4 minute read
Um novo tipo de histórias
from Take 52
SARA GALVÃO
Quando Toy Story: Os Rivais estreou em 1995, ninguém esperava que se tornasse o sucesso que se tornou. A Pixar, uma nova produtora nascida da divisão informática da Lucasfilm, e maioritariamente financiada pelo então em desgraça ex-Apple Steve Jobs, tinha acabado de lançar o primeiro filme de animação totalmente feito em computador; e, cereja no topo do bolo, conseguiu uma nomeação para Melhor Argumento nos Óscares desse ano. 6 anos mais tarde, a Academia seria obrigada a criar a categoria de Melhor Filme de Animação.
Advertisement
A Disney, incapaz de competir com estes novatos, acabaria por comprar a Pixar em 2006. Apesar disso, a produtora manteve um estilo e filosofia próprios, que se definiriam não só pelo desenvolvimento técnico e de vanguarda da animação por computador, mas por uma atenção exímia à qualidade e características das suas histórias e argumentos. Qualidade essa que a Disney ainda não conseguiu igualar de forma continuada. Certo, estamos todos cheios até às orelhas com o Let it Go e merchandise da Elsa, mas o que é isso comparado com a dança no espaço de Wall-E?
Qual é o segredo, então? O que faz com que as histórias da Pixar nos deixem todos, quais Bonga, com uma lágrima no canto do olho? Uma thread viral da autoria de Emma Coats, antiga funcionária da Pixar, revela os chamados “22 segredos” narrativos da produtora, que incluem, entre outros, “admiras mais uma personagem por tentar do que por ser bem-sucedida”, “decide o final antes de tentares inventar o meio”, “desconstrói as histórias de que gostas”, “coincidências para criar problemas para as personagens são óptimas; coincidências para as tirar de problemas é batota” e “qual é a essência da tua história?” Tudo excelentes conselhos para qualquer argumentista — mas onde está, por assim dizer, o Factor X da coisa?
Olhemos para o outro jogador de peso na animação ocidental. A maior parte das histórias da Disney são adaptações de obras literárias (ou corrupções/americanizações, conforme preferirem), que geralmente envolvem um príncipe/história de salvação por amor, e que, desde A Pequena Sereia, prestam grande atenção a números musicais e canções originais. De certo modo, o encanto de Frozen (inspirado numa história de Hans Christian Anderson, com princesas e castelos) é que quebra o molde — o príncipe encantado transforma-se no amor entre irmãs.
Em contraste, as histórias da Pixar têm um outro nível de complexidade emocional. A piada de que evoluíram da premissa de “e se brinquedos tivessem sentimentos?” até à conclusão lógica de “e se sentimentos
tivessem sentimentos?” tem um enorme fundo de verdade. Afinal, grandes histórias são universais, e para contar histórias de maneira efectiva há que compreender a fundo as emoções, motivações e psicologia humana.
Não que tal fosse completamente novo no mundo da animação (sublinhese mundo). A animação asiática (Studio Ghibli e afins) destaca-se pelas suas histórias agridoces, com temas bastante mais sombrios do que a animação mainstream anglo-americana. A Pixar agarra esses temas complexos, essas FAQ da humanidade, lança-os num mundo digital 3D de fazer chorar James Cameron e apresenta-os às audiências envoltos em narrativas que servem miúdos e graúdos. É, no fundo, uma lufada de ar fresco no mundo de filmes para crianças — e quiçá os filmes que pais por esse mundo fora não se importam de pôr num loop infinito de repetição na televisão da sala.
Com as suas histórias originais que reflectem valores contemporâneos (não há espaço para princesas ou castelos, mas há piza de brócolos, aparelhos para os dentes e poluição), a Pixar apresenta personagens vulneráveis que lidam com sentimentos complexos de perda ou mudança (o fim da infância, dizer adeus, ir embora), que agem e vivem como humanos apesar de serem monstros/brinquedos/carros/peixespalhaço. Tal como fábulas, expressam temas adultos de uma maneira simples e memorável — com uma estrutura narrativa tradicional, sem necessidade de fogos-de-artifício.
Mas talvez a razão principal do sucesso da Pixar seja o curioso ambiente colaborativo que cultiva, em claro contraste com outras produtoras mais naturalmente hierárquicas. Desde o início, Ed Catmull (cientista informático) e John Lasseter (realizador/produtor) incentivaram todos os empregados a trazerem novas ideias para a mesa e a comunicarem sem medos. Toda a equipa vê os filmes enquanto estão a ser feitos e pode dar a sua opinião — quer em termos de estrutura narrativa quer em termos técnicos. Assim, com a supervisão e feedback dos colegas, cada empregado é incentivado a fazer o seu melhor e a ir mais longe, num mundo comuno-artista que parece saído de, bem, de um filme da Pixar.
Seja qual for a razão, em 24 longas-metragens, ainda estamos para ver um flop. Ok, talvez o Carros 3. Mesmo assim, cá estaremos para chorar com Soul (lançado em Dezembro de 2020) e Luca (lançado apenas no Verão de 2021, tal como toda a produção cinematográfica dos 12 meses anteriores).