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Soul

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JOSÉ CARLOS MALTEZ

Estreado no Festival de Londres, em Outubro de 2020, Soul – a aposta da Pixar para a época festiva de final de ano – teve os planos malogrados pelo prolongar do estado de confinamento que foi regra durante quase todo o ano de 2020. Sem salas de cinema, o filme passou ao streaming na cada vez mais poderosa Disney+, estreando, simbolicamente, no dia de Natal. Depois de Monstros e Companhia (Monsters, Inc., 2001), Up – Altamente (Up, 2008) e Divertida-Mente (Inside Out, 2015), Soul, que em Portugal ganha o subtítulo Uma Aventura com Alma, é o regresso de Pete Docter ao leme de uma produção da Pixar, o que vem provar pelo menos duas coisas. Primeira: com Docter na condução, qualquer filme Pixar se torna um salto em frente de qualidade, emoção, e, usando o trocadilho fácil, alma. Segunda: Docter escreve para adultos, não para crianças. Não que Soul, tal como os filmes supracitados, não seja repleto de comédia, sequências loucas de velocidade vertiginosa e toda a lógica surreal dos desenhos animados infantis. Mas a nível narrativo, e de emoções exploradas, Soul dirige-se a um público adulto (não só na idade) que entende conceitos complexos, consigne abstracção suficiente para unir pontos da história e é tocado por sentimentos de quem já viveu, esperou, procurou, sofreu, desistiu e voltou a tentar.

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Passando à história, Soul acompanha a vida e morte de Joe Gardner (voz de Jamie Foxx), um músico de jazz que nunca pôde seguir os seus sonhos, resignando-se a ensinar música a miúdos de liceu que preferiam estar a fazer outras coisas. Quando, num acaso, Joe tem hipótese de tocar uma noite num clube com a estrela Dorothea Williams (Angela Bassett), sofre um acidente e morre. Mas, dada a sua incrível determinação em cumprir o seu sonho, Joe vai negar-se a seguir para o Grande Além, saltando para outro nível, o Grande Aquém ou Seminário Tu, onde as almas recém-criadas vão ser treinadas em qualidades humanas e descobrir a centelha que as fará querer viver. Tomado por engano por um mentor – papel atribuído às almas dos humanos mais célebres –, Joe vai ser emparelhado com uma alma rebelde, denominada 22 (Tina Fey), a qual se recusa a viver na Terra. Esse par paradoxal vai ser o centro do enredo, com Joe a fazer tudo para regressar à vida e 22 disposta a ajudá-lo, desde que isso lhe valha continuar por ali. Claro que os acidentes se vão suceder, o par cairá na Terra encarnando em quem menos espera e terá de lutar para conseguir os seus objectivos, mesmo que no final descubra que eles não são bem aquilo que cada um perseguia teimosamente.

Podendo considerar-se um herdeiro de Divertida-Mente, Soul é novamente uma comédia metafísica em que todos os incidentes são simbólicos e todos os conceitos metáforas. No final, por entre seminários de almas, discussões de centelhas, campos onde as almas encarnadas tocam o além quando fazem algo inspirado, fronteiras entre inspiração e obsessão, explicação do que são as almas perdidas, etc. (tudo isto com representação palpável no além metafísico de Soul), a lição que nos fica é bem tangível: o que é a centelha (de inspiração, de imaginação, de vocação, de resolução?) que nos faz querer viver, e o quanto lutamos por ela ou dela desistimos? Com uma animação inspiradíssima, que sabe ir do quase realismo nas sequências de Nova Iorque ao etéreo do Além, passando por diversos tipos de traço consoante os níveis e seres transcendentes apresentados, Soul agarra pelos colarinhos qualquer adulto que queira pensar um pouco e se deixe levar na torrente de ideias e conceitos que desembocam nessa verdade tão humana que é a alegria (ou falta dela) de viver e a constante busca de inspiração e objectivos. Fazer pensar, fazendo-nos olhar para nós próprios com um sorriso nos lábios e uma lágrima ao canto do olho, parece ser o dom constante de Pete Docter, feito no qual se junta a muito poucos na história do cinema, e com o qual volta a colocar a Pixar como rainha da animação moderna.

Título nacional: Soul - Uma Aventura com Alma Realização: Pete Docter, Kemp Powers (co-realizador) Elenco: Jamie Foxx, Tina Fey, Graham Norton Ano: 2020

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