Take 45

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MUSICAL

TAKE.COM.PT | ANO 9 | NÚMERO 45


CRÍTICAS 36 Top hat 38 The wizard of Oz 40 Singin' in the rain 42 Footlight parade 43 An american in Paris 44 West side story 45 Mary Poppins 46 High society 47 The sound of music 47 The court jester 48 My fair lady 48 Yankee doodle dandy 49 Seven brides for seven brothers 60 Moulin Rouge! 62 Cabaret 64 One from the heart 66 Grease 68 Hello, Dolly! 69 The Rocky horror picture show 70 Jesus Christ superstar 71 La La Land 72 The last five years 73 Little shop of horrors 73 Dreamgirls 74 New York, New York 74 Romance & cigarettes 75 Everyone says I love you 75 Cry baby 78 Dancer in the dark 80 Les parapluies de Cherbourg 82 The red shoes 83 Oliver! 84 Les chansons d'amour 84 Once 85 8 Femmes 85 God help the girl 90 Beauty and the beast 92 The little mermaid

ARTIGOS 94 South Park: Bigger, longer & uncut 96 The nightmare before christmas 97 Fantasia 98 Frozen 99 Snow white and the seven dwarfs 100 Interstella 5555 100 Le magasin des suicides 101 The princess and the frog 108 Tommy 110 The Commitments 111 Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band 112 Across the universe 112 Phantom of the paradise 113 Rock'n'Roll high school 113 Sing street

04 Life is a cabaret . editorial 06 O musical 08 O musical ao longo dos tempos 28 O musical clássico americano 50 O maravilhoso mundo musical de Jacques Demy 86 Animações musicais 102 Os musicais rock 114 Grandes momentos musicais em filmes não musicais 118 Música no cinema - entrevista a Jorge Moniz 122 Os músicos no cinema

Director José Soares. josesoares@take.com.pt Editor João Paulo Costa. joaopaulocosta@ take.com.pt Editora adjunta Sara Galvão. saragalvao@take.com.pt Colaboraram nesta edição António Araújo. Cátia Alexandre. Diana Martins. Filipe Lopes. Hélder Almeida. João Bizarro. João Paulo Costa. José Carlos Maltez. Marco Laureano. Pedro Miguel Fernandes. Pedro Soares. Sandra Gaspar. Sara Galvão. Susana Bessa. Design José Soares. Ilustração Isa Silva. Imagens Arquivo Take. Alambique. Big Picture Films. Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema. Cine Mundo. Columbia TriStar Warner Portugal. Costa do Castelo Filmes. Fox Portugal. Films 4 You. iStock. LNK Audiovisuais. Lanterna de Pedra Filmes. Leopardo Filmes. NOS Audiovisuais. Midas Filmes. Nitrato Filmes. Outsider Filmes. Pris Audiovisuais. Sony Pictures Portugal. Universal Pictures Portugal. Valentim de Carvalho Multimédia. Vendetta Filmes. Imagem de capa © Copyright Summit Entertainment. © 2017 Take Cinema Magazine - Todos os direitos reservados. As imagens usadas têm direitos reservados e são propriedade dos seus respectivos donos.

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© Isa Silva . 2016


LIFE IS A CABARET JOÃO PAULO COSTA

2017 chegou, e com ele o habitual sentimento de esperança num ano melhor a todos os níveis, esperança essa de que se necessita depois de um ano que viu partir inúmeras personalidades marcantes da cultura popular. E mesmo que olhando para cima as nuvens pareçam indicar tempos sombrios, é importante enfrentar o futuro com o maior optimismo possível. Por aqui continuaremos a fazê-lo, apesar das dificuldades inerentes a cada nova edição, coordenando o tempo livre e a disponibilidade da equipa de redacção com a sua vontade de dar cinema aos nossos leitores. E nada como o fazer evocando um género habitualmente associado ao escapismo. O número 45 da Take Cinema Magazine é inteiramente dedicado ao cinema Musical, que se afirmou historicamente como forma de fugir aos problemas do Mundo no interior de uma tela onde tudo era mágico. Numa altura em que se estreia nas nossas salas um dos mais populares musicais dos últimos anos, não queríamos deixar de recordar o género, dentro da sua infinitude de títulos e estrelas, e prestar-lhe assim uma sentida homenagem. Por esta altura o leitor já sabe que as páginas seguintes foram escritas com toda a dedicação, e sempre a pensar em si. Bom ano e, claro, bons filmes!



O MUSICAL SUSANA BESSA

Falar do musical é falar da construção de uma idealização romântica da realidade objectiva, daquilo que é real mas acentuado, com nuances, enfeitado para o nosso simples prazer. Talvez seja por isso que de 1927 a 2016, de O Cantor de Jazz a La La Land: Melodia de Amor, o musical tem encantado e antagonizado em iguais proporções. Um produto cultural originado na teatralidade Americana e elevado à nostalgia do “ser” com a influência do cinema europeu, o musical é agora conhecido como um género de cinema que separa espectadores, um gosto adquirido que separa o intelecto do afecto, que deseja a imersão do sonho à aceitação da factualidade. Em outras palavras, o musical pede ao espectador para mergulhar na fantasia e suspender a incredibilidade dos factos desenhados no ecrã contados em narrativas construídas através de números musicais. O musical representa a esperança no suposto insignificante valor da vida e dos seus frustrantes exercícios. É uma construção, ou como Jane Feuer disse no ensaio que escreveu sobre o “Musical de Hollywood” em 1982, “nunca nos é permitido perceber que o entretenimento musical é um produto industrial e que colocar um espectáculo (ou um musical de Hollywood) é um caso de uma força trabalhadora que produz um produto para consumo”, o que cria o problema. Assim que a absorção de tal factor é iminente, como podemos submergir na fantasia se sabemos que estamos a ser manipulados? No entanto, não é isso que acontece não só com o musical, mas com o

veículo do cinema em geral? Como podemos nós, espectadores, sabendo que o sucesso da construção depende da nossa obrigatória negação da realidade e escape no sonho do ecrã luminoso e da sala escura? Podemos e fazemo-lo conscientemente. Porque muito rapidamente, perante a primeira experiência de submersão numa realidade elevada, é difícil voltar atrás. É difícil não desejar saborear o mesmo sentimento uma e outra vez, sucessivamente. O musical é o género de cinema que se baseia no sonho dentro do sonho do cinema e aviva a narrativa que poderia ser um produto cultural específico de acordo com o país e se transforma perante os nossos olhos e através dos maiores veículos universais da linguística, música e linguagem corporal, no exercício mais intemporal existente. O musical afirma-se assim no género cinematográfico mais óbvio de existir e subsistir no inteiro ramo que o cinema nos proporciona. E seja com Fred e Ginger a dançar num chão infinito, a coreografada construção humana em Mil Apoteoses, Gene Kelly a dançar na chuva ou Emma Stone e Ryan Gosling a descobrirem-se numa Los Angeles do século XXI, o musical será sempre a proclamação de algo superior em narrativa e estética à vida diária que providencia um verdadeiro significado à expressão “viver o cinema”. E nele nos vemos, nele nos experienciamos, como uma brincadeira, como um jogo que elimina os piores dos momentos passados, iluminando-os. Caso seja para dizer, viva o musical!

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O MUSICAL AO LONGO DOS TEMPOS SARA GALVÃO

Desde o início dos tempos que música e dança fazem parte da experiência humana - em rituais, celebrações e espectáculos. O filme musical vem na sequência de uma rica tradição de teatro musical, opereta austríaca, cabaret, vaudeville americano e music hall. Talvez mais do que outros géneros cinematográficos, o musical esteve bastante dependente dos desenvolvimentos técnicos da sétima arte (primeira e obviamente, da introdução do filme sonoro, mas também da mobilidade da câmara, possibilidade de planos picados) e claro, da arte e talento dos que conseguiram ver as possibilidades infinitas da sétima arte quando comparadas com as quatro paredes do espaço teatral). Mas o que é, exactamente, um musical?

Diz-nos o oráculo da Wikipedia que o musical é um género cinematográfico no qual canções interpretadas pelas personagens, muitas vezes acompanhadas por dança, são parte da narrativa. As canções normalmente avançam a narrativa e/ou desenvolvem as personagens, mas em alguns casos servem apenas como pausas na história, por vezes como elaborados números de produção que enchem chouriços (possivelmente um resquício do teatro musical, onde são precisos para dar tempo a mudanças de roupa e caracterização das personagens). Ou seja, nas palavras do elenco de Galavant, Continua a não haver razão para desatarmos a cantar. No sentido estrito da definição, se as personagens apenas interpretam canções num palco, não é um musical. Se as personagens não cantam de forma diegética, não é um musical (o que elimina filmes como Team America, por exemplo). Se as personagens apenas dançam... não é um musical. Claro está, as fronteiras de definição do género vão desvanecendo com o tempo.

A pergunta, aparentemente simples de responder, torna-se traiçoeira quando se passa do plano teórico para o prático. Por exemplo, é evidente que Chapéu Alto é um musical, mas é-o 8 Mile? Quanto mais nos afastamos do período clássico do género (entre 1930 e 1960, coincidente – mas não uma coincidência – com a época dourada do studio system), mais complicada se torna a definição. Como categorizar os dance films dos anos 70 e 80– Footloose – A Música está do teu Lado, Febre de Sábado à Noite, ou mesmo Flashdance? Biopics sobre músicos são também de difícil classificação – o que faz de Lisztomania um musical que não está presente, por exemplo, em Amadeus?

Outro sinal de que estamos perante the real deal são: as personagens tratam a câmara como uma audiência, e muitas vezes quebram a quarta parede ao dançar e cantar directamente para a lente (algo que claramente vem da ascendência teatral do género). As histórias são geralmente escapistas, e têm finais felizes (ou falam sobre pessoas que buscam a felicidade) – embora, claro está sejam estas as características mais 9


desafiadas no novo século. Aspectos políticos ou controversos podem ser referidos, mas nunca são enfatizados ou apresentados de forma cínica – isto é, até Amor sem Barreiras em 1961. Há também o uso de música popular (bastante claro nos musicais tipo jukebox).

tendem a desaparecer na bruma, enquanto os exemplos americanos vão ficando nos livros de história cinematográfica. Para isso contribui o facto do musical não ser tomado a sério como género digno de estudo, ao contrário de, por exemplo, o noir ou, mais recentemente, a ficção científica. Estudos e antologias sobre musicais ainda são muito raros e, quando existem, centram-se no exemplo gritante do caso americano. Apesar disso, os musicais não-americanos existem, e merecem a nossa atenção, principalmente pela maneira como se tentam libertar da “mãe América”.

E, acima de tudo, o musical é o género cinematográfico que representa Hollywood acima de todos os outros. Se virmos o western como o símbolo inegável da Americana, o musical é o símbolo – e sinónimo - da época dourada de Hollywood e do studio system. Nas narrativas que o musical apresenta, uma performance de sucesso equivale a uma vida de sucesso. E por isso, apesar de ser um género que tem tudo para ser verdadeiramente internacional – a música é, afinal, uma linguagem universal – a influência do cinema americano neste género em específico é inescapável. Ao contrário do western, não podemos apontar subgéneros equivalentes ao spaghetti ou noodle western no musical. Mais, se excluirmos o caso de Bollywood (que exige, pela sua natureza, um estudo em separado), a presença de musicais não americanos no circuito internacional é pouca ou nenhuma, e com raras excepções (que vão sendo menos raras, felizmente, em tempos mais recentes, graças às maravilhas da internet e da distribuição independente), 10


os sorrisos das coristas, e a despreocupação do sapateado enchiam salas com o mínimo de esforço por parte dos estúdios.

OS PRIMEIROS PASSOS (DE DANÇA) Alguns filmes mudos incluíam cenas de dança – famosamente, o tango de Rudolfo Valentino em Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse – mas o musical como o conhecemos só seria possível depois do advento do som. O primeiro musical digno desse nome foi The Broadway Melody (1929), realizado por Harry Beaumont e produzido pela MGM, com canções compostas por Arthur Freed e Nacio Herb Brown, e uma história sobre os bastidores de uma peça teatral (caso não seja óbvio pelo título). Com a tagline All Talking, All Singing, All Dancing (Todos Falam, Todos Cantam, Todos Dançam), foi o primeiro filme sonoro a ganhar um Óscar, e instituiu a tradição do musical de bastidores (backstage musical), cujos valores de produção mais baixos em relação ao musical mais “extravagante” o tornaram bastante atraente aos olhos dos estúdios dos anos 30.

Nos primeiros tempos, o musical não era mais do que um espectáculo da Broadway filmado – com a diferença fulcral de que o cinema permitia cenários mais extravagantes e cenários que seriam impossíveis num palco. Em 1929, o magnata do teatro musical, Florenz Ziegfeld, produziria Show Boat para a Universal, realizado por Harry A. Pollard. Baseado no livro com o mesmo nome de Edna Ferber, Show Boat foi distribuído em duas versões – a versão muda (para a qual tinha sido originalmente filmado) e uma versão parcialmente falada, com números musicais – uma reacção directa do estúdio ao sucesso súbito do filmes falados. Mais, porque existia um musical com o mesmo nome na Broadway, os produtores recearam que o público estivesse à espera dessa adaptação, e não reagisse bem a um filme que pecasse pela ausência de números cantados (da mesma forma que hoje não reagimos bem a um filme sem rock dos anos 80). Considerado perdido durante muitos anos, a maior parte do filme de Show Boat foi encontrado e restaurado, incluindo dois números da banda sonora que foram encontrados em 2005.

1929 foi também o ano da Grande Depressão. Vindos da Grande Guerra, com a economia a cair em pedaços à volta, e sem os estúdios Marvel a debitar um filme ou série de superheróis de dois em dois meses, as audiências viram no musical um escape às agruras da vida diária. As histórias eram simples e repetitivas – um produtor teatral em sarilhos, coristas à procura de um marido rico, a rapariga inexperiente que tem de substituir a estrela à última da hora – mas os números espampanantes,

O musical estava lançado, e os estúdios apressavam-se a apanhar o comboio. A Warner Brothers rapidamente transforma o filme mudo Gold 11


Diggers of 1923 num musical com El Dorado (Gold Diggers of Broadway, 1929). A Paramount contrata o realizador armeno Rouben Mamoulian, que realiza Ama-me Esta Noite em 1932. Mamoulian (com uma vasta experiência a encenar musicais para o teatro) explora e desenvolve o novo género, usando estilização, câmara lenta e dinâmica, filme em reverso e diálogo sobreposto. Ama-me esta Noite irá também criar o padrão para os musicais integrados dos anos 30 (ie, as canções e o diálogo avançam a narrativa, em vez de funcionarem como fim em si mesmo). Mas é na MGM que o musical encontra uma casa. King Vidor realiza o seu primeiro filme sonoro, Aleluia! (1929), um musical com um elenco exclusivamente afro-americano que usa spirituals e canções tradicionais como parte da banda sonora. Aleluia! tornar-se-ia num sucesso crítico e comercial, e Vidor seria nomeado para o Óscar de Melhor Realizador nesse ano. (mais tarde, Vidor realizaria as sequências do Kansas em O Feiticeiro de Oz (incluindo o tornado e o número Over the Rainbow), mas não seria creditado).

mudo, e assim que o cinema sonoro chegou, ele lança-se de corpo e alma ao musical. Introduzindo um dos primeiros casais do musical, Maurice Chevalier e a soprano Jeanette Macdonald, Lubitsch realizaria, em sucessão, Parada de Amor (1929), Monte Carlo (1930), O Tenente Sedutor (The Smiling Lieutenant, 1931), Uma Hora Contigo (1932) e A Viúva Alegre (1934). Lubitsch também desenvolveu a sua própria técnica para filmar musicais, que se tornaria popular no género – filmava sem som (para permitir maior mobilidade à câmara), e dobrava em pósprodução. Em 1932, quando a novidade dos filmes sonoros se esgota, há um pequeno declínio do musical, enquanto as audiências se preferem deslumbrar com James Cagney em filmes de gangsters. A fórmula de histórias ingénuas e simplistas, muito Cinderela e Príncipe Encantado, que apenas funcionavam como um ténue suporte para os números musicais, estava a esgotar-se; as personagens que desatam a cantar e dançar de forma arbitrária e artificial já não conseguem conquistar as audiências; Hollywood começa assim a retrair-se e a apenas apostar em adaptações de êxitos da Broadway.

Com Ernst Lubitsch, elegância e sofisticação chegam ao novo género. O realizador alemão a trabalhar nos EUA já tinha uma reputação para comédias românticas risques e sensuais durante a era do cinema

Mas o musical americano estava prestes a conhecer duas das suas maiores estrelas, que o transformariam no que conhecemos como musical clássico: Busby Berkeley e Fred Astaire 12


a estrela gangster James Cagney), Mulheres e Música (Dames, 1934) até ao franchise Gold Diggers: Orgia Dourada (Gold Diggers of 1933), As Gold Diggers de 1935 e Revista Maravilha de 1937 (Gold Diggers of 1937), os musicais nunca mais seriam os mesmos após o caleidoscópio de pernas de Busby Berkeley.

CHEEK TO CHEEK(Y) 1933 é o ano fulcral para o musical, o ano em que Escândalos Romanos (Frank Tuttle) um musical da Warner Bros protagonizado pelo artista de vaudeville Eric Cantor, mostra a primeira instância de nudez feminina no grande ecrã. O responsável? Busby Berkeley, um coreógrafo/realizador que finalmente percebe o potencial do filme musical como espectáculo puro (e forma de mostrar coristas sorridentes em ângulos nunca vistos e pouco recomendáveis a menores de 18 anos).

Mas os planos ousados de Berkeley tinham um grande inimigo no horizonte – o Production Code, que ganha força em meados dos anos 30, começa a proibir certas imagens de sublimação sexual. A censura e os cortes de produção (a economia mundial começa a dar sinais de apoplexia nervosa enquanto as tensões políticas aumentam – mais uma vez – na Europa) levam mais uma vez a um ligeiro declínio do género – apesar de, em 1936, O Grande Ziegfeld (Robert Z. Leonard) se ter tornado no segundo musical a ganhar um Óscar.

É Berkeley que irá separar, de uma vez por todas, o filme musical do seu antepassado e contemporâneo teatro musical – com planos picados, uso e abuso de padrões e estilização, e crotch shots, o espectáculo puro dos musicais coreografados por Busby atrai o público da Grande Depressão de novo às cantorias e danças do escapismo musicado. Claro está, não só de estilização e arte vive o homem, e um dos principais encantos dos musicais de Busby Berkeley é a sensualidade gritante que exalam. Ignorando a narrativa em favor do foco total na capacidade da forma humana de transmitir sensualidade erótica, se há filmes em que é óbvio que as cenas de dança são apenas sexo sublimado, estes estão na filmografia do coreógrafo americano. Começando em Rua 42 (Lloyd Bacon, 1933), Mil Apoteoses (Footlight Parade, 1933, Lloyd Bacon, com

Inicialmente um par de actores secundários em Voando para o Rio de Janeiro (1933), Fred Astaire e Ginger Rogers iriam tornar-se no casal poster para o novo género. Debaixo da produção da RKO, Chapéu Alto (1935), Ritmo Louco (Swing Time 1936) e Vamos Dançar? (1937), entre outros, seriam grandes sucessos de bilheteira e catapultariam o casal (virtual e real) para o estrelato. Seria talvez o caso de, nas palavras de Katharine Hepburn, que ele deu-lhe classe e ela deu-lhe sexo, mas o 13


sucesso do casal deveu-se a muito mais do que à química entre eles. Astaire não era de todo o actor tradicionalmente bonito, mas as suas rotinas de dança – complexas e meticulosas – obrigaram o musical a mudar bastante, em termos estéticos. Não só uma colaboração muito próxima com os compositores começou a ser norma, como Astaire criou um novo estilo de filmagem – uma câmara móvel (a famosa Astaire dolly), num plano de corpo inteiro e sem cortes (para melhor capturar a performance). O casal maravilha separa-se - no ecrã e na vida real - no final dos anos 30, mas o musical continua.

Geralmente de intriga romântica, com a mulher como protagonista, as personagens do musical soviético são, talvez evidentemente, despersonalizadas e universais, e funcionam como tipos. Dois realizadores a destacar no caso soviético: Grigory Alexandrov e Ivan Pyriev. Alexandrov realizaria Os Alegres Foliões (1934, famosamente um dos filmes preferidos de Estaline), Circo (1936), Volga-Volga (1938) e Tânia (1940), enquanto Pyriev se tornaria famoso por Noiva do Campo (1938), Tractoristas (1939), Encontraram-se em Moscovo (1940) e Os Cossacos de Kuban (1949).

No resto do mundo, a influência do novo género começa a sentir-se, e nem sempre nos sítios mais óbvios. Na União Soviética, o musical encontra um lugar de inesperado sucesso. Claro está, não na sua forma americana – mas o género será reinterpretado para se tornar num potente veículo de propaganda e ideologia. Boris Shumyatsky, responsável de criar um cinema para as massas em 1930, disse famosamente: “Nem a Revolução nem a defesa da Pátria socialista são tragédias para o proletariado. Sempre fomos, e iremos, para a batalha a cantar e a dançar”. Assim, o musical na União Soviética é utilizado como parte do romanticismo revolucionário, mostrando uma imagem do que o comunismo poderá ser, e criando – perante os olhos do público– a imagem e simbologia do utopismo comunista.

Por razões ideológicas semelhantes (apesar de opostas em termos de ideologia), o musical começara também a tornar-se popular no outro extremo da Europa, em Portugal. Com uma influência pesada do teatro de revista e do fado, o musical português exalta a vida rural, o trabalho honesto e artesanal e, claro está, o casamento. Musicais portugueses de relevo incluem A canção de Lisboa (José Cottinelli Telmo, 1933), Aldeia da Roupa Branca (Chianca de Garcia, 1938), A menina da rádio (Arthur Duarte, 1944), Fado: história de uma cantadeira (Perdigão Queiroga, 1947) e Os três da vida airada (Perdigão Queiroga, 1952). Com a Segunda Guerra Mundial, mais uma vez, as audiências procuram o conforto dos musicais, quanto mais escapista melhor. São os anos 14


de O Feiticeiro de Oz (Victor Fleming, 1939) e os primeiros sucessos de um novo estúdio de animação, a Walt Disney, Branca de Neve e os Sete Anões (1937).

Gerschwin, Jerome Kern, Rodgers e Hart, e Oscar Hammerstein, entre outros. Com o fim do casal maravilha Astaire/Rogers, e o sucesso de O Feiticeiro de Oz, Freed cria um novo tipo de conceito – kids putting on a show. São os anos de Judy Garland e Mickey Rooney, em filmes como De Braço Dado (Babes in Arms, Busby Berkeley, 1940), O Rei da Alegria (Strike up the Band, Busby Berkeley, 1940), Primavera da Vida (Babes on Broadway, Busby Berkeley, 1941) e Doidinho por Saias (Girl Crazy, Norman Taurog & Busby Berkeley, 1943). Garland seguiria uma carreira associada ao musical, com Não há como a Nossa Casa (Meet me in St Louis) em 1944.

Nos bastidores de O Feiticeiro de Oz, o assistente de produção e compositor Arthur Freed captura as atenções do mogul Louis B. Meyer, que rapidamente o contrata para trabalhar com a MGM. Esta é uma aposta que rapidamente dá frutos, e transforma a MGM no estúdio que se torna sinónimo do musical. Arthur Freed é o responsável por uma mudança drástica de paradigma no género, enterrando definitivamente (?) o musical conservador e conceptual (onde a narrativa serve apenas de desculpa para os números musicais) e insistindo fortemente na ideia de musical integrado. Nos musicais promovidos por Freed, nada é arbitrário na introdução de canções e danças, e ambos estes elementos avançam a narrativa – o caminho para o musical “naturalista” está definitivamente aberto.

O realizador de Meet me in St. Louis, Vincente Minnelli, tinha sido outra descoberta de Arthur Freed. Em 1943, ele tinha realizado o musical Um Lugar no Céu (1943), a sua primeira longa-metragem, com um elenco exclusivamente negro. Em 1953, A Roda da Fortuna (The Band Wagon) seria um dos grandes êxitos do realizador, com Fred Astaire e Cyd Charisse a combinar ballet com sapateado.

Freed tinha também um olho incrível para talento e originalidade, e convenceu Meyer a criar uma “escola de estrelas”, não só actores e realizadores, como compositores, coreógrafos e músicos. Nomes da Broadway foram atraídos para o filme musical para colaborar nas suas rotinas cada vez mais complexas – Cole Porter, Irving Berlin, Ira e George

Os anos 40 mostram também um interesse crescente não só por musicais, mas por biopics de pessoas associadas ao mundo da música e do espectáculo, uma espécie de musical de bastidores da vida real. 15


Canção Triunfal (Yankee Doodle Dandy, Michael Curtiz, 1942), Chopin Imortal (A Song to Remember, Charles Vidor, 1943), Fantasia Dourada (Night and Day, Michael Curtiz, 1946) e A História de Glenn Miller (Anthony Mann,1954) são apenas alguns dos exemplos de maior sucesso. Patriotismo inspirado pela guerra também entra no musical, através do realizador Mark Sandrich e 15 Dias de Prazer (Holiday Inn, 1942). A parte coreográfica do musical começa também a evoluir, com os famosos musicais de patinagem artística com Sonja Henie, dos quais se destacam A Carruagem de Sua Alteza (Thin Ice, Sidney Lanfield, 1937) e Rainha dos Patins (One in a Million, Sidney Lanfield, 1937) e as coreografias aquáticas de Esther Williams em Escola de Sereias (Bathing Beauty, George Sidney, 1944), A Rainha das Sereias (Neptune’s Daughter, Edward Buzzell, 1949) e A Rainha do Mar (Million Dollar Mermaid, Mervyn LeRoy, 1952).

que interpreta. Enquanto Astaire invoca estilo, invenção e elegância, o chico-esperto que chega à cidade e arrebata a rapariga, Kelly é brusco, energético, viril e experimental, um man-child que não está interessado em casamento. Um Americano em Paris (Vincente Minnelli, 1951, que revela já uma forte influência do jazz e da música contemporânea – obrigado Glenn Miller e Duke Ellington) e Serenata à Chuva (Stanley Donen & Gene Kelly, 1952) seriam os maiores sucessos de Gene Kelly. Adaptações de sucessos da Broadway (investimentos garantidos por parte dos estúdios, que começam a jogar pelo seguro à medida que o studio system entra em declínio) fazem também sucesso, com Rainha do Circo (Annie Get your Gun, George Sidney,1950), O Barco das Ilusões (Showboat, George Sidney, 1951), Beija-me Catarina (Kiss me Kate, George Sidney,1963) e Sete Noivas para Sete Irmãos (Stanley Donen, 1954). Enquanto isso, a Disney continua a lançar animações cantadas – Cinderela (1950), A Dama e o Vagabundo (1955) e A Bela Adormecida (1959). E, na linha clássica dos musicais, continuam a sair filmes: Eles & Elas (Guys & Dolls, Joseph L. Mankiewicz, 1955), Oklahoma! (Fred Zinnemann,1955), O Rei e Eu (Walter Lang, 1956), Cinderela em Paris (Funny Face, Stanley Donen, 1957) e Ao Sul do Pacífico (Joshua Logan,1958).

Com os anos 50, nasce um novo tipo de estrela do musical. Gene Kelly, que se torna famoso graças a Modelos (Cover Girl, Charles Vidor,1944), As Mil Apoteoses de Ziegfeld (1946), O Pirata dos Meus Sonhos (Vincente Minnelli, 1948) e Um Dia em Nova Iorque (On The Town, Stanley Donen, 1949), é atlético, tem experiência de ballet, e não poderia ser mais diferente de Astaire quer fisicamente, quer nas personagens 16


Assim Nasce uma Estrela (George Cukor, 1954) e Uma Mulher no Inferno (I’ll Cry Tomorrow, Daniel Mann, 1955) começam a fazer adivinhar uma nova era, mais negra, para o musical. A história de artistas (na maioria mulheres) que, após uma súbita subida aos holofotes da fama, não conseguem lidar com ela, e declinam lentamente com a ajuda de drogas, álcool e auto-negligência é uma tendência dos aparentemente estáveis anos pós-guerra – e um sinal claro não só da instabilidade da Guerra Fria, como de um backlash contra o feminismo de segunda vaga, que ousa sugerir que as mulheres devem trabalhar fora da cozinha...

OS ANOS 60 Quando as primeiras rugas (e sinais de artrite) começarem a aparecer nas estrelas dos musicais, com o fim do studio system, os orçamentos a reduzir e com a TV a ganhar mais e mais popularidade (e com ela um gosto por realismo), o musical parece – pelo menos à superfície – continuar a dar cartas nos anos 60. Quatro dos filmes que ganharam o Óscar de Melhor Filme durante a década foram musicais. Amor sem Barreiras (West Side Story, 1961), realizado por Jerome Robbins e Robert Wise, é um dos primeiros musicais a acabar em tragédia, e inicia uma linha temática virada para um maior realismo (difícil de acreditar com aquele sotaque da Natalie Wood, mas pronto). My Fair Lady (1964, George Cukor) foi a adaptação de um musical da Broadway, que por sua vez tinha sido adaptado da peça Pigmalião de George Bernard Shaw. Com Rex Harrison e Audrey Hepburn nos principais papéis, o filme ganhou 7 Óscares além do de melhor filme, incluindo Melhor Realizador e Melhor Actor. Curiosidade: os números musicais foram dobrados pela soprano Marni Nixon, que já tinha dobrado (em segredo) as cantorias de Natalie Wood em West Side Story.

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Música no Coração (1965, Robert Wise), talvez um dos musicais mais famosos de sempre, é considerado por alguns críticos um trombolho conservador, o canto de pato depenado de um género que devia ter morrido com o studio system. Para outros, o filme protagonizado por Julie Andrews é um dos melhores musicais de sempre. Muitos vêem-no, contudo, como o início do fim, ou pelos menos como o responsável pelo rápido declínio do género nos anos seguintes: porque foi um sucesso económico inesperado, apesar do orçamento elevado, levou os estúdios a reapostar em musicais espampanantes e caros, mas que não tinham a frescura, originalidade e talento do filme de Wise.

Chapéus de Chuva de Cherburgo em 1964. O filme, de modelo operático (tudo é cantado ou entoado), com Catherine Deneuve e Nino Castelnuovo, foi um enorme sucesso em França, e é o segundo filme da trilogia informal de Demy sobre romances (em 1961, temos Lola - que muitos consideram um musical sem música, e em 1967, o musical As Donzelas de Rochefort) Enquanto isso, o panorama musical fora do grande ecrã começara a mudar. O rock’n’roll – e a nova classe etária, os adolescentes – tornam a música “clássica” do filme musical fora do prazo. Em resposta, Hollywood alia-se à indústria discográfica. Em 1957, Jailhouse Rock leva Elvis Presley ao grande ecrã. No Reino Unido, Cliff Richards marca ponto em 1959 com Expresso Bongo e 1963 com o famosíssimo Mocidade em Férias (Summer Holiday, Pete Yates). E em 1964, vindo de Inglaterra, e com a ajuda de uns certos rapazes de Liverpool com o cabelo cortado à tigela, Os Quatro Cabeleiras do Após-Calipso (A Hard Day’s Night), realizado por Richard Lester, torna-se num sucesso internacional, abrindo novas possibilidades de orquestração ao musical – e dando um incentivo marcado ao chamado “musical de jukebox” (o filme de Lester não tem exactamente uma narrativa, e serve apenas de pretexto como ligação ténue entre vários números musicais, na sua maioria performances diegéticas).

Na Grã-Bretanha, Carol Reed realiza Oliver! (1968), adaptado da peça musical com o mesmo nome, baseado no romance de Charles Dickens e um dos muitos musicais que faz uso do ponto de exclamação para mostrar surpresa em como o género se recusa a morrer. A crítica Pauline Kael considera-lo-ia superior à versão teatral, e Oliver! seria o último musical a ganhar um Óscar até 2002. Fora dos Estados Unidos, o musical continua a fazer das suas. Na Checoslováquia, Limonada Joe (1964), realizado por Oldrich Lipsky, goza com os westerns (e valores) americanos, enquanto na França, Jacques Demy (uma das figuras mais subestimadas da Nouvelle Vague) realiza Os 18


Na linha da tradição dos musicais dos anos 30, outro nome de relevo aparece nos finais dos anos 60. Barbra Streisand passou da indústria discográfica para a cinematográfica com Funny Girl: Uma Rapariga Endiabrada (William Wyler, 1968), pelo qual ganhou um Óscar e um Globo de Ouro de Melhor Actriz, e continuou a brilhar no grande ecrã com Hello, Dolly! (Gene Kelly, 1969), Melinda (On a Clear Day you Can See Forever, Vincente Minnelli, 1970), O Nosso Amor de Ontem (The Way we Were, Sydney Pollack, 1974) e Funny Lady (Herbert Ross, 1975).

LET’S DO THE TIMEWARP AGAIN Enquanto a guerra do Vietname continua do outro lado do mundo, o movimento do New Hollywood ganha fôlego, com a fórmula de filmes de custo reduzido, dirigidos a uma audiência mais jovem, e que mostravam temas (sexo, violência) antes proibidos pelo defunto Production Code. Assim, Bonnie & Clyde, A Primeira Noite e Easy Rider ocuparam confortavelmente o espaço deixado pelos filmes do studio system, e mostraram que as audiências estavam prontas para um novo tipo de cinema, bastante influenciado pelas Novas Vagas europeias. Tentando sobreviver neste admirável mundo novo, o musical tenta reinventar-se.

Mas apesar do brilho, guitarradas e aparente paz & amor da década, os estúdios cometeram o erro de assumir que qualquer musical seria um êxito garantido. Inevitavelmente, os flops começaram a aparecer – Camelot (Joshua Logan, 1967), O Extravagante Dr. DoIittle (Richard Fleisher,1967), Adeus Mr Chips ( Herbert Ross, 1969), Os Maridos de Elizabeth (Paint Your Wagon, Joshua Logan, 1969) e Canção da Noruega (Andrew L. Stone, 1970) foram todos ignorados pelas audiências, e pareciam mostrar que o musical tinha os dias contados. O assassinato de John F Kennedy em 1963 e o de Martin Luther King em 68 marcam o fim de uma era de optimismo, e onde o clima é sombrio, cantar e dançar com uma alegria sem razão não são opções.

A maior parte destes esforços vêm, estranhamente, do Reino Unido. Em 1975 Ken Russell filma Tommy, baseado no álbum dos The Who, e com um elenco cheio de estrelas – Roger Daltrey, Eric Clapton, Elton John, Tina Turner e Jack Nicholson. O filme seria bastante bem recebido pelas audiências e críticos. O mesmo não aconteceria com o outro filme musical de Russell e Daltrey do mesmo ano, Lisztomania, uma biografia glam rock do compositor Franz Liszt. O grande musical dos anos 70, também filmado no Reino Unido em 1975, será um pastiche de baixo orçamento que será marcante – segundo 19


Tradicional não é, contudo, o adjectivo adequado para Cabaret, Adeus Berlim (1972, Bob Fosse), um musical de R-rating onde tudo é decadente e vulgar – e onde Fosse mistura cinema de arte com entretenimento puro. Em 1979, Fosse realiza o semi-autobiográfico, fantasista All That Jazz: O Espectáculo vai Começar, que ganha a Palma de Ouro em Cannes, e que tem a estranha honra de ter um dos melhores números musicais sobre morte de sempre – Bye Bye Life.

consta – para a estética punk rock dos anos seguintes. Realizado por Jim Sharman, e baseado na peça musical de Richard O’Brien, Festival Rocky de Terror não foi um sucesso imediato, mas sessões de meia-noite em Nova Iorque onde a audiência começou a participar tornaram-no num dos mais conhecidos – e amados – filmes de culto de sempre. Ainda em 1975, Nashville, realizado por Robert Altman (e considerado por muitos o seu melhor filme) desafia as convenções de narrativa simplista do musical ao colocar 24 personagens e tramas múltiplas no mesmo filme. Já Alan Parker, na sua primeira longa metragem, resolve fazer um filme de gansgsters musical em que todo o elenco é interpretado por crianças (talvez numa tentativa de recrear o sucesso de Arthur Freed nos anos 40?): Bugsy Malone (1976, com uma Jodie Foster de 13 anos) tem algum sucesso no Reino Unido, mas não consegue ultrapassar a distribuição limitada além fronteiras. E até Scorsese tenta a sorte no género com New York, New York (1977), com Robert De Niro e Liza Minnelli nos papéis principais.

Os resquícios dos anos 60 também se manifestam em filmes espíritoreligiosos, como Jesus Christ Superstar (Norman Jewison, 1973) e Hair (Milos Forman, 1979). A fazer adivinhar os dance movies da década seguinte, Brilhantina (Grease 1978, Randal Kleiser) lança John Travolta e Olivia Newton-John para o estrelato, bate recordes de bilheteira e mostra que filmes podem fazer um lucro considerável das suas bandas sonoras. Mas apesar dos sucessos, os falhanços são ainda maiores – O Homem de La Mancha (Arthur Hiller, 1972), Amor Eterno (At Long Last Love, Peter Bogdanovich, 1975, considerado um dos piores filmes alguma vez feitos), e Xanadu (Robert Greenwald, 1980) mostram aos senhores do dinheiro que é melhor apostar num tipo diferente de cavalos. Quando A Música Não Pode Parar (Nancy Wather), em 1980, ganha o primeiro Razzie de sempre, é o prego final no caixão do musical...

Mas não só no cinema independente o musical tentou agarrar-se à vida. Um Violino no Telhado (1971, Norman Jewison) e Música Numa Noite de Verão (1978, Harold Prince, com Elizabeth Taylor) são musicais “tradicionais”, assim como o é As Aventuras dos Marretas (1979, James Frawley), apesar do humor surreal e meta-referências deste último. 20


Com Steve Martin e Bernadette Peters nos principais papéis, o filme foi um desastre de bilheteira, supostamente porque as audiências estavam à espera de uma nova comédia com Steve Martin (após o sucesso do seu filme anterior, O Tonto, em 1979).

STAYN’ ALIVE Durante os anos 80, enquanto a Broadway e o West End somam sucesso atrás de sucesso, o filme musical parece ter desaparecido completamento do grande ecrã, e começa a ser tratado como um género de segunda categoria – no cinismo dos anos 80, quando greed is good, que desculpa se pode ter para começar a cantar do nada? Quando a televisão mostra os horrores que se espalham pelo mundo, como justificar o escapismo do musical? Apesar da década ter começado com dois musicais de referencia – Fama (Alan Parker, 1980) e The Blues Brothers (John Landis, 1980), estes são musicais “sob disfarce”: porque se passam na indústria do entretenimento, os números musicais são “desculpados”. Longe vão os dias de Gene Kelly a dançar espontaneamente com candeeiros da rua.

Em 1982, Alan Parker realiza o guião de Roger Waters para Pink Floyd: The Wall. Uma história original baseada no albúm com o mesmo nome dos Pink Floyd, o filme tem sequências de animação e fantasia surreais, assim como violência, gore e sexo, e é hoje um filme de culto – a fórmula que utiliza, com quase nenhuns diálogos, lembra os musicais conceptuais do início dos anos 30, apesar de, aqui, a música não ser, na sua maioria, diegética. Paródias musicais começam a ganhar fôlego. Um musical australiano de 1983, The Return of Captain Invincible (Philippe Mora), conta a história de um superherói (Alan Arkin) que, após grandes feitos durante a Segunda Guerra Mundial, é acusado de comunismo e vai viver para a Austrália. Quando os EUA precisam dele e o vão buscar... o superherói tornou-se alcoólico – e nós temos Christoper Lee (o vilão) a cantar o delicioso Name Your Poison.

Talvez por se sentir mais fora dos olhares das massas, o musical entra numa fase algo experimental nos anos 80 (e por experimental queremos dizer estranhíssima). Em 1981 Herbert Rose leva ao ecrã o guião de Dennis Potter, Dinheiro do Céu (Pennies from Heaven), uma adaptação da série da BBC com o mesmo nome. Conhecido pela geração Youtube como “aquele filme onde Christopher Walken se torna subitamente no Channing Tatum dos anos 80 e faz strip tease num bar”, este musical nostálgico tinha as suas personagens a fazer playback de canções dos anos 20 e 30.

Também em 1983, e de volta ao Reino Unido, o grupo cómico Monty 21


Python lança o filme O Sentido da Vida, onde números musicais – que incluem Every Sperm is Sacred, The Galaxy Song e Christmas in Heaven – escandalizaram audiências pelo mundo todo... e arrebataram o Grande Prémio do Júri em Cannes.

o musical podia estar teoricamente morto, mas ainda não estava esquecido. A ressurreição, contudo, viria do fundo do mar em 1989. Michael D. Eisner, que estava à frente dos estúdios Disney na altura, contrata a equipa que tinha estado envolvida na versão teatral Lojinha de Terrores para trabalhar num novo filme, A Pequena Sereia. O filme, que apresenta números musicais memoráveis e uma estrutura muito Broadway, foi um sucesso. Afinal, é muito mais simples justificar começar a cantar e dançar do nada quando se é um desenho animado a duas dimensões.

A mistura de géneros nos anos 80 é claramente a palavra de ordem – a minissérie da BBC The Singing Detective (Dennis Potter, 1986) mistura o noir com o musical; A Lojinha dos Horrores (Franz Oz, 1986, adaptação do musical off-Broadway que é por sua vez uma adaptação musical do filme de 1960 realizado por Roger Corman) é uma horro-comédia rock musical; e para exemplo de musical desportivo, que tal Billy the Kid and the Green Baize Vampire (1987, Alan Clarke), onde vampiros jogam bilhar? Entretanto, em Portugal, Manoel de Oliveira realiza Os Canibais (1988), um musical operático. E se cantar do nada é visto com grande suspeita, dançar, por outro lado, torna-se mais e mais popular. Numa tendência iniciada por Febre de Sábado à Noite (John Badham) em 1977, as dance pictures invadem os cinemas, cheias da nova música popular – Fama (Alan Parker, 1980), A Febre Continua (Staying Alive, Sylvester Stallone, 1983), Flashdance (Adrian Lyne, 1983) e Footloose – A Música Está do Teu Lado (Herbert Ross, 1984) foram êxitos de bilheteira, e deixavam adivinhar que

Em 1991, A Bela e o Monstro torna-se na primeira animação de sempre a ser nomeada para Óscar de Melhor Filme, e em 1994 O Rei Leão chegou a segundo lugar na corrida das bilheteiras (em primeiro estava Parque Jurássico). A fórmula do sucesso da Disney parecia estar na força das suas histórias, com canções que caracterizam as personagens. avançam a história. O protagonista é geralmente um jovem desiludido com a vida que leva, que com a ajuda de um mentor mágico e compinchas cómicos descobre o amor e destrói o vilão. Valores americanos – o trabalho árduo, sacrifício, o amor à família e a fé no poder dos desejos – juntam-se numa combinação de sucesso, e assim a animação torna-se o último refúgio do musical americano. 22


Apesar dos filmes seguintes não serem tão bem sucedidos – Pocahontas (1995), O Corcunda de Notre Dame (1996) e Hércules (1997) não conseguem igualar o sucesso dos seus antecessores - os dados estão lançados: com a Disney a mostrar o caminho, mostras tímidas de ressurgimento do musical começaram a aparecer – primeiro, com a popularização de filmes não-musicais a apresentarem números musicais, como Do Cabaret para o Convento (Emile Ardolino, 1992); depois, com as adaptações de êxitos da Broadway para o cinema – mais famosamente, Evita (Alan Parker) em 1996. E subitamente, aqui e ali, os musicais começaram a aparecer mais frequentemente – quer em jeito de paródia, como Canibal o Musical (Trey Parker) em 1993, quer em homenagem sentida (Toda a Gente Diz que Te Amo, Woody Allen, 1996), quer mesmo em jeitos de pós-modernismo (É Sempre a Mesma Cantiga, Alain Resnais, 1997) ou animação de mau gosto (South Park: o Filme, Trey Parker, 1999)

IN A MUSICAL NOTHING DREADFUL EVER HAPPENS Baz Luhrmann não é conhecido pela subtileza – e Moulin Rouge! (2001, cá estão mais pontos de exclamação, oba oba) é tudo menos subtil. Um produto da geração MTV, Moulin Rouge! é o filme musical supremo, já que – até à data, e ao contrário de outros filmes musicais que foram originalmente para o grande ecrã – nunca foi adaptado aos palcos. Um musical jukebox pastiche, Moulin Rouge! será o primeiro musical a ser nomeado para um Óscar após A Bela e o Monstro em 1991 e lembrará o mundo de que o musical ainda vive. Mas a proclamação que todos esperavam – o musical está morto, viva o musical! – chega em 2002 com a adaptação de Chicago. Realizado por Rob Marshall, é o primeiro (e até agora, único) musical a ganhar o Óscar de Melhor Filme depois de Oliver! A sátira sobre corrupção, fama, e a celebridade associada ao crime, mostra a grande mudança de tom do género no novo século – já não estamos no mundo cor-de-rosa de Astaire e Rogers, ou das coreografias caleodoscópicas de Busby Berkeley – o musical renasceu com sequências muito editadas, que são mais Kuleshov que Kelly, e histórias que são tudo menos felizes... e, na maior parte das vezes, tudo menos escapistas.

Em 2000, quando o musical “pós-moderno” Dancer in the Dark (Lars von Trier) arrebata a Palma d’Ouro em Cannes, de repente uma lâmpada acende-se por cima da cabeça de cineastas por todo o mundo – só porque é um musical, não significa que tenha de ter um final feliz...ou ser especialmente feliz de todo.

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2009, os primeiros episódios de Glee estreiam, e levam a série até 2015, o ano em que não uma, mas duas séries musicais (e estamos a falar de musicais com M grande, não travestis) chegam às televisões – Galavant (2015-2016) e Crazy Ex-Girlfriend (2016-). Ambas as séries utilizam a música para troçar de convenções estabelecidas pelos géneros em que se inserem: em Galavant, a série medieval está pejada de referências a outras séries (Guerra dos Tronos, principalmente), música extracontemporânea (Kylie Minogue faz um cameo num bar, er, encantado) e tecnologia moderna, enquanto reescreve as convenções da busca do herói pelo seu amor verdadeiro (o herói viaja para salvar a sua amada das mãos do rei malvado, só para descobrir – spoiler – que ela não quer ser salva). Até a renovação da série para uma segunda temporada mereceu uma canção – A New Season.

O sinal verde está dado aos estúdios, e grandes produções musicais começam a aparecer – O Fantasma da Ópera (Joel Schumacher, 2004), Dreamgirls (Bill Condon, 2006), Uma História de Encantar (Kelly Lima, 2007), Hairspray (Adam Shankman, 2007), Nove (Rob Marshall, 2009) e, em 2012, Os Miseráveis (Tom Hooper). Nem todos sucesso de bilheteira – os estúdios parecem não ter aprendido que só porque um filme tem sucesso, não significa que todos tenham o mesmo interesse. Mas a bola continua a rolar. Na linha de musicais “negros” iniciada por Chicago, aparecem também Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street (Tim Burton, 2007) e Caminhos da Floresta (Into the Woods, Rob Marshall, 2014). Em 2006, tudo muda quando High School Musical entra no imaginário das novas gerações – de repente o musical é popular, e atrai cada vez mais as novas gerações. Em 2008, decerto inspirada pelo sucesso de Moulin Rouge!, Mamma Mia (Phyllida Lloyd) inicia uma nova era de jukebox musicals, e o estúpido sucesso que obtém dá origem a toda uma série de filmes que tentam usar boa música para vender filmes de má qualidade (Across the Universe, Julie Taymon, 2007; Rock of Ages, Adam Shankman, 2012).

Crazy Ex-Girlfriend parodia as convenções do filme romântico. A heroína, Rebecca Bunch (Rachel Bloom) deixa a carreira para trás em Nova Iorque para se mudar para os subúrbios de Los Angeles, inspirada pelo encontro acidental com o ex-namorado de adolescência, Josh... que vive nos subúrbios de Los Angeles. A série expõe os ridículos dos clichés românticos, desde as expectativas da sociedade sobre a aparência feminina (The Sexy Getting Ready Song), o ser a segunda opção romântica (Settle for Me); separar o objecto amado da sua namorada actual (I’m the

O pequeno ecrã começa também a seguir o exemplo do cinema. Em 24


e homenagem em Hipsters (2008), um filme de culto que usa covers de músicas rock russas dos anos 80 e 90. E, em 2014, Sion Sono dá-nos a adaptação musical da manga Tokyo Tribe (onde as coreografias de dança foram substituídas por lutas urbanas), enquanto Richard Lagravenese aposta na adaptação da pela off-Broadway Os últimos 5 Anos, onde uma história de amor nos é contada em duas perspectivas diferentes... e em duas direcções cronológicas diferentes.

Villain in my Own Story) e até a célebre cena de aeroporto (It was a Shit Show – com a linha genial, We’re Jerry Springer/Not Casablanca) Mas como no século XXI nem tudo se passa no grande e pequeno ecrã, também a internet tem a sua dose de cantoria. Os Whedon, em 2008, lançam uma das primeiras web séries de sucesso – Dr Horrible’s Sing a Long Blog, com Neil Patrick Harris, Nathan Fillion e Felicia Day. Quando em 2009 Hugh Jackman abre a cerimónia dos Óscares com um número musical, já não há retorno. Em termos de musicais alternativos – ou de cineastas que tentam expandir e explorar o género em novas direcções – há também bastantes exemplos de relevo dos últimos anos. O musical independente Hedwig – A Origem do Amor (2001, John Cameron Mitchell) foi um fracasso de bilheteiras, apesar de hoje ter alguma notoriedade no circuito de culto. O taiwanês Tsai Ming-liang já tinha realizado o drama musical O Buraco em 1998, e em 2005 regressa com O Sabor da Melancia. Cory McAbee realizou e protagonizou o musical western-espacial O Astronauta Americano em 2001, e, no mesmo ano, Takashi Miike realiza A Felicidade dos Katakuris, uma horrocomédia musical. O russo Valery Todorovsky resolve apostar na nostalgia 25


cinematográfica. Quando um filme utiliza música, a suprema linguagem universal, como material principal, o potencial de comunicação é imenso. Afinal, uma boa canção não precisa de legendas.

QUEM CANTA SEUS MALES ESPANTA Em 2017, La La Land: Melodia de Amor (Damien Chazelle) chega aos cinemas e, além de cimentar a certeza merecida no talento do realizador de Whiplash, fará certamente maravilhas pelo filme musical. A mistura correcta de homenagem com reinterpretação, La La Land: Melodia de Amor é uma história poderosa que funciona quer as canções estejam lá ou não – mas as canções são, ao mesmo tempo, parte da sua alma. Do número Audition em que Emma Stone fala da importância de arriscar, até ao número final interpretado por Ryan Gosling (que não tem uma única palavra, mas diz tudo o que há a dizer), não há dúvidas que nós podemos ter desistido do musical, mas o musical não desistiu de nós. Nos nossos dias marcados por mais uma recessão económica, não procuramos o escapismo no musical, mas estranha – e ironicamente – na reality TV. A fantasia e a ficção científica tomaram o lugar do musical como géneros escapistas por excelência (se bem que no caso da ficção científica, a ocasional chapada distópica ainda acontece), deixando o musical livre da sua obrigação teórica de, segundo as palavras do teórico Richard Dyer, evangelho da felicidade. O que significa que o género está pronto a ser reinterpretado, reutilizado e remasterizado por cineastas ousados, que consigam ver além das convenções e história 26


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O MUSICAL CLÁSSICO AMERICANO JOSÉ CARLOS MALTEZ

Por mais paradoxal que isso hoje nos pareça, o musical começou em Hollywood ainda no período do cinema mudo. Era o tempo da Vitaphone, com bandas sonoras filmadas à parte, e tocadas em sincronia com a imagem, ou música ao vivo, em curtas-metragens e filmes de animação, um pouco como curiosidades excêntricas. Mas foi quando, em 1927, a Warner Bros. fez Al Jolson cantar no filme O Cantor de Jazz, de Alan Crosland, que o musical, como hoje o imaginamos teve início. É um facto que O Cantor de Jazz tem apenas algumas canções num filme essencialmente mudo, mas o mote estava dado. O público queria ver a animação dos palcos nas telas mágicas, e os produtores de Hollywood perceberam-no. De um momento para o outro, todos os estúdios passaram a fazer exclusivamente filmes sonoros.


Atravessava-se então o apogeu do studio system. Hollywood era uma verdadeira fábrica de sonhos, e uma indústria que quase não media meios. Interessava explorar novas ideias, encontrar fórmulas vencedoras, e fazê-las render, para isso criando estrelas a metro, e personagens que se sobrepusessem aos actores que os interpretavam. Nada melhor que levar as famílias a ver no ecrã o espectáculo que até então mais as tirava de casa, as revistas e teatros musicais, onde dominavam os modelos da Broadway, os seus intérpretes e compositores, que em breve seriam tentados a tentar a sua sorte no cinema. Não admira que, aquele que foi chamado o primeiro filme inteiramente falado, cantado e dançado, se chamasse The Broadway Melody (1929), e viesse da Metro Goldwyn Meyer (MGM), por vocação a mais familiar e tradicionalista das majors de Hollywood, e aquela que melhor partido saberia tirar do grande espectáculo musical. O sucesso foi imediato, com o filme a receber o Oscar de Melhor Filme. A receita estava encontrada: adaptar ao cinema números musicais da Broadway, mesmo que a história que os ligasse fosse secundária. Nascem assim títulos como Parada do Amor (Paramount, 1929), de Ernst Lubitsch, Comediantes (Warner, 1929), de Alan Crosland e Eldorado (Warner, 1929), de Roy Del Ruth, os quais se baseavam em números da Broadway e usavam já as primeiras versões da cor Technicolor. Entre as primeiras estrelas surgem nomes como Jeanette MacDonald, o citado Al 30


Jolson, e ainda Maurice Chevalier, Alice Faye, Eleanor Powell e também Eddie Cantor, estrela de filmes como O Grito Selvagem (Samuel Goldwyn, 1930) de Thornton Freeland e Escândalos Romanos (Samuel Goldwyn, 1933) de Frank Tuttle. Com uma produção de mais de 100 filmes só em 1930, o género pareceu esgotar-se rapidamente, e 1931 veria apenas 14 musicais a sair de Hollywood, com o público a sentir que os filmes não passavam de uma má cópia do que se faziam em palco. Mas a renovação estava a caminho, muito por obra de Busby Berkeley. Coreógrafo e realizador, Berkeley inspirou-se nos desfiles militares, para criar números envolvendo dezenas de chorus girls em formações geométricas e caleidoscópicas muito elaboradas, em espaços gigantescos e filmadas de ângulos pouco convencionais. Eram espectáculos puramente cinemáticos, que fizeram as delícias do público, ainda mais pela exploração do corpo feminino em figurinos muito sensuais. Destacam-se Gold Diggers of 1933/Orgia Dourada (1933), de Mervyn LeRoy, Mil Apoteoses (1933), Rua 42 (1934) e Wonder-Bar, o Cabaret das Maravilhas (1934) (os três realizados por Lloyd Bacon), como os primeiros quatro filmes de uma longa série que Berkeley coreografou para a Warner. As estrelas eram James Cagney, Joan Blondell, Warner Baxter, Bebe Daniels, Ruby Keeler, Dick Powell e Dolores Del Rio, que interpretavam histórias românticas mescladas com números musicais, tendo como enredo, geralmente, os bastidores do

teatro. 1933 foi, curiosamente, o ano em que um dos mais famosos bailarinos do seu tempo, Fred Astaire, teve pela primeira vez uma parceria com a actriz Ginger Rogers. O potencial da dupla foi evidente, e a RKO promoveu o musical romântico de um duo elegante, de passos sofisticados, em oito filmes de sucesso ao longo da década, de onde se destacam A Alegre Divorciada (1934) e Chapéu Alto (1935), ambos de Mark Sandrich, e Ritmo Louco (1936) de George Stevens. Mas se James Cagney, Fred Astaire e Dick Powell eram actores que cantavam, a canção romântica promovia também o percurso inverso, com cantores a tornarem-se actores. Era o caso de Bing Crosby, um famoso cantor de rádio e de palco, que começava a definir um papel romântico no cinema, cantando temas da Broadway (por exemplo de Irving Berlin) como no clássico Holiday Inn/15 Dias de Prazer (Paramount, 1942), depois de ter começado nos anos 30 com sucessos como Mississipi (Paramount, 1935), de A. Edward Sutherland, com Joan Bennett e o comediante W.C. Fields, e Tudo a Cantar (Columbia, 1936), de Norman Z. McLeod. Da ópera vinham também cantores eruditos como era o caso de Grace Moore, e Nelson Eddy, parceiro de Jeanette MacDonald em inúmeros filmes. Exemplo dessa ligação entre a Broadway e Hollywood eram as chamadas Ziegfeld Follies, revistas musicais de dispendiosa produção, populares 31


atingiria o estrelado com o premiadíssimo O Feiticeiro de Oz (Warner, 1939) de Victor Fleming. O musical tornava-se um género familiar, e quase todos os grandes actores por lá passaram, como por exemplo James Cagney, conhecido pelos seus papéis de duro nos filmes de gangsters, mas que começara nos palcos a cantar e dançar, experiência essa que representou no célebre Yankee Doodle Dandy/Canção Triunfal (Warner, 1942) de Michael Curtiz. O mesmo se passava com os realizadores que se haviam distinguido noutros géneros, como se vê nalguns dos maiores sucessos dos anos 30, A Viúva Alegre (MGM, 1934), de Ernst Lubitsch, e Magnólia (Universal, 1936), de James Whale, para além do já citado Michael Curtiz. Também a comédia usava o musical, baseando-se nos teatros de revista, como são exemplo os filmes dos Irmãos Marx, onde as canções diegéticas, por vezes com sequências de dança inspiradas em Berkeley, eram importantes para empacotar histórias de humor caótico, réplicas corrosivas e comédias de enganos. Basta lembrar que os dois primeiros filmes dos Marx foram adaptações da Broadway: The Cocoanuts (1929), de Robert Florey, e Joseph Santley, e Os Galhofeiros (1930), de Victor Heerman, ambos para a Paramount, com estruturas que influenciaram todos os filmes seguintes. Como sucessores dos Marx estiveram comediantes como Danny Kaye: O Professor de Música (RKO, 1948), de Howard Hawks e O Bobo da Corte (Paramount, 1955) de Melvin Frank

entre 1901 e 1931, e que acabaram adaptadas ao cinema por três vezes pela MGM, desde o oscarizado O Grande Ziegfeld (1936), de Robert Z. Leonard, a Sonhos de Estrelas (1941), de Robert Z. Leonard e Busby Berkeley, e As Mil Apoteoses de Ziegfeld (1945), de sete realizadores diferentes. Estes filmes eram pretexto para reunir grandes elencos de estrelas (todos os grandes actores da MGM lá passavam) em desfiles de números célebres e enormes produções coreográficas, em segmentos sem ligação entre si, mas que garantiam um enorme interesse do público. Caminhando à parte, Walt Disney, que já se popularizara com as curtasmetragens musicais de animação Silly Symphonies entre 1929 e 1939 (a que a Warner respondia com as suas loucas Merrie Melodies, e a MGM com as hoje menos conhecidas Happy Harmonies), aventurava-se no campo da longa-metragem, apostando em reinterpretar clássicos da literatura infantil e juvenil, em jeito de musical. A estreia não podia ser mais auspiciosa com Branca de Neve e os Sete Anões (1937), logo sucedido por Pinóquio e Fantasia, ambos de 1940, levantando a fasquia do musical animado de que a Disney continua rainha até hoje. Aproveitando a reputação dos musicais como veículo para comédias dramáticas e histórias familiares com canções populares, a Fox aproveitou a fama da jovem Shirley Temple, enquanto a MGM respondia com filmes feitos à medida para explorar os talentos dos jovens Mickey Rooney e Judy Garland (nos «backyard musicals»), sendo que esta 32


Barco das Ilusões (1951) de George Sidney; Serenata à Chuva (1952), de Stanley Donen e Gene Kelly; A Roda da Fortuna (1953), de Vincente Minnelli; Beija-me Catarina (1953), de George Sidney; Assim Nasce Uma Estrela (1954) de George Cukor; Sete Noivas para Sete Irmãos (1954) de Stanley Donen; Brigadoon: A Lenda dos Beijos Perdidos (1954) de Vincente Minnelli; e Gigi (1958), também de Vincente Minnelli. Conrad Salinger, Adolph Deutsch, George Gershwin, Irving Berlin, Leonard Bernstein, Cole Porter, Jerome Kern, Arthur Schwartz, a dupla Alan Jay Lerner e Frederick Loewe, além do próprio Arthur Freed eram os responsáveis por canções memoráveis e peças orquestrais de grande beleza e arrojo que colocavam o cinema musical a par da música erudita. Lugar à parte na MGM tinha a carreira de Esther Williams, a sereia de Hollywood, cujos filmes pegavam na inspiração das coreografias de Busby Berkeley, transferindo-as para a piscina, em bailados aquáticos, onde as formações eram filmadas em planos picados, em treze filmes entre 1944 e 1955, onde se destaca Romance Sensacional (1945) de Richard Thorpe. Fora da MGM, Rita Hayworth brilhava na Columbia, em Nunca Serás Rico (1941), de Sidney Lanfield, e Nunca Estiveste Tão Linda (1942), de William A. Seiter, ambos com Fred Astaire. A Warner lançava Doris Day em Romance no Alto Mar (1948) de Georgia Garrett, enquanto a Fox apostava em Alice Faye, Betty Grable e Carmen Miranda, até descobrir

e Norman Panama; Bob Hope (o qual contracenava amiúde com Bing Crosby), por exemplo em Cocktail de Estrelas (Paramount, 1942) de George Marshall; ou os filmes iniciais da dupla Jerry Lewis e Dean Martin. Essa tradição seria recuperada muito mais tarde, na obra de Mel Brooks. Mas o musical de Hollywood atingiu o seu expoente máximo na MGM, e na chamada Freed Unit. Liderada por Arthur Freed, tratou-se de uma unidade de produção que trabalhava independentemente do resto da companhia, com o objectivo de produzir musicais. Nela destacaram-se a cantora Judy Garland, o bailarino, actor e realizador Gene Kelly, e o seu parceiro de realização e coreografia Stanley Donen, mas também Cyd Charisse, Kathryn Grayson, Howard Keel, Ann Miller, Donald O'Connor, Vera-Ellen e o regressado Fred Astaire, sem esquecer a ascensão do cantor Frank Sinatra. O resultado foram filmes onde a coreografia das cenas individuais de dança dependia de um grande virtuosismo e originalidade e algum humor, depois misturados com histórias românticas e de aventura, sem inibir o facto de que sequências de música e dança extra-diegética se sobrepunham à narrativa como forma de expor sentimentos e situações, como num bailado clássico. Tudo isto com grandes elencos e meios de produção. São exemplos: Não Há Como a Nossa Casa (1944), de Vincente Minnelli; Quando Danço Contigo (1948), de Charles Walters; Um Dia em Nova Iorque (1949), de Stanley Donen e Gene Kelly; Um Americano em Paris (1951), de Vincente Minnelli; O 33


Marilyn Monroe, estrela de Os Homens Preferem as Loiras (Fox, 1953) de Howard Hawks. Com o definhar do studio system ao longo dos anos 50, também o musical começou a sofrer com a alteração do paradigma no cinema de Hollywood. Há uma enorme mudança na temática do cinema dos anos 60, com o modernismo e a contra-cultura a ganharem cada vez mais peso, e o público a pedir temas de maior impacto psicológico e social. Tal já se denota no filme de transição, que é o independente West Side Story – Amor Sem Barreiras (1961) de Jerome Robbins e Robert Wise, e que pôs Natalie Wood a dançar, num cenário pós-moderno, com música original de Leonard Bernstein. Mas o cinema clássico teimava em continuar, adaptando agora integralmente teatros musicais da Broadway de gosto clássico. São disso prova filmes como Minha Linda Lady (Warner, 1964) de George Cukor (com música e letra de Alan Jay Lerner e Frederick Loewe); Música no Coração (Fox, 1965) de Robert Wise (com música e letra de Richard Rodgers); e Funny Girl: Uma Rapariga Endiabrada (Columbia, 1968) de William Wyler (com música e letra de Jule Styne e Bob Merrill), e que deram a conhecer as novas estrelas Barbra Streisand e Julie Andrews, esta popularizada no original da Disney de Mary Poppins (1964), de Robert Stevenson, com música e letra dos Sherman Brothers. Era o fim de uma era, destronada pelo rock and roll, a contra-cultura, e

temáticas contemporâneas punham um fim no musical clássico. Era a vez dos romances rock de Elvis Presley, os musicais ácidos de Andrew Lloyd Weber, o movimento hippy de Hair, o jazz e burlesco decadente de Bob Fosse, os filmes baseados em musicais de bandas como The Beatles e The Who, e tantos outros movimentos que transformariam para sempre o musical.

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TOP HAT

Título nacional: Chapéu Alto Realização: Mark Sandrich Elenco: Fred Astaire, Ginger Rogers, Edward Everett Horton Ano: 1935

FILIPE LOPES

vezes no total, tantas quantas o casal dança conjuntamente em Top Hat, mais do que em qualquer outro dos filmes em que contracenaram. A verdade é que Fred e Rogers, bem como as suas equipas nos diversos títulos que protagonizaram, incluindo o produtor Pandro S. Berman e a própria da RKO, revolucionaram o ainda muito jovem género musical no cinema americano, constituído até essa altura por planos curtos e abertos, com muitos dançarinos a executarem danças que, embora espectaculares e minuciosamente coreografadas, provinham de grandes êxitos da Broadway, enfatizando o conjunto em detrimento do individual. Com Fred e Ginger, os planos tornam-se mais aproximados, envolvendo os actores, mostrando-os de corpo inteiro e à sua dança, ela própria intrinsecamente ligada ao desenrolar da narrativa. O plano geral utilizado para captar as companhias de dança com muitos bailarinos deu lugar à minúcia de um grande plano com um ou dois actores no enquadramento e os planos curtos cederam espaço aos planos longos, com os pormenores deliciosos de um sapateado executado com perícia a poderem ser vistos com atenção pelo espectador, deixando a câmara de ser estática para acompanhar os dançarinos pelo espaço em que eles se deslocam. Top Hat é um belo exemplo de tudo isto. Desde logo pela primeira dança de Fred Astaire, um sapateado no quarto de hotel em que a câmara segue o actor pelo quarto e depois desce, sem corte, para o piso inferior, mostrando uma sonolenta Ginger Rogers a quem o barulho está a impedir de dormir. Mas não apenas aqui. Em todas as danças que executam em conjunto, percebemos claramente que existem e quem são os protagonistas, com a câmara a segui-los para onde quer que dancem. Aqui criam-se elos entre o espectador e quem dança. A dança tem mais do que pernas, saias curtas e coreografias bonitas. Tem face, paixão, alegria e sofrimento. Tem expressão. E quando sentimos isto que deixam de ser os actores a dançar… passamos a ser nós.

Ginger Rogers e Fred Astaire formaram uma das mais lendárias parcerias do cinema, sobretudo entre 1933 e 1939, altura em que protagonizaram quase uma dezena de musicais em conjunto. A bem dizer, só não são verdadeiramente protagonistas no primeiro filme em que participaram ambos (Voando Para o Rio de Janeiro / Flying Down to Rio), já que aí os astros maiores são Dolores del Rio e Gene Raymond, mas foi com esse título que ganharam a oportunidade de serem estrelas do firmamento cinematográfico de Hollywood, graças a uma química invejável que sempre pareceram ter. Top Hat / Chapéu Alto é apenas a sua terceira parceria, mas também é, provavelmente, o melhor de todos os filmes que fizeram juntos. Astaire faz de Jerry Travers, uma celebridade da dança contratada pelo produtor Horace Hardwick (Edward Everett Horton) para o seu novo espectáculo. A primeira demonstração do seu sapateado ocorre num quarto de hotel por cima do de Dale Tremont (Ginger Rogers), que se queixa por não conseguir dormir e, num primeiro confronto com Jerry, o toma erradamente por Horace, dando início a uma série de enganos transformados em gags humorísticos e polvilhados com trocadilhos a condizer. A música tem momentos belíssimos, da responsabilidade do extraordinário Irving Berlin, enquanto compositor e letrista, como são os temas “Cheek to Cheek” e “The Piccolino”, cujo brilhantismo é assegurado por Max Steiner, enquanto director musical. Tanto um como outro fizeram história e deixaram uma marca indelével nos tempos dourados do cinema musical americano. Esta foi a segunda vez que Mark Sandrich dirigiu Ginger e Fred, o que já tinha acontecido em The Gay Divorcee / A Alegre Divorciada (1934) e se repetiria por mais três ocasiões: Follow the Fleet / Siga a Marinha (1936), Shall We Dance / Vamos Dançar? (1937) e Carefree / Quero Sonhar Contigo (1938). Cinco

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THE WIZARD OF OZ

Título nacional: O Feiticeiro de Oz Realização: Victor Fleming Elenco: Judy Garland, Frank Morgan, Ray Bolger Ano: 1939

HÉLDER ALMEIDA

1939. Estamos em plena época dourada na indústria de cinema de Hollywood. Depois do enorme sucesso de Branca de Neve e os Sete Anões, de Walt Disney, a indústria descobre que há um enorme interesse por parte do público em histórias de fantasia. Assim a MGM, um dos grandes estúdios da altura, decide arriscar com algo diferente: uma aventura de fantasia em imagem real (ao contrário da obra de Disney), misturando ainda outro género imensamente popular: o musical. Pelo meio, usa uma nova tecnologia para ajudar a contar a sua história: o Technicolor. E assim nasce este O Feiticeiro de Oz, uma das grandes produções do estúdio, baseado na novela The Wonderful Wizard of Oz, de L. Frank Baum. Realizado por Victor Fleming, O Feiticeiro de Oz conta a história de Dorothy, uma jovem que mora no Kansas que, depois de sobreviver a um forte tornado, vê a quinta onde mora voar para o mundo de Oz, um local fantástico que está em perigo devido a uma perigosa bruxa que procura vingança depois da morte da sua irmã.

um verdadeiro feito a nível técnico, usando o Technicolor de forma revolucionária, e sempre ao serviço da narrativa. O preto-e-branco é utilizado no mundo real, um mundo triste e vulgar e o mundo de Oz é ilustrado por fortes cores, para dar ainda mais vida ao mundo de fantasia em que Dorothy se encontra.

Judy Garland é a protagonista, num trabalho que marcaria a sua carreira para sempre, na pele da jovem Dorothy que, ao entrar no fabuloso e visualmente belo mundo de Oz, conhece outras três personagens icónicas: o Homem de Lata, o Espantalho e o cobarde Leão. Enquanto tentam recuperar a paz em Oz, Dorothy ajuda os seus três novos amigos. Tal como E Tudo o Vento Levou, outra grande produção da MGM estreada no mesmo ano, este O Feiticeiro de Oz conheceu várias complicações na produção, incluindo a passagem de três realizadores distintos (os dois primeiros foram Richard Thorpe e George Cukor), acabando eventualmente com Victor Fleming como o realizador final. Apesar dos diversos problemas, o resultado final não foi afectado: O Feiticeiro de Oz é uma fantasia bastante colorida e recheada de momentos musicais,

Curiosamente, O Feiticeiro de Oz foi um fracasso comercial aquando da sua estreia em 1939, apesar do enorme apoio por parte da crítica. Mesmo assim, ainda marcou presença na cerimónia dos Óscares, onde foi nomeado para Melhor Filme, perdendo para E Tudo o Vento Levou, o outro grande sucesso da MGM, também realizado por Victor Fleming. Anos após a sua estreia, O Feiticeiro de Oz consegue ganhar ainda mais popularidade, tornando-se num dos grandes clássicos do cinema e presença regular nas imensas listas de melhores filmes de sempre. Uma fantasia musical de grande esplendor que passa de geração para geração e um belo pedaço de cinema de visualização obrigatória, que deixa um enorme legado incluindo uma sequela bastante esquecida e uma espécie de prequela produzida pela Disney e realizada por Sam Raimi.

Para além do lado visual e do rigor técnico que aqui encontramos, o lado musical também é de enorme importância. Garland, actriz que também tem uma forte carreira musical, acaba por ser a escolha perfeita para interpretar a jovem protagonista e com a inesquecível Over the Rainbow, cria um dos momentos mais belos e icónicos do cinema, fazendo da música um clássico imediato. Apesar de todos os outros momentos musicais serem bem conseguidos, é o mágico Over the Rainbow que faz história, tornando-se ainda numa peça de grande referência em obras futuras (por exemplo, Austrália, de Bazz Lurhman, onde a música tem grande importância para a narrativa).

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SINGIN’ IN THE RAIN

Título nacional: Serenata à Chuva Realização: Stanley Donen e Gene Kelly Elenco: Gene Kelly, Donald O’Connor, Debbie Reynolds Ano: 1952

PEDRO SOARES

Existem várias discussões eternas no Cinema (aliás, em todas as artes, como aquela na Música que pergunta quem é melhor, os Beatles ou os Rolling Stones - os segundos, claro!), sendo a mais comum aquela que coloca frente a frente Charlie Chaplin e Buster Keaton. Quem era o melhor? Obviamente que compreendo e aceito quem prefira o primeiro, mas essas pessoas estão erradas e eu odeio-as. A outra discussão é a de quem é que dançava melhor, se Fred Astaire ou Gene Kelly.

tendo em conta que o próprio filme foi feito ao contrário: primeiro escolheram os temas e depois escreveram uma história que as desse para usar todas. E, contra todas as previsões, Stanley Donen e o próprio Gene Kelly assinaram um dos mais intemporais musicais da golden age de Hollywood que, ainda hoje, continua fresquinho como no dia da sua estreia.

Para quem responde o primeiro nome, basta ver Serenata à Chuva para desfazer qualquer dúvida. Kelly não só dança e faz dançar, como arrisca e inova. Consta que era um sacana dum tirano, mas isso não interessa para nada. Interessa mais o mito urbano de que a famosa cena em que dança feliz à chuva foi feita ao primeiro take, com não sei quantos graus de febre. Ou que Donald O'Connor, depois de pilhar o Cole Porter na famosa cena que termina com duas piruetas digna dos melhores praticantes de parkour, ter ficado dois dias de cama, completamente exausto. É este o material de que são feitas as lendas. É por estas e por outras que Serenata à Chuva é um dos melhores musicais de sempre. E, apesar da ideia feita de que este era um género escapista que só servia para entreter a malta, Serenata à Chuva está aí para provar o contrário, com a história de um casal de estrelas do cinema mudo que vêem as suas carreiras ameaçadas pelo advento do sonoro (lembram-se de O Artista, de 2011? Aquela ideia já tinha teias de aranha). Serenata à Chuva é assim a versão light de O Artista, mas com muita graça e, claro, boas canções e ainda melhores coreografias. De estranhar só mesmo o facto de quase nenhuma das músicas ter sido escrita para o filme, nem mesmo a que lhe dá o título. Mas nada que surpreenda,

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FOOTLIGHT PARADE

Título nacional: Mil Apoteoses Realização: Lloyd Bacon Elenco: James Cagney, Joan Blondell, Ruby Keeler, Dick Powell Ano: 1933

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Em 1933, Busby Berkeley entrava, como coreógrafo, na Warner Bros. e o cinema musical não seria mais o mesmo. Com um público cansado de filmes que pareciam más cópias de espectáculos de palco, coubelhe revolucionar o género com sequências que soubessem fazer uso da vantagem que era ter câmaras em ângulos diferentes do olhar da plateia. Assim surgiu uma série de musicais mais sofisticados, de que Mil Apoteoses é um bom exemplo.

com um olhar atento para a transformação trazida pelo próprio cinema. Mil Apoteoses aproveita para juntar algumas das novas estrelas da Broadway como o citado Cagney, a espirituosa Joan Blondell (responsável pelas linhas mais deliciosas do filme, no espírito da então também popular screwball comedy), o cantor romântico Dick Powell e a bailarina Ruby Keel. Sendo a história, de tom cómico e situações irreverentes, perfeitamente secundária, o filme é hoje memorável pelos três longos segmentos que o personagem de Kent tem de apresentar, o primeiro num dueto romântico entre Powell e Keel, o segundo num bailado aquático de formações caleidoscópicas, e o terceiro, num bailado entre Cagney e Keel, acompanhados por apoteóticas e geométricas formações militares.

Realizado por Lloyd Bacon, um nome seguro do studio system, o filme fala do início do cinema sonoro, e da relutância das casas de espectáculo em aceitar essa «nova moda». Esta visão é representada por Charles Kent (James Cagney), um produtor artístico e coreógrafo, que vê agora o seu futuro na produção de prólogos para ocupar os palcos como aperitivos para os filmes que se seguiam na tela. É o pretexto, habitual nesta época, para filmes sobre os bastidores dos palcos e produções musicais, aqui

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AN AMERICAN IN PARIS

Título nacional: Um Americano em Paris Realização: Vincente Minnelli Elenco: Gene Kelly, Leslie Caron, Oscar Levant Ano: 1951

FILIPE LOPES

Neste An American in Paris, Kelly é Jerry Mulligan, um americano a viver na Cidade-Luz, pintor com um talento de que ele próprio duvida, mas que capta a atenção da rica Milo Roberts (Nina Foch), que dele pretende fazer um artista conhecido e seu amante. Como as coisas nunca são simples, Jerry apaixona-se antes pela dançarina Lise Bouvier (Leslie Caron), embora esta esteja comprometida com Henri Baurel (Georges Guétary) cantor francês com algum reconhecimento e que é amigo do seu melhor amigo, Adam Cook (Oscar Levant), pianista e desempregado profissional. A unir esta trama estão números musicais de tirar o fôlego, por entre monumentos, crianças e pedaços de vida da capital francesa, filmados em glorioso Technicolor. Uma das várias coisas notáveis de Gene Kelly é a sua fluidez de movimentos, em que uma espécie de pose despreocupada passa instantaneamente para uma dança de execução dificílima como se isso não requeresse qualquer tipo de preparação ou mentalização prévia. O homem parece que nasceu a dançar, tal é a alegria contagiante com

que deita mãos (ou pés) à obra. Em Um Americano em Paris tem, ainda para mais, vários enormes trunfos a seu lado. Um é Vincente Minnelli, o realizador que lhe permite dar largas às suas capacidades criativas. O outro é Leslie Caron, a actriz que maravilhosamente contracena consigo e que ele próprio descobriu nos palcos franceses. Depois, a música de George Gershwin com letras de Ira Gershwin e os momentos de dança coreografados pelo próprio Kelly. Belíssimos momentos que terminam nuns intensos (quase) 20 minutos dançados (que demoraram um mês a filmar) e desembocam num happy ending sem que, em todo esse tempo, seja proferida qualquer palavra. E, para ser arrebatador, nem é preciso!

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WEST SIDE STORY

Título nacional: Amor Sem Barreiras Realização: Robert Wise Elenco: Natalie Wood, Richard Beymer, Rita Moreno Ano: 1961

HÉLDER ALMEIDA

Baseado na peça musical da Broadway West Side Story, Amor Sem Barreiras retrata um amor impossível entre duas pessoas que fazem parte de gangues rivais, onde o seu percurso está destinado a terminar em tragédia.

proeza que Wise repetiu anos mais tarde com Música no Coração. Wise consegue criar grandes momentos musicais, apelando muito ao classicismo de Hollywood, apesar de deixar de lado a componente mais ligeira de muitos outros musicais, dando lugar ao romance trágico que aqui temos.

Com base em Romeu e Julieta, de William Shakespeare, Amor Sem Barreiras trata-se de um musical romântico realizado por Robert Wise (Música no Coração), com Natalie Wood e Richard Beymer como o par trágico naquele que se tornou num dos grandes romances da história do cinema e num musical exemplar que acaba por ser um dos grandes exemplos dentro do género.

Estreado numa altura em que o género musical, apesar de popular, já dependia apenas destas grandes produções (especialmente quando vinham por parte da MGM, um dos grandes estúdios do género), Amor Sem Barreiras foi um filme importante para o seu tempo, numa obra musical diferente de muitas outras e que traz, de certa forma, o clássico de Shakespeare para uma nova época. Um clássico intemporal e um dos musicais mais importantes e bem conseguidos do cinema, que já esteve na mira de Steven Spielberg para um potencial remake.

Amor Sem Barreiras foi um grande sucesso comercial e crítico quando estreou, sendo nomeado para onze categorias nos Óscares em 1962, onde arrecadou as estatuetas de Melhor Filme e Melhor Realizador,

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MARY POPPINS

Título nacional: Mary Poppins Realização: Robert Stevenson Elenco: Julie Andrews, Dick Van Dyke, David Tomlinson Ano: 1949

CÁTIA ALEXANDRE

“Supercalifragilisticexpialidocious!” – Muitos poderão nunca ter visto Mary Poppins, mas todos vão saber de onde surgiu a palavra que, em jeito de canção, serve para expressar algo que não conseguimos descrever!

Michael, dois miúdos irrequietos que não conseguem manter uma ama por muito tempo. Mary Poppins (Julie Andrews), uma ama com poderes mágicos está disposta a mudar isso, e em conjunto com o seu velho amigo Bert (Dick Van Dyke) vai mudar a vida daquela família, com muita diversão, muita música e imaginação.

Em 1964, Robert Stevenson transportava para o grande ecrã a magia dos livros de P. L. Travers, transformando a simples mas adorável figura de Mary Poppins numa das mais importantes e emblemáticas personagens de filmes da Disney e num dos musicais mais conhecidos de todos os tempos. Aqui a inocência e alegria de ser criança têm um encanto muito especial e a fantasia mistura-se com a realidade, deixando cada um de nós com um sorriso no rosto. Através de canções que ficam no ouvido, a magia de ser criança é encantadora, muito divertida e o positivismo é uma constante. Mr. Banks (David Tomlinson) é banqueiro em Londres e pai de Jane e

Apesar de sempre ter tido um grande peso na história dos clássicos musicais de Hollywood, Mary Poppins ganha todo um novo significado, quando descobrimos mais sobre o filme e sobre a dificuldade que Walt Disney teve para poder transportá-lo para o cinema. Misturando animação com imagem real, através de uma história simples cheia de coração, esta simpática obra faz algo marcante para a época em termos visuais, destacando-se ainda nos dias de hoje não só por isso, mas também pela doçura e valor como filme de entretenimento familiar.

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HIGH SOCIETY

Título nacional: Alta Sociedade Realização: Charles Walters Elenco: Bing Crosby, Grace Kelly, Frank Sinatra Ano: 1956

SUSANA BESSA

Ver Alta Sociedade podia ser igualado a uma tarde passada à beira-mar com um batido de morango que não acaba. O sol brilha e Frank Sinatra, Grace Kelly e Bing Crosby conversam ao som da música jazz de Louis Armstrong numa esplanada algures. Uma rapariga da alta sociedade (Kelly), prestes a casar, fica envolta numa nuvem de dúvidas quando o seu ex-marido (Crosby) e um escritor de uma revista (Sinatra) anseiam pela sua atenção. Numa segunda narrativa, o lendário Louis Armstrong está presente para um Festival de Jazz. Num curto espaço de vinte e quatro horas, intriga, romance e nostalgia são elevados na dinâmica das cores vivas do Technicolor dentro da mistura dos tons doce com o amargo da comédia screwball. Kelly é encantadora neste remake musical de Casamento Escandaloso, que mais parece ser um diorama da verdadeira alta sociedade de Hollywood do que um episódio da vida da “deusa fria” Tracy Lord. Na sua base residem as políticas amorosas com os quais o musical de Hollywood brincou durante anos a fio, dos estereótipos da

figura masculina, ao sarcasmo dos procedimentos do cortejar de uma mulher que quer ser conquistada. É tão difícil comparar Alta Sociedade ao seu irmão Casamento Escandaloso, como é não o fazer. Na transformação para musical, onde a música é o veículo que desenrola a emoção inerente na narrativa, são muito poucos os casos dos filmes que conseguem manter a sua substância, e Alta Sociedade não é um deles. Números mundialmente reconhecidos como “True Love” ou “Who Wants to be a Millionaire” sentem-se aqui artificiais quando comparados com o primoroso “You’re Sensational”, pela voz do icónico Frank Sinatra. Enquanto o azul dos tons pastel do filme nos segura ao seu encantamento flirtante, a sua extrapolação fica aquém das suas e das nossas expectativas. No ecrã, os “porquês” têm de se revelar para darem lugar aos “comos” e assim iluminar a complexidade da racionalidade humana com o calor da música que pode, nesse caso, dar-se ao poder do musical.

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THE SOUND OF MUSIC

THE COURT JESTER

JOÃO PAULO COSTA

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Pouco há a dizer sobre a popularidade de um filme que, mais de 50 anos passados após a sua produção, é ainda hoje presença regular nas televisões de todo o Mundo, particularmente durante as épocas festivas. Em boa verdade, Música no Coração cresceu com muitos de nós, e muitas da cenas encenadas por Robert Wise e protagonizadas por Julie Andrews e as crianças da família Von Trapp estão hoje bem presentes na memória colectiva, ao lado dos seus igualmente marcantes números musicais: de The Sound of Music a My Favorite Things, muitos são os temas da dupla Rogers e Hammerstein que compõe uma das mais famosas bandas sonoras do Cinema. Diga-se o que se disser das suas qualidades cinematográficas, Música no Coração é há mais de meio século um fenómeno em toda a linha.

Spoof dos filmes de aventuras do género de Robin dos Bosques (nem falta Basil Rathbone como vilão), O Bobo da Corte leva-nos à corte medieval britânica, onde confusões de identidade, hipnoses e esquemas de deposição de um usurpador, colocam o bobo de Danny Kaye no centro das conspirações. Com diálogos rápidos, rimas aliterativas alucinantes, um humor físico evocativo de Chaplin, e habilidade para cantar e dançar, Kaye brilha como um comediante de excepção (mesmo sem música a sua prosódia é musical e os seus movimentos quase dançados). E desengane-se quem pensar que o filme é apenas um pretexto para algumas músicas e cantorias, o argumento é altamente elaborado e bem conseguido, a comédia de enganos é arguta do princípio ao fim, e tudo na interpretação de Kaye é perfeito.

Título nacional: Música no Coração

Título nacional: O Bobo da Corte

Realização: Robert Wise

Realização: Melvin Frank, Norman Panama

Elenco: Julie Andrews, Christopher Plummer, Eleanor Parker

Elenco: Danny Kaye, Glynis Johns, Basil Rathbone

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MY FAIR LADY

YANKEE DOODLE DANDY

JOSÉ CARLOS MALTEZ

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Baseado num musical da Broadway de 1956, de Alan Jay Lerner e Frederick Loewe (por sua vez baseado numa peça de George Bernard Shaw), George Cukor realizou Minha Linda Lady, com a divina Audrey Hepburn no papel da vendedora maltrapilha de Covent Garden, que um dia o linguista professor Higgins (Rex Harrison) decide, por uma aposta, fazer perder o sotaque cockney e transformar numa dama da alta sociedade. Com letras provocantes, interpretações brilhantes (mesmo com a voz de Hepburn a ser substituída nas canções), um enredo delicioso e figurinos de sonho, o filme tornou-se um marco, com canções e réplicas a passarem à história do cinema. Curiosamente o Oscar de Melhor Actriz desse ano iria para actriz da Broadway que Hepburn substituíra em filme: Julie Andrews, por Mary Poppins.

No ano em que nos dava Casablanca, Michael Curtiz estreava o biográfico Canção Triunfal, veículo de fervor patriótico da Warner Bros. Com o sempre enérgico James Cagney explanando nas duas horas de filme aquilo que foi a sua carreira, feita de acção, intrepidez, passos de dança e alguma arrogância, vemos a vida de George M. Cohan, filho de uma família de artistas de palco, que do vaudeville vai chegar à Broadway. O resultado é um desfile de números musicais populares que, sem o charme das produções da MGM, homenageiam a família Cohan e os artistas dos pequenos palcos que criaram o musical americano. Por isso, Cohan receberia uma medalha, pois elevar o espírito patriótico vale mais do que canhões. Era a Warner também a premiar-se a si própria, justificando o seu papel no esforço de guerra.

Título nacional: Minha Linda Lady

Título nacional: Canção Triunfal

Realização: George Cukor

Realização: Michael Curtiz

Elenco: Audrey Hepburn, Rex Harrison, Stanley Holloway

Elenco: James Cagney, Joan Leslie, Walter Huston

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SEVEN BRIDES FOR SEVEN BROTHERS JOSÉ CARLOS MALTEZ

Da grande fábrica de musicais que era a MGM dos anos 50, surgia, pela mão de um dos seus expoentes, Stanley Donen, a adaptação do conto The Sobbin' Women, de Stephen Benét, uma nova versão do mito do rapto das sabinas, com os romanos como montanheses rudes do Oregon do século XIX. Estes são os seis irmãos de Adam (Howard Keel), que interessados no sexo feminino, depois de o verem casar com Milly (Joan Powell), recorrem ao rapto para conseguir esposas. Claro que tudo acaba bem, pois as raparigas rapidamente se enamoram dos seus tímidos e inofensivos raptores, resultando num conjunto de situações jocosas, canções românticas, e originais e atléticas sequências de dança coreografadas em torno da vida dos lenhadores. Em destaque está ainda a cor, no grandioso cenário da montanha americana. Título nacional: Sete Noivas para Sete Irmãos Realização: Stanley Donen Elenco: Howard Keel, Jane Powell, Jeff Richards

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O MARAVILHOSO MUNDO MUSICAL DE JACQUES DEMY PEDRO MIGUEL FERNANDES

Apesar de ser um género mais comumente associado ao cinema dos EUA, o musical também foi aproveitado noutras latitudes. Se deixarmos de parte o paradigmático caso de Bollywood, nenhuma história do musical ficará completa sem a alusão a Jacques Demy, talvez aquele que melhor se soube apropriar das regras do género fora dos EUA, baseando a maior parte da sua obra em títulos do género. Nascido em França e contemporâneo da Nouvelle Vague, Demy pouco teve a ver com a geração de Godard, Truffaut e companhia, além do gosto pelo Cinema e a amizade que manteve com esta geração de cineastas, na sua maior parte autodidatas e oriundos da redação dos Cahiers du Cinéma, parisienses de gema. Pelo contrário, Jacques Demy veio de fora, mais concretamente de Nantes, foi para Paris estudar numa escola técnica de Cinema (o que nem sempre aconteceu com os seus


contemporâneos) e voltou à terra natal, onde iria realizar o seu filme de estreia Lola (uma das suas obras-primas) e um dos seus derradeiros títulos, Um Quarto na Cidade. Tudo isto faz de Demy (assim como a sua eterna companheira Agnés Varda) um caso à parte dentro da Nouvelle Vague.

Cinema, mesmo não tendo terminado ainda a Escola Secundária. Dois anos depois, já na década de 1950, começa a sua carreira cinematográfica a sério, primeiro como argumentista, depois como realizador de curtas-metragens e por fim, conselheiro técnico no filme oficial do casamento de Rainier do Mónaco com Grace Kelly. Estamos em 1956 e Jacques Demy já tem algum nome, mas falta-lhe arriscar uma longa-metragem. Ainda nesse ano trava conhecimento com alguns nomes da geração da Nouvelle Vague (chega a fazer figuração no célebre Os Quatrocentos Golpes, de François Truffaut), mas continua a filmar curtas-metragens.

A arte e a cultura desde cedo entraram na vida de Demy. Ainda criança, quando ficava em casa enquanto os pais iam trabalhar, aprendeu a ouvir música com a ajuda da coleção de vinis que tinha ao dispor. O sonho de ser músico chegou a fazer parte dos planos de Demy por essa altura, mas a eclosão da II Guerra Mundial e a falta de professores deitou por terra a ideia. Por essa altura Demy começa também a tomar contacto com o Cinema e o Teatro, nas frequentes idas a espetáculos com a família, onde se apaixona de vez pelos filmes de cineastas como Robert Bresson, Max Ophus e Jean Cocteau, três dos seus realizadores de eleição. Esta paixão pelas matérias artísticas levaram-no a explorar este novo mundo e a construir pequenas peças e filmando pequenos filmes em casa, com recurso a equipamentos oferecidos pelos pais, e a ler avidamente as páginas da revista L’Ecran Français. Um dia, após mostrar um dos seus filmes a Christian-Jacque, um realizador bastante popular à época que se deslocara a Nantes para apresentar um filme no cineclube local, este convence o pai de Demy a enviar o filho para Paris e assim aprender

NANTES-CHERBURGO-ROQUEFORTE Mas é apenas na década seguinte que realiza a sua primeira longametragem, filmada em Nantes: Lola, um musical sem música, como chegou a ser apelidado, onde o musical parece que está à espreita em cada esquina, mas nunca aparece, foi a primeira de várias obras-primas de Demy e uma belíssima homenagem à sua cidade natal. Aqui já estavam muitas das suas imagens de marca, como as homenagens ao 52


eram cantados e não falados. O sucesso de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo foi tal que conquistaria a Palma de Ouro em Cannes, cinco nomeações aos Óscares e mais tarde seria levado aos palcos de todo o mundo num musical para teatro.

cinema e aos seus locais de eleição, personagens perdidas e relações desencontradas e a tal musicalidade que ainda não iria ser explorada em pleno, pois apesar das intenções iniciais do realizador passarem por fazer um musical, o curto orçamento não permitiu grandes aventuras. E, claro, a criação de um mundo onde a realidade e a fantasia se cruzavam, que ganharia novos contornos em obras futuras. Por terra ficaram as ideias musicais, mesmo que surjam a espaços (a dança/apresentação de Lola no cabaret onde conhece o marinheiro é disso exemplo), mas a verdade é que Lola foi uma estreia auspiciosa e uma pequena amostra do que estaria por vir.

No seguimento da popularidade do filme, Demy realizaria a seguir As Donzelas de Roqueforte, filme protagonizado uma vez mais por Deneuve, aqui acompanhada pela sua irmã Françoise Dorléac, num tom diferente do anterior. Aqui, o tom melodramático e a chuva de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo dão lugar ao sol e às cores berrantes de uma feira que chega a Roqueforte para um fim-de-semana, período durante o qual decorre a ação do filme, uma verdadeira homenagem às comédias musicais de Hollywood. Não faltam os piscares de olho ao género tradicional, citações a filmes, nem a presença de uma vedeta como Gene Kelly a abrilhantar a acção. Pela primeira vez na sua carreira, Demy tinha à disposição um bom orçamento e não perdeu a oportunidade de fazer um filme à altura, mágico e fantasioso e com cores por todo o lado. E nunca como aqui, o cineasta tinha levado (e jamais levaria) a tão alto cume as suas ideias para criar um musical à americana.

E o que veio a seguir foi o musical Os Chapéus de Chuva de Cherburgo, com paragem pelo meio para filmar A Grande Pecadora e um episódio para um filme colectivo dedicado aos sete pecados capitais. Filme ideal para ver em sessão dupla com As Donzelas de Roqueforte, o terceiro filme de Demy conta com a presença de Catherine Deneuve num dos seus primeiros grandes papéis e é o primeiro musical a sério do cineasta, totalmente cantado do início ao fim (um filme em cantado, como foi designado por Demy, com letras do próprio), numa história de amores desencontrados, com belíssimas cores. O objectivo, segundo Demy, seria criar o equivalente às óperas na magia do Cinema, e para tal convenceu o compositor Michel Legrand a fazer um musical em que os textos 53


Catherine Deneuve no papel principal. Em A Princesa com Pele de Burro o realizador cria um universo bastante onírico, onde uma vez mais notamos uma sincera homenagem ao lado mágico do cinema (onde passado mítico e presente realista passeiam de mão dada), numa clássica história de amor filmada a pensar nos adultos e nas crianças.

CONTOS DE FADAS Com As Donzelas de Roqueforte é concluída a que muitos consideram ser uma trilogia fundamental do universo de Demy, em que os elementos e a narrativas de todos os três filmes (Lola, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo e As Donzelas de Roqueforte) se cruzam, numa teia uniforme, cheia de referências cruzadas. Seguir-se-ia uma aventura em terras de Tio Sam, que pouco tinha a ver com o universo musical: Modelos de Aluguer, um filme não musical que recupera a personagem principal de Lola. Um dos projectos mais pessoais do realizador francês, a quem fora dada praticamente liberdade total para cumprir um dos seus sonhos – realizar um filme americano –, acabou por não ter o sucesso que pretendia e a aventura americana não corre de feição.

No seguimento de A Princesa com Pele de Burro Jaques Demy aceita uma encomenda que o leva uma vez mais ao reino das fábulas, desta feita a história do flautista de Hamelin, muito mais negra do que o seu filme anterior. Quase que podemos afirmar que se Os Chapéus de Chuva de Cherburgo é o lado negro de As Donzelas de Roqueforte, The Pied Piper representa o mesmo em relação a A Princesa com Pele de Burro. Interpretado pelo cantor folk Donovan, que assina a banda sonora, o filme mantém-se num registo de fábula, mas afasta-se do musical puro e duro de Demy que apenas regressaria ao género dez anos depois, quando assinou Um Quarto na Cidade em 1982.

No regresso Jacques Demy volta para filmar uma vez mais um musical, desta vez com menos meios do que os que lhe tinham dado para fazer As Donzelas de Roqueforte, mas com as mesmas cores garridas. A partir de um conto de Charles Perrault, A Princesa com Pele de Burro é um verdadeiro conto de fadas com direito a realeza, castelos encantados, tesouros e, como não podia deixar de ser, uma fada madrinha. O projecto era antigo, datando do pós-Lola, mas apenas dez anos depois Demy conseguiu pôr mãos à obra, contando uma vez mais com a ajuda de

Antes deste regresso, Jacques Demy recebeu novo convite para filmar um musical na União Soviética, inspirado em Anna Karenina, de Tolstoi. Anushka, assim se chamava o projecto, teve um longo período de pré-produção mas acabou abortado no fim. Rezam as crónicas que tudo estava pronto para avançar, desde a composição das músicas à 54


melodrama a fazer lembrar Os Chapéus de Chuva de Cherburgo no tom, onde até a música, alegre noutros musicais do autor, aqui assumia tons mais negros. O filme, que relata uma história de amores cruzados num período de forte contestação grevista, faz lembrar uma tragédia, em que os manifestantes funcionam como coro, pontuando a ação principal com palavras de ordem sobre a situação dos operários.

presença da companha Bolshoi para um grandioso número nas ruas de Leninegrado, mas a falta de financiamento do lado francês no último minuto matou a super-produção.

O REGRESSO A CASA No início da década de 1980 a carreira de Jacques Demy já tinha visto melhores dias. Depois de The Pied Piper, realizou um filme fantasista protagonizado pelo casal Catherine Deneuve e Marcelo Mastroianni (O Acontecimento Mais Importante Desde que o Homem Chegou à Lua, onde o actor italiano interpreta o papel de um homem que engravida), adaptou ao cinema uma banda desenhada japonesa (Lady Oscar, uma produção nipónica passada no tempo de Luíz XVI que alcançou algum sucesso no país do sol nascente, mas foi pouco vista no resto do mundo) e assinou um telefilme, nova encomenda, baseado num romance de Colette (La Naissance du Jour).

A paixão com que Demy regressa à sua terra natal e ao seu género de eleição, num filme que pretendia filmar como se fosse uma ópera, foi recebida com alguma frieza. Apesar dos elogios enormes da crítica, o público não recebeu Um Quarto na Cidade da mesma forma, preferindo ao invés L’As Des As, um filme realizado por Gérard Oury com a estrela Jean-Paul Belmondo no papel principal. Ancorado numa enorme campanha publicitária, este último filme cativou o público e dominou as bilheteiras, deixando para trás a fita de Demy. Nem os inúmeros artigos de defensores publicados na época ajudaram ao desastre de um filme que parecia fora de tempo. Quiçá o público do início dos anos 1980 já não estava tão receptivo para ver um filme cantado do início ao fim.

Em 1982 Demy regressa a um projecto antigo que congrega duas das suas paixões: o musical e a cidade de Nantes. Um Quarto na Cidade é mais um dos filmes inteiramente cantados de Demy, num registo de

A fraca prestação do filme desgostou o cineasta, que se começa a afastar aos poucos do cinema, tendo apenas voltado a filmar por duas vezes, em ambos os casos musicais. O primeiro, assinado em 1985, foi Parking, 55


uma variação moderna do mito de Orfeu inspirada no Orphée de Jean Cocteau, um dos heróis de Demy. O filme falhou a todos os níveis, não acolhendo os favores da crítica, nem do público.

de musicais feitos fora dos EUA com um estilo tão personalizado como o de Jacques Demy. Nos seus filmes não vemos as coreografias estonteantes dos filmes de Busby Berkeley, Stanley Donnen, Gene Kelly ou Vincente Minnelli (para apenas referir alguns mestres do género), mas é a forma como o texto é cantado, e não falado, que conta. Poucos como o realizador francês conseguiram juntar música e texto desta forma no cinema. Por isso, quando fazemos uma história do musical, é incontornável passar por um nome: Jacques Demy.

A carreira do cineasta gaulês terminaria em 1988, dois anos antes de morrer, com Trois Places Pour Le 26, um filme que conta uma história bastante comum nos musicais clássicos: a montagem de um espetáculo, em torno do qual giram um conjunto de desventuras, e um regresso a locais onde as personagens tiveram pontos altos nas suas vidas. Aqui a trama centra-se na personagem de Yves Montand (onde o actor se interpreta a si próprio) que regressa a Marselha, cidade onde deixou um amor antigo, para dar um espetáculo. Este regresso ao passado vai levá-lo a recordar momentos desse romance à medida que a montagem avança. Com passagens a lembrar os musicais clássicos norte-americanos, nomeadamente alguns títulos de Minnelli, Trois Places Pour Le 26 tem um sucesso relativo. Jacques Demy, doente e cansado, apesar de relativamente novo, afasta-se definitivamente dos plateaus que lhe deram fama. Hoje em dia o seu cinema é pouco visto, quiçá devido a uma carreira algo irregular, que como tantos outros não conseguiu manter a fasquia ao nível dos seus primeiros filmes. Mas há poucos exemplos 56


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MUSICAIS AMERICANOS MODERNOS


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MOULIN ROUGE!

Título nacional: Moulin Rouge! Realização: Baz Lurhmann Elenco: Nicole Kidman, Ewan McGregor, Jim Broadbent Ano: 2001

CÁTIA ALEXANDRE

“The greatest thing you’ll ever learn is just to love and be loved in return”.

Considerado por muitos como um dos piores dos últimos tempos, Moulin Rouge! é dos tais que se ama ou se odeia. Frenético, exagerado, extravagante, é um autentico espectáculo visual que contém um pequeno toque de muitas das histórias de amor mais famosas de sempre.

Viva a celebração do amor! Moulin Rouge! pode ter todos os defeitos do mundo e mesmo assim consegue ser incrivelmente cativante, entrando no ano de 2001 para a categoria de filmes para ver antes de morrer. Baz Luhrmann constrói uma ode moderna ao romantismo, contendo todos os truques necessários para o sucesso de uma história de amor, por vezes bem lamechas, outras vezes bem original, divertido, colorido, glamoroso e apaixonante. É estranho como a sua estranheza se entranha facilmente e uma irresistível vontade de o rever cresce, provocando até aos menos susceptíveis aos temas amorosos um certo bichinho armado em cupido com graves repercussões que causam sintomas de visionamentos em loop.

Baz Luhrmann usa a música para contar uma história, misturando elementos modernos e modificando letras e arranjos de forma a que sejam adaptadas e inseridas num contexto próprio. A música como elemento de cultura pop é contrastada com o ambiente La Boheme francês criando uma atmosfera interessante e uma forte conexão com a audiência. O enredo é inspirado essencialmente nas obras de Verdi, Puccini e Offenbach, transformando a visão do que seriam as operetas do século XIX. O componente teatral está sempre presente, desde o aspecto cenográfico à representação do elenco de peso, liderado por Nicole Kidman e Ewan McGregor, que imortalizam Satine e Christian, e os transformam num dos casais mais carismáticos do cinema. À medida que vamos avançando na história, esta fica mais sombria, nunca perdendo o encanto, mas largando aos poucos a alegria e mergulhando na tristeza profunda de um amor que sabemos que não irá prevalecer. O estilo muitas vezes sobrepõe-se à substância, mas nunca tenta ser algo mais do que é suposto.

Tudo se passa em 1900. Christian (Ewan McGregor), um jovem poeta britânico, decide tentar a sua sorte em Paris, considerada por muitos como cidade boémia e cheia de liberdade onde tudo é possível para um artista e triunfar é fácil. Por lá é acolhido pelo pintor Toulose-Lautrec (John Leguizamo) e seus amigos, habituais frequentadores do Moulin Rouge, o famoso bordel de Harold Zidler (Jim Broadbent) onde reina o sexo, as drogas e o can-can de inúmeras e belíssimas mulheres. A maior estrela de todas é Satine (Nicole Kidman), e Christian fica absolutamente rendido aos seus encantos. Loucamente apaixonado, Christian é confundido com o poderoso Duque de Monroth (Richard Roxburgh), potencial investidor do cabaret, e Satine acaba por se apaixonar também por ele. Christian acaba por viver uma paixão arrebatadora, percebendo o verdadeiro sentido do amor, que tem tanto de belo como de trágico, pois mais vale viver um grande amor do que nunca ter vivido amor algum.

É impossível não admirar o esforço criativo de todos os aspectos do filme, que sem medo de arriscar foram pioneiros numa viragem no que toca ao estilo musical em Hollywood, onde o tradicional e o moderno se transformam e se complementam. É fácil entrar no espirito e viver esta experiência espectacular, onde a musica e as cores retratam o poder do amor.

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CABARET

Título nacional: Cabaret, Adeus Berlim Realização: Bob Fosse Elenco: Liza Minnelli, Michael York, Joel Grey Ano: 1972

JOÃO PAULO COSTA

Berlim, no período entre as duas Grandes Guerras. Quando Brian Roberts (Michael York), um inglês cujas boas maneiras são rapidamente absorvidas pela boémia local, chega à cidade, divide um apartamento com Sally Bowles (Liza Minnelli), uma cantora americana num cabaret onde muitos homens e mulheres procuram entretenimento arrojado e transgressor. Apesar de relutante inicialmente, porque as suas poucas experiências a dormir com mulheres não foram felizes até então, Brian depressa se deixa conquistar por Sally, que não esconde o desejo de se tornar numa actriz famosa. Numa altura em que o país tenta reerguer-se moral e financeiramente depois da guerra, a procura por uma identidade colectiva é representada pelos números introduzidos por um bizarro mestre de cerimónias do clube onde Sally actua, onde a decadência, o deboche sexual, mas também a crítica social, são interpretados numa série de canções e coreografias para delírio do público. Enquanto isso acontece dentro das portas do clube, lá fora a ascensão ao poder do partido Nazi ameaça acabar de vez com a heterogeneidade de uma cidade e de uma cultura em ebulição.

iminente holocausto de forma inspirada. Há uma narrativa paralela de um romance ‘impossível’ entre um alemão (Fritz Wepper) e uma rapariga judia (a belíssima Marisa Berenson) mas que é resolvido à pressa com uma reviravolta que pouco acrescenta à narrativa. O mesmo acontecendo em relação ao ménage a trois entretanto formado entre Sally, Brian e um barão interpretado por Helmut Griem, que tão depressa se torna na coisa mais interessante do filme como sai de cena sem grande impacto. Embora o seu título seja claramente identificável por qualquer cinéfilo minimamente atento, muitos conhecem mais Cabaret pelo filme que conquistou o maior número de Oscares na cerimónia de 1973 e mesmo assim perdeu o galardão máximo para o seu principal rival, O Padrinho, de Francis Ford Coppola. Em boa verdade, devemos admitir que se trata de um daqueles casos em que o tempo jogou completamente a favor da Academia, uma vez que apesar dos seus méritos, Cabaret não joga na mesma divisão do filme de Coppola, e mesmo que Bob Fosse (que venceu como Melhor Realizador) apresente algumas ideias arrojadas, o todo não é de forma alguma completamente convincente. Naquela que foi apenas a sua segunda longa-metragem como realizador, embora já com uma longa carreira de sucesso nos palcos da Broadway, Fosse deu asas à sua veia felliniana (que mais tarde iria atingir o seu auge em All That Jazz: O Espectáculo Vai Começar, de 1979), abrindo espaço para alguns excessos a nível cénico e do conteúdo (aqui fala-se abertamente de temas como sexualidade ou aborto), mas ao contrário de Fellini, Fosse não consegue manobrar o seu freak show de forma consistente - embora, sejamos francos, o próprio italiano também nem sempre o conseguiu. Ainda assim, sem ser excepcional como drama ou mesmo como musical, não há como negar o seu impacto na revitalização do género e na sua passagem à era moderna.

Curiosamente, apesar de ser visto por muitos como um belo exemplo do musical, Cabaret acaba por ser relativamente contido nesse departamento. Para além dos números que abrem e fecham o filme, temos apenas outra meia dúzia de canções e coreografias, quase todas apresentadas no contexto do cabaret, com algumas excepções, como um jovem militar Nazi a cantar de forma perturbadora os seus ideais políticos. Mas quase todos eles são relativamente ‘pequenos’, sem grandes explosões de canto ou dança. Tudo parece quase melancólico e triste, o que se enquadra bem quando pensamos no contexto histórico retratado no filme. Por outro lado, parece-nos que apesar de reforçar constantemente o seu contexto, Cabaret nunca aborda o assunto do

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ONE FROM THE HEART

Título nacional: Do Fundo do Coração Realização: Francis Ford Coppola Elenco: Frederic Forrest, Teri Garr, Raul Julia, Nastassja Kinski, Harry Dean Stanton Ano: 1981

ANTÓNIO ARAÚJO

Em Dezembro de 1969 Francis Ford Coppola inaugurou a American Zoetrope, a sua produtora de sonho que, não só serviria para descentralizar a produção de Hollywood, como serviria como porto de abrigo para artistas onde o seu talento podia ser alimentado e acarinhado, ao invés de ser controlado e constrangido como acontecia no velho sistema dos grandes estúdios. Tendo produzido alguns dos seus próprios filmes, bem como os de George Lucas pré Star Wars, albergou também nomes internacionais como Jean-Luc Godard, Akira Kurosawa ou Wim Wenders. Depois da aclamação dos dois primeiros capítulos de O Padrinho, com a Parte II a tornar-se a primeira sequela a ganhar um Óscar de Melhor Filme, e da experiência traumatizante da rodagem de Apocalypse Now, este queria rodar um filme mais descontraído e de menor escala. O resultado foi Do Fundo do Coração e com ele o sonho praticamente ruiu. A MGM terá oferecido ao realizador dois milhões de dólares para rodar Do Fundo do Coração mas viu no entanto Coppola adquirir os seus direitos para o financiar pessoalmente através da sua produtora. A ambição desmedida da sua visão disparou o orçamento para uns estimados vinte e seis milhões de dólares, nomeadamente na construção de miniaturas e luxuriantes cenários. Coppola filmou quase na íntegra em interiores, nos sound stages da American Zoetrope, oferecendo ao filme uma estética propositadamente artificial e estilizada. Mas Do Fundo do Coração foi um fiasco de bilheteira, complicando a situação financeira do estúdio, já de si precária, e colocando o seu autor na bancarrota. Mais tarde Coppola viria a afirmar que os filmes que realizou durante a década de oitenta, e grande parte da década de noventa, serviram para pagar as dívidas contraídas na produção deste musical. Do Fundo do Coração conta a história do pragmático Hank e da sonhadora Frannie que ao fim de um relacionamento de cinco anos se separam em Las Vegas no dia do aniversário da sua relação. Uma

vez separados ambos encontram versões idealizadas dos seus pares românticos. Hank passa a noite com Leila, uma jovem e deslumbrante rapariga circense e Frannie envolve-se com Ray, um moreno e atraente músico. Coppola assume o artifício com um abrir de cortinas no início do filme que nos convida a assistir a uma fantasia musical onde as composições de Tom Waits, através das vozes do próprio e de Crystal Gayle, estão em permanente diálogo com a ação no ecrã. Apesar da paleta de cores primárias no formato clássico de Hollywood de 4:3 da fotografia a quatro mãos de Vittorio Storaro e Ronald Víctor García, esta não é uma história sobre o despertar da paixão ou sobre o estado de graça do início das relações, mas sim sobre as dificuldades do amor no manter sustentado de uma vivência a dois. Las Vegas é, desta forma, um enquadramento temático onde o amor é apresentado como uma roleta russa, ou seja, um jogo de azar. Ou como alguém diz no filme, “O amor é para otários”. É verdade que o tom do filme oscila indisciplinadamente entre o contemplativo, o eufórico, o amargo e a comédia slapstick mas, apesar de indulgente e caprichoso como as suas personagens principais, a sua exuberância é contagiosa. Infelizmente o filme não encontrou o seu público à data de estreia. Talvez porque, apesar de acompanhados pelos excelentes Raul Julia e Harry Dean Stanton - com Nastassja Kinski a ser, talvez, o elo mais fraco - Terri Garr e Frederic Forrest fossem habitualmente atores secundários, sem o apelo que outros nomes mais populares teriam. Ou talvez porque Tom Waits seja um músico de nicho. Ou, quem sabe, pela estética fantasiosa e artificial de Coppola. Por vezes os fracassos são tão difíceis de explicar como os sucessos. Mas uma coisa é certa. Este foi um projeto pessoal e do fundo do coração do seu realizador que, com outra sorte, poderia ter ajudado a prolongar pela década de oitenta, não só a vaga autoral da década anterior, como o interesse pelo próprio género musical.

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GREASE

Título nacional: Brilhantina Realização: Randal Kleiser Elenco: John Travolta, Olivia Newton-John, Stockard Channing Ano: 1978

PEDRO SOARES

O que dizer de um filme sobre o qual já tudo foi dito? Brilhantina é, unanimemente, um dos melhores musicais de sempre e um filme que toda a gente conhece (ou, pelo menos, do qual consegue reconhecer uma ou duas cenas, nem que seja por ver a VH1 com alguma regularidade). Por isso, o que podemos escrever sobre Brilhantina?

No entanto, o que fica para a posterioridade (além das cantigas, claro), é a química especial entre Travolta e Newton-John, um muito novinho Lorenzo Lamas (vénias ao rei da xungaria), uma participação especial de Frankie Avalon e muito rock'n'roll. Brilhantina é um filme que conjuga na perfeição o escapismo da música e das coreografias, frescas e entretidas, com uma história de serviços mínimos garantidos, que merece assim um justo lugar na memória do cinema.

Podemos começar pelos factos: Brilhantina, realizado por Randall Kleiser, é o musical iconoclasta que colocou John Travolta e Olivia Newton-John nos píncaros da popularidade (apesar do primeiro já ter feito Carrie, em 1976 e Febre de Sábado à Noite, em 1977), e recupera o brilho da década de 50, da cultura greaser e rocker, um pouco à semelhança de outro musical que toda a gente conhece, Amor Sem Barreiras (1961). A história é o habitual boy meets girl entre Danny (John Travolta), o líder de uma gangue de jovens rebeldes, e Sandy (Olivia Newton-John), a nova aluna do liceu chegada da Austrália, que têm que derrubar as barreiras sociais e serem aceites juntos dos seus por causa disso. Começamos por nos lembrar de O Selvagem (1953), mas com carros em vez de motas: a cultura das gangues juvenis, o estilo greaser e o lado rebelde dos adolescentes sem causa. Mas Brilhantina é um filme mais juvenil, com mais hormonas e mais espírito feel good, o que significa que é mais apatetado, mas um pateta consciente. Ou seja, que se diverte e se deixa distrair pelo rock'n'roll e pela paleta de canções pop irrepreensíveis (You're The One That I Want e Summer Nights são perfeitas dentro do género), mas que nem por isso se deixa comer por parvo. Existe um subtexto sexual transversal a todo o filme (lembram-se de Esplendor na Relva, de 1961?) que envolve matéria sexual que é pano para mangas, menções surdas ao aborto e feminismo mascarado.

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HELLO, DOLLY!

Título nacional: Hello, Dolly! Realização: Gene Kelly Elenco: Barbra Streisand, Walter Matthau, Michael Crawford Ano: 1969

PEDRO SOARES

Apesar de não ser uma desconhecida há data em que fez Hello, Dolly! (já tinha inclusive um Oscar), foi este filme que transformou Barbra Streisand no que é hoje: uma das grandes senhoras do show biz e um monstro gigantesco capaz de destruir cidades (alguma dúvida neste último ponto é só ver o South Park). Hello, Dolly! veio dar um último fôlego a um género que estava então já bastante cansado, assinado por um então regressado Gene Kelly. É que se havia alguém que entendia o musical, esse alguém era Gene Kelly. Hello, Dolly! segue então essa tradição mais escapista e lúdica do musical, numa super-produção onde tudo é relegado para segundo plano em detrimento do tamanho dos cenários, do bling-bling do guarda-roupa e, claro, dos arranjos orquestrais das canções. O argumento é assim algo que pouco importa e ninguém quer saber que o filme seja a história de uma viúva especialista em arranjar tudo (especialmente casamentos) – a Dolly, claro, interpretada por uma muito novinha Barbra Streisand – que decide estar na hora dela própria também arranjar um marido com dinheiro para gozar

os últimos anos da sua vida. Se procuram sofisticação, não será aqui que a vão encontrar. Os diálogos são patetas, as suas personagens são todas caricaturas e tudo está orientado para Barbra Streisand brilhar. E o que é certo é que ela brilha com força e, mais impressionante ainda, de um forma aparentemente sem esforço. Também é certo que o repertório de Hello, Dolly! não é propriamente exigente, com excepção do momento final, em que Louis Armstrong dá um ar da sua graça numa curta aparição (ele que gravaria com êxito o tema-título do filme), mas Streisand só encontra par nas coreografias incríveis de Michael Kidd. Hello, Dolly! é um excelente exemplo de um tipo de cinema que marcou um período muito específico da história de Hollywood. Isso não significa que tenha que ser propriamente coisa boa. Até porque as suas canções não marcam a diferença e se há coisa que é fundamental num musical são as canções. O grande valor acrescentado do filme é, portanto, Barbra Streisand, que aqui caminhava em direcção ao mito.

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THE ROCKY HORROR PICTURE SHOW

Título nacional: Festival Rocky de Terror Realização: Jim Sharman Elenco: Tim Curry, Susan Sarandon, Barry Bostwick Ano: 1975

HÉLDER ALMEIDA

Quando o carro de um jovem casal avaria numa noite chuvosa, ambos dirigem-se para um castelo, de forma a realizarem uma chamada telefónica. No castelo, decorre uma convenção anual onde os visitantes se mascaram de forma bastante elaborada. Cedo descobrem que o castelo pertence a um cientista louco.

grandes e mais importantes filmes do movimento que foi as Sessões da Meia-Noite, muito populares nos anos 70 e destinadas a obras mais alternativas e fora do sistema de Hollywood, o filme de Sharman tornou-se num dos maiores e derradeiros filmes de culto de sempre, com sessões a decorrerem ainda hoje e que deu origem às sessões de cinema de culto onde o público segue à risca determinados “rituais” ligados ao filme.

Festival Rocky de Terror estreou em 1975 e trata-se de uma comédia musical de terror realizada e co-escrita por Jim Sharman, baseado numa peça musical com o mesmo nome. Sharman traz-nos uma obra única e divertida, onde o elaborado vestuário assenta na perfeição com os números musicais que por aqui surgem. Tim Curry fica com a carreira marcada com o seu Frank N. Furter, o cientista louco, e consigo tem ainda Susan Sarandon e Barry Bostwick em início de carreira. Apesar do fracasso de bilheteira quando estreou, Festival Rocky de Terror tornou-se num objecto único na história do cinema: um dos

Festival Rocky de Terror é um musical diferente de todos os outros, que acabou por ganhar um lugar de destaque na cultura pop e cujos números musicais ganharam também bastante popularidade. Para além disso, tem algumas das mais icónicas imagens do cinema: a figura de Frank N. Furter e os lábios carnudos que abrem o filme. Um clássico de culto a não perder.

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JESUS CHRIST SUPERSTAR

Título nacional: Jesus Cristo Superstar Realização: Norman Jewison Elenco: Ted Neeley, Carl Anderson, Yvonne Elliman Ano: 1973

ANTÓNIO ARAÚJO

Começando por ser um álbum conceptual em 1970, com música de Andrew Lloyd Webber e letras de Tim Rice, esta ópera rock inteiramente cantada estreou-se na Broadway em 1971. Nela contam-se os eventos das últimas semanas de Jesus Cristo exclusivamente através de canções - não existem diálogos falados - baseando-se em parte nos evangelhos, mas com liberdade criativa na construção das personagens e nos confrontos políticos e pessoais entre Jesus e Judas Iscariote, aqui representado como alguém trágico, a sua traição fruto da insatisfação com a direção que o Nazareno estava a tomar na liderança dos seus discípulos. Ao assumir o ponto de vista de Judas, Jesus é retratado como um mero ser humano, jovem e possivelmente interessado em sexo. Esta leitura foi apontada por alguns católicos e protestantes como blasfema, enquanto que alguns judeus acusaram a peça de antissemitismo.

realizado por Norman Jewison, seguindo o seu sucesso de bilheteira e crítica também adaptado de uma peça da Broadway, Um Violino no Telhado. Este, tal como o seu antecessor, premeia a narrativa com atitudes e sensibilidades contemporâneas introduzindo anacronismos intencionais, como calão ou referências políticas da atualidade. Depois das críticas sofridas pela peça original, Jewison introduziu alterações ao guião, ajustando as letras das músicas para as tornar mais aceitáveis. Apesar de não ter evitado novas polémicas o filme foi um sucesso de bilheteira e crítica, gozando ainda hoje de um estatuto invejável, não só como um musical marcante da década de setenta, mas também como um dos melhores filmes alguma vez produzidos sobre Jesus Cristo.

Em 1973 Jesus Cristo Superstar é adaptado ao cinema num filme

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LA LA LAND

Título nacional: La La Land: Melodia de Amor Realização: Damien Chazelle Elenco: Ryan Gosling, Emma Stone, Rosemarie DeWitt Ano: 2016

SARA GALVÃO

Mia (Emma Stone) tenta a sorte em castings constantes enquanto trabalha a servir cafés às estrelas de Hollywood, enquanto Sebastian (Ryan Gosling) não desiste do seu sonho de ter um bar onde free jazz possa ser tocado. O destino parece determinado em jogá-los no caminho um do outro, e o romance inevitavelmente acontece. Mas quando ambos têm de decidir entre o amor da vida deles e seguir os próprios sonhos, que decisão irão tomar?

com uma banda sonora de alto gabarito, da autoria de Justin Hurwitz (Whiplash) e um trabalho de câmara à altura, pelas mãos experientes de Linus Sandgren (American Hustle). A química entre Stone e Gosling é indiscutível, e ambos os actores encarnam as suas personagens com uma dedicação e entrega que decerto lhes valerá reconhecimento na awards season de 2017. É possivelmente um dos melhores filmes de 2017, e um musical ligeiramente diferente do que estamos habituados nos últimos anos com canções que ficarão certamente para a história (Audition sendo uma das mais memoráveis), uma nostalgia que não o impede de ser incrivelmente moderno, La La Land: Melodia de Amor não pede desculpa por deixar o cinismo à porta, apesar de tudo. E nós faríamos bem em fazer o mesmo.

O realizador Damien Chazelle (Whiplash) faz uma homenagem sentida aos musicais dos anos 30, ao mesmo tempo que reflecte sobre a natureza incerta da fama e dos sonhos. Do número musical inicial, quando cantoria e dança surgem do nada nas filas de trânsito intermináveis em Los Angeles, até ao último número, de inspiração jazzística, sem palavras, que dá um murro no estômago a toda a audiência ao mostrar a beleza do que poderia ter sido (e não foi), La La Land: Melodia de Amor conta

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THE LAST FIVE YEARS

Título nacional: Os Últimos 5 Anos Realização: Richard LaGravenese Elenco: Anna Kendrick, Jeremy Jordan, Tamara Mintz Ano: 2014

SARA GALVÃO

Cathy (Anna Kendrick) acabou de ler a carta de divórcio de Jamie; Jamie (Jeremy Jordan) acabou de conhecer Cathy. Os Últimos 5 Anos, a adaptação cinematográfica do musical off-Broadway de Jason Robert Brown pelo realizador Richard LaGra-venese (PS I Love You, 2007) conta uma história de (des)amor clássica numa cro-nologia pouco habitual Com Cathy, começamos no fim; com Jamie, no início.

têm força suficiente para nos prender ao ecrã (ou pelo menos evitar olhar para o relógio). Como adaptação, Os Últimos 5 Anos também parece ter tido um défice de ambição - o filme é contido, muito teatral - claustrofóbico até - e não explora de todo as possibilidades técnicas da sétima arte - com a rara excepção de algumas coreografias. Tudo isto - a cantoria constante, a tímida cinematografia (com câmara tremida porque pelos vistos é uma obrigação em qualquer filme pós-Jason Bourne) e a exaustão do gimmick cronológico - tornam o filme menos memorável do que poderia e deveria ter sido, com Kendrick e Jordan em topo de forma vocal e artística.

Saber que uma relação acaba em tragédia enquanto vemos o par apaixonar-se significa que conseguimos ver as falhas antes dos intervenientes, e é simples simpatizar e odiar ambos ao vermos como falham um ao outro. É difícil, contudo, deixarmo-nos levar completamente pela história - os números musicais são constantes (há talvez duas frases que não são cantadas?), o que significa que o filme é mais CD do que DVD; e se há grandes momentos - como a Canção de Shmuck, Summer in Ohio e tanto o número de abertura como o final - nem todas as canções

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LITTLE SHOP OF HORRORS

DREAMGIRLS

PEDRO SOARES

PEDRO SOARES

Os anos 80 foram do caraças! Em que outra década seria possível um filme como Little Shop of Horrors, remake dum pequeno filme de terror de série B de Roger Corman e adaptação do musical da Broadway? É certo que nos anos 70 também se fez uma coisa bizarra semelhante, chamada The Rocky Horror Picture Show, mas aqui ninguém andava a meter-se nas drogas. Eis então um musical-rock de terror para não levar a sério: farsa assumida acerca de uma planta extraterrestre carnívora que quer dominar o Mundo, que subverte tudo e todos e, num final não-oficial delicioso, destrói a cidade. No entanto, essa versão causou críticas e o realizador filmou o habitual final feliz. Agora, quem quiser ver esse final alternativo, só no maravilhoso mundo do YouTube. E a preto e branco.

Dreamgirls é um musical baseado livremente na história das Supremes, uma das pérolas da Motown, a editora discográfica fundada por um negro que, cansado de ver o blues, o jazz e o gospel pilhados pelos brancos, decidiu levar a música negra até ao grande público. As Supremes são aqui as Dreamgirls - Beyoncé Knowles, Jennifer Hudson e Anika Noni Rose -, um trio talentoso que vai subir a escada do sucesso pela mão do manager Jamie Foxx. Infelizmente, Dreamgirls apenas tem a dimensão dramática de uma telenovela, havendo duas coisas a destacar: Jennifer Hudson, uma desconhecida que havia ganho a versão americana do Ídolos e que rouba para si todas as cenas em que aparece, e segundo, o grande Eddie Murphy, comediante de eleição, desaparecido da ribalta e que prova aqui que sabe mesmo representar.

Título nacional: A Lojinha dos Horrores

Título original: Dreamgirls

Realização: Frank Oz

Realização: Bill Condon

Elenco: Rick Moranis, Ellen Greene, Vincent Gardenia

Elenco: Beyoncé Knowles, Jamie Foxx, Eddie Murphy

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NEW YORK, NEW YORK

ROMANCE & CIGARETTES

ANTÓNIO ARAÚJO

PEDRO MIGUEL FERNANDES

New York, New York é um filme algo esquecido de Martin Scorcese. Produzido em 1977 conta com Robert De Niro e Liza Minelli no papel de Jimmy Doyle, um saxofonista egotista mas talentoso, e Francine Evans, uma jovem cantora que sonha em ser uma estrela. Scorcese homenageia os musicais clássicos da MGM e Warner Bros. dos anos 40 e 50 filmando em grandes estúdios, embutindo o filme de um artifício próprio desse género, sublinhado pela fotografia de László Kovács no formato de 1.66:1, pouco usual na década de 70. Esta é uma experiência formal do seu realizador que estimulou a improvisação para combinar as facetas de artifício e verdade através do comportamento naturalista dos atores em cenários artificiais. John Kander e Fred Ebb criaram no tema principal do filme o que viria a tornar-se um standard do cancioneiro tradicional americano, celebrizado e imortalizado mais tarde por Frank Sinatra.

A carreira de John Turturro como realizador (cinco longas, mais uma a caminho, e um episódio para o filme colectivo Rio, Eu Te Amo pelo meio) não é tão conhecida quanto a de actor, mas existe. Mais curioso do que ver um dos actores da trupe dos irmãos Coen atrás das câmaras é o facto de um desses títulos ser um musical: Romance & Cigarros. Nesta comédia James Gandolfini é um trolha que se mete em aventuras extraconjugais com uma fogosa Kate Winslet e acaba em maus lençóis quando é descoberto pela esposa. Nada como uma boa dose de coreografias e músicas para que tudo acabe bem. Romance & Cigarros está longe de ser o musical perfeito, mas ninguém resiste a ver Tony Soprano (de bigodinho!) a cantar e dançar sobre males de coração. E, como nos filmes dos Coen, há que ter atenção aos secundários.

Título nacional: New York, New York

Título nacional: Romance & Cigarros

Realização: Martin Scorcese

Realização: John Turturro

Elenco: Liza Minnelli, Robert De Niro, Lionel Stander

Elenco: James Gandolfini, Susan Sarandon, Kate Winslet

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EVERYONE SAYS I LOVE YOU

CRY-BABY

JOÃO PAULO COSTA

HÉLDER ALMEIDA

Tal como muitos filmes de Woody Allen dos anos 90, Toda a Gente Diz Que Te Amo reúne um elenco de estrelas de Hollywood de alto nível, mas ao contrário de qualquer outro do autor, este é um desavergonhado musical de inspiração clássica, que tem lugar no habitual universo de neuroses e desamores de uma família Alleniana típica. Leve, romântico e profundamente mágico e divertido, trata-se de um dos mais injustiçados e esquecidos dos seus títulos, carregado de diálogos deliciosos e números musicais tratados com verdadeiro gosto, ancorados numa banda sonora habitual em Woody Allen, mas que aqui assume regularmente o centro das atenções. Cantado (bem ou mal) pela maior parte dos actores, Toda a Gente Diz Que Te Amo é um doce particularmente saboroso na carreira do realizador.

John Waters é um cineasta americano ambientado no cinema de baixo orçamento americano com obras como Pink Flamingos (um clássico do cinema trash e das sessões da meia-noite) e o Hairspray original. Quando Waters se junta a um dos grandes estúdios de Hollywood e a Johnny Depp, o resultado poderá ser interessante. E assim nasce este Cry-Baby, uma comédia que consegue misturar o cinema típico de Waters com uma homenagem aos musicais dos anos 50. Waters usa uma ideia simples para criar uma comédia algo trash, com momentos musicais divertidos e Depp tem um início de carreira cinematográfica offbeat. Pelo meio, ainda encontramos Iggy Pop. Cry-Baby é divertido e tornou-se num adorado objecto de culto. Waters tem assim mais um filme bem conseguido onde ainda tem rastos das suas origens trash.

Título nacional: Toda a Gente Diz Que Te Amo

Título nacional: Quem Não Chora... Não Ama

Realização: Woody Allen

Realização: John Waters

Elenco: Woody Allen, Goldie Hawn, Julia Roberts

Elenco: Johnny Depp, Amy Locane, Iggy Pop

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MUSICAIS EUROPEUS


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DANCER IN THE DARK

Título nacional: Dancer In The Dark Realização: Lars Von Trier Elenco: Björk, Catherine Deneuve, David Morse Ano: 2000

SARA GALVÃO

Selma (Björk) é uma mãe solteira checa que sofre de uma condição genética que a torna progressivamente cega. Para evitar que o mesmo aconteça ao filho, Selma mudou-se com ele para os Estados Unidos, onde ele pode ser operado quando atingir a maioridade. Para poder pagar ao médico, Selma trabalha numa fábrica e faz biscates extra, poupando o máximo que pode. Apesar da vida difícil e extremamente regrada, ela encontra alegria nos musicais americanos, que vê com a amiga Kathy (Catherine Deneuve) no cinema. Mas quando a doença de Selma piora drasticamente, e o vizinho Bill (David Morse) lhe confessa que está a passar por problemas financeiros, o mundo da pequena imigrante de óculos começa a ruir de uma forma tão catastrófica que nem os musicais a conseguem salvar. Com a estranha honra de ser um dos filmes mais depressivos de sempre, Dancer in the Dark é, nas palavras do realizador Lars von Trier, uma homenagem ao filme musical – e principalmente ao “suprassumo” dos musicais, Música no Coração. A maior parte das canções do filme foram escritas pela artista islandesa Björk, aqui na sua primeira (e última) presença cinematográfica. E, apesar da maioria do filme não se passar no mundo onírico onde todos cantam e dançam, não há dúvidas de que Dancer in the Dark marca um ponto dramático de mudança no musical moderno – talvez pela primeira vez (pelo menos no grande ecrã), um género inerentemente escapista é manipulado para nos obrigar a engolir uma realidade terrível. O último volume da Trilogia dos Corações de Ouro (com Ondas de Paixão (1996) e Os Idiotas (1998) ), Dancer in the Dark ainda está muito marcado estilsticamente pelo Dogma 95. As sequências musicais (fruto da imaginação de Selma, e assim justificadas num filme extremamente realista em todo o resto) são bastante entrecortadas, com edição pesada que prefere a linha emocional à invisibilidade clássica – em claro contraste com a fluidez dos musicais americanos - , e as coreografias

não são polidas – o que dá um ar de extrema espontaneidade a tudo o que acontece, apesar de sabermos claramente (pela súbita saturação das cores) que, bem, já não estamos no Kansas da realidade. O filme, como a maioria da obra de Trier, é bastante pós-moderno e auto-consciente, na medida em que parece querer negar tudo o que a Selma diz sobre musicais – principalmente a célebre frase, num musical nunca acontece nada de mau. No número que acontece antes dela ser presa, quando Jeff a leva a ver os ensaios da produção da Música no Coração, ela proclama novamente o seu amor pelo musical: Está lá sempre alguém para me agarrar... e no fim, é a polícia que a agarra. No tribunal, novamente, a música recomeça, enquanto Selma e o actor Novi sapateiam e dançam na sala de audiências... imediatamente antes de ela ser condenada à morte por enforcamento. E no terceiro acto, em vez de termos um último desafio que o protagonista supera para encontrar o seu final feliz, cruelmente, von Trier lança-nos um raio de esperança – o novo advogado de Selma – só para nos tirar o tapete debaixo dos pés enquanto a vemos sacrificar-se (mais uma vez, e pela última vez) pelo filho. O impacto de Dancer in the Dark prende-se não tanto com a história em si – uma mulher de pouca capacidade intelectual envolve-se numa sucessão de acontecimentos que levam à sua morte, ou uma mãe sacrifica a própria vida para dar uma vida melhor ao filho – mas com a justaposição do escapismo do musical contra a dureza do (melo)drama. Para Selma, o musical é uma fuga da sua própria realidade – até aos seus minutos finais, apenas a música e a dança lhe conseguem dar, primeiro, alguma alegria, e por fim, a coragem para enfrentar a própria morte. Apesar da controvérsia entre os críticos e a audiência em geral, Dancer in the Dark ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 2000, e Björk ganhou Melhor Actriz.

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LES PARAPLUIES DE CHERBOURG

Título nacional: Os Chapéus de Chuva de Cherburgo Realização: Jacques Demy Elenco: Catherine Deneuve, Nino Castelnuovo, Anne Vernon Ano: 1964

PEDRO SOARES

É fácil reconhecer Os Chapéus de Chuva de Cherburgo como um dos melhores musicais da história do cinema, mas é um erro limitá-lo a esse epíteto. Se bem que ser um dos melhores do que quer que seja é sempre um belo epíteto. Mas o alcance de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo é tão vasto que é quase criminoso ficarmos pelas cantilenas. E nem estou sequer a referir-me ao facto de ser aqui que Catherine Deneuve começou a deixar de ser a actriz para passar a ser o ícone.

Deneuve é então uma jovem adolescente que se apaixona perdidamente por Giu (Nino Castelnuovo), um jovem mecânico que a quer desposar. A mãe (Anne Vernon), dona de uma loja de chapéus de chuva, desaprova veementemente o casamento, já que a sua filha só tem 17 anos. Mas quando as contas para pagar começam a acumular-se, a ideia talvez ja não seja tão má, se bem que o empresário de jóias com pinta de chulo (Marc Michel) pareça ser melhor opção. Catherine Deneuve vai ter então que tomar uma decisão quanto ao seu futuro quando a) descobre que está grávida e b) Guy é mobilizado para a guerra na Argélia. Deverá esperar pelo amor da sua vida e enfrentar as agruras da vida, como mãe solteira pelintra? Ou deve optar pela segurança de um casamento com um tipo estável e rico?

É certo que é incontornável fugir à parte musical do filme, já que Os Chapéus de Chuva de Cherburgo é integralmente musicado. Ou seja, todos os diálogos são cantados, maioritariamente em regime de spoken word, como se a vida fosse uma enorme canção. A opção formal é arriscada, especialmente porque o registo melódico raramente (e infelizmente) alterna entre o jazz upbeat e a orquestração cheia de violinos, que lembra sempre o início de Na Cabana Junto à Praia, do José Cid. Por isso, se o seu ser é daqueles que rejeita liminarmente tudo é que é filmes em que os actores desatam a cantar sem razão aparente, fuja de Os Chapéus de Chuva de Cherburgo a sete pés, já que até para quem gosta de musicais o filme pode tornar-se irritante.

Os Chapéus de Chuva de Cherburgo começa por parecer mais um romance trágico, na onda de Romeu e Julieta, cujas cores e o contexto suburbano remetem para os melodramas de Douglas Sirk (ainda que um bocadinho mais telenovelesco). Mas à medida que avança, Jacques Demy revela-se muito mais ambicioso, optando pelas situações menos previsíveis, debruçando-se sobre uma reflexão pela natureza humana (sobretudo a feminina), especialmente perante o moral de que a vida continua. Tematicamente, Os Chapéus de Chuva de Cherburgo aproximase muito mais da Hollywood clássica, com quem rivaliza, do que com muitos dos seus pares da nouvelle vague, se bem que continuará para sempre pioneiro de muita coisa, especialmente de tudo o que é filme francês musical, como já provou na pele Cristophe Honoré, regularmente comparado a Demy após o seu musical As Canções de Amor (2007).

Se formalmente Os Chapéus de Chuva de Cherburgo é arriscado, estilisticamente é um sonho em technicolor, cheio de cores vibrantes, marinheiros e guarda-chuvas coloridos que, numa estudada mise-enscène, fazem do filme um kitsch delicioso. Os Chapéus de Chuva de Cherburgo é a resposta da nouvelle vague ao colorido mágico de O Feiticeiro de Oz. mas com música. E neste ambiente de cores vivas (que o pastiche 8 Mulheres respira por todos os lados), destaca-se a novinha e bela Catherine Deneuve, no seu primeiro grande papel de relevo.

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THE RED SHOES

Título nacional: Os Sapatos Vermelhos Realização: Michael Powell, Emeric Pressburger Elenco: Anton Walbrook, Marius Goring, Moira Shearer Ano: 1948

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Michael Powell e Emeric Pressburger, que tantos filmes marcantes deram ao cinema inglês, criaram, com Os Sapatos Vermelhos, um musical um pouco diferente. Dedicado ao mundo do ballet clássico, Os Sapatos Vermelhos é um drama que inclui longas sequências de ballet, com história inspirada em Hans Christian Andersen, e na música original do compositor Brian Easdale (que escreveu uma verdadeira partitura de bailado).

nominais sapatos vermelhos (no seu caso, o ballet com esse nome), o caminho entre sucesso e desgraça. Mas o que mais se destaca em Os Sapatos Vermelhos é a lindíssima música de Easdale, e as sequências de dança, coreografadas por Robert Helpmann (que também tem um dos papéis). Nelas, somos levados a um palco de ballet que aos poucos ganha uma dimensão abstracta, retirando-nos de dentro do filme, numa multi-dimensionalidade, onde coreografia, cenografia e fotografia são sublimes.

Com argumento dos próprios realizadores, o filme faz uso de bailarinos profissionais, como é o caso de Moira Shearer, no papel de Vicky Page, a protagonista que quer muito dançar na companhia do russo Fermentov (Anton Walbrook). É lá que o compositor, e também novato, Julian Craster (Marius Goring), compõe o ballet que dá nome ao filme e lança a carreira de Vicky. Só que a paixão entre Vicky e Julian vai levar Fermentov ao ciúme, fazendo a bailarina ter de decidir entre amor ou carreira. Como a protagonista do conto de Andersen, também Vicky terá no seu desejo de dançar, nos

Além de Shearer e Helpmann o elenco inclui ainda os também bailarinos profissionais Ludmilla Tchérina e Léonide Massine, num filme que foi inspiração para os grandes musicais da MGM dos anos 50.

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OLIVER!

Título nacional: Oliver! Realização: Carol Reed Elenco: Mark Lester, Ron Moody, Oliver Reed Ano: 1968

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Baseado no musical homónimo do West End, escrito por Lionel Bart, o qual era, por sua vez, uma adaptação do célebre romance Oliver Twist, de Charles Dickens, Carol Reed realizou o filme Oliver!. Este conta-nos a história de um rapazinho órfão de nome Oliver (Mark Lester, com voz nas canções dobrada por Kathe Green), habituado a maus tratos, que foge dos orfanatos para as ruas de Londres. Aí, junta-se ao bando de larápios infantis do velho Fagin (Ron Moody), acabando, depois de alguma peripécias, por ser recolhido por um homem rico (Joseph O'Conor), que vem a descobrir ser seu avô. Isto depois de Fagin e o seu cruel cúmplice Bill Sikes (Oliver Reed) o tentarem resgatar, e ele ser salvo pela prostituta de bom coração, Nancy (Shani Wallis).

rapaz, como dos enérgicos números típicos do West End, com imensos bailarinos, danças e coros movimentados, fazendo uso de um humor urbano e linguagem de rua, onde o velho, sujo, mas divertido Moody (actor proveniente do elenco original da peça), Shani Wallis e o pequeno e surpreendente Jack Wild proporcionam os momentos mais bem conseguidos. A isto juntam-se, claro, algumas canções que ainda hoje representam o que de melhor se tem feito no teatro musical londrino. O filme seria nomeado para onze Oscars vencendo cinco, incluindo o de melhor filme e realizador, além dos Globos de Ouro de melhor filme, e de melhor actor para Moody.

Com a Londres dickensiana dos becos e vielas sujas como cenário, e a actividade e ofícios em torno dos mercados de Covent Garden a ser palco e tema para as coreografias, Oliver! vive tanto do drama do

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LES CHANSONS D’AMOUR

ONCE

DIANA MARTINS

JOÃO PAULO COSTA

As Canções de Amor é um daqueles filmes em que damos por nós estupidamente a sorrir, encantados pela história, trauteando claramente a sua musiquinha de fundo. A verdade é que a música de Alex Beaupain acompanha toda a narrativa tornando este um musical particular, no qual a música é consequência da história. Assim, no centro da narrativa temos Ismael (Louis Garrel), jovem jornalista que namora com Julie (Ludivine Sagnier) e que decidem convidar a amiga Alice (Clotilde Hesme) para partilhar a sua casa e intimidade. O trio vagueia nas ruas de Paris, oscilando entre sentimentos de felicidade, entusiasmo, crise e ciúmes. Honrando um Paris contemporâneo, Christophe Honoré deixa aqui a sua ode ao estilo musical, dando um tom verdadeiramente melódico a todo o filme. E isso faz-nos sentir bem.

Em 2007, o irlandês John Carney conquistou o universo do cinema indie com este pequeno mas delicioso filme sobre um homem e uma mulher, ele reparador de aspiradores no negócio do pai e cantor de rua nas horas vagas, ela uma imigrante checa com talento para o piano e com uma mãe e uma filha pequena para cuidar, que se conhecem nas ruas de Dublin e começam a trabalhar em conjunto em estúdio, gravando as canções dele. Com uma duração curta, No Mesmo Tom vive do seu tom naturalista, quer no trabalho de câmara de Carney, quer nas interpretações dos actores e da simplicidade da escrita, mais próxima da vida real do que de artifícios dramáticos. O resultado é extremamente feliz e o filme permanece como uma pequena pérola recheada de boa música que merece ser mais visto.

Título nacional: As Canções de Amor

Título nacional: No Mesmo Tom

Realização: Christophe Honoré

Realização: John Carney

Elenco: Louis Garrel, Ludivine Sagnier, Clotilde Hesme e Grégoire Leprince-Ringuet

Elenco: Glen Hansard, Markéta Irglová, High Walsh

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8 FEMMES

GOD HELP THE GIRL

PEDRO MIGUEL FERNANDES

PEDRO MIGUEL FERNANDES

O que acontece quando se junta as cores garridas e um casarão feito totalmente com cenários de estúdio, rodeado de neve que não pára de cair, a la Douglas Sirk, a uma intriga saída do universo de Claude Chabrol, com umas pitadas de musical? 8 Mulheres é a resposta. Tudo se passa num dia de Inverno em que oito mulheres (interpretadas por outras tantas actrizes, oriundas de várias gerações do cinema francês) se encontram presas numa mansão e travam argumentos para descobrir quem foi a responsável pela morte de Marcel, personagem central do filme, apesar de pouco aparecer. Homenagem a diferentes géneros cinematográficos, mesmo não caindo no que poderia ser uma mistura sem nexo, 8 Mulheres continua a ser um dos pontos altos e um dos títulos mais ousados da obra de François Ozon.

God Help The Girl é tudo o que poderíamos imaginar vindo da cabeça de Stuart Murdoch, um dos mentores dos Belle and Sebastian: um musical que respira por todos os lados o universo juvenil da banda escocesa. Este cândido filme, como qualquer canção dos Belle and Sebastian que se preze, relata as aventuras de um trio de jovens inadaptados à procura da sua oportunidade no mundo da música, ao mesmo tempo em que passam pelas típicas fases de descoberta da juventude, desde as paixões não correspondidas às inseguranças de quem tem de lidar com um futuro incerto. Feito a pensar no público da banda escocesa, God Help The Girl pode ser considerado o Tommy desta geração, sem os delírios psicadélicos do filme de Ken Russell baseado na histórica ópera rock dos The Who.

Título nacional: 8 Mulheres

Realização: Stuart Murdoch

Realização: François Ozon

Elenco: Emily Browning, Olly Alexander, Hannah Murray

Elenco: Fanny Ardant, Emmanuelle Béart, Danielle Darrieux

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ANIMAÇÕES MUSICAIS CÁTIA ALEXANDRE

Desde muito novos, e sem sabermos bem a importância disso, todos somos influenciados pelas histórias e principalmente pelas músicas presentes em muitos dos célebres musicais de animação. A verdade, é que esses mesmos filmes continuam a influenciar gerações, pois através do seu positivismo e de umas quantas catchy songs, permanecem na memória durante um longo período de tempo, sendo para todos bastante mais fácil associar um personagem a um momento musical presente num desses filmes do que propriamente por qualquer outro dos aspectos. Para além de alegrarem os miúdos e também os graúdos que os vêem, deixam muito felizes os seus estúdios que lucram imenso com isso.


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em Shrek 2 (2004), lideraram tabelas mesmo antes do lançamento dos respectivos filmes. Uma coisa ajuda a outra e animação que não tenha uma boa composição musical perde certamente pontos por isso. Estamos agora perante uma nova era dentro do género musical, onde reinam os live-action de clássicos e o objectivo principal é chegar a todo o tipo de público e não só até aos mais jovens. A verdade é que há canções que fazem parte do crescimento de inúmeras gerações, ajudando a criar mais empatia com personagens e histórias, que nos transportaram até outros imaginários criando uma forte relação de afectividade que permanece connosco para sempre. É esse o poder de um bom musical de animação.

Com o passar dos tempos, os filmes de animação vieram a sofrer uma evolução a nível musical, quando o uso de canções populares deixa de ser explorado e as composições originais, gravadas por grandes orquestras, começaram a fazer parte dos requisitos, e sempre executadas ao mais alto nível. Filmes da Disney como O Livro da Selva (1967), A Pequena Sereia (1989) ou A Bela e o Monstro (1991) são aclamados pela crítica ainda nos dias de hoje, e boa parte da sua fama vem exactamente das suas celebres canções, algo sem o qual a Disney já não consegue passar, e que se foi tornando numa forte característica em todas as suas animações. Mas não só os musicais da Disney se destacam dentro do género, e por vezes esquecemos animações como Rio da Blue Sky Studios, O Príncipe do Egipto (1998) da Dreamworks ou O Estranho Mundo de Jack (1993) da Skellington Productions que se encontram entre os melhores exemplos. Hoje em dia, canções de filmes de animação são já por si só sucessos garantidos que seguem um rumo próprio, sendo facilmente identificadas por todos, mesmo por aqueles que nem sequer tencionam ver os filmes de onde essas mesmas canções saíram. Fenómenos como “Let it Go” de Frozen: O Reino do Gelo (2013) ou mesmo as mais antigas como “Hakuna Matata” de O Rei Leão (1994) são utilizadas nas mais variadas ocasiões e sucessos mundiais como “Happy” de Pharrell Williams, em Gru – O Mal Disposto 2 (2013) ou “Accidentaly in Love”, dos Counting Crows 89


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BEAUTY AND THE BEAST

Título nacional: A Bela e o Monstro Realização: Gary Trousdale; Kirk Wise Elenco: Paige O’Hara, Robby Benson, Angela Lansbury Ano: 1991

HÉLDER ALMEIDA

Belle é uma jovem que vê o seu pai feito prisioneiro pelo misterioso dono de um castelo. De forma a libertar o seu pai, decide trocar de lugar e ficar prisioneira. Conhece assim o Príncipe Adam, um ser monstro alvo de uma maldição. Uma amizade inesperada surge entre ambos, dando lugar a uma intemporal história de amor, onde apenas Belle pode quebrar o feitiço que atormenta Adam e os seus criados. No entanto, o rival amoroso de Adam, o perigoso Gaston, pode colocar o amor e a liberdade do príncipe em risco.

castelo do príncipe, cada um amaldiçoado, tal como o seu mestre. A Bela e o Monstro não é apenas uma grande obra de animação: é também um grande pedaço de cinema, com um argumento cuidado e bem desenvolvido e realizado de forma exemplar. Consegue assim ser a primeira animação da história do cinema a ser nomeada para o Óscar de Melhor Filme, feito ainda hoje raro para o género. A música principal, Beauty and the Beast, cantada no filme pela veterana Angela Lansbury e depois adaptada para single por Celine Dion, acabaria por se tornar num dos grandes sucessos da altura e levou para a casa a estatueta de Melhor Canção Original nos Óscares.

Baseado no conto francês com o mesmo nome, da autoria de JeanneMarie Leprince de Beaumont, A Bela e o Monstro é uma animação musical da Disney que pretende voltar aos grandes clássicos de fantasia que o estúdio tão bem fazia nos anos 50 e 60. Estreado em 1991, numa altura em que a Disney e as suas animações estavam com dificuldades em ganhar destaque e sucesso, a obra de Gary Trousdale e Kirk Wise consegue o que na altura já parecia impossível: traz a magia de volta à casa do rato Mickey e o estúdio de regresso aos grandes sucessos comerciais e críticos.

Numa altura em que o cinema musical e de animação estava nas ruas da amargura, A Bela e o Monstro aproveitou o sucesso inesperado do filme anterior da Disney, o já referido A Pequena Sereia, para se tornar na obra musical de animação essencial, num cinema de fantasia há muito perdido, sendo um exemplo perfeito do enorme legado que o estúdio havia criado décadas antes com clássicos como Branca de Neve e os Sete Anões, Cinderela e A Bela Adormecida, recuperando assim uma época dourada tanto para o cinema de animação (época que voltaria a surgir novamente com este filme) como para o próprio estúdio. Pelo caminho, torna-se também num dos melhores e mais belos filmes de animação de sempre, cujo legado ainda hoje perdura. Em 2017, a Disney continua a sua nova moda de adaptar a imagem real os seus grandes clássicos de animação e dá a vez a este conto romântico, com grandes hipóteses de se tornar num dos grandes sucessos do ano que vem. Independentemente do resultado final da nova versão em imagem real, o verdadeiro clássico está aqui, naquela que é uma das grandes razões pelas quais o cinema de fantasia e animação foi criado. Um clássico intemporal e imperdível, para todas as idades.

Trousdale e Wise apoiam-se numa fórmula básica para a Disney: um conto de fadas simples mas mágico, recheado de momentos musicais memoráveis da autoria de Alan Menken, um dos grandes nomes da música para o estúdio (Aladino; A Pequena Sereia) e trazem ao público uma animação bastante acima da média que consegue agradar a todo o tipo de público. Recheado de fantasia como há muito já não se via, a animação consegue ser o renascimento da Disney e abre caminho a outros grandes êxitos. Para tal, ajuda bastante o leque de personagens carismáticas que por aqui encontramos: a jovem Belle, o assustador e amaldiçoado Príncipe Adam, o vilão Gaston e os vários habitantes do

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THE LITTLE MERMAID

Título nacional: A Pequena Sereia Realização: Ron Clements, John Musker Elenco: Jodi Benson, Pat Carroll, Rene Auberjonois Ano: 1989

JOÃO PAULO COSTA

Num encantado mundo debaixo do mar, Ariel, a bela sereia adolescente que é o orgulho do seu pai, o poderoso Rei Triton, sonha conhecer o que se esconde acima da superfície do mar, especialmente depois de se apaixonar pelo príncipe Eric, que salva de um naufrágio. Desejosa de voltar a encontrar-se com o príncipe, Ariel faz um acordo com Ursula, a bruxa má das profundezas do oceano, com esta a torná-la humana durante três dias, em troca da sua belíssima voz. Se até ao final desses dias Ariel não conseguir beijar o príncipe, esta regressará à forma de sereia e tornar-se-à escrava da bruxa. Estreado em 1989, A Pequena Sereia depressa se tornou num dos melhores filmes de animação da Disney daquele período, um dos mais negros da história do estúdio que, durante a década de 1980, pouco tinha produzido que se encontrasse ao nível dos grandes trabalhos do passado. De uma assentada, este filme tornou-se num gigante fenómeno de popularidade, conquistando espectadores, críticas positivas e Oscares da Academia. Numa altura em que o mercado do VHS estava no auge dos seus poderes, temas musicais como Under the Sea ou Les Poissons faziam parte do imaginário de muitas crianças da época (em Portugal, seriam as versões dobradas em brasileiro que invadiriam as nossas memórias). De certa forma, podemos dizer que A Pequena Sereia possui a receita perfeita para cativar qualquer espectador: uma história dramática de um amor aparentemente impossível entre duas criaturas de origens diferentes ilustrada com uma imaginação gigante, com o colorido mundo subaquático a contrastar de certa forma com o mais sombrio universo terrestre. A música surge incluída naturalmente na narrativa, e tanto ajuda a ilustrar esse drama como também a aliviar o espírito, com alguns dos números de Alan Menken, francamente divertidos, a deixarem qualquer espectador com um sorriso no rosto. E depois, claro, temos todo

o universo de magias ocultas e poderes sobrenaturais que, nas cenas finais, resvalam para algo mais próximo do terror, onde um polvo gigante acabou por provocar a este escriba algumas noites de insónias. Mais do que uma mera vontade de vender bilhetes e contar rabos nas cadeiras das salas de cinema, parece ter havido uma preocupação por parte dos criadores de A Pequena Sereia de criar todo um fascinante universo capaz de agradar verdadeiramente aos seus espectadores. E as cenas cómicas do filme são particularmente bem conseguidas, com os personagens secundários a dominarem grande parte dos acontecimentos – quem não se lembra de uma gaivota a quem cabe o papel de ancião que tudo sabe sobre o mundo dos humanos mas que, na realidade, não é capaz de produzir uma única informação útil sobre o assunto? Ou, claro, de Sebastian, o caranguejo conselheiro do rei dos mares, que tem com um cozinheiro francês uma frenética correria para fugir às panelas da cozinha e ao seu destino como iguaria num banquete? Depois de A Pequena Sereia, tudo mudou na relação dos estúdios Disney com o público, provocando o filme um ressurgimento da animação musical que seria confirmado em 1991 com A Bela e o Monstro e em 1992 com Aladdin. Essa tendência prolongou-se durante mais alguns anos durante a década, até que a entrada em campo da Pixar com a animação digital e apostada em narrativas tradicionais sem grandes cantorias, voltou a afastar a Disney da vanguarda. Mas se há coisa que distingue o cinema de animação do restante é a exploração da criatividade que permite a quem nele trabalha e, desenhada à mão ou num computador, é a sua capacidade para nos transportar para universos alternativos e despertar em nós o fascínio infantil pela fantasia. Nisso, A Pequena Sereia é irrepreensível, e é hoje visto com o mesmo encanto com que o foi há mais de 25 anos atrás.

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SOUTH PARK: BIGGER, LONGER & UNCUT

Título nacional: South Park: O Filme Realização: Trey Parker Elenco: Trey Parker, Matt Stone, Mary Kay Bergman Ano: 1999

JOÃO PAULO COSTA

Quando estreou em 1999, South Park: O Filme causou um pequeno mas muito divertido debate sobre o lugar do cinema de animação na indústria do entretenimento. Divertido porque a sua linguagem ofensiva, animação rudimentar, imagens violentas e ideias provocadoras atingiram a brigada dos bons costumes de forma algo inesperada (a série de Trey Parker e Matt Stone existia desde 1997, mas era mais um fenómeno de culto do que de popularidade), e também porque esse era precisamente o tema do próprio filme, no qual a estreia de uma escatológica animação canadiana muito popular entre as crianças da pequena cidade de South Park, onde se incluem os habituais protagonistas Stan, Kyle, Cartman e Kenny, leva os seus habitantes, um grupo de pais excessivamente preocupados com as suas indefesas crianças, a entrar numa cruzada sem limites pela defesa dos bons valores. E o que começa por ser um acto de censura, acaba para se alastrar para uma guerra entre os Estados Unidos da América e o Canadá, e a ascensão do Diabo (que mantém uma perturbadora relação sexual com Saddam Hussein!) à Terra. Na realidade, o filme surgia como uma espécie de reacção às reacções que se iam começando a fazer ouvir sobre South Park, a série televisiva, mas numa escala muito maior.

a série ainda não passava nas televisões nacionais, South Park deu-se a conhecer praticamente com Mountain Town, o número musical que abre o filme, onde todas as personagens cantam a sua condição de habitantes de uma pequena cidade das montanhas. Outros temas tão perturbadores e hilariantes como Uncle Fucka ou Kyle’s Mom’s a Bitch deixam-nos tão incrédulos como cheios de vontade de bater o pezinho, mas é a opulência de Blame Canada (canção, imagine-se, nomeada para um Oscar, na cerimónia interpretada por um hiper energético Robin Williams numa versão, obviamente, censurada, mas que viria a perder a estatueta para o tema que Phil Collins interpretou para Tarzan, da… Disney). Sem grandes rodeios, podemos dizer que South Park: O Filme é acima de tudo uma provocação, seja denunciando a censura, a hipocrisia social e política, e também (ou principalmente) a própria indústria cinematográfica, habituada a desprezar a inteligência dos seus espectadores. É por isso mesmo que mais divertido tudo se torna quando reparamos na ironia de todo o projecto: o filme que expõe alguns podres da indústria foi recebido de forma entusiástica, fazendo dinheiro nas bilheteiras e conseguindo as já mencionadas nomeações aos prémios máximos do cinema, ao mesmo tempo que, por exemplo, foi alvo de intensos debates sobre a sua moralidade. Mas, afinal, o que é que fica nos dias de hoje desta espécie de denúncia da sociedade de há mais de 15 anos? Fica não apenas uma comédia infelizmente cada vez mais certeira e actual, mas também um honestamente bem conseguido filme de animação musical que percebe perfeitamente as suas limitações técnicas e dá tudo o que tem ao espectador.

Quem conhece o produto televisivo, ainda hoje em exibição, saberá certamente que os seus criadores, Trey Parker e Matt Stone, não têm grandes limites no seu olhar sobre a sociedade, e um dos seus maiores cavalos de batalha é a denúncia da hipocrisia que ataca todos os quadrantes, o que já lhes valeu críticas por parte de todas as vertentes do espectro político. South Park: O Filme, não só não é excepção como é uma espécie de confirmação da regra, e o facto de o fazer utilizando a estrutura dos mais aceitáveis filmes de animação americanos da Disney, assumindo clara e desavergonhadamente a sua veia musical, torna tudo ainda mais maravilhoso. Em Portugal, por exemplo, numa altura em que

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THE NIGHTMARE BEFORE CHRISTMAS

Título nacional: O Estranho Mundo de Jack Realização: Henry Selick Elenco: Danny Elfman, Chris Sarandon, Catherine O’Hara Ano: 1993

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Quem conhece o universo visual de Tim Burton, está familiarizado com as suas bizarras criações pictoriais, presentes em livro, e inspiração para algumas personagens dos seus filmes. São bonecos de aspecto macabro, meio mecânicos, sempre deformados, como saídos de pesadelos, mas envoltos numa inocência infantil e surreal, como se Tim Burton nos quisesse dizer que também no horrífico há beleza e poesia.

Entre o aspecto negro, sinuoso e angular do expressionismo alemão de filmes como O Gabinete do Dr. Caligari de Robert Wiene, e o estilo alegre e sempre versejante das histórias de Dr. Seuss (Grinch, Worton, etc.), O Estranho Mundo de Jack é um musical irreverente, visualmente surpreendente, numa história divertida com diálogos e canções deliciosos, também graças a uma brilhante banda sonora a cargo de Danny Elfman.

É desse universo que nasce O Estranho Mundo de Jack, realizado por Henry Selick em animação stop-motion (Burton estava entre a realização de Batman Returns e a pré-produção de Ed Wood), um filme de Natal diferente, com vampiros, lobisomens, cadáveres, bruxas, fantasmas, aranhas e serpentes, que, guiados por Jack (um esqueleto) vivem num mundo dedicado a criar os sustos de Halloween, mas que por uma vez querem fazer algo diferente, imitar o Natal, com toda a confusão e má interpretação que isso trará.

Inicialmente um projecto Disney, a companhia decidiu creditá-lo à sua produtora Touchstone Pictures, por o achar demasiado negro para a sua imagem, o que a MPAA confirmou ao atribuir-lhe o grau PG por imagens assustadoras. Nem isso o torna menos um filme de família, cuja reputação não pára de crescer e lhe valeu a reedição, em 2006, em formato 3D.

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FANTASIA

Título nacional: Fantasia Realização: Wilfred Jackson, Hamilton Luske, et al. Ano: 1940

JOSÉ CARLOS MALTEZ

A Disney era já a rainha do cinema de animação, quando, na sua terceira longa-metragem, decidiu que fosse apenas a música, e não as palavras, a contar a história. Com apresentação do crítico Deems Taylor, a música clássica é o motivo para reinterpretar e criar histórias visuais, com orquestrações do maestro Leopold Stokowski, que vemos em silhueta a dirigir a orquestra.

de Bach e acabam na elevação transcendente de arcos celestiais, e um quase documental mito de criação do mundo, ao som de Stravinsky. Mais perto da animação infantil, temos as flores e cogumelos dançarinos de Tchaikovski , os animais patuscos (avestruzes, hipopótamos) de Ponchielli, e uma representação do Olimpo grego na Pastoral de Beethoven (faunos brincalhões, cavalos alados, um Baco bonacheirão, etc.). O segmento mais reconhecido é uma história de Mickey como o aprendiz de feiticeiro de Dukas, enquanto o momento mais arrojado acontece ao som de Mussorgsky, com um Satanás que chama a si as almas dos mortos numa dança infernal em jeito de pintura expressionista.

As peças usadas são a Tocata e Fuga em ré menor de Bach; a suíte de ballet “O Quebra-nozes” de Tchaikovski, o poema sinfónico “O Aprendiz de Feiticeiro” de Dukas; o baliado “A Sagração da Primavera” de Stravinsky; a Sinfonia Nr. 6, “Pastoral” de Beethoven; a “Dança da Horas” do bailado “La Gioconda” de Ponchielli; o poema sinfónico “Uma Noite no Monte Calvo” de Mussorkgski; e a canção “Ave Maria” de Schubert.

Pela diversidade, arrojo das reinterpretações musicais, e uma frescura e inovação inéditas, Fantasia seria premiado, e até hoje considerado um marco no cinema de animação.

Temos sequências abstractas, como os padrões que nascem da música

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FROZEN

Título nacional: Frozen: O Reino do Gelo Realização: Chris Buck, Jennifer Lee Elenco: Kristen Bell, Idina Menzel, Jonathan Groff Ano: 2013

JOÃO PAULO COSTA

Enquanto as pequenas princesas Elsa e Anna se divertem com os poderes da primeira (que possui uma capacidade natural para manipular o gelo), a segunda sofre um acidente que remete as duas para uma juventude enclausurada no castelo. Quando, anos mais velhas, Elsa se torna rainha, um novo incidente leva-a a refugiar-se sozinha num mundo gelado por ela criado, levando Anna à sua procura, de forma a recolocá-la no trono que por direito lhe pertence.

crianças perfeitamente adaptadas ao Mundo do excesso de informação, não deixa de ser louvável aquilo que este filme conseguiu, pedindolhes para respirar um pouco, e se deixarem levar para um universo cinematográfico mais clássico, imagem de marca da sua casa produtora, a Disney. Mas o que difere nesta história de princesas é que desta vez o seu drama é vivido e conduzidos pelas próprias, não necessitando dos esforços de um príncipe destemido para salvar o dia. Não possuindo talvez as qualidades necessárias para se tornar num título indispensável para um público mais adulto, Frozen é ainda assim uma bonita história de inclusão e sobre aceitar as diferenças.

Por muito que se procurasse, não era tarefa fácil encontrar uma criança que, há uns anos atrás, não estivesse completamente apaixonada pelo mundo de gelo de Frozen, e que não soubesse a letra de Let it Go, independentemente da versão a que tenha assistido (a original, com as vozes de Kristen Bell e Idina Menzel, ou a versão dobrada). Numa altura em que muito do cinema de animação digital procura novos caminhos cada vez mais espampanantes por forma a captar a atenção fugidia de

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SNOW WHITE AND THE SEVEN DWARFS

Título nacional: Branca de Neve e os Sete Anões Realização: David Hand (Supervisor), William Cottrell, Wilfred Jackson, Larry Morey, Perce Pearce, Ben Sharpsteen Elenco: Adriana Caselotti, Stuart Buchanan, Harry Stockwell Ano: 1937

ANTÓNIO ARAÚJO

Branca de Neve e os Sete Anões é um marco histórico, não só no que diz respeito a musicais, como também a filmes de animação. Esta produção de Walt Disney, a primeira longa-metragem de animação nos Estados Unidos da América, e a primeira inteiramente a cores, é hoje considerada como um dos maiores clássicos do seu legado, mas foi em 1937 uma aposta arriscada do seu produtor que, felizmente, acabou por colher dividendos. Foi o maior sucesso cinematográfico de sempre à data de estreia, tendo sido destronado no ano seguinte por E Tudo O Vento Levou, e ainda continua a ser o mais rentável filme de animação de todos os tempos, ajustando o valor à inflação, tendo aberto as portas para uma série de sucessos genericamente conhecidos como os Clássicos de Walt Disney.

interpretado por Marguerite Clark, adaptando o conto de fadas original do século XIX de Jacob Grimm & Wilhelm Grimm. Com música original de Paul Smith e Leigh Harline e canções compostas por Frank Churchill e Larry Morey estava encontrado o modelo para muitos dos sucessos posteriores da companhia com o nome do seu fundador, adaptando às sensibilidades, tanto modernas como do seu produtor, contos infantis clássicos ao som de canções que se tornaram instantaneamente parte da cultura popular. Também aqui Branca de Neve e os Sete Anões foi marcante, sendo o primeiro filme a ter a sua banda sonora editada em vinil, imortalizando canções perenes como “Heigh-Ho”, “I'm Wishing” ou “Some Day My Prince Will Come”.

Walt Disney encontrou inspiração para o filme aos quinze anos de idade, ao assistir a uma exibição de Snow White, um filme mudo de 1916

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INTERSTELLA 5555:

THE 5TORY OF THE 5ECRET 5TAR 5YSTEM

LE MAGASIN DES SUICIDES

PEDRO MIGUEL FERNANDES

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Não sendo algo de novo no cinema, Interstella 5555: A Hi5tória do 5i5tema E5trelar 5ecreto é um daqueles episódios curiosos em que duas áreas da cultura popular se cruzam para criar um objecto singular. Neste caso, a música dos Daft Punk e o cinema de animação japonês. A partir de Discovery, o segundo álbum de estúdio da banda francesa, Kazuhisa Takenouchi criou um musical animado sobre uma banda intergaláctica raptada por um empresário terrestre sem escrúpulos. As canções do álbum fazem avançar uma narrativa cheia de aventuras que afasta o filme de um simples corta e cola de videoclips. E apesar de ter sido criado para publicitar Discovery, Interstella 5555 aguenta muito bem quando tirado desse contexto.

Com a crise a levar ao aumento do número de suicídios, e para evitar o incómodo das mortes públicas e tentativas falhadas, a família liderada por Mishima (Bernard Alane) e Lucrèce Tuvache (Isabelle Spade) criou o negócio perfeito, uma loja onde vendem todos os melhores artigos para um suicídio bem-sucedido. Isto até o terceiro filho do casal, Alan (Kacey Mottet Klein), crescer com a alegria suficiente para decidir mudar o estado de espírito de toda a gente. Pese a morbidez do tema, todo o filme, escrito e realizado por Patrice Leconte, é deliciosamente humorístico, numa animação estilizada, cantado no melhor estilo da tradicional chanson francesa, de tom nostálgico e letras politicamente incorrectas, que salientam a vantagem do suicídio e sofisticação dos métodos e materiais fornecidos.

Título nacional: Interstella 5555: A Hi5tória do 5i5tema E5trelar 5ecreto

Título nacional: A Loja dos Suicídios

Realização: Kazuhisa Takenouchi

Realização: Patrice Leconte

Elenco: Romanthony, Thomas Bangalter

Elenco: Bernard Alane, Isabelle Spade, Kacey Mottet Klein

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THE PRINCESS AND THE FROG PEDRO MIGUEL FERNANDES

A Princesa e o Sapo é um filme curioso na história recente da Disney. Depois de vários anos a apostar na animação digital sem grande sucesso, os estúdios norte-americanos resolveram regressar às origens e lançar um filme no bom velho estilo tradicional. A partir do conto homónimo dos irmãos Grimm, transposto para a cidade de Nova Orleães nos anos 1920, A Princesa e o Sapo é uma animação musical onde os sons do Jazz e do Blues daquela cidade sulista marcam o ritmo da ação. O primeiro filme da Disney protagonizado por uma personagem afro-americana, a princesa Tiana, é uma verdadeira homenagem ao Sul dos EUA e ao género musical, com alguns dos números a fazer lembrar as cores dos filmes de Busby Berkeley, ao mesmo tempo que recuperam a magia dos clássicos da animação da Disney. Título nacional: A Princesa e o Sapo Realização: Ron Clements, John Musker Elenco: Anika Noni Rose, Keith David, Oprah Winfrey

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OS MUSICAIS ROCK UMA VIAGEM CRONOLÓGICA JOÃO BIZARRO

Quando Bill Haley cantou “One-two-three o’clock, four o’clock rock”, estava a declarar que era tempo para uma nova revolução musical no cinema. A música “Rock Around the Clock”, de Bill Haley & His Comets, durante os créditos iniciais de Sementes de Violência (1955) é conhecida como a primeira música rock a ser usada no cinema.


Foi nos anos 50 que uma nova personagem começou a aparecer no grande ecrã. Não era adulto, nem criança e vivia cheio de problemas e crises existenciais. Nicholas Ray chamou-o Fúria de Viver (1955) e retratou esta juventude que ouvia música mais barulhenta, tinha problemas em relação ao mundo e necessitavam de auto-afirmação. Vestiam jeans, t-shirt branca e blusão de cabedal, como podemos ver em James Dean, no já citado filme de Nicholas Ray ou Marlon Brando em O Selvagem (1953). Mas nenhum destes filmes acima referidos era do género musical. Os primeiros musicais rock propriamente ditos, embora também possam não ser considerados como tal, reportam à segunda metade dessa década de 50, com a entrada em cena de Elvis Presley com Ama-me Com Ternura (1956) e até ao final dessa década faria mais três filmes, Ritmo no Coração (1957), O Prisioneiro do Rock and Roll (1957) e Balada Sangrenta (1958). De 1956 a 1969, Elvis entrou em 31 filmes. E desses, O Prisioneiro do Rock and Roll (1957) foi talvez o seu momento mais marcante no cinema. Presley é Vince Everett, que está preso por homicídio e que vê o seu companheiro de cela levá-lo para o meio musical. Músicas como "Treat Me Nice", "Baby I Don't Care", "Young and Beautiful" e, claro a música que dá titulo ao filme, ficaram mundialmente famosas. Os anos 60 trouxeram ao mundo os Beatles e o cinema não foi excepção. 104


A primeira aparição no cinema foi em A Hard Day's Night (1964). Após uma digressão aos Estados Unidos, onde actuaram no famoso Ed Sullivan Show, os Beatles lançam-se no mundo do cinema. A Hard Day's Night foi rodado à pressa, pois havia a ideia de que a banda não duraria muito e o filme mostra a rotina típica da banda, a fuga aos fãs, os concertos e as entrevistas. Tudo isto mostrado com muito humor. O realizador era Richard Lester que imprimiu um ritmo que virou padrão nos filmes sobre rock, feitos daí para a frente. Um ano depois era lançado Help! (1965), uma ficção onde Ringo Starr era presenteado com um anel que estava enfeitiçado e a banda era perseguida por uma seita que a queria destruir. Até ao fim da carreira os Beatles ainda fariam mais alguns filmes, sendo os mais conhecidos, Yellow Submarine (1968), de George Dunning, que tinha a curiosidade de ser uma aventura de animação e Let it Be (1970), de Michael Lindsay-Hogg. O documentário retratava a tentativa da banda voltar aos tempos iniciais, depois da mudança de paradigma no som da banda a partir do álbum Revolver. O resultado acabaria por ser o fim dos Beatles mas a cena do concerto num terraço ficou famosa e acabaria por ser seguida por muitas outras bandas (U2, por exemplo). Ainda nos anos 60 não podemos deixar de destacar Monterey Pop (1968), filmado no The Monterey International Pop Festival, por D.A. Pennebaker. Antes do Woodstock houve este festival que levava os melhores nomes da

cena musical do momento para cima do palco. Janis Joplin, Jim Hendrix, Ravi Shankar ou The Mamas and the Papas, só para citar alguns nomes. A década de 70 foi rica em musicais rock com 1970, para começar bem, a ter uma série de filmes interessantes. Desde logo Woodstock (1970), Michael Wadleigh, crónica do lendário festival que se tinha realizado um ano antes. Um olhar intimo à sua realização, desde a preparação até à limpeza final. Drogas, sexo, rock & roll, banhos de lama até a chegada dos helicópteros da Guarda Nacional com ajuda médica e alimentar. Gimme Shelter (1970), David Maysles, Albert Maysles, Charlotte Zwerin. O concerto de 1969, dos Rolling Stones em Altamount, Califórnia, foi assombrado pelo assassinato de um fã às mãos do bando motard Hell’s Angels, que supostamente fazia a segurança do evento. Armados com bastões e facas os motards passaram o concerto a bater nos fãs acabando por matar pelo menos um. Performance (1970), Donald Cammell, Nicolas Roeg. Uma estrela rock (Mick Jagger) em decadência ocupa o seu tempo com sexo e drogas até ao momento em que lhe entra em casa um gangster à procura de abrigo. Em 1973 o mundo do cinema viu o aparecimento de Jesus Cristo Superstar, por Norman Jewison, a partir do original de Tim Rice e Andrew Lloyd Weber. A história mostra um grupo de jovens que encena Jesus Cristo Superstar nas ruínas de Avdat, em Israel. O que chama a atenção são os figurinos, que eram atuais (para a época do filme) ao 105


invés de serem uma reconstituição da época de Cristo. A história mostra os últimos seis dias de vida de Cristo, mas do ponto de vista de Judas Iscariotes, o que torna a abordagem de Jesus bem mais humana. Nesse mesmo ano o mundo assiste a American Graffiti: Nova Geração (1970), de George Lucas. No filme seguíamos dois amigos Curt (Richard Dreyfuss) e Steve (Ron Howard), que no último dia de Verão vivem mil aventuras antes da ida para a universidade. Para além destes dois, o filme conta ainda com um novíssimo Harrison Ford, quando ainda não sonhava com o sucesso que iria ter como Han Solo e Indiana Jones. E sim, o realizador é o mesmo que anos mais tarde nos daria Star Wars. Dois anos depois era adaptada aquele que seria a primeira Ópera Rock, Tommy (1975), por Ken Russel, a partir do original dos The Who. A Última Valsa (1978) é a primeira grande incursão de Martin Scorsese no universo do musical. A banda The Band prepara um último concerto e convida os amigos, entre eles Paul Butterfield, Eric Clapton, Neil Diamond, Bob Dylan, Joni Mitchell, Van Morrison, Ringo Starr, Muddy Waters, Ronnie Wood e Neil Young. A câmara de Scorsese capta a interligação entre os músicos em cima do palco e fora dele entrevista os cinco membros da banda. Considerado um dos melhores musicais de sempre. Outro dos mais famosos musicais surge em 1979, trata-se de Hair, de Milos Forman. Também adaptação de uma ópera rock, o filme mostra um jovem do interior dos Estados Unidos (John Savage) que chega a New

York para se alistar no exército para ir para a guerra do Vietname. Já na Big Apple encontra um grupo de hippies que habita no Central Park, do qual se torna amigo. Nesse mesmo ano surge Rock 'n' Roll High School, produzido por Roger Corman, e dirigido por Allan Arkush, que conta com a participação da banda Punk, Ramones. Um fã da banda fica maravilhado quando esta ajuda a derrubar o director da sua escola. Na banda sonora há também espaço para nomes como Brian Eno, Velvet Underground, Devo ou The MC5. A década de 80 trouxe-nos três maravilhosos musicais rock. Pink Floyd: The Wall (1982), de Alan Parker, com o argumento a ser escrito por Roger Waters que era para ter sido o protagonista (Pink) mas acabaria por escolher Bob Geldof, na altura mais conhecido por ser o vocalista dos The Boomtown Rats, This is Spinal Tap (1984), realizado por Rob Reiner e que é um mockumentário, uma sátira ao comportamento e ambições musicais de uma banda de hard rock, que já passou por melhores tempos e Stop Making Sense (1984), de Jonathan Demme, filme concerto dos Talking Heads que promovia o álbum Speaking in Tongues, onde David Byrne e os restante membros mostram todo o seu talento, numa inovadora realização de Demme. Na década seguinte surgiram filmes bastante interessantes. Em 1991, Oliver Stone deu a sua visão peculiar da ascensão e queda de Jim 106


Morrison no filme The Doors: O Mito de Uma Geração. Nesse mesmo ano surge uma produção conjunta entre os Estados Unidos e Inglaterra, realizada por Alan Parker. Os Commitments eram uma banda de Dublin formada por músicos inexperientes. Em 1996 surgia Trainspotting, de Danny Boyle, que não sendo propriamente um musical tinha uma banda sonora genial e o filme era acompanhado pela mesma, do princípio ao fim. Hoje é um filme de culto e vai ter continuação já este ano. Nesse mesmo ano, Alan Parker volta aos musicais com a adaptação de Evita, original de Andrew Lloyd Webber e Tim Rice. Em 1998, Todd Haynes realizava Velvet Goldmine, um dos seus mais ambiciosos projectos, musical inspirado no glam rock. O filme acompanha a ascensão e queda de um músico (Jonathan Rhys Meyers), que por ser muito parecido com Ziggy Stardust levou David Bowie a não querer o seu nome ligado ao projecto. A personagem interpretada por Ewan McGregor também faz lembrar Iggy Pop. A banda sonora tem nomes como T.Rex, Placebo, Pulp e alguns originais interpretados pelo elenco. Na década 00, Martin Scorsese volta aos documentários musicais: No Direction Home (2005), que traça a vida de Bob Dylan e o seu impacto na música popular americana e na cultura do século XX, Shine a Light (2008), novamente os The Rolling Stones, desta vez durante um concerto da tournée A Bigger Bang Tour, além de apresentar imagens de arquivo

da carreira da banda e George Harrison: Living in the Material World. Dividido em duas partes, o documentário traça a vida do ex-Beatle George Harrison, desde a infância. Com imagens inéditas, conta com depoimentos de Paul McCartney, Ringo Starr, Olivia Harrison, Dhani Harrison, Ravi Shankar, Eric Clapton, Pattie Boyd, Klaus Voormann, Astrid Kirchherr, George Martin, Yoko Ono, Neil Aspinall, Jane Birkin, Phil Spector, Jim Keltner, Eric Idle, Terry Gilliam, Tom Petty, Jackie Stewart, entre outros. Em 2016 Scorsese produziu (e realizou o primeiro episódio) da série Vinyl, sobre um produtor discográfico, na New York dos anos 70. Infelizmente a HBO cancelou a série ao fim da primeira temporada.

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TOMMY

Título nacional: Tommy Realização: Ken Russel Elenco: Roger Daltrey, Ann-Margret, Oliver Reed Ano: 1975

JOÃO PAULO COSTA

Se há década conhecida acima de tudo pelos seus excessos, a de 1970 será essa certamente, e os mesmos deixaram uma marca indelével no cinema. Aquilo que na altura eram gestos políticos fortes, ou arrojados movimentos de contracultura, quando vistos com a devida distância temporal podem também, sem se querer retirar qualquer pingo da importância que estes mesmos movimentos tiveram na quebra de tabus de todos os géneros (sociais, sexuais...), ser vistos como evidentes provas de megalomania. E se a música foi uma das principais formas de libertação cultural, os musicais criados na altura foram na sua maioria uma consequência lógica do aproveitamento capitalista desses mesmos ícones. Uma das grandes bandas da cena britânica da época foram os The Who, que com a sua energia anárquica e animalesca, agitavam os palcos musicais numa orgia de grandes sons, muito barulho e destruição de equipamento em palco. Tommy foi o álbum que, em 1969, os catapultou para o sucesso comercial e em 1975, quando Ken Russell o adaptou ao cinema, eram já um fenómeno.

tenta ilustrar as letras, a quantidade de informação que passa diante dos nossos olhos não contribui em nada para tornar as coisas mais claras - muito pelo contrário. Há toda uma mistura de imaginários que se sobrepõe em catadupa, do religioso à mais pura ficção científica. Como se isso não fosse suficiente, o elenco é todo ele uma parada de estrelas, com Roger Daltrey, o vocalista dos The Who a assumir o papel de Tommy, e os restantes elementos da banda (Townshend, Keith Moon e John Entwistle) em pequenos papéis, aos quais ainda se juntam AnnMargret como a mãe de Tommy, Oliver Reed como o seu seboso padrasto, ou mesmo Jack Nicholson como um médico sensual. Depois, gente como Eric Clapton, Elton John ou Tina Turner aparece para pequenos números, sendo que estes dois últimos são responsáveis por dois dos melhores momentos musicais da empreitada (os famosos Pinball Wizard e Acid Queen, respectivamente). Quando esta mistura explosiva acerta em cheio nas doses, Tommy torna-se num muito curioso exercício cinematográfico e musical, mas quando se erra nas proporções, o filme rapidamente descarrila sobre todos os excessos possíveis e imaginários. Infelizmente, este é o caso que mais prevalece e o filme, nas suas quase duas horas de duração, é profundamente desequilibrado. Ou se calhar perfeitamente equilibrado em todos os seus desequilíbrios? E a verdade é que os arranjos musicais feitos pela própria banda para esta versão cinematográfica são também algo infelizes, com o recurso excessivo aos sintetizadores (que curiosamente haviam aperfeiçoado nos seus álbuns de estúdio, nomeadamente em Who’s Next, de 1971) a tornar-se simplesmente… demasiado. De certa forma, Tommy é o exemplo perfeito de um certo cinema e de uma época específica, mas que infelizmente é mais valioso enquanto curiosidade histórica do que enquanto objecto cinematográfico. O álbum, esse sim, vale bem a pena.

Tommy segue de forma geral o alinhamento do álbum, uma mini-ópera rock escrita na sua maioria por Pete Townshend (guitarrista e o elemento mais famoso da banda), com umas pequenas adições. De forma breve, diremos que se trata da história de um rapaz que cresce cego, surdo e mudo mas que, de forma mágica e inesperada, se torna numa estrela do pinball e, mais tarde, numa figura de culto religioso. Sejamos claros, estes são só os traços gerais, porque esta tradução cinematográfica do álbum musical não prima propriamente pela coerência ou simplicidade. Antes de mais, o estilo de Russell espelha na perfeição todos os excessos visuais que na época se poderiam cometer com uma câmara e, provavelmente, acesso a drogas de todos os feitios. Tommy é um filme alucinado e alucinante, que salta de música em música sem grande espaço para os diálogos ditos normais em cinema, e mesmo quando o realizador

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THE COMMITMENTS

Título nacional: Os Commitments Realização: Alan Parker Elenco: Robert Arkins, Johnny Murphy, Angeline Ball, Andrew Strong Ano: 1991

JOSÉ CARLOS MALTEZ

Baseado no livro homónimo de Roddy Doyle, Alan Parker, um realizador que já antes nos dera Bugsy Malone (1976) e Fama (1980), realizava The Commitments, um musical urbano, no qual, depois do jazz clássico e da pop, prestava homenagem ao soul da Motown.

para o dia. Parker sabe quando mostrar os episódios pessoais, entrelaçandoos com o outro ponto forte do filme, a música. Esta surge, quer em ensaios, quer em pedaços de concertos, e aí brilha tanto a energia que transparece da banda, com a química explosiva dos seus elementos.

Num cenário que é a Dublin operária, dos trabalhadores precários de fábricas pouco dignificantes, e dos subsídios de desemprego, a música surge como escape para um conjunto de jovens que segue o sonho do melómano tornado empresário, Jimmy Rabbitte (Robert Arkins), de criar uma banda de soul. Para ele, esta é a melhor forma de expressão dos instintos terra a terra e desejos físicos da sua cidade. Com um humor fino, um olhar que capta o ambiente da cidade (fria, cinzenta, suja, húmida), numa descrição da vida dura e sem sabor do working-class irlandês dos bairros operários de Dublin, o sonho de Jimmy vai ganhando forma. O filme mostra o que de melhor e pior nasce das complexas relações entre um bando de jovens tornados músicos da noite

Alicerçado na excelente voz de Andrew Strong, The Commitments é um tributo ao som de Aretha Franklin, Otis Redding, Wilson Picket, Al Green entre outros, e o seu impacto foi tal, que se criou uma verdadeira banda «The Commitments», que fez digressões e gravou CDs. Vários dos actores prosseguiram carreiras musicais, e mais tarde foi criado um musical com o mesmo nome, em cena no West End de 2013 a 2015.

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SGT. PEPPER’S LONELY HEART CLUB BAND

Título nacional: Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band Realização: Michael Schultz Elenco: Peter Frampton, Barry Gibb, Robin Gibb Ano: 1978

PEDRO SOARES

Os anos 70 foram uma década fundamental na história do cinema - enterrou-se o cinema clássico de Hollywood, passou-se a dar mais atenção ao cinema europeu e os filmes ganharam liberdade para quebrarem tabus e preconceitos. Contudo, esta foi também a época de todos os excessos, dos exploitation movies, do porno chic e de bizarrarias indescritíveis.

tentar destruir Heartland e apoderar-se dos instrumentos mágicos para patrocinar a Future Villain Band (os grandes Aerosmith). Sem diálogos, o filme sobrevive de um narrador, alguns títulos e, sobretudo, das músicas dos Beatles, e reflecte na perfeição o espírito da época, com um caleidoscópio de bizarrias, que inclui Alice Cooper ou Steve Martin, a debutar no cinema com uma interpretação de Maxwell's Silver Hammer. O filme parece querer atingir um público alvo abaixo dos 15 anos, tornando-se demasiado cheesy e por vezes assustadoramente camp, mas como alguém escreveu algures, é como um acidente de viação: nós não queremos vê-lo, mas é impossível resistir. Como é que podemos resistir a Billy Preston vestido de Sgt. Pepper e a cantar o Get Back?

Um desses objectos surreais foi Sgt. Pepper's Lonely Heart Club Band, um musical de Michael Schultz baseado na música dos Beatles, exageradamente considerado um dos piores filmes de sempre. Peter Frampton e os Bee Gees reunem-se para perpetuarem o espírito da Sgt. Pepper's Lonely Heat Club Band, a banda mágica e mítica de Heartland. Verdadeiros reis da pop, a banda vai assinar contrato por uma grande editora e partir em digressão mundial, perecendo aos encantos do sexo, drogas e rock'n'roll. Entretanto, um malvado agente imobiliário vai

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ACROSS THE UNIVERSE

PHANTOM OF THE PARADISE

PEDRO SOARES

ANTÓNIO ARAÚJO

Eis um musical tipo Moulin Rouge, mas com as músicas dos Beatles, o que torna Across the Universe obrigatório. Ttudo se passa ao sabor das músicas e o argumento voa à velocidade da luz até se deter em algum momentos em que haja uma letra de uma canção adequada. O que é estranho é que este filme já foi feito nos anos 70, só que em mais pateta e com menos músicas - Sgt. Pepper's Lonely Heart Club Band. Este é um filme sobre as músicas dos Beatles e não sobre a banda. Tudo começa com a fase pop solarenga dos fab four, em que o rock tinha tudo a ver com rebeldia; depois há um pulo para o psicadelismo filtrado por um caleidoscópio de LSD; e aterra na contra-cultura, no Vietname e na fase da depressão pós-paz e amor. Mas o que vale mesmo é a banda-sonora, com os melhores arranjos dos temas dos Beatles desde o Love.

O Fantasma do Paraíso é uma inesperada ópera rock escrita e realizada por Brian De Palma que se alia aqui ao ator, compositor e cantor Paul Williams, para uma reinterpretação de “O Fantasma da Ópera”, um romance do princípio do século XX do escritor francês Gaston Leroux. Winslow (William Finley), depois de ver as suas composições roubadas por Swan (Paul Williams), um megalómano produtor musical que o atraiçoa, tem um acidente que o desfigura. Escondendo-se atrás de uma estranha máscara refugia-se n’O Paraíso, a sala de espetáculos de Swan, planeando vingança e compondo canções para a voz de Phoenix (Jessica Harper), jovem cantora aspirante a estrela, por quem se apaixonou. Com uma estética algo datada é, no entanto, uma sátira de tom absurdo à indústria musical, traçando o paralelo entre os contratos deste meio e o vender a alma ao Diabo, referenciando também obras como “Fausto”, de Goethe, “Frankenstein”, de Mary Shelly, “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde ou “O Barril de Amontillado” de Edgar Allan Poe.

Título nacional: Across the Universe

Título nacional: O Fantasma do Paraíso

Realização: Julie Taymor

Realização: Brian De Palma

Elenco: Evan Rachel Wood, Jim Sturgess, Joe Anderson

Elenco: Paul Williams, William Finley, Jessica Harper, Gerrit Graham

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ROCK N’ ROLL HIGH SCHOOL

SING STREET

ANTÓNIO ARAÚJO

ANTÓNIO ARAÚJO

Rock n’ Roll High School é uma produção de 1979 de Roger Corman que mistura a comédia anárquica de A República dos Cucos com a vertente musical de Brilhantina. Mas em vez de olhar para o passado consegue a proeza de contar com os Ramones, nome pioneiro do punk norte-americano. Despretensioso e de narrativa minimalista coloca a autoritária diretora da escola, Ms. Togar, em conflito com duas amigas, Riff, que sonha em compor músicas para os Ramones, e Kate. No processo incitam os estudantes num ato de rebelião, com o apoio da própria banda, culminando com a destruição da escola. Recheado de músicas da sua excecional discografia inicial, conta com a banda em números musicais, um medley de um concerto gravado ao vivo com fãs reais na assistência, e com duas novas músicas compostas especialmente para o filme. Corman pode ter fama de ser forreta mas ver os Ramones imortalizados em Rock n' Roll High School não tem preço!

Sing Street conta a história de Conor, um adolescente em Dublin nos anos oitenta que decide juntar uma banda musical com o objectivo de impressionar Raphina, uma rapariga mais velha por quem se apaixona. John Carney capta na perfeição o poder da paixão pela música e cada nova criação dos Sing Street, nome da banda que Conor reune e que dá título ao filme, reflete uma nova influência musical com os diferentes elementos do grupo a adoptarem o respectivo estilo visual: desde Duran, Duran, passando por The Cure ou Spandau Ballet. Um dos trunfos de Sing Street é a consistência do seu tom, apesar do aprofundar de algumas cicatrizes e frustrações, não só de Conor, como também de Raphina e, especialmente, do seu irmão Brendan, inspiração para Conor seguir os seus sonhos, e que vê neste uma oportunidade para concretizar aquilo que o próprio não conseguiu. Este é um filme recomendado não só a quem tenha paixão pela música ou pelos anos oitenta, mas também a toda a gente a quem corra sangue quente pelas veias.

Título nacional: Rock n’ Roll High School

Título nacional: Sing Street

Realização: Allan Arkush

Realização: John Carney

Elenco: P.J, Soles, Vincent Van Patten, Clint Howard, Dey Young, Ramones

Elenco: Ferdia Walsh-Peelo, Lucy Boynton, Jack Reynor, Aidan Gillen, Maria Doyle Kennedy

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GRANDES MOMENTOS MUSICAIS EM FILMES NÃO MUSICAIS

O que é, na realidade, um filme musical? Será um filme em que as personagens cantam canções de forma integrada com a narrativa, muitas vezes acompanhando-as com dança, desenvolvendo as personagens e fazendo a história progredir no processo? A verdade é que a música sempre foi um elemento essencial da história do cinema. Mesmo na sua infância, quando ainda era mudo, o cinema apresentava-se acompanhado por música ao vivo, normalmente por via de um piano. Quando em 1927 a Warner Bros. produz o primeiro filme sonoro em Hollywood tira o máximo proveito da novíssima tecnologia para contar a história sobre O Cantor de Jazz. Quando Al Jolson canta “Toot, Toot, Tootsie (Goo' Bye!)” o conceito de cinema musical ainda não existia e confundia-se com o próprio conceito de fazer acompanhar as imagens com som, música e diálogos. Com esta inovação o cinema passou a ser também som, canções e música! Arrisco-me a dizer que, com algumas exceções, que com certeza haverá, todo o cinema é musical, mesmo sem elaborados números de dança e mesmo sem as personagens saírem em cantorias. A música faz parte do próprio DNA que constitui a experiência cinematográfica e, desta forma, falar de momentos musicais em filmes que não são musicais é falacioso, mas a distinção é somente de género, que tanto gostamos de usar para catalogar e dar sentido à vida, filmes incluindo. Quando Marty McFly pega na guitarra em Regresso ao Futuro é a sua

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própria existência que está em jogo. Este é o empurrão definitivo que os seus futuros pais precisam para que o destino siga o rumo pré-definido, evitando uma disrupção no próprio tecido temporal. Quando o nosso herói consegue atingir o objectivo e se demora em palco para sonegar ao Chuck Berry o seu papel na criação do Rock n’ Roll ao tocar “Johnny B. Goode” perdoamos a impertinência pelo puro sentido de diversão do momento, com Marty a dar largas à sua queda para a improvisação perante uma plateia que ainda não está preparada para tal descarga elétrica. Este é um exemplo perfeito de um argumento que utiliza a performance musical como um dispositivo narrativo orgânico e como uma indulgência ao mesmo tempo e é melhor por isso. Há mil e uma maneiras de incorporar música de forma a elevar uma obra fílmica. As seguintes referências são apenas um charco num oceano de bons exemplos. Desde cedo que o cinema americano incorporou canções nos seus filmes. Independentemente do género era tradicional acompanhar as imagens com uma música facilmente reconhecível para que ficasse irremediavelmente associada ao filme. Veja-se o caso de Casablanca, imortalizado com a muitas vezes (mal) referenciada frase “Play it Sam”, que provoca a famosa interpretação de “As Time Goes By”, música no centro do romance impossível entre Rick e Ilsa. Já Howard Hawks, tendo os cantores Dean Martin e Ricky Nelson no elenco de Rio Bravo, não

gorou a oportunidade de aproveitar os seus talentos na interpretação de “My Riffle, My Pony and Me”, célebre momento de bonança antes do violento confronto que se avizinha. Com o perder da inocência a música tomou também a forma de ironia. Quem viu A Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, nunca mais encarou “Singin’ in the Rain” da mesma forma depois da apropriação deste clássico para a banda sonora dos atos de violência de Alex e os seus droogies. David Lynch em Veludo Azul também se apropriou de temas clássicos como “Blue Velvet”, de Bobby Vitton ou “In Dreams”, de Roy Orbison para ilustrar cenas perturbantes que se insinuaram indelevelmente na memória das mesmas. E que melhor forma de terminar a sátira A Vida de Brian, da trupe cómica Monty Python, do que cantar, enquanto se está pregado na cruz, sobre as coisas boas da vida com “Bright Side Of Life”? Existem cineastas que, mesmo sem filmes musicais no currículo, mostram queda para o género. O one-hit-wonder Richard Kelly não só salpicou a sua obra-prima prematura Donnie Darko com uma nostálgica e certeira banda sonora como culminou o filme numa montagem assombrosa ao som da versão de Gary Jules para “Mad World”. Chegado a Southland Tales, o ambicioso e confuso filme seguinte, coloca Justin Timberlake num número musical alucinatório ao som de “All The Things That I’ve Done”, dos The Killers. Paul Thomas Anderson não só se inspirou na música de Aimee Mann para escrever Magnólia, como 115


oferece ao elenco em turbilhão emocional uma comunhão apaziguadora na arrepiante interpretação de “Wise Up” daquela cantora. O seu filme seguinte, Embriagado de Amor, é, segundo o próprio, o seu filme musical sem canções. São momentos mágicos aqueles que colocam com sucesso um elenco a encontrar ligações emocionais através do poder da partilha de uma canção. Outra prova disto é o momento em Quase Famosos, de Cameron Crowe, onde as tensões a bordo do autocarro da digressão dos Stillwater, banda fictícia do filme, são sanadas com uma interpretação em uníssono de “Tiny Dancer”, de Elton John. Já em (500) Dias Com Summer a magia acontece na tradução da euforia de Joseph Gordon-Levitt num número musical do mais puro sonho acordado ao som de “You Make My Dreams”, de Hall & Oates. Nem só de canções se fazem as bandas sonoras e as notas musicais com que John Williams nos colocou em contacto com os extraterrestres de Encontros Imediatos de 3º Grau são imediatamente reconhecíveis como um hino de comunicação e entendimento. O mesmo Williams aterrorizou uma geração noutro filme de Steven Spielberg com as suas singelas notas para O Tubarão, tal como Bernard Herrmann havia feito com as cordas estridentes da cena do chuveiro em Psico de Alfred Hitchcock. Em meados dos anos noventa Quentin Tarantino redefiniu o conceito

de banda sonora e de utilização de música em cinema, direta e indiretamente. Em Assassinos Natos, realizado por Oliver Stone mas escrito por Tarantino, vimos Trent Reznor, mentor dos Nine Inch Nails, construir uma banda sonora de meticulosas escolhas musicais que se fundiram de tal forma com as cenas que ilustravam que estas vieram parar à edição em CD da mesma. Nesse mesmo ano de 1994 Pulp Fiction dá a conhecer ao mundo o autor para quem a música é uma componente fundamental dos seus filmes e que recuperou John Travolta para, a par da sua musa Uma Thurman, criar um momento de antologia dançando ao som de “You Never Can Tell” fazendo as pazes com Chuck Berry, repondo a verdade histórica dos factos e evitando um paradoxo espácio-temporal na nossa humilde existência.

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MÚSICA NO CINEMA ENTREVISTA A JORGE MONIZ MARCO LAUREANO

Jorge Moniz está a terminar o doutoramento em artes na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa desenvolvendo o tema da significação musical no cinema. Músico ligado a várias áreas com incidência no Jazz, tem na sua discografia obras como “Inquietações” ou “Deambulações” e responsável pela criação da música de alguns filmes, falou com a Take Cinema Magazine sobre a sua percepção do cinema e a forma como aborda a música nos filmes.

É melhor criar a banda sonora de um filme baseando-se numa ideia ou em imagens do mesmo? É uma conjugação de factores: regra geral devemos basear-nos no que vemos e depois, a partir daí vem-nos à ideia coisas que se calhar já passaram antes pela nossa cabeça. Esta é uma hipótese, mas a criação é sempre um processo aberto. Pode haver referências e muitas variantes, nomeadamente as ideias ou sugestões do realizador. O ponto de partida é assim sempre um pouco vago. No meu caso quando começo a trabalhar num filme o primeiro visionamento é sempre sem som, só mesmo a imagem dado a música poder ter um papel narrativo, Vê-lo desta forma pode vir a dar ideias posteriormente. Os visionamentos seguintes já são com som.


O contraponto musical em relação às imagens é mais ou menos interessante que o complemento? Depende do objectivo do filme. Penso que deve haver um compromisso: nem a música deve estar sempre ao serviço ou em contraponto. Depende. A música pode ser só um elemento sem significação, apenas para criar um determinado ambiente. Nos filmes de Jacques Tati isso pode ser percebido de uma maneira mais clara: a música está lá. De um modo geral não cria tensão, não tem pontos de sincronismo,... Cria ao espectador uma disponibilidade para receber o que se passa no filme que com silêncio ou ruído ambiente não seria possível. Quase que tem um efeito apenas decorativo. Isto também pode suceder com a utilização de música minimal. Em “La Femme Infidéle”, de Claude Chabrol, a música está sempre em contraponto. Já, por exemplo, no filme “The Shining” a música muitas vezes conduz o espectador no sentido pretendido por Stanley Kubrick. Em outras cenas do filme, as composições de Penderecki ou Ligetti são atonais. Também conduzem o espectador mas criam-lhe ao mesmo tempo desconforto ao eliminar referências melódicas.

criar situações de indiferença em relação à imagem ao manter uma certa distância relativamente à acção. Ou até a utilização do silêncio, que é primordialmente algo assustador para o ser humano. Voltando a Kubrick, em “2001” ele usa o silêncio absoluto (ausência de silêncio cinematográfico) para fazer passar algo real (ausência de som no espaço) mas também como forma de criar uma interiorização das situações por parte do público. No filme “Pesadelo”, na sequência dos quartos brancos, utilizei o silêncio na terceira cena de modo a criar um contraste absoluto com a música das duas primeiras. Aí esse silêncio serviu para intensificar a inquietação do Pedro. Muito disto acontece porque a música até muito tarde salvo raras excepções foi utilizada como estando ao serviço da imagem e dos diálogos. Podemos afirmar que foi com Jean-Luc Godard que se começou a prestar mais atenção às formas de expressão sonora. Existem como já disse anteriormente infinitas possibilidades de abordagem a uma cena de um filme sob o ponto da imagem ou da montagem relativamente à música, mas também existem poucas ‘escolas’ relativas ao papel da música no cinema em termos de significação. Há um conjunto de normas que funciona de forma global.

A atonalidade pode então ser uma forma de criar tensão... Mas não só. A música minimal que tem variações pouco evidentes pode 120


Que tipo de interacção consideras ser mais interessante entre ti como músico e o realizador? Para mim normalmente há um primeiro encontro de ideias e de seguida um período de plena acção só da minha parte. Há uma proposta e a partir daí é um processo que deve ser acompanhado por ambos até à conclusão do filme. Essa proposta tanto pode ser para uma cena específica do filme ou mesmo para o filme inteiro.

Ele é o único responsável pela escolha das músicas. Há várias intenções: há situações em que se pretende entrar em contraponto com o que se está a passar, criação de atmosferas, ... São músicas que lhe dizem muito e que ele usa para comunicar com o espectador e claro, há um aproveitamento do estilo. Uma música e um filme em conjunto são uma obra única. Separados são produtos diferentes. Mas quando se fala em Tarantino há uma imagem criada também através da música mas em favor de um estilo.

Como pode a música integrar-se com o ambiente sonoro do filme? Deve ser ‘invisível’? Há sempre um grau de inconsciência em quem está a ver um filme relativamente à música mas essa inconsciência reflecte-se na compreensão desse mesmo filme. No espaço ‘dado pela imagem’ pode haver a integração de diferentes elementos fílmicos e aí pode ser a música a ‘preencher‘ o espaço das imagens, diálogos, montagem... e pode haver tudo em simultâneo e os elementos estarem em redundância ou em contraponto. É uma espécie de jogo e análise caso a caso, que deve existir sempre. Depende tudo do objectivo para a cena, plano e filme.

Saiba mais sobre Jorge Moniz em: http://www.jorgemoniz.com

As músicas dos filmes de Quentin Tarantino são importantes para a estrutura do filme ou são meros ‘exploitation’, apenas um aproveitamento do estilo? 121



OS MÚSICOS NO CINEMA PEDRO SOARES

Apesar do Cinema se alimentar da Música, o certo é que sempre exerceu um fascínio especial sobre os intervenientes desta última. É certo que também existem casos de actores e realizadores que tentaram o mundo da Música (de Scarlett Johansson a Steven Seagal vai um longo caminho), mas são muito mais comuns os exemplos inversos. Mesmo músicos com estatutos e carreiras consolidados acabaram atraídos pelo glamour do star system cinematográfico, almejando igualmente um lugar ao sol no Olimpo da Sétima Arte. E, apesar de alguns exemplos bem sucedidos em ambas as áreas (de Barbra Streisand a Frank Sinatra), o mais comum é vermos os músicos a espalharem-se quando chegam ao Cinema.


As razões que os levam a experimentar a representação são as mais variadas. A mais comum é, claro, a monetária. Afinal de contas, é o dinheiro que faz girar o mundo, não é? O caso mais flagrante foi o de Elvis Presley. O seu representante, o infame Coronel Tom Parker, ao perceber que fazia muito mais dinheiro com um filme do que com um disco, optou por centrar a carreira do Rei do Rock em Hollywood em detrimento da Música, tendo feito mais de 30 filmes em década e meia. Foram todos, uns mais que outros, sucessos de bilheteira, mas são todos títulos bastante esquecíveis, que normalmente são lembrados pelas músicas que Elvis canta e pelo papel que faz do que pelo seu argumento - é aquele em que faz de prisioneiro, o outro que faz de piloto ou aqueloutro que faz de cáuboi. Afinal de contas, qualquer coisa que tivesse o Elvis seria sempre um sucesso, independentemente da qualidade.

Foi sobretudo a partir dos anos 60 que os músicos começaram a dar o salto para a Sétima Arte. Com a explosão do rock'n'roll e a juventude a ganhar uma face e a tornar-se num mercado-alvo apetecível, juntou-se a fome à vontade de comer. De um lado, o Cinema via na celebridade nos músicos mais uma forma de rentabilizar os seus filmes; e do outro lado, os músicos viam no Cinema mais uma maneira de consolidar o seu estatuto e reconhecimento público. Os Beatles, depois das experiências com A Hard's Day Night ou Help, viram John Lennon tentar, sem grande sucesso, as lides de actor, em How I Won the War, num war movie filmado maioritariamente em Espanha. George Harrison havia de deixar a sua marca no Cinema, mas apenas como produtor, ao financiar The Life of Brian, dos Monty Python, num processo que o levou inclusive a penhorar a sua casa.

Gente como Frank Sinatra, Dean Martin ou Bing Crosby já haviam experimentado a mesma fórmula alguns anos antes e com igual sucesso. Apesar de algumas excepções (e aqui, Sinatra foi quem conseguiu ter algo parecido a uma verdadeira carreira cinematográfica, com títulos como From Here to Eternity ou Ocean's 11), estes ou eram musicais ou eram filmes em que os produtores aproveitavam sempre para colocar um momento de cantoria, atraindo assim os fãs às salas de cinema.

Mick Jagger, dos Rolling Stones, nunca escondeu o seu objectivo de ter uma carreira cinematográfica. Ser o frontman da maior banda do Mundo não lhe chegava. Com o raiar da contra-cultura, Jagger estreou-se com o western Ned Kelly e, logo de seguida, fez aquele que continua a ser o seu melhor filme - Performance é uma experiência alucinada e à frente do seu tempo, que hoje em dia é visto como um filme de culto. O pouco 124


entusiasmo com que foram recebidos fez com que Mick Jagger só voltasse a tentar o Cinema nos anos 90, primeiro como vilão no action movie futurista Freejack e, depois, no papel da transexual Greta, no drama sobre o Holocausto, Bent. Novamente o pouco sucesso de ambos os filmes fizeram Jagger afastar-se definitivamente e abrir a sua própria produtora.

Em 1986, David Bowie daria ainda o seu contributo para o cinema juvenil, ao interpretar o rei dos goblins, Jareth, no musical de sword and sorcery de Jim Henson, o criador dos Marretas, Labyrinth. No entanto, o inglês não fora a primeira escolha. À sua frente esteve Sting (que faria a adaptação de David Lynch para Dune e que toda a gente quer esquecer que existe) e Michael Jackson.

Quem teve mais sorte foi o seu amigo e, alegadamente, amante por um breve período, David Bowie. O músico inglês que faleceu no início de 2016 sempre se destacou pela forma como assumia diferentes personalidades à medida que lançava discos, o que lhe valeu a alcunha de Camaleão. Esta queda para a representação fizeram com que tivesse uma carreira relativamente bem sucedida no Cinema. Tal como Jagger, Bowie estreouse também com um filme de Nicolas Roeg, The Man Who Fell to Earth, um esquisito filme de ficção-científica com tanto de arthouse quanto de pop, em que o músico inglês dava azo à androgenia do seu White Thin Duke. Depois, teria papéis interessantes como Pôncio Pilatos, no The Last Temptation of Christ de Martin Scorsese, ou como Andy Warhol no biopic Basquiat, mas será quiçá The Hunger o seu melhor filme: um muito estilizado vampire movie, assinado por um jovem Tony Scott, que viria a inspirar os vampiros gótico-urbanos de Jim Jarmusch, em Only Lovers Left Alive.

Michael Jackson, salvo a sequela para The Wizard of Oz, The Wiz, nunca experimentou uma carreira na sétima arte, ao contrário do seu grande rival pelo epíteto de Rei da Pop, Prince. O músico, que também faleceu no fulminante ano de 2016, revolucionou a indústria quando, em 1984, lançou Purple Rain, um filme que era um disco. Ou seria um disco que era um filme? A banda-sonora sacou um Oscar e continua a rodar incessantemente nas rádios de todo o mundo, enquanto que o filme se mantém mais como um postal ilustrado do seu tempo, uma prova de como a noção de ridículo e de bom gosto parece ter estado dormente durante todos os anos 80. Prince Rogers Nelson tentaria repetir a gracinha mais duas vezes, ocupando inclusive a cadeira de realizador, mas tanto Under the Cherry Moon quanto Graffiti Bridge apenas se destacam pelo quão maus são. Os Razzies que venceram falam por si.

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E já que estamos a falar de prémios, saltemos para o Prémio Nobel da Literatura, também de 2016. Bob Dylan experimentou também o Cinema, numa curta filmografia onde se destaca o western de Sam Peckinpah, Pat Garrett & Billy the Kid. Ao lado de outros cantores country, Dylan compôs ainda a banda-sonora para este filme, onde se inclui o seu clássico Knocking on Heavens Door, numa das cenas mais belas que Peckinpah filmou.

uma buzina. Mas é no seu papel de oráculo divino, na pipocada de Tony Scott, Domino, e no filme de culto Wristcutters que Waits tem os seus melhores momentos. Jennifer Lopez, que até começou por se destacar no Cinema do que na Música, tem uma filmografia respeitável, mas nem por isso memorável, de onde se destaca o visualmente interessante The Cell e aquele cancro cinematográfico que é Gigli, considerado normalmente como um dos piores filmes de sempre. Beyoncé, uma das mais populares estrelas da pop actual, também já passou pelo grande ecrã, em ambos os casos para emprestar também a sua voz: no biopic livremente inspirado nas Temptations, Dreamgirls, e no também biopic livremente inspirado na Chess Records, Cadillac Records. Mas das divas da pop, foi Madonna quem mais tem brilhado no Cinema. No musical Evita, ao lado de Antonio Banderas, deu que falar; em Dick Tracy foi femme fatale provocante e inesquecível; em Desperately Seeking Susan provou que podia representar; e em Four Rooms foi uma bruxa a azucrinar Tim Roth.

As fronteiras entre o Cinema e a Música têm vindo a desvanecer-se ao longo dos anos, especialmente tendo em conta que os músicos são cada vez mais artistas completos, que não se limitam a lançar discos. Os vídeos passaram a ser parte fundamental na estratégia promocional da música, especialmente desde que Michael Jackson foi buscar John Landis para revolucionar o mundo do vídeo musical, com o seu Thriller. No entanto, actualmente existem alguns nomes da Música que vão teimando em ter uma filmografia regular, paralela à sua carreira musical. Tom Waits tem sido aquele que, possivelmente, tem tido a filmografia mais característica. Além dos filmes do amigo Jarmusch, Waits começou por dar nas vistas no Rumble Fish, de Francis Ford Coppola. Os dois voltariam a cruzar-se na adaptação do Drácula e em Twixt, onde é o narrador da história, tirando partido daquela sua voz de quem engoliu

Desde o primeiro momento que o Cinema não vive sem Música. É certo que Michael Haneke discorda, mas ele é a rara excepção de um realizador que filma sem qualquer banda-sonora. Talvez por essa relação próxima os músicos não têm conseguido resistir à atracção do grande ecrã. E o 126


Cinema adora recebê-los de braços abertos, rentabilizando assim o seu investimento e o factor uau. Por isso, enquanto houver entretenimento, indústria e mercado, haverá sempre músicos que tentarão a sua sorte na representação. Mesmo que não tenham nascido para isso.

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