Apocalypse Now já meio deformado e mergulhado na escuridão, um Super-Homem pago a peso de ouro e um par de títulos esquecíveis. No entanto, não se pode falar de O Padrinho sem se falar também de Robert de Niro e, especialmente, Al Pacino. Se o primeiro já tinha dado um ar da sua graça em Os Cavaleiros do Asfalto, o segundo teria aqui a sua estreia a sério, surpreendendo tudo e todos. E se Pacino foi injustiçado pela Academia, que preferiu premiar Art Carney em 1975, já De Niro conseguiu a proeza de ganhar a estatueta dourada pela mesma personagem de Marlon Brando: a de Vito Corleone, versão nova. Já Andy Garcia, protagonista do terceiro e último episódio, não conseguiu repetir o sucesso dos seus antecessores. No entanto, este parágrafo não poderia terminar sem a merecida referência a Robert Duvall e a Diane Keaton, que é das poucas a entrar nos três filmes.

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O PADRINHO

É difícil escrever sobre um filme sobre o qual já tudo foi escrito. Poderemos começar por dizer que O Padrinho é uma obra-prima, mas isso seria começar o texto pelo fim. Em 1972, Coppola iniciava assim sua trilogia com um filme de gangsters sobre a máfia italiana em Nova Iorque, apesar de nunca ser mencionada a própria palavra. Don Corleone (Marlon Brando) é o chefe de uma das mais importantes famílias, mas as suas ideias começam a tornar-se obsoletas, uma vez que não acompanharam o progresso dos tempos. É que Don Corleone não acredita na droga como negócio, apesar de ser no pó branco que reside a grande fatia do negócio do submundo. Vai estalar então uma guerra aberta entre as seis famílias da máfia nos Estados Unidos, nunca uma guerra pessoal, mas sempre uma guerra de negócios. Vão haver perdas lamentáveis de pais e filhos, traições, mas sempre muita honra e dignidade. Retrato perfeito do universo social do submundo do crime na América dos anos 40/50, O Padrinho não é um simples filme de gangsters: é uma autêntica epopeia que acompanha a dinastia da família Corleone, desde o seu mais respeitável representante (Marlon Brando), até à passagem de testemunho ao seu sucessor, o filho Michael (Al Pacino), numa variação do mito do filho pródigo. E paralelamente à evolução da trama familiar, assiste-se a uma subtil mas fascinante evolução dos costumes americanos, na transição dos anos 40 para os anos 50.

1972 Título internacional: The Godfather Realização: Francis Ford Coppola Elenco: Marlon Brando, Al Pacino, James Caan, Robert Duvall, Diane Keaton

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Para a posterioridade, três imagens de marca: o tema homónimo, que anos depois ficaria imortalizado para a cultura popular pela guitarra eléctrica de Slash, o guitarrista dos Guns n' Roses; a aposta no desconhecido Al Pacino, que se fosse um lance na roleta de um casino teria dado milhões e milhões; e a mítica cena da cabeça do cavalo na cama, que se tornou sinónimo de todas as ofertas irrecusáveis.

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O PADRINHO: PARTE II

O segundo episódio de O Padrinho assomava-se luma tarefa ingrata, uma vez que vinha suceder a uma obra-prima. No entanto, Francis Ford Coppola e Mario Puzo não se atemorizaram e o resultado volta a roçar a perfeição. O Padrinho – Parte II é, aliás, considerado por muitos superior ao primeiro filme, tendo coleccionado inclusive estatuetas douradas. Se o primeiro episódio era um raro caso em que o filme era melhor do que o livro, este segundo episódio é o raro caso em que a sequela é melhor que o anterior. Depois do falecimento de Vito Corleone, pensava-se que a segunda parte da trilogia iria projectar o domínio de Michael Corleone à frente da família e a uma nova ascenção desta, graças ao mundo do jogo de Las Vegas. No entanto, Coppola foi mais além e, com um golpe de asa, transformou simultaneamente O Padrinho - Parte II numa prequela, ao retratar a origem de Vito Corleone (agora interpretado por Robert de Niro), que se move paralela à história actual, mas como que uma metáfora e uma crónica de um destino anunciado. A família Corleone está então mais próspera do que nunca, mas em contrapartida está também mais vulnerável, devido à perda de valores como a honra e o respeito, subjugados pelos valores contemporâneos do dinheiro é poder. Michael vai ver a sua vida atentada e a traição parte, desta vez, de dentro da sua casa. O espectro de uma guerra entre famílias vai pairar novamente, mas desta vez tem proporções mais alargadas,

1974 Título internacional: The Godfather: Part II Realização: Francis Ford Coppola Elenco: Al Pacino, Robert De Niro, Robert Duvall, Diane Keaton

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consequências dum império expandido. Mais uma vez, não é só a epopeia de uma dinastia, como retrata paralelamente a evolução da América dos anos 50, projectando-se até Cuba, onde apanha estilhaços históricos reais de guerrilhas comandadas por Fidel Castro. O Padrinho - Parte II é um filme mais negro e pessimista - Michael chega mesmo a confidenciar à mãe que "perdeu a família" -, e ao mesmo tempo, mais cruel e violento - pela primeira vez é pronunciada a palavra "máfia" e pela primeira vez vemos Vito Corleone a matar alguém. Sempre dentro dos mesmos moldes de O Padrinho, esta segunda parte é o segundo filme perfeito da trilogia.

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O PADRINHO: PARTE III

Poucos acreditavam que a saga da família Corleone viesse mesmo a transformar-se numa trilogia. Apesar de não ter sido novamente a primeira escolha (chegou-se a falar inclusive de Sylvester Stallone(!)), Francis Ford Coppola realizou mesmo este terceiro tomo, em 1990, sem as pressões dos outros dois títulos. No entanto, curiosamente, o realizador assinou aqui o pior episódio da trilogia. Não é que seja um mau filme; mas quando os outros dois têm aquela qualidade, tudo o que seja abaixo da obra-prima é visto com desconfiança. O Padrinho - Parte III segue o fio de raciocínio dos seus antecessores: continua a narrar a evolução da família Corleone, desta vez com um salto temporal maior, até aos anos 90, e mantém um interessante jogo de espelhos com O Padrinho. Além disso, O Padrinho - Parte III mantém um crescendo evolutivo e sobe ainda mais a parada - e os negócios vão-se começar a realizar com o próprio Vaticano. Michael Corleone nunca quis ser aquele homem. Tinha até prometido a si próprio não seguir os negócios do pai, uma vez que não se identificava com a máfia. E para efectuar esse corte alistou-se desde logo na tropa. Mas o destino de um homem já está traçado e Michael acabou por suceder ao patriarca, Vito, tornando a família Corleone numa das mais respeitáveis e ricas do Mundo. Agora, neste terceira parte, Michael tenta a todo o custo legitimar os seus negócios, abandonando o submundo do crime. Mas definitivamente, já não tem os valores morais e familiares

1990 Título internacional: The Godfather: Part III Realização: Francis Ford Coppola Elenco: Al Pacino, Diane Keaton, Andy Garcia

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do seu lado, que perdera em O Padrinho – Parte II. A sua esperança recai então no filho bastardo do seu irmão, o tempestuoso Vincent (Andy Garcia). Há um defeito importante nesta terceira parte, que as outras duas não tinham: este é um filme breve. Além disso, é um argumento mais técnico do que táctico. Já não há guerras de gangues suficientemente credíveis, mas é preciso renovar o sangue da família, uma coisa inexplicável e cíclica. E Michael precisa de se redimir dos seus pecados. Por isso, se O Padrinho - Parte II era o episódio mais negro, O Padrinho – Parte III é o episódio mais introspectivo e pessoal. Na primeira parte revelava-se Al Pacino e na segunda Robert De Niro. Neste terceiro há Andy Garcia, a única personagem digna desse nome neste último capítulo, uma vez que Sofia Coppola pouca arte tem para representar (bendita hora em que decidiu dedicar-se à realização). Garcia tem aqui um desempenho bastante razoável, no papel de um gangster tempestuoso à moda antiga, com uma das cenas mais cool da triologia: quando dois homens armados o tentam assassinar na sua própria casa. O Padrinho – Parte III é o remate desta trilogia. Não vem contar nada de novo, apenas colocar um ponto final parágrafo na saga. Porque mesmo que surja um quarto capítulo (que o Diabo seja cego, surdo e mudo), nunca será uma sequela, uma vez que mais do que uma triologia, estes três filmes são a epopeia de uma dinastia. E a família Corleone ficou por aqui. 75


Š Hulton Archive


A MÁFIA QUE VEIO DE LESTE SARA GALVÃO

Os filmes de mafiosos tendem a ter sotaques bastante marcados - como género cinematográfico que nasceu nos Estados Unidos, começou por ser sobre os criminosos interinos, passando depois para os terríveis imigrantes italianos e irlandeses, até que a Itália e o Reino Unido - para falar só dos casos mais produtivos no Ocidente - resolveram entrar no comboio e apresentar ao mundo a sua própria versão da vida de crime, glorificada ou não. Mas isto é no grande ecrã. Se olharmos para o verdadeiro mundo do crime, não deixa de ser interessante que uma das Máfias mais perigosas do mundo, a que vem dos confins da antiga União Soviética, não parece ter uma representação muito activa nas mentes dos realizadores deste lado do muro. Faltar-lhe-á o estilo e fascínio da contraparte italiana? A influência da irlandesa? Ou será que se receia uma situação a la Semente do Diabo? A história da Máfia do outro lado da Cortina de Ferro tem origens bastante diferentes da de outras organizações ilegais europeias. Num país onde enganar o sistema sempre fez parte do sistema, qualquer forma de comércio com o Ocidente, fosse drogas ou jogos de Tetris, sempre foi visto como ilegal. Logo, qualquer pessoa que conseguisse fazer dinheiro em “negócios”, tivesse dólares para trocar ou vender, ou mesmo conseguisse viajar para dentro e fora do país sem grandes preocupações, era visto como um mafioso. Com a queda da União Soviética, e a rápida distribuição de uma quantidade incrível de riqueza por uns poucos oligarcas, os poderes mudaram de mãos e o terreno para a verdadeira organização criminal floresceu. Isto, aliado à entrada de filmes ocidentais que glorificam a imagem do criminoso, criou um verdadeiro fascínio com as actividades ilegais da Máfia, uma mistura de desejo e receio que se sublimou em muita literatura, mas que ainda não conseguiu, na nossa

opinião, uma verdadeira expressão no meio cinematográfico. Não estamos a falar da aparição ocasional ou quase marginal de mafiosos russos em Goldeneye, ou We Owe the Night. Estamos a falar do equivalente cirílico de O Padrinho, filmes que apresentem a máfia do leste não como uma pequena nota de rodapé (no sentido que tanto poderiam ser ucranianos como italianos como mesmo espanhóis), mas a mostra de todo um mundo e cultura, a criação de uma mitologia adequada à sétima arte. Até à data, Promessas Perigosas foi o filme que mais se aproximou de o fazer, e podemos também acrescentar, em outros níveis, Lord of War e RocknRolla, que ajudaram à imagem do mafioso russo frio, calculista, e insensível, em clara oposição ao explosivo e emocional italiano. O que é ainda mais estranho é que os documentários sobre a temática abundam, atestando o fascínio do público: destaque-se o excelente A Marca de Caim (2001), de Alix Lambert, que explica a história por detrás das tatuagens prisionais, ou o episódio dedicado à Máfia Russa na série Lords of the Mafia (2000). Como explicar então a ausência de uma verdadeira mitologia dramática sobre o assunto? Ou estaremos nós na época ideal para a realidade de uma máfia do leste, mas no Zeitgeist errado para a sua representação no cinema, tanto no inócuo cinema americano como no mais perigoso cinema russo nacional? Sendo a Máfia Russa um fenómeno recente, estaremos demasiado perto de casa para conforto? Será que, com o lento declínio da patina da Máfia Italiana no cinema internacional, o lugar de criminoso gentleman poderá ser preenchido por um camarada? Ou será que, tal como a própria ideologia Comunista, será roubado e aperfeiçoado pelo poderio asiático? Só o tempo o dirá. Lentamente, no entretanto, um esboço cinematográfica da Máfia do Leste vai emergindo.

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PROMESSAS PERIGOSAS (2007) VS. INFERNO VERMELHO (1988): DOIS PAÍSES, DUAS VISÕES OCIDENTAIS Há quase 20 anos entre Inferno Vermelho (Red Heat) e Promessas Perigosas (Eastern Promises), e muita coisa aconteceu nesses 20 anos o Muro caiu, a União Soviética acabou, e a Máfia Russa mudou de modelo administrativo. (mesmo assim, ambos os filmes partilham duas coisas em comum - um retrato de uma organização impiedosa, e uma cena de luta al natural em saunas). Inferno Vermelho conta a história do capitão soviético Ivan Danko (interpretado nem mais nem menos do que por Arnold Schwarzenegger) enviado para a América para prender o mafioso e traficante de droga Viktor Rosta, e que se torna no companheiro acidental e silencioso de Art Ridzik (James Belushi) que nunca, mas nunca, se cala. As peripécias são comuns a muitos outros buddy movies, com o extra apetitoso de alguns momentos de comédia à anos 80 que tornam o filme num estranho fenómeno de culto - desde a “hora de alimentar o periquito”, até a Danko e os seus problemas com a lei Miranda, passando pela seu desconhecimento absoluto de Dirty Harry (se bem que Ridzik viu Dr. Jivago). As comparações capitalismo/comunismo são na sua maioria inconsequentes, mas há momentos de crítica inteligente que quase parecem despropositados neste género de filme - como a cena de interrogação em que Ridzik tenta educar Danko sobre a lei Miranda e a protecção absoluta do indivíduo, algo completamente estranho para o sistema policial soviético, para depois plantar drogas no suspeito de forma a chantageá-lo. Mas se pusermos de lado por momentos a trama do filme e nos concentrarmos na imagem da Máfia Russa que o filme mostra, temos dois momentos-chave: o primeiro, quando Viktor Rosta fala do seu plano de exportar cocaína para a Rússia - “Qualquer país que tenha aguentado Estaline consegue lidar com uma drogazita” - e o outro quando Danko se encontra com Adbul na prisão, e este compara o comunismo com o racismo americano, ou seja, a exploração humana 78


tendo em vista o lucro de alguns. Para Abdul, vender drogas “a todos os brancos do mundo ... e às irmãs deles” é uma missão espiritual, política e económica. A Máfia Russa é assim vista pelo Ocidente, pré-queda do Comunismo, como a tentativa ilegal de fazer parte do sistema económico ocidental, num caso extremo de sonho americano que recompensa o criminoso mais inteligente e poderoso. Já em Promessas Perigosas, produzido 20 anos depois, a Máfia já não precisa de tecer louvores ao sistema capitalista; aproveitando as suas falhas, a Máfia do Leste, agora a viver fora da Mãe-Rússia, concentrase em criar uma mitologia própria, e em orgulhar-se do ser Russo. Os tempos da velha senhora são olhados com um certo desprezo (como se pode ver pela cena em que um cantor de temas soviéticos recebe olhares aborrecidos de uma anciã aniversariante), e o mundo é uma ostra. Isso não impede que o orgulho nacional continue, e o estrangeiro continua a ser visto como contágio - “Londres é uma cidade de prostitutas e maricas”, diz o patriarca Stepan a certo momento - e se há algo que os rituais e as tatuagens dos vor v zakone mostram, é um orgulho numa cultura que se redefiniu à pressa quando o mercado livre lhe arrombou a porta. A Máfia aqui já não lida só com a missão “espiritual” de distribuir droga e escapismo pelo mundo comunismo - aqui ela agarra em pessoas fascinadas com o sonho ocidental, como Tatiana, e explora-as, mostrando-lhe que nem sempre a relva do vizinho, que parecia mais verde à distância, o é. Tal como em Inferno Vermelho, os patrões não hesitam em limpar o rastro sem olhar a meios, seja matar os seus próprios homens, como até crianças recém-nascidas. Claro que no filme de Cronenberg a Máfia Russa não é para estômagos fracos - um crime de arma branca envolve muito mais que puxar o gatilho, e basta lembrarmos o olhar agoniado de Kirill quando Nikolai começa a “tratar” de um cadáver, ou seja, a cortar-lhe as pontas dos dedos para impedir a identificação. 79


estranho código de honra. Apesar do irmão o ter posto em perigo de vida, e o ter traído para salvar a própria pele, Danila perdoa-o porque, bem, ele é irmão e “costumava chamar-te Papá”. Em certo sentido, estamos perante um irmão fatal que faz estranha simetria com a femme fatale do film noir clássico. Já em Irmão 2, o universo muda drasticamente - Danila vive em Moscovo, namora com uma estrela pop, e parece completamente distanciado do mundo do crime. Mas quando um companheiro do exército é assassinado pela Máfia a mando de um patrão que vive nos Estados Unidos, Danila e o irmão vão à América resolver as coisas. Este rapaz comum, que consegue derrotar as mais intricadas redes criminosas, sem sequer considerar o perigo envolvido - para ele, “a verdade é poder real. Quem tem a verdade é forte” - rapidamente se tornou num ícone para a jovem sociedade russa de então, perdida entre velhos valores soviéticos e o novo mercado capitalista. E enquanto Danila, o novo herói moderno, salva o dia, derrota os mafiosos e salva uma prostituta ucraniana dos criminosos afroamericanos que a exploram, o irmão, velha guarda, deixa-se encantar pelo sonho capitalista, pondo mais uma vez em causa a visão do criminoso patriótico. O actor Sergey Bodnov Jr., depois de interpretar Danila, irá dedicar-se à realização com Irmã (2002), que olha para o fascínio pelo mundo de crime pelos olhos de uma rapariga. E mais recentemente, Чужая (A

MÃE-RÚSSIA: FILMES E SÉRIES PARA UMA NOVA ERA Mas como é que os camaradas vêm os seus próprios criminosos? Livres de estereótipos, será essa a verdadeira imagem da Máfia, ou continua a ser uma mitologia glorificada, criada e embelezada (mesmo que o embelezamento a torne ainda mais brutal e desprezível) para o grande ecrã? O cinema russo é bastante especifico culturalmente (e nisso extremamente semelhante com o caso português), e apenas certos filmes, geralmente de cariz artístico e/ou experimental, conseguem penetrar no mercado internacional. Os sucessos comerciais do cinema doméstico em casa são também extremamente raros. Uma das grandes excepções é Брат (Irmão). Realizado por Aleksei Balabanov, um raro exemplo de realizador comercial de sucesso em território russo, Irmão (1997) e a sequela, Irmão 2 (2000), não poderiam ser mais diferentes. Ambos partilham o mesmo protagonista, Danila, que no primeiro filme regressa a casa depois de estar no exército num escritório, supostamente, e que se tenta integrar de novo na sociedade que deixou. Ao ir a São Petersburgo para trabalhar com o irmão, que por acaso está envolvido na trama mafiosa da cidade, Danila mostra que, apesar de parecer um miúdo de 12 anos inofensivo e obcecado com Nautilus, ele é um inteligentíssimo assassino a sangue frio, com um 80


Rapariga Estrangeira, 2010) mostra uma assassina checoslovaca que consegue surpreender (leia-se, matar) tudo e todos quando mafiosos russos a tentar apanhar, num filme cuja violência faz muito bom filme de gangsters parecer um filme da Disney. Curiosamente, é na televisão que encontramos os melhores exemplos e retratos do mundo criminal russo. Com Место встречи изменить нельзя (O Ponto de Encontro Não Pode Ser Mudado), uma mini-série soviética de 1979 que mistura um espião reformado e um gangue de mafiosos, ou Бригада (Lei dos Sem-Lei), outra mini-série, esta de 2002, ambas bastante populares na Rússia, a mitologia de uma Máfia do Leste começa a formar-se nos olhos da audiência nacional. Mas o caso mais interessante vem curiosamente de alguém que quer acabar com a visão glorificada e americanizada da Máfia Russa. E quem melhor para o fazer do que um mafioso em pessoa? Sim. Um mafioso russo, Vitali Dyomochka, tomou a seu cargo realizar a primeira série de televisão sobre a máfia protagonizada e realizada pelos próprios. Numa mistura de reality show com drama - e o momento cómico ocasional quando a polícia resolve interromper as filmagens, o que parece acontecer constantemente - Dyomochka quer que o público em geral saiba como as coisas funcionam realmente. Os valores de produção não são muito grandes, e quem se dedica a uma vida de crime não tem muito tempo para aprender os princípios fundamentais de

realização, mas, sejamos honestos, quem é o crítico televisivo que ousará criticar tal empresa, e arriscar acordar transformado em extra “acidental” da série? Ou como Dyomochka disse numa entrevista, “ninguém pode criticar a nossa série, porque isto é a nossa vida real”. Ameaça compreendida e recebida. Спец (“Spetz”), como era esperado, criou toda uma série de reflexões morais e éticas, apesar de ter sido apenas mostrada num canal regional (mas mesmo assim conseguiu atingir audiências altíssimas). Tudo bem quando Michael Corleone entra num restaurante e vinga o pai, mas ver violência baseada em factos verídicos, reinterpretada pelos próprios actores da violência? Infelizmente ainda não há uma versão legendada da série, e duvidamos que consiga ser vendida a canais internacionais ou mostrada de todo fora das fronteiras russas, mas no jogo de “filme mafioso mais próximo da verdadeira realidade”, Спец certamente ganha por mais do que uma cabeça de cavalo.

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QUEM SE YAKUSA?

Numa Take Cinema Magazine dedicada aos filmes de gangsters, decidimos viajar em direcção ao continente asiático e deliciarnos com algumas obras oriundas do Japão, Hong Kong e Coreia do Sul, que surgem relacionadas com a temática. A lista de obras criticadas não é um top, nem um exercício exaustivo sobre os filmes oriundos deste continente, mas sim um conjunto de peliculas seleccionadas que permitem apresentar um grupo de gangsters marcantes, embora as ausências sejam muitas (veja-se o caso das obras de Kinji Fukasaku). Temos assim presentes obras de Johnnie To, John Woo, Alan Mak e Andrew Lau, que nos deixam perante elementos ligados às tríades; Takeshi Kitano, Seijun Suzuki e Hideo Gosha, cujos filmes nos apresentam a elementos distintos ligados à yakuza, com o primeiro a centrar-se num gangster desiludido, o segundo a centrar-se num criminoso que se procura afastar do crime organizado e o terceiro a focar-se nas esposas destes indivíduos. Por fim, mas nem por isso menos importante, temos ainda Kim Jee-woon, que nos desloca das tríades e yakuza para a máfia coreana.


TÔKYÔ NAGAREMONO

Título internacional: Tokyo Drifter Realização: Seijun Suzuki Elenco: Tetsuya Watari, Chieko Matsubara, Tamio Kawaji

1966 PEDRO MIGUEL FERNANDES

A vida não está fácil para Tetsuya, um antigo membro de um gangue da máfia de Tóquio que se vê obrigado a abandonar a carreira de criminoso quando o líder do grupo resolve desistir dos negócios ilícitos. Mas nem tudo é o que parece em Tokyo Drifter e cedo o ex-criminoso, que tinha feito um voto de fé para deixar de lado o passado, acaba por ser apanhado numa complexa trama de traições e contra-golpes protagonizada por amigos e rivais, que o leva a vaguear pelo Japão. Em traços gerais é esta a história de Tokyo Drifter, um dos títulos mais populares da filmografia de Seijun Suzuki, mestre japonês da série B que durante a década de 1960 alcançou fama nos estúdios Nikkatsu, onde à boa maneira deste género de filmes chegou a realizar quatro e cinco filmes por ano. Com uma forte carga autoral, como já sucedia noutros títulos do

cineasta nipónico (para os interessados em conhecer outras obras do realizador, considerado um dos nomes a reter da Nova Vaga no Japão, recomendamos a visualização de Youth of the Beast ou Branded to Kill), esta é a história de um homem de princípios em fuga do seu passado. Apesar de ter alguns elementos que puxam por um lado mais popular, como as várias sequências de duelos violentos, magistralmente filmadas e que por vezes reconhecemos em obras posteriores de outros cineastas que vieram beber muito ao universo de Suzuki, com cores bastante fortes em alguns casos, acaba por ser o toque pessoal do cineasta, que coloca as regras do cinema de autor ao serviço de um género por vezes considerado menor, a fazer de Tokyo Drifter um filme de culto bastante recomendável.

“(...) esta é a história de um homem de princípios em fuga do seu passado."

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GOKUDO NO ONNA-TACHI

Título intenacional: The Yakuza Wives Realização: Hideo Gosha Elenco: Shima Iwashita, Rino Katase, Masanori Sera

1986 ANÍBAL SANTIAGO

Tendo como base uma reportagem desenvolvida por Shoko Ieda, The Yakuza Wives, um filme realizado por Hideo Gosha, centra-se, como o título indica, nas esposas dos elementos da yakuza, em particular em Tamaki (Iwashita), a esposa de um gangster que se encontra preso, e Makoto (Katase), a irmã mais nova desta. No meio da história destas mulheres temos a máfia em plena convulsão devido à morte do líder do grupo Domoto e ao facto do seu sucessor não ter agradado a todas as facções. Durante uma viagem pré-casamento, Makoto é violada por Sugita, um gangster do grupo rival da irmã, uma situação que a conduz a desistir de casar e a iniciar uma bizarra relação matrimonial com o violador, algo que coloca em causa a relação desta com Tamaki. Estamos assim perante uma obra com vários elementos típicos dos filmes centrados em elementos da yakuza, não faltando as disputas de

poder, as relações intrincadas entre os grupos, as traições, violência e mortes, embora The Yakuza Wives se destaque pelo relevo que dá às personagens femininas. Gosha não efectua uma abordagem feminina da temática, mas sim algo mais lato, procurando explorar o mundo masculino e as mulheres que acompanham esses homens, traçandose um quadro geral deveras interessante. No meio destas mulheres sobressai Tamaki, interpretada com engenho por Iwashita, uma mulher dura a gerir o grupo do marido, que contrasta com a fragilidade de Makoto. Ficamos assim com a representação de um universo narrativo negro e violento, onde as mulheres têm um lugar de destaque no mundo dos gangsters e cedo percebermos estar diante de uma obra que procura explorar este mundo numa amplitude rara de se ver neste género de filmes. “(...) a representação de um universo narrativo negro e violento (...)”

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DIP HUET SEUNG HUNG

Título internacional: The Killer Realização: John Woo Elenco: Yun-Fat Chow, Danny Lee, Sally Yeh

1989 ANÍBAL SANTIAGO

The Killer surge como um filme de acção inquietante e violento, tendo uma das suas maiores qualidades no desenvolvimento dos personagens e dos seus relacionamentos nem sempre lineares, onde Ah Jong (Yun-Fat), um elemento da tríade, procura receber o dinheiro do seu último assalto, tendo em vista pagar o transplante da córnea de Jennie, uma cantora de um clube nocturno que feriu inadvertidamente e se encontra praticamente cega. No entanto, Ah-Jong logo é perseguido por elementos da tríade devido a não ter cumprido as regras, bem como pelas autoridades, formando pelo caminho uma relação afectiva com Jennie e de respeito mútuo com Li Ying (Lee), o polícia que o segue, existindo toda uma complexidade bastante interessante a rodear estas figuras e as ligações que criam entre si, numa obra marcada por violência em doses colossais mas sentidas, coreografias bem elaboradas, adensadas

por um trabalho de fotografia exemplar, onde não falta muito sangue, mortes e balas a bailar pelo ar. Esta violência é contrastada inicialmente com o espaço da igreja e das pombas brancas, símbolos de paz, até John Woo conspurcar este local sagrado e os seus símbolos com um tiroteio frenético, numa obra onde a religião está presente, com o protagonista a procurar a redenção. No fundo, Ah Jong acaba um pouco por ser como Roy Earle, o protagonista de High Sierra, um gangster deslocado do seu tempo, com valores e morais distintas, permitindo a John Woo espelhar os laços de lealdade, honra e amizade deste com aqueles em quem confia, ao mesmo tempo que explora a complexidade no interior das estruturas da Tríade, numa obra onde a violência raramente se sobrepõe à relevância dos personagens.

“(...) obra marcada por violência em doses colossais mas sentidas (...)”

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SONATINE

Título internacional: Sonatina Realização: Takeshi Kitano Elenco: Takeshi Kitano, Aya Kokumai, Tetsu Watanabe

1993 ANÍBAL SANTIAGO

Um tiroteio violento ocorre no interior de um edifício, enquanto o espectador praticamente só vê as luzes que irrompem pela janela e ouve o som explosivo dos tiros, qual fogo de artifício que voa pelos céus. Ao contrário do fogo de artifício, estas luzes não trazem esperança, não trazem sonho, apenas morte e desilusão. A fugacidade da vida é exemplarmente demonstrada por estas luzes que se acendem e se apagam à mesma velocidade que a alma humana pode escapar-se ao mundo terreno. Se pretendia ver esse tiroteio na sua totalidade pode esquecer essa ideia, pois Takeshi Kitano procura dar mais atenção às consequências do mesmo, ou seja a morte, essa companheira inseparável dos seus filmes. Em Sonatine, o cineasta atingiu um enorme domínio na arte da realização, só essa confiança pode explicar opções estéticas e narrativas como a de esconder um dos clímaxes do filme

e de nos apresentar de uma forma tão brutal e ao mesmo tempo tão poética ao mundo da Yakuza. Kitano mescla um lirismo poético com uma violência seca e dolorosa, tudo acompanhado por diálogos minimalistas, ao mesmo tempo que nos apresenta a Murakawa, um yakuza desiludido com a sua profissão, que esconde no âmago da sua alma uma tendência brutal para a morte. Esta tendência destruidora projecta o protagonista para uma espiral descendente, sendo traído pelos seus superiores e leal para com os seus companheiros com quem se refugia na praia, esperando por uma onda de violência anunciada. No final, o silêncio, a banda-sonora belíssima de Joe Hisashi extingue-se momentaneamente, a fugacidade da vida e a brutalidade de um pequeno gesto assim o ditam, e ficamos perante um impacto emocional difícil de esquecer.

“(...) mescla um lirismo poético com uma violência seca e dolorosa (...)”

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MOU GAAN DOU

Título internacional: Infernal Affairs Realização: Wai-keung Lau, Alan Mak Elenco: Andy Lau, Tony Leung Chiu Wai, Anthony Wong Chau-Sang

2002 ANÍBAL SANTIAGO

Filmes de gangsters oriundos de Hong Kong não são uma novidade, mas poucos foram capazes de dinamizar o género na década inicial dos anos 2000 como Infernal Affairs, uma obra realizada por Andrew Lau e Alan Mak, que mais tarde viria a ter direito uma sequela, uma prequela e um remake. Infernal Affairs tem como especial condimento ter como protagonistas um polícia (Leung) que se encontra infiltrado num perigoso gangue e um gangster (Lau) que se encontra infiltrado junto das forças das autoridades. A história facilmente poderia descambar numa mera onda de violência recheada de reviravoltas pueris mas Infernal Affairs destaca-se acima de tudo pela sua inteligência e capacidade de desenvolver os dilemas morais dos personagens que paulatinamente assumem as características que deveriam estar associadas a um e a outro e permitem que essas reviravoltas e violência sejam pertinentes.

Longe de se perder em redundâncias, o filme procura explorar as problemáticas relacionadas com as agendas da dupla de protagonistas, ao mesmo tempo que desenvolve a procura da polícia em derrubar o gangue associado ao tráfico de droga e a tentativa do grupo criminoso em estar à frente da polícia, bem como a criação da tensão por aquele momento que todos esperam, ou seja, o confronto entre os protagonistas. Esta tensão é exacerbada pelo excelente trabalho de fotografia, capaz de adensar o clima de incerteza e propício à insegurança dos gestos, ao mesmo tempo que somos apresentados às estruturas da máfia organizada, num thriller marcante e intenso, onde a um excelente elenco junta-se uma magnífica história, um argumento de bom nível e uma realização digna de atenção da parte de Alan Mak e Andrew Lau.

“(...) destaca-se acima de tudo pela sua inteligência (...)"

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DALKOMHAN INSAENG

Título nacional: A Bittersweet Life Realização: Kim Jee-Woon Elenco: Jeong-min Hwang, Yu-mi Jeong, Ku Jin

2005 ANÍBAL SANTIAGO

A Bittersweet Life coloca-nos perante um filme de gangsters habilmente construído, com uma fotografia marcada por uma elegância rara para os filmes do género, enquanto nos apresenta a um gangster aparentemente frio e impiedoso, que tem num raro acto de compaixão o estertor para a sua caída em desgraça. Kim (Byung-hun) é um gangster e homem de confiança de um impiedoso chefe do crime (Jeong-min), que o designa para vigiar a sua namorada (Min-ah), uma mulher mais nova, desconfiando que esta tem um amante. O protagonista encontra a namorada do chefe com um amante, mas não a mata, algo que conduz o seu superior a mandar torturar Kim, que se consegue salvar e preparar uma fria vingança. A espaços Kim traz à memória os gangsters de Takeshi Kitano, aparentemente impassíveis, pouco dados à demonstração de sentimentos e afectos, de poucas falas mas contundentes, numa

obra com traços noir, marcada por um universo narrativo recheado de ambiguidades, onde não faltam as sombras a simbolizar prisão e opressão, e o seu protagonista claudica perante Hee-soo, a sua femme fatale. Esta nem chega a ter um relacionamento com Kim, mas a sua presença gera neste algo de inexplicável, que o conduz a pela primeira vez desobedecer às rígidas regras e códigos da máfia coreana, ao longo deste sólido filme de acção realizado por Kim Jee-Woon. O cineasta explora um argumento aparentemente simples e as características do seu protagonista para criar uma história de vingança intensa, sem contemplações e falsos moralismos, deixando-nos perante um filme de gangsters violento e tenso, composto por conjunto de cenas de acção bem coreografadas e um protagonista pronto a cumprir a sua vingança.

“(...) uma história de vingança intensa, sem contemplações e falsos moralismos (...)"

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HAK SE WUI

Título intenacional: Election Realização: Johnnie To Elenco: Louis Koo, Suet Lam, Tony Leung Ka Fai

2005 ANÍBAL SANTIAGO

Embora a violência esteja muito presente ao longo de Election, esta surge regularmente associada aos jogos de poder no interior da Sociedade Wo Shing, uma das Tríades mais poderosas e numerosas de Hong Kong. A contenda centra-se na disputa pela liderança entre Lok (Yam) e Big D (Leung), enquanto estes procuram conquistar os votos dos elementos do grupo criminoso. Lok é um líder mais calmo, que promete união e prosperidade. Big D é emocionalmente instável e violento, que logo entra em confronto quando Lok é anunciado como líder, procurando envidar esforços para furtar o bastão simbolizador de poder que será entregue a este último. Mais do que explorar personagens particulares ou efectuar estudos aprofundados de personagens, Johnnie To procura desenvolver uma intrincada teia de relacionamentos, ao explorar a complexidade no interior de um grupo da Tríade, tendo na Eleição do título o ignitor da

acção, o acontecimento que coloca a Sociedade Wo Shing em polvorosa, com a narrativa a apresentar-nos a um leque alargado de personagens, mas nem sempre bem construídos. Pelo meio as autoridades procuram deter os gangsters, mas nem por isso parecem capazes de os travar, numa obra pouco dada a momentos mortos ou de grande reflexão, marcada por crimes e traições, e criminosos com valores éticos e morais muito próprios. Tarantino disse que Election foi o "melhor filme de 2005". O elogio pode ser exagerado, mas não deixa de ser notório que Johnnie To realizou um thriller acima da média e violento, que nos expõe a uma complexa teia de relacionamentos e valores no interior de um grupo criminoso organizado de Hong Kong, onde a luta pelo poder traz consigo uma série de imprevisíveis eventos.

"(...) uma intrincada teia de relacionamentos (...)"

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HAK SE WUI YI WO WAI KWAI

Título nacional: Triad Election Realização: Johnnie To Elenco: Louis Koo, Simon Yam, Nick Cheung

2006 ANÍBAL SANTIAGO

O enredo de Triad Election desenrola-se dois anos depois dos acontecimentos de Election, colocando-nos novamente perante as eleições no seio da Sociedade Wo Shing. Desta vez, a rivalidade recai em Lok (Yam) e Jimmy (Koo). Lok foi o vencedor das anteriores eleições. Jimmy sai do obscurantismo a que esteve sujeito em Election e surge como um elemento pragmático, que até quer sair da organização, mas é coagido a candidatar-se. Johnnie To volta a concentrar as suas atenções nos jogos de poder no interior de uma organização da Tríade, deixando de lado o desenvolvimento das vidas pessoais dos seus personagens e transportando-nos para o interior do seu complexo mundo, não faltando um comentário subtil sobre a ingerência chinesa em Hong Kong. Estamos perante uma narrativa marcada por traições mútuas, cenários nocturnos, mortes, negociatas e rituais tradicionais, onde a disputa pelo poder

parece tornar todas as acções válidas. To volta a acertar na exposição deste grupo complexo e das suas rivalidades internas, mas desta vez dá tempo para desenvolver os dois competidores, deixando mais espaço para mostrarem as suas personalidades no interior de um leque alargado de personagens. Jimmy entra relutantemente na disputa, mas envolve-se numa onda de violência apresentada com alguma dureza e realismo. Já Lok parece disposto a tudo neste "jogo de xadrez", prometendo favores que não vai cumprir, numa procura desesperada de manter o poder. Este é um universo narrativo obscuro, onde um gangster pretende abandonar o mundo do crime, mas acaba por protagonizar uma disputa virulenta para chegar ao topo da organização criminosa que integra, numa sequela que se revela superior ao primeiro filme.

“(...) traições mútuas, cenários nocturnos, mortes, negociatas e rituais tradicionais (...)”

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OS VERDADEIROS GANGSTERS DE CASSAVETES TIAGO SILVA

«I'm only happy when I'm angry, when I'm sad. When I can play the fool, when I can be what people want me to be rather than be myself.» Cosmo Vitelli (Ben Gazzara) em The Killing of a Chinese Bookie

À superfície, a narrativa de The Killing of a Chinese Bookie é até relativamente simples e resume-se em poucas palavras: Cosmo Vitelli, carismático dono de um clube nocturno onde coloca todo o seu empenho, é pressionado pela máfia a saldar as suas dívidas assassinando alguém poderoso de quem estes se querem ver livres. Parece assim a típica história que se espera de um tradicional filme de gangsters, mas a verdade é que a incursão de John Cassavetes no género eleva-o acima das suas qualidades (como começa a acontecer, aliás, com grande parte dos filmes rodados nos anos 70 e de que The Godfather é exemplo perfeito), criando um dos melhores estudos de que há memória sobre a profunda densidade psicológica de uma personagem.

novamente para trabalhar consigo num guião que já pretendia elaborar há vários anos, baseado numa ideia que tivera em conjunto com Martin Scorsese. Todos os filmes de Cassavetes orbitam em torno daquilo que define as relações humanas e o próprio estilo cinematográfico e preocupações estéticas de toda a sua obra reflectem esta temática - a câmara, à mão e de espontaneidade quase documental, move-se por entre os personagens, colocando-nos num lugar central no espaço que estes ocupam e revelando mais sobre os seus conflitos pessoais. Assim, The Killing of a Chinese Bookie, com óbvias influências noir, nunca poderia ser o típico filme de entretenimento concebido para agradar às massas (não fosse o realizador uma das figuras mais importantes do cinema independente) e as diferentes camadas daquilo que aqui acontece não podem ser analisadas sem ter também em conta a carreira do próprio. É que mais do que uma história de crime ou uma mera tentativa de se aventurar num género que lhe era desconhecido, este é provavelmente o seu filme mais pessoal.

Do desempenho de Ben Gazzara pouco haverá a acrescentar sem repetir aquilo que já foi referido vezes sem conta por grande parte dos críticos. Raramente um actor se entrega tão intensamente a uma personagem e faz com que as suas acções decorram sem qualquer ponta de artificialidade, dando um realismo tal a cada gesto ou fala que se torna óbvio que estamos perante um filme único e magnificamente executado e pensado. Gazzara tinha acabado de trabalhar com Steve Carver em Capone, filme biográfico onde fazia o papel do famoso criminoso e Cassavetes, com quem já tinha colaborado em Husbands (e com quem viria também a colaborar no belíssimo Opening Night), convidou-o

Gazzara conta que Cassavetes chorou várias vezes durante a rodagem do filme, especialmente nas cenas em que a máfia pressiona Cosmo. Isto porque os paralelismos entre o realizador e a personagem são mais 92


que óbvios e porque o filme é sobretudo uma metáfora para a relação entre o cineasta e os produtores dos estúdios de cinema mais populares da altura, que pretendiam manipular o conteúdo das suas obras. Cosmo é obcecado em controlar todos os aspectos do que se passa no clube, colocando-o acima da sua vida pessoal (e o clube torna-se na sua verdadeira vida pessoal) e esta situação é também duplicada na vida real, já que se dizia que Cassavetes era alguém bastante temperamental e com quem era difícil trabalhar. Seja esta situação realmente verídica ou não, o certo é que The Killing of a Chinese Bookie não é apenas um filme sobre um assassinato ou sobre os métodos que a máfia utiliza para conseguir cumprir o seus objectivos. É um filme sobre aqueles que se agarram a um sonho e que acreditam sem margem para dúvidas no mesmo, colocando-o à frente de quaisquer adversidades que possam surgir - e que realmente surgem, como é observado.

por isso que cada plano do filme se torne tão memorável. Isto resulta de uma óbvia sensibilidade e talento para escrever guiões, que Cassavetes inegavelmente tinha. Mr. Sophistication, por exemplo, encarrega-se da animação do clube e contribui para a ideia de um espectáculo «bigger than life» que tanto o filme como o realizador propõem. Parece também antecipar muito do trabalho de David Lynch e teria facilmente lugar num filme do mesmo, uma figura surreal que sai das sombras para se revelar numa performance burlesca. Poucos minutos antes do final de The Killing of a Chinese Bookie, Cosmo Vitelli dirige-se ao público do Crazy Horse West num dos discursos mais impressionantes de todo o filme. Fá-lo pouco depois da sua vida se desmoronar e encontra-se ainda numa situação de perigo. Ainda assim, sorri e consegue entusiasmar todos os que ali estão naquela noite. Tem consciência da importância dos seus próprios actos e de que está a cumprir o seu verdadeiro dever. O seu futuro torna-se vago e incerto depois dos fatídicos acontecimentos, mas Cosmo sabe que o que realmente importa está feito. Também Cassavetes o sabe e a sua influência continua a ecoar em todo o Cinema. É aí que assenta a sua grandeza.

O dinheiro é também uma das personagens principais do filme e um dos elementos mais importantes a ter em conta na análise do mesmo. É visto, principalmente pela máfia, como a última tentativa de redenção e ocupa um lugar quase divino, como se constata pela fala de Flo (Timothy Carey): «That jerk Karl Marx said opium was the religion of people. I got news for him, it's money.». Todas as personagens têm algo diferente a dizer sobre a vida e perspectivas interessantes sobre a mesma e talvez seja 93



O GANGSTER DE CHAPÉU E COMANDO MIGUEL FERREIRA

Havemos de chegar um dia à TAKE – Viagens no Tempo. Ou então já chegámos, numa linha alternativa. Onde eu sou gordo e loirinho. Mas enquanto não se divaga por essa vereda vamos já aquecer o lugar. O trono, dos que mandam e governam de forma menos clara. Os outros lados, aqueles mais escuros e chuvosos que precisam de balas, sangue e fumo. Sacrifício, imponência e por vezes, estilo. Chapéu. Na rua ou no seio da família, a real ou então a outra, de volta às ruas. Para contar e disparar vamos então viajar para trás e para a frente, atrasando ou adiantando os ponteiros, desde Chicago até ao deserto do Nevada. As cidades, sempre elas. Aqui e ali, com associações sabichonas que deixarão qualquer um com a pulga atrás da orelha. Ou com a bala dentro do tambor. E prometo que não falarei de The Mob Doctor.

OS NÉONES… Era já tarde e quando se boceja não se pensa. Episódio piloto de Vegas. Grande erro. Mas a culpa não foi minha, a série da CBS de 2012 tinha realmente tudo para me manter desperto: Dennis Quaid , um rancheiro que se vê forçado a assumir o papel de xerife na Las Vegas dos anos 60, controlada por um gangster de Chicago interpretado, por o não menos incrível, Michael Chiklis. Sem grande risco, rasgo ou ritmo a série acabou cancelada ao fim de uma temporada e eu adormeci. Lá para os lados do deserto. Como aquele que passei, antes da internet. Períodos secos e longos. As pequenas memórias lá se guardavam, em pequenas peças, em pequenos cofres. Martelando noite e dia, regressando nas alturas mais improváveis. Eu sabia, que em miúdo tinha visto uma série de polícias, com um senhor de bigode e que um dos episódios terminava com uma queda de avião. Foi neste cluedo que andei metido anos a fio até que, com um ou dois cliques, cheguei a Crime Story. Runaway, de Del Shannon, rasgava uma abertura chuvosa na Chicago dos anos 60. Rodas, carros, néones. O nevoeiro e a noite, numa imagética tão própria


que recordar é um violento soco, que arrasta de volta todos os sentidos. No meio da estrada, alcatrão, um sobretudo comprido e um cigarro. O tal bigode, Dennis Farina no papel de Mike Torello, chefe da unidade de combate ao crime da polícia que se vê na perseguição de Ray Luca (Anthony Denison), um perigoso mafioso em ascensão. A série girava então em torno do conflito entre estes dois homens, pólos opostos que se perseguiam até ao final. Um frente a frente, como a primeira aparição de Hannibal Lecter, em Manhunter, filme realizado na mesma altura que o piloto de Crime Story foi produzido. E pelo mesmo senhor, claro está, Michael Mann que, em plena terceira temporada de Miami Vice e com um filme para montar, ainda se mete a brincar aos gangsters. Apesar da qualidade inegável do produto a série correu apenas por duas temporadas na NBC, de 1986 a 1988. Razões financeiras ditaram o fim que é o tal desastre de avião. Deixando tudo em aberto, para todo o sempre. Michael Mann lá continuaria, a sua vida cinematográfica e voltaria mesmo a tentar a sorte, de novo no pequeno ecrã, mas infelizmente apostaria no cavalo errado. A sua série Luck teve problemas com os equídeos protagonistas e seria precocemente cancelada em 2011. Pouca sorte de uns, muita audácia de outros, mestres, que regressam a casa. Onde foram felizes. Um ano antes Martin Scorsese voltava a ser um bom rapaz. Descia até Atlantic City dos anos 20 e realizava o episódio piloto de Boardwalk Empire. Um acontecimento, que marcou e disparou sobre

as expectativas. Luxuriante, não só a nível visual como a nível de elenco trazendo na bagagem nomes como Steve Buscemi, Michael Pitt, Michael Shannon e Kelly Macdonald. As grandes luzes e festas, com o mar ali ao lado. Nos passeios no longo passeio. Cristalino e pronto para assistir a um império. Lei seca. O detalhe e o pormenor histórico davam outro requinte à história, à arte que imita a vida: Enoch L. Johnson um político que ascendeu nas décadas de 20 e 30 em Atlantic City, New Jersey. Na série Enoch “Nucky” Thompson (Buscemi) colide com todos, desde os plurais dos comuns até aos singulares dos mafiosos, criminosos, polícias e políticos. Conhece inclusive o Al Capone, protagonista da história e também de outras duas séries, adaptações televisivas do livro de Eliot Ness, The Untouchables, situadas antes (1959) e depois (1993) do épico cinematográfico de Brian De Palma (1987). Reconhecida com inúmeros galardões ao longo destes últimos anos, incluindo o Globo de Ouro para Melhor Série Dramática em 2011, continua atualmente a ser um refúgio certo de um género e de um estilo únicos. Já com a confirmação de uma quinta temporada agendada para o Outono de 2014, esta será uma epopeia com página garantida em qualquer manual televisivo. Terence Winter, o seu criador, já vinha com alguma experiência de argumentista e produtor executivo na mesma casa, HBO. Recuamos assim até ao último fôlego da década de noventa.

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aos grandes pesos pesados do género, mas nunca conseguiu singrar no resto, audiência. Melhor sorte pedimos para Peaky Blinders, série da BBC Two que estreou este ano. Vamos até Birmingham, voltamos aos anos 20. Baseada em factos verídicos esta é a história do gangue que empresta o nome ao título e que tinha a peculiar característica – para além de todas as outras piratarias – de costurar lâminas de barbear nos seus bonés. Cillian Murphy é Tommy Shelby, o líder e cérebro da família, que tenta depois da Primeira Guerra Mundial restabelecer o domínio e hegemonia nas ruas. Ao ver a primeira cena, com ele no cavalo, nas ruas desertas rumo à sua sina, percebemos que não é apenas mais uma saga de crime e de época. É o detalhe e o fabrico artesanal da narração, imagem e interpretação. É para não deixar escapar os curtos 6 episódios da primeira temporada que já tem sucessora assegurada em 2014. Até lá podemos aguardar, ainda este ano, pela estreia de Mob City a série que Frank Darabont criou para a TNT e que tem nomes como Edward Burns, Milo Ventimiglia, Simon Pegg, Neal McDonough e Jon Bernthal. Mais uma vez sentados em factos verídicos, seguimos as décadas de conflito entre a polícia de Los Angeles, chefiada por William Parker, e o o grupo criminoso de Mickey Cohen. 1947, assim nos situam num trailer negro, sangrento e de algum modo saudosista. Prometendo voltar a todas as outras cidades que fomos deixando para trás, ao noir que quase já não aparece. Acender o cigarro, pôr o chapéu e esperar.

…E A FAMÍLIA Estávamos em 1999 e não era de todo expectável que uma família pudesse alterar as regras do jogo e transformar para sempre a ficção. Considerada por muitos como a melhor série de todos os tempos – e merecedora de um especial nesta edição - The Sopranos contava a história de Tony Soprano (soberbo James Gandolfini), um pai de família e chefe de máfia, que tenta conciliar estes dois quotidianos com a ajuda de uma psiquiatra. Este foi o pontapé de saída, da mente de David Chase, que o tricotou durante 6 temporadas, conquistando tudo o que havia para conquistar. Ainda hoje se fala e comenta, entre uma imperial e outra. O tal final a negro é a prova de que uma mente sem amarras pode ser dona do mundo. De todo o mundo. E a andar mundo fora passamos do apelido mas ficamos na família. Homo sapiens do mesmo sangue, com a união maior e séria que o vermelho implica. Brotherhood conta a história dos irmãos irlandeses Caffe, Tommy (Jason Clarke) político e Michael (Jason Isaacs) bandido. O primeiro a tentar o desespero da reeleição enquanto o segundo tenta reconquistar o seu papel nos negócios escuros que deixou sete anos atrás. Quando teve de fugir. De novo juntos, a colidir e com o resto da esfera familiar a girar e a implicar. Causa, efeito. A cidade de Providence às suas mãos, por veias e estradas distintas. A série da Showtime, criada por Blake Masters, recebeu o sim da crítica, com comparações 97



THE SOPRANOS JORGE RODRIGUES

Se hoje o nosso panorama televisivo é populado por personagens como Don e Betty Draper, a família Fisher, Stringer Bell e Jimmy McNulty e Walter White e outros tantos moços mal encarados, temos infinitos agradecimentos a tecer a David Chase e companhia. Como Vince Gilligan (criador da mais recente recipiente de honras de melhor série de sempre, Breaking Bad), David Chase tinha uma boa ideia e, mais que isso, o génio, criatividade e empenho para a cumprir. Para Chase, a televisão tinha que servir mais do que para se focar em enredos totalmente diferentes de episódio para episódio. Se no cinema e na literatura o desenvolvimento espaçado de uma narrativa resultava, por que não no meio televisivo, o próprio já pronto para a serialização – se bem que mais ocupado com os seus procedurals, policiais e dramas médicos, fórmulas que ainda não estavam, então, exploradas até à exaustão.


Entra neste ponto da história a HBO. Faminta por ser mais do que um canal pré-pago conhecido por passar filmes e algumas séries de menor gabarito, a HBO estava pronta a arcar com os custos de produção e não interferir no produto final se Chase lhe garantisse que este seria de qualidade. Eis que uma relação dourada se estabeleceu e The Sopranos, em 1999, nasceu. O sucesso, para ambos, logo seguiu. A HBO passou a ser um titã de televisão de excelência e pôde crescer a partir daqui – a ponto da máxima “it’s not TV, it’s HBO” ter de ser mesmo levada a sério – e The Sopranos, aclamada criticamente, começou aos poucos a descobrir uma audiência. Nunca conseguiu os números absurdamente fabulosos que The Walking Dead ou mesmo as últimas temporadas de Breaking Bad conquistaram; mas, para cabo, não eram números maus. Não obstante, a HBO sabia o que tinha em mãos – um pedaço vivo de zeitgeist, um fenómeno cultural com um potencial enorme. Quase se torna assustador pensar como seria a nossa televisão hoje em dia se Chase não tivesse criado The Sopranos, mas é nessa ideia que quero que se fixem para vos mostrar o quão essencial é o advento de Tony Soprano. The Sopranos foi “a” série que expandiu os limites do que se pode fazer com a televisão serializada, uma pincelada de cor num panorama televisivo cinzento, que juntou ao aspecto viciante desta forma de arte um maior primor, estilo e substância e um maior respeito pelo espectador que aprecia um produto mais intelectual, que favorece o espectador

que gosta de refletir no que vê, que corta no diálogo expositivo em prol de uma narrativa consolidada ao longo de vários episódios, reduzindo os momentos excitantes por episódio para maior preponderância e estrondo no desfecho final da temporada. E todas as belíssimas séries que se seguiram limitaram-se a aproveitar o mundo de possibilidades e tonalidades que lhe foram abertas por The Sopranos, satisfazendo os desejos de uma audiência à procura de algo em que investir a longo prazo. A ideia da qual partiu The Sopranos não é, admitamos, a mais original. Famílias de mafiosos já tinham sido sobejamente abordadas, sobretudo na sétima arte, de The Godfather (Coppola, 1972) a Goodfellas (Scorsese, 1990). Então o que faz da série da HBO diferente? A diferença, meus senhores, está em quem escreve e compõe esta magnífica sinfonia televisiva. A construção de cada temporada é (quase) perfeita, um castelo de cartas perfeitamente elaborado e equilíbrio delicado, onde reina a indefinição, e que rui e se complica de forma deliciosa. A violência e brutalidade de algumas situações assusta. Os diálogos, de ritmo pausado, melífluos e autênticos, são quase tão bons como o que se passa na tela. As personagens são profundas, complexas, difíceis e capazes de actos tão malévolos e nojentos que é um verdadeiro testemunho ao talento dos argumentistas que um espectador goste tanto de passar tanto tempo com elas. 100


Ninguém é perfeito em The Sopranos – a epítome está mesmo em Tony Soprano, o sociopata com coração de ouro, como muitos gostam de o apelidar. Tony Soprano é um mafioso amoral e desumano que, esmagado pela brutalidade e voracidade do mundo real à sua volta, onde todos querem um pedaço dele, acaba seguido por uma psiquiatra por causa da sua depressão e ansiedade. É esta a ironia central da série, que um líder da máfia, do mais déspota, desleal e malvado que possa existir, esteja tão PRESO a tudo quanto o faz vulneravelmente humano. The Sopranos simplifica por virtude da complexidade, rodopiando todo um universo em torno deste Tony Soprano, dando-nos uma visão ímpar a um protagonista tão fácil de amar e compreender na sua cruzada pessoal, nas suas dúvidas existenciais, no seu dia-a-dia difícil de gerir, na complicada dinâmica familiar, tão rotineira quanto disfuncional, e nos seus problemas para controlar uma rede enorme de profissionais de egos descontrolados, inflamados e destrutivos. É uma miríade de situações realistas e banais com as quais nos podemos relacionar. The Sopranos tem o seu lugar reservado – historicamente, dirão alguns; merecidamente, dirão outros – no topo das maiores séries de sempre. É claro que é parcialmente por ter vindo primeiro e lavrado caminho para as outras. É claro que é parcialmente por ter feito renascer a HBO como canal para o mundo. É claro que é parcialmente por representar um marco cultural e geracional. Todavia, é acima de tudo porque The

Sopranos é, efetivamente, uma revolucionária obra-prima, com um nível de qualidade inexcedível em quase todos os parâmetros, que perdura mesmo catorze anos depois da estreia do piloto (1999), um feito colossal que, arrisco dizer, nenhuma série conseguiu sequer chegar perto de atingir - sim, nem mesmo Breaking Bad, The Wire ou Mad Men. The Sopranos faz (fez) tudo o que essas séries conseguem e fá-lo melhor, proporcionando dos momentos mais fortes e tensos que me lembro de ver em televisão. Fala de família, sociedade e psicologia. Fala de heróis e de vilões. Mas fala também de religião, sociologia, filosofia e política, fala de amor, de poder, de lealdade, de hipocrisia, de manipulação. Ao permitir ao espectador ser o único a conhecer o mais íntimo de um homem que é a verdadeira face do mal, The Sopranos mostra-nos como a alma e a identidade são coisas tão indissociáveis e ao mesmo tempo tão desigualmente participantes nas qualidades e limitações de um ser humano.

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