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Conceição dos Padres

Conceição

Este livro poderia começar com um simples perfil de Conceição Freitas da Silva. Nome completo, data de nascimento e falecimento. Mas sua vida parece uma lenda preservada por meio da tradição oral. História que foi sendo contada de um para o outro. Muitas informações se perdem ou mudam de forma. Com poucos e dispersos registros é impossível apresentar informações básicas sobre esta personagem sem fazer ressalvas.

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Conceição Freitas da Silva é popularmente conhecida como Conceição dos Bugres, graças às figuras estilizadas de bugre produzidas em madeira. Nasceu na cidade de Santiago, no Rio Grande do Sul, embora essa região fosse conhecida pelo nome de Povinho de Santiago. O então povoado gaúcho foi assim chamado até 26 de dezembro de 1866, quando passou a se designado como “Freguesia de São Thiago de Boqueirão”. Foi considerado “Vila” a partir 4 de janeiro de 1884, data em que se comemora seu aniversário, e elevada à categoria de município somente em 31 de março de 1938.

Ao que tudo indica, foi quando a cidade de Santiago ainda carregava o nome de santo que Conceição nasceu. O livro Vozes do Artesanato, organizado por Fábio Pelegrini (2011), que revela um compilado de perfis de vários artistas e artesãos atuantes no estado de Mato Grosso do Sul, o jornalista Rodrigo Teixeira faz um registro significativo da artista em três páginas da publicação. No livro aparece a indicação mais pre-

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cisa da data de nascimento de Conceição Freitas: 8 de dezembro de 1914. Este ano também é indicado por Maria da Glória Sá Rosa, Idara Duncan e Iara Penteado (2006, p. 38), no livro Artes Plásticas no Mato Grosso do Sul e por Aline Figueiredo (1979, p. 259) no livro Artes Plásticas no Centro-Oeste. Ilton Silva, filho de Conceição, confirma o mesmo ano. Imprecisões são encontradas na data de falecimento. Teixeira (2011, p.17) fala em 13 de dezembro de 1984, enquanto as autoras de Artes Plásticas no MS, apontam o ano de 1983. Tal fato explica a falta de registros precisos sobre a artista. Sua família guarda somente a tradição de continuar fazendo os bugres e um de seus vestidos floridos, sem posse de nenhuma documentação.

O fato de a história ser transmitida de boca em boca contribui para que a vida de Conceição adquira ares de lenda desde os primeiros relatos sobre sua vinda para Campo Grande. Foi em uma viagem de dois meses feita em cima de um “carro polaco”1 que Conceição chegou ao estado do Mato Grosso aos seis anos de idade. Viajou com uma caravana de gaúchos que vinham em busca de terras devolutas. Teixeira (2011) acrescenta em dado momento que “a pequena acompanhava os irmãos e os pais - o gaúcho Antônio Freitas Barreto e a argentina Generosa Pedrosa da Silva – na longa jornada entre a sua cidade natal, Santiago, no Rio Grande do Sul, até Ponta Porã, passando antes pela Argentina e Paraguai”. Conceição era uma dos vinte filhos do casal.

1. Carroça comprida com quatro rodas puxada por cavalos.

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Ilton Silva conta que os avós se instalaram inicialmente em um pedaço de terra na cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero. Posteriormente, adquiriram cerca de 100 hectares na cidade do lado brasileiro – distante 340 quilômetros da capital Campo Grande. Lá produziam charque, fumo e erva-mate.

Foi nesta mesma Ponta Porã que Conceição se encantou pelo olhos azuis de Abílio Antunes de Barros, que vinha da cidade de Amambai, localizada a 50 quilômetros dali, para vender pequenas boiadas. Durante uma compra feita pelo pai, Conceição conheceu o companheiro de toda uma vida. Com ele teve os filhos Wilson Antunes e Ilton Silva. Todos artistas.

O primeiro, já por influencia do trabalho da mãe, produzia e entalhava móveis rústicos. Faleceu em 1987, mas deixou como fruto do casamento com a também artesã Sotera Sanches, o filho Mariano Antunes Silva, que hoje é responsável por dar continuidade a produção à dos bonecos da avó. Já Ilton Silva, nascido em 1943, foi desde muito cedo tocado pelas inquietudes das artes. Quando a mãe começou a fazer os bugres, aos 52 anos de idade, Ilton já era um conhecido artista plástico do sul do Mato Grosso.

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Conceição Freitas da Silva

Apesar de algumas informações, é o desconhecido que marca o período que vai do nascimento de Conceição Freitas da Silva até o surgimento de Conceição dos Bugres. As impressões sobre sua personalidade e maneira de vida foram possíveis por meio de relatos de pessoas que conviveram com ela quando já era uma artista.

Mesmo com os laços estreitos poucos conseguiram arrancar de Conceição relatos sobre sua vida. O fotógrafo Roberto Higa, que fez registros da artista, relata a dificuldade que ela tinha de falar com as pessoas. “Conceição era de pouco falar. Ela falava com os bonecos dela. Mas com a gente, com os repórteres, era difícil. Quem sempre respondeu pela Conceição foi o Abílio ou o Ilton”.

Higa conta que somente o jornalista Raul Longo foi capaz, a custo de muita insistência, de fazê-la falar um pouco sobre a infância no Rio Grande do Sul. Nessa conversa também teria revelado uma ligação com o povo indígena Caingangue. Tal população ocupava há pelo menos dois séculos a extensão territorial compreendida na zona entre o Rio Tietê (SP) e o Rio Ijuí (norte do RS). No século XIX, seus domínios se estendiam para oeste, até San Pedro, na província argentina de Misiones. Atualmente, os Caingangues ocupam cerca de trinta áreas reduzidas, distribuídas sobre seu antigo território nos estados de São Paulo, Paraná, San-

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ta Catarina e Rio Grande do Sul. Sua população é de aproximadamente de 29.000 pessoas, número que os coloca entre os cinco povos indígenas mais numerosos do Brasil.2

As demais revelações dessa conversa com Raul Longo foram transformadas em poesia. Intitulada “Conceição do Mato Grosso” o poema rendeu ao jornalista, em 1982, o Prêmio de Poesía en Portugués concedido pelo Círculo Culturas Miguel de Cervantes3. Os versos de Longo contam a juventude e a vinda de Conceição para o Mato Grosso.

Conceição do Mato Grosso

Conceição dos Bugres Conceição dos Matos Conceição do Mundo

Cabocla Velha. Menina que um dia levantou a saia da lama da sanga E veio espalhar a poeira Tossir o pó da terra vermelha da brabeza do Mato Grosso

2. As informações foram retiradas do site desta população indígena, o Portal Kaingang, no endereço eletrônico http://www.portalkaingang.org/. 3. O poema foi originalmente publicado no número 31 da Revista El Cervantino, do Círculo Cultural Miguel de Cervantes em maio de 1982.

- Ceição! - Ceição!

Corre menina! Levanta da saia do barro de sanga. Deixa o minuano do pampa lamber o seu cabelo preto de criança cabocla Pisa com teu pé duro de piá descalça a erva rela. Recolhe seus trens e terens. Junta tuas zaratacas e te joga entre a canga, te ajeita na boleia, te aquieta na carroça... Que o tempo vai partir.

Ei boi! Toca meu boi bom! No passo bambo do casco cango o carro é um navio que joga de bordo. Vira o estibordo e quase naufraga no riacho profundo.

O carro é um navio a mata é um mar o boi a onda o relho a vela a rédea o leme.

Tainá Jara

Conceição

A caravana um caravela para descobrir outras terras abrir outras matas vazar outras águas de outros rios outras pontes outras gentes

Guaranis e Terenas Cádieus e Guaicurus Uma nova América de Caiuás e Lanas Um Novo Mundo de Guatós e Paiaguás uma nova Conceição

- Ceição! - Ceição!

Acorda menina zonza? Chegamo, pai? Chegamo não, minha filha? O Mato Grosso é longe. É além do tempo. É lugar perdido, esquecido.

O Mato Grosso é mato puro terra esperando mãe de bicho – homem para derrubar da mata

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para semeia e ameia e colheita, O Mato Grosso é mato puro terra bruta

Sem rei e nem patrão Sem arame e sem dono Sem farda e sem revolução.

- Ceição! - Ceição!

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Conceição e Abílio vieram para Campo Grande em 1957. E são as lembranças da vida que aqui levavam que permeiam a maioria dos relatos concedidos para este livro. Conforme as informações, era em uma casinha de madeira, de chão batido e em meio a uma chácara repleta de árvores frutíferas, que Conceição produzia seus bugres. Localizada “lá pelas bandas da Cidade Universitária, dobrando à direita logo que passa o trilho, quebrando no primeiro atalho (…)” como indica Idara Duncan, em reportagem de 1979 para o extinto Jornal da Cidade. O local citado tem hoje como principal ponto de referencia o Hospital Universitário. Tal recanto era para Conceição motivo de alegria por ser um teto onde morar, mas também de frustração por ser um lugar em que vivia de favor. “Conceição era uma pessoa muito simples e vivia em condições

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de existência precárias. Nunca tiveram, ela e o marido, a casa própria. Eles viviam em um espaço cedido por uma pessoa aqui de Campo Grande”, relata o colecionar Gilberto Luiz Alves que fez inúmeras visitas ao local com intuito de consumir os bugres produzidos por ela. A mesma constatação foi feita pelo cineasta Cândido Alberto da Fonseca durante o processo de produção do documentário “Conceição dos Bugres” (1979). “A Conceição, como toda a pessoa pobre – e ela era uma pessoa muito pobre – tinha seu sonho da casa própria”.

Cristina Mato Grosso, em reportagem publicada em 1981 no Jornal da Cidade, intitulada “Conceição dos Bugres - O explorado artista popular brasileiro”, faz uma relação entre o desejo da escultora de ter sua própria terra; com questão do indígena brasileiro expatriado de seu território, retratado pela artista. A partir do relato de Conceição dado ao filme de Cândido, Cristina Mato Grosso resume esta questão: “(…) que a única coisa que a [Conceição dos Bugres] entristecia era o fato de não ter uma terra. É a questão do índio brasileiro. Da tristeza do nosso índio sem terra”.

A autora também resgata o motivo que levou Conceição e a família de roceiros a migrarem para o então Mato Grosso: “Ceição veio, plantou, trabalhou, e a terra prometida, a Canaã sonhada, não encontrou”. (MATO GROSSO, 1981, p. 8)

A pobreza em que viveu durante toda a sua vida, até mesmo depois de ser tornar uma artista conhecida, era visível a olho nu e inquietava os que reconheciam

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seu talento. “Uma coisa que me incomodava muito era a extrema pobreza da Conceição. Era uma mulher que fazia uma peça já reconhecida e vendida muito cara fora do Mato Grosso do Sul e que vivia em uma extrema pobreza. Conceição viveu e morreu pobre. Mas pobre mesmo! Ela não tinha luz, não tinha água encanada, morava em uma casa muito baixinha, muito pequeninha. Com tudo que fazia o lucro dela era mínimo”, relata a jornalista Margarida Marques, que, ao produzir matérias sobre a artista na imprensa campo-grandense, acabou se tornando uma amiga próxima.

O lucro mínimo a que Margarida se refere não era somente o proveniente da produção dos bugres. Roberto Higa, com seus olhos atentos de fotógrafo, constatou que Conceição possuía outras fontes renda, tão trabalhosas e improfícuas como a arte. “Quando eu conheci a Conceição, acredito que ela sobrevivia muito mais das pequenas coisas que fazia. Além de vender os bugrinhos, eu vi ela lavando roupa para a vizinhança. Ela também benzia as pessoas e sempre alguém levava alguma coisa para ela, ou uma abóbora, ou uma galinha. Ela também tinha uma criação própria de galinha, pato e porco no quintal de casa, o que era comum na periferia de Campo Grande”, conta.

A criação de animais e o cultivo de plantas que geravam frutos confirmam as práticas agrícolas da artista reveladas por Cândido Alberto da Fonseca. A relação com a terra ainda é marca dos pais roceiros e pode explicar sua frustração em não possuir seu próprio pedaço de chão.

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Apesar da simplicidade em que vivia e imprimia em sua própria personalidade, Conceição sempre estava rodeada de pessoas, a quem tratava com extrema dedicação e recebia com cuiadas quentes de mate. O presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul, Américo Calheiros, fala da impressão que ficou das poucas visitas que fazia à artista quando ainda era técnico atuante do departamento de cultura na Secretaria de Desenvolvimento Social. Ele guiava as pessoas que queriam conhecer a figura criadora dos bugres. “A admirei sempre, pois recebia a todos com igual carinho dentro da sua extrema simplicidade. Mas dando atenção e importância a cada um que ali chegava”, descreve.

Mesmo com as adversidades de sua vida, a humildade de Conceição não permitia que ela transmitisse seu sofrimento às pessoas que a visitavam, desde os vizinhos que a procuravam para se benzer, aos importantes intelectuais que a visitavam para consumir sua obra. “A Conceição não transmitia um problema. Você via o problema a olho nu e ela não ficava falando dele”, afirma Margarida Marques.

Conceição não frequentou escolas. “(...) Nunca foi a um cinema, nunca foi a um circo. Era no círculo limitado daquela casa que ela vivia”, conta a amiga Maria da Glória Sá Rosa, a professora Glorinha, escritora e também ex-presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul. A escritora Raquel Naveira teve um breve contato com a artista quando ainda era muito jovem e, além das impressões colocadas em um poe-

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ma que produziu posteriormente sobre esse momento, constatou os escassos recursos que ela tinha de contato com o mundo. “Eu creio que a Conceição dos Bugres era analfabeta, ela gostava de ouvir rádio”, conta Raquel.

O apreço pelo rádio de pilha também é relembrado pela amiga, a professora Idara Duncan, que inclusive explorou essa relação comunicacional da artista em monografia de especialização em Língua Portuguesa, na Fundação Severino Sombra, do Rio de Janeiro. O material foi desenvolvido juntamente com outros colegas, como o educador Hélio de Lima4. “A nossa monografia de Linguística, de Língua Portuguesa, era sobre a Conceição. Sobre como uma pessoa vinha criança do sul e se estabelecia aqui e apesar de não ter muito contato com os meios de comunicação – porque ela só tinha um radinho de pilha, não tinha televisão, essas mídias modernas – era tão autêntica, tão sul-mato-grossense e tão importante para a descoberta das nossas raízes”, relata Idara. As características ásperas de Conceição Freitas da Silva não se limitavam ao seu desconhecimento. Sua aparência física e emocional traziam os aspectos da rudeza de sua vida, mas também refletiam sutilmente a doçura de sua alma. Maria da Glória (2001), descreve Conceição em seu livro Crônicas de fim de século:

Na neblina das lembranças, revejo-lhe as rugas, marcas da sabedoria, o sorriso permanente da boca sem dentes, os longos cabelos soltos até a cintura,

4. É mestre em Educação pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) com especialização em Língua Portuguesa. . 24

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os pés descalços na rudeza do chão, o jeito acanhado de quem pede desculpas, convidando-me para ver os novos trabalhos, que costumava deixar expostos, num quarto mal iluminado, na entrada da casa. (SÁ ROSA, 2001, p. 69)

Mesmo com a aparência simples, Margarida Marques lembra de detalhes da amiga que indicavam uma certa preocupação em se adornar. “Ela tinha um colar de perolas que sempre usava. Eu nunca vi a Conceição, nem de manhã e nem à tardinha, quando chegava lá, sem aquele colar. Ela tinha vaidade de mulher”. Idara Duncan, relembra da combinação deste colar de contas com seus vestidos estampados. Relata ainda, que Conceição não se pintava, mas de vez em quando trocava os longos cabelos escorridos por um coque em cima da cabeça.

A dificuldade em se exprimir podia trazer dúvidas sobre que sentimento Conceição realmente nutria pelas pessoas. Mas para alguns era inegável o amor que sentia por sua família. Seu filho, Ilton Silva, comenta seu afeto por eles. “Apaixonada pelo meu pai. Apaixonada pelos filhos. Só deu amor para nós. Para mim, para meu irmão e para o meu pai. Ela deu tudo que a gente precisava. Carinho, amor e muito pouca repressão. Reprimia sim! Reprimia meu irmão, reprimia meu pai, reprimia eu, mas nos momentos que a gente precisava. Era uma pessoa de muito amor pelo marido e pelos filhos. Tanto que, quando a minha mãe morreu , meu pai nunca mais se casou”.

Era em sua família que Conceição pensava a todo

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momento. Não somente quando adquiria alguns trocados para pôr comida dentro de casa, mas também ao notar o valor que tinha a criação de seus bugres. “A Conceição era uma mulher de relações familiares muito fortes. Com o esposo e com os filhos. Era uma mulher que tinha o trabalho como uma espécie de oração. A sua vida era oração, sangue e sacrifício. Havia uma preocupação como mãe pelo destino dos filhos, tanto o destino material, quanto o de deixar a arte como legado. Porque o seus filhos, o próprio esposo, o neto, todos herdaram essa veia de arte”, constatou Raquel Naveira, em virtude da proximidade com Ilton Silva.

Simplicidade é a palavra que as pessoas que conheceram Conceição não deixam de dizer para descrevê-la. Simplicidade na vida, na subsistência, nos sentimentos. A simplicidade lhe era cara, a custo de muito trabalho. Mas lhe trazia riquezas em forma de afeto que retribuía na mesma proporção. “A casa dela vivia cercada de pessoas. Era uma figura extremante carismática. Não só pelo fato de ser uma artista consagrada e muitas pessoas se dirigirem a sua casa para conseguir peças, seus bugres. Mas, ouso dizer, que a procuravam mais por ela ser uma benzedeira famosa. Muitas pessoas a procuravam para benzer seus filhos, para curar males do corpo. Então a casa da Conceição vivia sempre cheia de pessoas e efetivamente quem centralizava isso era a própria figura da Conceição”, relata o colecionador Gilberto Luiz Alves.

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Misticismo

Não há como falar da origem dos bugres de Conceição, sem pensar em seu lado espiritual e todo o sincretismo religioso que estava presente em seu dia a dia. Em uma rara entrevista concedida a Aline Figueiredo, cinco anos antes de sua publicação no livro Artes Plásticas no Centro-Oeste, de 1979, a artista demonstra-se desprovida de preconceitos religiosos e explica o motivo de sua aproximação do espiritismo:

Gosto de todas, mas prefiro a espírita. Desde 15 anos eu frequento centro. Terreiro eu nunca fui, mas deve ser bom. Quando eu tinha 15 anos minha perna amorteceu e eu não podia caminhar. Meu pai, que era espírita, me levou ao centro. Em uma semana eu sarei. Lá no centro me falaram que tinha que seguir, que não podia deixar senão voltava a dor. Então eu segui, por necessidade e precisão. (FIGUEIREDO, 1979, p. 215)

Por gosto, seguia o catolicismo popular, que já carregava na origem de seu nome5 e cujas iconografias religiosos mexiam com seu imaginário e motivaram as primeiras experiências artísticas. “Minha mãe pintou duas telas. Nessas duas telas ela pintou um anjo. Eu acho que foi São Gabriel, São Rafael ou São Miguel. Era um desses anjos. Porque minha mãe era fã desses anjos: Miguel, Rafael e Gabriel”, revela seu filho Ilton Silva.

5. A Imaculada Conceição é, segundo o dogma católico, a concepção da Virgem Maria sem mancha (“mácula” em latim) do pecado original. O dogma diz que, desde o primeiro instante de sua existência, a Virgem Maria foi preservada por Deus, da falta de graça santificante que aflige a humanidade, porque ela estava cheia de graça divina. Também professa que a Virgem Maria viveu uma vida completamente livre de pecado.

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Ao definir o lado espiritual da mãe, Ilton, desvenda um leque ainda maior de crenças e práticas religiosas. “Ela era católica-espírita. Ela era médium. Tanto médium no kardecismo, como na umbanda. Então ela tinha seus guias, que eu não sei quais eram. Mas ela dava passe, ela curava, ela ensinava remédio, ela benzia. Tinha dias que em casa tinham vinte, trinta pessoas para ela benzer. Eu acho que curou ali”.

No livro Memória da arte em Mato Grosso do Sul: histórias de vida (1992), Ilton ainda relata que a mãe costumava benzer ele e seu irmão todos os dias. Além disso, era procurada para dar conselhos. Os músicos Almir Sater e Paulo Simões costumavam falar com ela.

Apesar dos seguidores famosos, Conceição não fazia distinção entre quem necessitava de suas rezas. Atendia de crianças a idosos como se prestasse um serviço de caridade. “Não vou dizer que ela era uma santa, mas alguém em quem se confiava. Que se comunicava com as divindades. Parece que ela era atendida pela segurança que ela imprimia nas coisas. Porque era uma pessoa que não recebia dinheiro. Há muitas pessoas que recebem dinheiro para dar suas previsões. Ela nunca pediu dinheiro”, relata Maria da Glória Sá Rosa, que sempre ressalta o desapego de Conceição com dinheiro e que inclusive vendia muito barato seus bugrinhos.

Não foram poucos os que passaram pela experiência de serem benzidos por Conceição. Até mesmo descrentes, como a então professora do curso de Educação Artística, durante os anos 80, Maria Adélia Me-

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negazzo, e o neto de Conceição, Mariano, que apesar de ser evangélico, não nega o dom que sua avó possuía, foram abençoados por suas palavras. “Eu acho que ela benzia porque tinha uma força muito grande. Ela pegava uma folhinha de arruda e quando ela passava na minha cabeça eu sentia que as energias iam mesmo”, relata o cineasta Cândido Alberto da Fonseca.

O evento da benção trazia com ele toda uma intensidade não só a quem recebia, mas aos que presenciavam esta ocasião. Esse foi um dos poucos momentos que Roberto Higa pôde ouvir de Conceição mais do que os sussurros que trocava com seus bugres. “Eu vi lá muitas pessoas que eram benzidas e levavam a vizinhança para que ela as benzesse. Essa foi uma das poucas vezes que eu vi a Conceição falando alguma coisa. Ela meio que recitava aquelas coisas das pessoas que benzem. Tipo uma ladainha que a pessoa fala, canta, não sei! Ela botava um raminho de arruda atrás da orelha, que ela também usava muito e pegava no seu jardinzinho. Ela batia com a arruda e falava uma ladainha”.

Geralmente o ato de benzimento vem de família. No caso de Conceição não foi possível constatar quem foi o responsável em passar esse dom a ela. Porém, seu neto Mariano afirma que o avô, Abílio, foi quem passou a benzer depois da morte da avó. Além das rezas, que muitas vezes tinham a função de curar doenças da alma, como acredita Idara Duncan, Conceição herdou do pai o dom de fazer remédios de raízes. Confirmou

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a eficácia de seus chás ao afirmar em entrevista dada a Aline Figueiredo, em 1974, quando tinha por volta de 60 anos. Segundo ela, até então nunca tinha tido necessidade de ir a um médico.

Maria da Glória Sá Rosa afirmou em suas publicações o fato de Conceição também ser capaz de prever o futuro. Em sua entrevista, a professora relatou um dos acontecimentos que fez com que sentisse um olhar seguro no que era previsto pela amiga. “Uma vez eu me lembro que fui viajar e meu marido estava com muito medo. Ele já tinha uma vez sofrido em uma dessas viagens por conta de uma tempestade que houve e ele tinha medo de fazer essa viagem. Eu fui lá e ela falou com muita segurança, ‘Pode viajar. Não vai acontecer nada’.” O simples relato pode estar relacionado ao fato de Conceição ter uma intuição aguçada devido à mística que a envolvia.

Conceição dos Bugres

Embora, em um primeiro momento, o misticismo religioso de Conceição não pareça estar diretamente ligado ao nascimento de Conceição dos Bugres, a verdade é que uma não existiria se não fosse a outra.

Os entrevistados que não conheceram esse universo místico em que era envolta a vida de Conceição, muito antes de se tornar uma artista, intuitivamente percebiam que o bugre tinha os seus mistérios. Amé-

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rico Calheiros, mesmo desconhecendo a força da espiritualidade na vida desta artista, teve a sensibilidade para perceber algo além do que os olhos veem na figura esculpida daqueles bugres. “O que eu sei é que a mística que se criou em torno de Conceição é oriunda da força do seu trabalho. Ali, de um toco, de um pedaço de raiz, que ela cobria inicialmente com cera de abelha, conseguia catalisar a atenção das pessoas pela expressão que cada um vê. Uns falam que achavam os bugres extremamente sofridos, outros achavam enigmáticos, outros achavam misteriosos. Isso torna os bugres uma obra de arte extremamente singular”.

O que era apenas impressão de alguns, na verdade é o motivo por trás da criação do bugre. Nunca ninguém soube dizer realmente o que Conceição queria retratar quando esculpiu o primeiro boneco em uma cepa de mandioca. A lenda que se criou é que, inicialmente, foi a imagem de um velhinho que surgiu.

O filho da artista, Ilton Silva, revela uma informação a respeito da origem da escultura que poucos sabem. “Uma coisa que ninguém sabe, é que fazem questão de nominá-la como Conceição ‘dos Bugres’. Tudo bem! É isso. Mas a minha mãe não esculpia índios. A Conceição dos Bugres não esculpia índios. Ela esculpia seus catequizadores, os padres. Ela nunca pensou em esculpir um bugre, ela pensou que tava esculpindo padres. Mas as pessoas chegavam e falavam: ‘Olha o bugrinho, olha o bugrinho, olha que bugrinho bonito’, que acabou pegando. Não foi ela quem disse.

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Nem disse que era padre o que ela fazia”.

Artista autodidata, ele começou aos 14 anos, quando pintou seus primeiros quadros, Ilton explica o por quê da imagem do dominador se tornar a do dominado. “Eu acho que o artista quando faz a sua obra, faz pro mundo e o mundo é que decide. Os que têm informação é que passam que bugre é bugre ou que padre é padre. A ideia do artista vem em segundo plano.”

Apesar de suas peças já serem identificadas como bugres foi ainda sob alcunha de “Freitas” que Conceição fez suas primeiras exposições e ganhou suas primeiras críticas de arte. O tempo que carregou o sobrenome do pai foi quando ocorreu a maior divulgação do seu trabalho, por empenho do casal Humberto Espíndola e Aline Figueiredo. Ele artista plástico, e ela uma entusiasta das artes.

O contato de Conceição com esses jovens preocupados com os rumos culturais do sul do Mato Grosso foi intermediado por Ilton Silva. “Eu e o Humberto Espíndola tínhamos um ateliê. A Aline Figueiredo namorava o Humberto Espíndola, era estudante de Direito e se interessou em ser crítica de arte. Nós trabalhávamos, pintávamos, e criamos a Associação Mato-grossense de Arte (AMA). Falei para eles que minha mãe era escultora e eles foram ver as obras dela”.

A AMA foi uma instituição criada para começar um trabalho cultural na região. “Através dessa associação, nessa busca por um grupo de artistas, pela formação de uma arte mato-grossense, nós fomos descobrin-

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do e trabalhando cada artista. Procurando ver quem tinha talento. E então levávamos para expor e tomar opiniões em São Paulo, no Rio, para fazer essa arte ser divulgada e crescer. O objetivo era colocar Mato Grosso dentro do cenário nacional e foi assim que conhecemos a Conceição”, relata Humberto Espíndola.

Até o ano de 1977, quando o sul do então Mato Grosso foi desmembrado por meio de lei complementar, Conceição Freitas havia participado de nove exposições coletivas e uma individual. A primeira delas foi realizada pela AMA, em 1970, em Campo Grande. Neste mesmo ano os bugres foram expostos na III Exposição Nacional de Arte – V Colóquio dos Museus de Arte do Brasil, em Curitiba (PR).

Porém foi na exposição “5 Artistas de Mato Grosso”, na Galeria IBEU, no Rio de Janeiro, que a artista recebeu as mais importantes críticas de arte de sua carreira. Uma de Walmir Ayala6 para o Jornal do Brasil e a outra no catálogo da exposição de autoria de Roberto Pontual7 que em determinado trecho diz: “(...)

6. Walmir Ayala (Porto Alegre RS, 1933 - Rio de Janeiro RJ, 1991) formou-se em Filosofia na PUC/RS em 1954. Entre 1959 e 1965 colaborou, como crítico de teatro, em diversos periódicos, entre eles o Jornal de Letras e a revista Leitura. De 1961 a 1993 publicou livros de literatura infantil e de ficção. Em 1967 organizou, com Manuel Bandeira, a Antologia de Poetas Brasileiros. Ainda em 1967,recebeu o prêmio de Poesia, concedido pela Fundação do Distrito Federal Protesto Contra a Censura, pelo livro Cantata. Foi colaborador do Jornal do Brasil, entre 1968 e 1974, como crítico de artes plásticas. 7. Poeta e crítico de arte, Roberto Gonçalves Pontual nasceu no Recife, em 1939. Na década de 1960, foi diretor da Divisão de Educação Extra-Escolar do Ministério da Educação e Cultura. Entre 1973-76, foi diretor do setor de cursos e do departamento de exposições do Museu de Arte moderna do Rio de Janeiro. De 1974 a 1980, escreveu a coluna de artes plásticas do Jornal do Brasil, RJ.

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Lado a lado, multiplicando-se na aparente igualdade de forma e feições, mescla primeva de homem e animal, essas árduas esculturas de D. Conceição lembram as cabeças em série de ex-votos esculpidos, transferindo-nos linguagem clara dos mistérios à flor da pele.”

A artista foi descoberta pelo Brasil. Mas foi somente com a divisão do estado, instalada no ano 1979, que Conceição Freitas da Silva se tornou de fato Conceição dos Bugres. O apelido veio junto com um processo de criação de uma identidade cultural genuína para Mato Grosso do Sul, novo estado que acabava de nascer.

Apesar de a intenção ter sido feliz, já que as pessoas ligadas à arte reconhecem o bugre como um ícone da cultura sul-mato-grossense e veem nele uma expressão identitária do povo dessa terra, essa não era nem de longe a intenção de Conceição quando criou seus bonecos. “Minha mãe, Conceição, ela não buscou uma identidade de Mato Grosso do Sul, ela não buscou uma identidade universal, ela buscou uma identidade dela”, relata Ilton Silva sobre a despretensão de sua mãe.

O significado que a escultura do bugre assumiu para o estado não mudou em nada a vida de Conceição. Mesmo já consagrada, com peças suas sendo revendidas na Europa e nos Estados Unidos a preços altos, não pôde se dar ao luxo de deixar de lado suas tarefas domésticas. Conciliava as produções dos bugres, que passaram a ser sua principal fonte de renda (ainda pequena), com os serviços que sempre desenvolveu. “Trabalhadeira. Ela saía da cozinha, fazia o almoço para

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nós, pegava sua machadinha e ia fazer a sua escultura. Ás vezes a panela de feijão queimava, porque ela estava envolvida na sua criação. O mais importante para ela era a realização da obra e o feijão que se dane. Cozinha outro!”, descreve com humor Ilton Silva.

Humberto Espíndola acredita que a fama, de alguma forma, mexeu com a personalidade de Conceição. Da vaidade nula, responsável por torná-la uma artista, a Conceição dos Bugres, desenvolveu certa estima por sua própria pessoa. “Ela foi uma mulher que veio do Rio Grande do Sul, casou e ficou isolada, deve ter sofrido muito preconceito pelas origens indígenas, o marido gostava um pouco de beber, foi criada e morou em fazenda. De repente ela se viu artista. Paparicada, prestigiada, consumida. Passou a sustentar a família. Se tornou uma matriarca. De repente saiu de um estado de esposa, de prendas domésticas, de submissão, e de repente ela dominou, ela passou a ser a estrela da casa, a financiadora, a cabeça da família, a provedora. Então, ela via essa arte com muito prazer. Ela trabalhava com muito prazer. E eu acho que esse prazer é a essência do grande artista”.

A vaidade de Conceição realmente pode ter nascido, mas não mudou muito mais do que as relações que tinha dentro de sua casa. A fama não tornou menos trabalhoso seu rústico modo de produção. “Ela não tinha patrocinador, ela não tinha agente para cuidar das coisas dela. Ela mesma vendia e ficava discutindo o preço com as pessoas”, conta a amiga Maria da Glória, que viu seus

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negócios serem assim até o final de sua vida.

Conceição morreu de câncer em uma data incerta. Mas usou de suas previsões para preparar o filho Ilton. Segundo relata Raquel Naveira, Ilton peregrinou de hospital em hospital tentando evitar o inevitável. Nem mesmo na morte Conceição realizou o sonho de comprar o seu próprio pedaço de terra. “Os amigos tiveram que fazer uma vaquinha para comprar o caixão e o terreno aonde ela foi enterrada”, conta Roberto Higa. A força espiritual e os remédios de raízes de planta não foram suficientes para torná-la imortal, mas foram ingredientes para suas esculturas, seus bugres, que acabaram por eternizá-la.

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