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Wall-E

JB MARTINS

Não é preciso avançar mais do que uma cena para se perceber que Wall-E é algo especial. O filme começa com uma panorâmica sobre uma Terra abandonada e poeirenta. Uma representação crua acompanhada por uma banda sonora intensa e inquietante. A Pixar (aqui representada pelo realizador Andrew Stanton e o director de fotografia dos Coen Roger Deakins) optou por começar de uma forma seca e reflexiva, e não o fez por acaso (raramente alguma coisa é por acaso na casa do Toy Story). Somos imediatamente transportados para uma realidade pósapocalíptica, que é provavelmente o cenário mais improvável para um filme animado que se acredita vir a ter grandes momentos de comédia. Inesperado? No mínimo. Mas isto só vem mostrar que a Pixar não está para brincadeiras. O consagrado estúdio que em 2008, ano em que Wall-E chegou às salas, estava no auge das graças do público e da crítica, e já tinha conquistado praticamente tudo o que havia para conquistar nos domínios da animação, continuou a arriscar através de novas e irreverentes fórmulas. Como objecto fílmico, Wall-E é das experiências mais completas (e complexas) que alguma vez foram tentadas no cinema de animação, com referências que vão desde o reinado de Charles Chaplin no cinema mudo a filmes como E.T. - O Extra-Terrestre (Steven Spielberg, 1981) ou 2001: Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick, 1968). A comédia romântica cruza-se com a ficção científica existencialista e tudo encaixa na perfeição.

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O filme está dividido em dois grandes momentos. Durante a primeira parte, podíamos perfeitamente estar a assistir a uma bobina perdida do início do século XX. Isto, claro, não fosse o facto de se passar 700 anos no futuro e ter um autómato como personagem principal. Nesse primeiro momento, a expressividade dos píxeis de Wall-E (qual Charlot reencarnado) assume todo o protagonismo, quer seja através da representação de uma paixão aparentemente proibida quer seja pelos singelos momentos onde Wall-E está simplesmente a existir e a apreciar os pequenos momentos da sua vida solitária. Não são precisos diálogos para se sentir. Uma emoção vale mais do que mil palavras, e tanto Wall-E como EVE (o robô feminino pelo qual o nosso amigo desenvolve uma paixão mais ou menos platónica) sentem mais do que muitas personagens de carne e osso. A relação entre os dois desenvolve-se mesmo à frente dos nossos olhos e química é palpável.

Depois disto, e após a mudança de cenário (da Terra passamos para um lugar distante algures no espaço exterior), o filme assume por inteiro o papel de objecto de reflexão social e ecológica. A humanidade está reduzida a uns seres amorfos e conformados, incapazes de apreciar a vida por culpa da dependência pelas tecnologias. Uma visão particularmente profética, sobretudo se tivermos em conta que estávamos em 2008, numa altura em que as redes sociais e os smartphones ainda não tinham tomado conta da sociedade. A crítica social surge de forma intensa e credível, complementando assim ainda mais uma obra que até então já era rica em subtexto e, curiosamente, mesmo com humanos no grande ecrã, a verdadeira humanidade continua a cargo das máquinas de serviço.

O desenvolvimento e desenlace da narrativa é o esperado da Pixar, ou seja, emocionalmente muito rica e pautada por alguns momentos surpreendentes.

Nos anos seguintes, a Pixar continuou a esticar os limites da animação para tentar compreender aquilo que nos torna humanos. Mas revisitar Wall-E passados todos estes anos e constatar que, apesar das grandes mudanças que aconteceram na sociedade nos últimos tempos, tudo continua assustadoramente actual, serve para nos lembrar que foi aqui a primeira vez que acertou em cheio.

Título nacional: Wall-E Realização: Andrew Stanton Elenco: Ben Burtt, Elissa Knight, Jeff Garlin Ano: 2008

UP

RUI SALVES DE SOUSA

Só a sequência inicial bastava para inscrever este filme na História do cinema de animação e, assumimos, de todo o cinema. Exemplo perfeito da narrativa cinematográfica no seu esplendor, a abertura de Up – Altamente! comoveu espectadores de todo o mundo, e, dez anos depois, continua a ser exaustivamente partilhado pelas redes sociais fora. Em poucos minutos, Pete Docter concebeu uma súmula da experiência humana que conta a história de amor entre Carl e a sua mulher, que se conhecem na meninice. Ambos são apaixonados pelos altos voos e aventuras do explorador Charles Muntz, deixando as suas imaginações infantis arquitetar um futuro tão emocionante como o desse herói nacional. Vemos as várias fases do percurso do casal, os avanços e recuos, as alegrias e tristezas, e os sonhos que, por todas as voltas que a vida dá, não se puderam concretizar. Só quem tem um coração feito de mármore é que não sente nada com este momento, que está com certeza no panteão dos grandes feitos da Pixar enquanto estúdio de animação conceituado, tanto pela estética como pelo conteúdo filosófico tão forte que é inserido numa porção tão curta, mas impactante, do filme.

Elogios feitos a quem de direito, vale a pena afirmar que tudo o que se segue no filme também merece ser analisado com minúcia – porque, dez anos depois da sua estreia, todas as atenções parecem ter ficado por esses minutos iniciais, ignorando o resto desta aventura porque não atinge os píncaros emocionais do que nos foi apresentado na dita sequência. Mas Up – Altamente! consegue mesmo ser uma das mais belas obras da Pixar, com uma das suas tramas mais equilibradas. Depois da morte da esposa, o protagonista fecha-se no seu mundo. Nada mais quer com o que o rodeia, já que tudo o que fez parte da sua vida está a desaparecer. A sua pequena e bonita vivenda é a única coisa que resta, agora que todo o resto são prédios gigantescos e um ruído ensurdecedor. E então aparece Russell, o escuteiro aparentemente imbecil que acompanhará acidentalmente Carl quando este decide “fugir” na sua própria casa, içando-a no ar com milhares dos seus balões. Começa assim uma aventura sem limites em busca do seu “Santo Graal”, honrando o seu sonho e o da sua mulher, e procurando as Cataratas do Paraíso. E se bem que o filme acabe mais por ser uma comédia a partir daqui, continuamos a encontrar outros pequenos apontamentos emocionais que tanto nos podem dizer também: o lado mais trágico de Russell, o confronto com o herói Muntz, e com a sua verdadeira personalidade, e o amor da esposa que se mostra sempre presente. E no meio disto, há espaço para a descoberta de uma ave rara, um cão que fala, e momentos ternurentos entre Carl e Russell, que se torna no filho que ele e a mulher não conseguiram ter. Pete Docter gosta de juntar risos e lágrimas sem olhar a quem. Com este filme voltou a surpreender pela densidade dramática, que, apesar das aparências, continuará presente ao longo de toda a narrativa, não se cingindo ao brilhante momento inicial. A grande aventura da descoberta do oásis perdido na América do Sul é, também, uma viagem de redenção para Carl. E é notável a discrição suave com que o realizador consegue caminhar entre géneros, sentimentos e intenções narrativas, misturando a filosofia já tão característica da Pixar com uma série de referências visuais e sensoriais que nos fornecem um cocktail de animação e imaginação que agrada a todas as idades – e, como já é apanágio do estúdio, melhora e ganha novas dimensões à medida que o revisitarmos em diferentes etapas da nossa vida.

Por isso, repetimos: Up – Altamente! não se resume a uma curtametragem. É uma longa repleta de grandes ideias, e um dos melhores exemplos da capacidade da Pixar em desconstruir ideias feitas nos espectadores e no cinema mainstream, através de uma aventura que, tal como a jornada de Carl, tem muito mais para descobrir do que parece à primeira vista.

Título nacional: Up – Altamente! Realização: Pete Docter, Bob Peterson Elenco: Edward Asner, Christopher Plummer, Jordan Nagai Ano: 2009

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