22 minute read

Madeira de árvore, cera de abelha e vela de santo

Next Article
Conclusão

Conclusão

Conceição

A maior parte do tempo dedicado por Conceição a suas esculturas foi quando morava em Campo Grande. Mas o bugre nasceu em outro tempo e lugar: depois de sair da cidade fronteiriça de Ponta Porã e antes de chegar à cidade que se tornou capital sul-mato-grossense. Foi em Terenos, terra com nome de etnia indígena, que a artista sonhou e pôs em prática o protótipo do que seria o bugrinho.

Advertisement

O nascimento e desenvolvimento da escultura do bugre é todo envolto pelo misticismo de Conceição e não foi diferente com o entalhe inicial da peça. Ilton Silva conta com emoção esse momento da gênese artística da mãe: “A primeira escultura que minha mãe fez, ela sonhou. Teve um sonho e pegou uma cepa de mandioca e começou. Ela esculpiu em uma rama que tava verde e molhada. Aquela secou, murchou e ficou uma velhinha. Uma velha que era a coisa mais linda do mundo na cepa de mandioca”.

Essa primeira experiência que estimulou o aperfeiçoamento do lado escultora de Conceição ocorreu já em sua maturidade, quando tinha 52 anos, na década de 60. Nesse tempo, ela e a família moravam na Fazenda Modelo, situada no município de Terenos, por conta do trabalho de Abílio, que era policial federal.

Foi ainda neste local que Aline Figueiredo e Humberto Espíndola tiveram o primeiro contato com a artista e seus bonecos primitivos. “Um dia nós fomos lá para conhecer a Fazenda Modelo. Conhecer os pais do Ilton. E a Conceição apareceu com aquela história

39

Tainá Jara

do bugrinho feito na mandioca. Apareceu rindo com um bugrinho de pau já, pequenininho, mostrando para mim e para Aline, achando que não era nada. Ficamos muito interessados, achamos aquele bugrinho muito curioso e começamos a estimular: ‘Por que a senhora não faz mais bugrinhos?’ Ela falou: ‘Ah, isso aqui não vale nada.’ Nós falamos: ‘Não, acho que a senhora tem talento sim’. Quando voltamos lá, uma semana depois, ela já tinha uma meia dúzia de bugrinhos. Lindos!”, descreve Humberto.

Pode-se afirmar, com alguma certeza, que a opinião de Aline e Humberto serviu como uma motivação para que Conceição continuasse a investir naquelas esculturas. Mas, apesar de muitas pessoas tentarem deduzir quem a teria influenciado a fazer os bugres, Ilton garante que a mãe tinha total autonomia em sua produção. “O processo de criação da minha mãe tinha muito apoio, muita assessoria dos filhos e do meu pai no material de construção. Mas ela não aceitava que ninguém interferisse na sua obra. Se ela aceitasse poderiam ter sido melhores os bugres. Mas ela não aceitava. Ficou aquela coisa. Podia ter melhorado. Mas ela não aceitava de jeito nenhum. Por isso que ficou esse bugre do jeito que está”.

Devido à convivência que tinham e até mesmo por conta de algumas temáticas desenvolvidas por Ilton Silva em seus quadros, pode-se achar que exista alguma relação entre o trabalho do filho com o da mãe. Porém, até mesmo a troca de opiniões de um sobre o

Conceição

trabalho do outro era mínima. “A minha relação com a obra da Conceição foi muito simples. Não interferi nela. A grande participação que eu acho que eu tive foi dizendo: ‘Não gostei’, ‘Gostei’, ‘Tem expressão’, ‘Não tem expressão’. Se eu pintava e minha mãe esculpia, ela interferia dessa forma nos meus quadros. Também ela falava, ‘Não gostei’, ‘Gostei’. Eu ia por ela e ela ia por mim”.

Ilton relembra apenas uma sutil sugestão dada pela mãe que o influenciou na forma como passou a agir com alguns de seus trabalhos. Ao que parece, foi mais um conselho do que uma interferência artística. “Ela só falou uma coisa do meu trabalho. Que eu levei muito a sério. Ela me falou uma palavra que eu não esqueci nunca mais. Eu pintei uma tela. Pintei e não gostei. Minha mãe chegou e eu estava despintando. Passando uma tinta por cima. E ela falou: “Que você está fazendo, meu filho? Você não gostou?”. Respondi: “Não gostei, mãe!” E ela disse: “Alguém gosta!”. Nunca mais desmanchei uma obra minha. A partir disso, mesmo que eu não gostasse, ela deixava e mesmo que ela não gostasse, eu deixava. Por quê? Se você pintou uma coisa que você não gostou deixa para você observar. Tem que ter um relacionamento de pai. Tem que deixar aquela obra que você não gostou para você olhar o erro que você cometeu”.

Esta atitude de Conceição pode nos elucidar um pouco sobre como pensava a artista durante o processo de produção de seus bugres. Talvez justifique a par-

Tainá Jara

ticularidade de cada um deles e a despreocupação em alcançar uma estética perfeita e uniforme nos bonecos de madeira por parte de Conceição. Estes fatores contribuíram para que suas esculturas fossem consideradas autênticas obras de arte.

Aos olhos de alguns, esta forma rústica podia ser confundida com descuido. O neto Mariano, que ajudava a avó desde os oito anos de idade na produção, confessa que ousava dar uma “melhorada” em alguns dos bugres de Conceição. “Eles eram bem feios mesmo. Eu tentava dar uma caprichada quando cortava para ela. Se fosse por ela, deixava daquele jeito, com a cara e boca tudo torta e aí eu encerava e dava uma ajeitada na boca, nos olhos, para ficar bonitinho”.

A inquietude de Mariano diante do processo de produção da avó acabou se tornando característica capaz de diferenciar os seus bugres daqueles feitos por Conceição. As peças de Mariano são marcadas por uma similaridade muito grande entre uma e outra. Ao ponto de parecerem produzidas em série. O fotógrafo Roberto Higa acredita que a marca pessoal existe, principalmente, por conta da força física empregada por cada um dos artesãos durante a produção e também pelas diferentes matérias-primas utilizadas. “Os bugrinhos que depois foram feitos por pessoas mais fortes, tipo o Abílio ou o neto dela mesmo, eles têm a forma mais caracterizada de mais uniformidade. Na barriga a coisa é mais uniforme. Então eu acho que ia muito da força dela e da enzima (cera) que ela cobria”.

Conceição

Américo Calheiros explica a importância de cada um desses “descuidos” para legitimar Conceição como uma artista. “Eu acho que isso é o resultado real do trabalho de um artista. O que difere o trabalho de um artista de um industrializado? O trabalho industrializado ele é Ipsis litteris8, um igual ao outro. No trabalho do artista, cada um é cada um. Então esse fato de ser único lhe dá uma característica extremamente especial e quando ele deixa de ser único, ele já não é mais arte. O trabalho dela era um trabalho de artista. Peça por peça feita por ela com a sua similaridade e, ao mesmo tempo, com a sua diferença. Ou seja, com a sua especificidade”. Embora a criação de Conceição se desse de maneira muita espontânea, a artista tinha total consciência das particularidades de cada um de seus bugres. Era como se isso fosse um elemento para humanizá-los. Humanidade em que talvez ela mesma tenha passado a acreditar com o tempo. Raquel Naveira descreve como era a relação de Conceição com sua criação. “Era incrível como ela tratava aqueles seus bugrinhos, como se cada um fosse um filho, um filho recém-nascido de um pedaço de madeira, recém-nascido de uma raiz de mandioca, um filho que estava sendo todo preparado com a cera das abelhas, com o perfume das abelhas. E aí ela dizia assim: ‘Este aqui tem uma expressão mais triste. Este outro já tem uma expressão mais alegre. Olha os olhos desse bugrinho!’. Ela realmente tinha um diálo-

8. Ipsis litteris é uma expressão de origem latina que significa “pelas mesmas letras”, “literalmente” ou “nas mesmas palavras”. Utiliza-se para indicar que um texto foi transcrito fielmente.

Tainá Jara

go com os bugrinhos que ela criava, como se fossem seus filhos, como se cada um tivesse uma personalidade própria. Era muito incrível essa relação que ela tinha com a sua obra, com a sua criação. Um carinho com a sua criação”.

Outro elemento que reforça essa ideia é o fato de que Conceição nomeava cada um dos seus bugres. “Ela atribuía nomes aos bugrinhos. Ela podia chamar um bugrinho de ‘Chorão’, o outro ela poderia chamar de ‘Alegre’. Então, isso já revela como ela conseguia efetivamente captar movimentos peculiares numa peça. Distinguia claramente uma peça de outra”, conclui o colecionador Gilberto Luiz Alves.

Era no terreno cercado com arame farpado, de onde era possível ver o entardecer chegar e esvanecer num belo pôr-do-sol sobre o Lago do Amor, que Conceição criava. Um ateliê a céu aberto, protegido pela sombra das árvores, animado por canções vindas de um radinho a pilha e com um cheiro forte do fumo que Conceição costumava mascar. Lembranças guardadas com carinho pela nora, Sotera Sanches, apesar das implicâncias da sogra com o fato de Sotera ser paraguaia.

Todo este cenário em que Conceição estava envolta interferia em sua produção. A artista plástica Lúcia Monte Serrat fala da motivação que esse ambiente proporcionava à artista e do quão prazeroso era vê-la imersa em seu ateliê ao ar livre. “O processo de criação dela era muito rústico. Muito intuitivo. O espaço dela era pequeno, sem muitos cuidados. Mas muito fértil.

Conceição

Porque a natureza era a inspiração dela. Então o processo de criação ia surgindo. Na verdade, para isso a gente não precisa de muita coisa. A gente precisa se alimentar. E o alimento pode partir de várias coisas. O alimento da Conceição era a natureza, era a relação que ela tinha com as pessoas e aquela relação que ela tinha com esse imaginário, com essas crenças, com esse ambiente todo em que ela vivia. Então, era muito bonito, era muito gostoso de ver ela trabalhando”.

Lúcia conheceu Conceição porque costumava levar seus alunos do curso de Educação Artística da UFMS para aulas de campo na casa da artista. Mas a professora relembra que apesar de ser solícita com os visitantes, a artista não chegava a apresentar todas as etapas de seu processo de criação. “Ela não produzia na frente da gente. Você chegava as coisas já estavam meio prontas, meio encaminhadas, mas no fim ela só mostrava como a coisa funcionava. Ela tinha o espaço dela. Vamos dizer que ela preservava também o espaço da criação. Porque tem gente que não se incomoda de criar na frente dos outros. Outros artistas preservam”.

Apesar do momento de criação de Conceição ser muito particular, assim como o de qualquer outro artista, os registros encontrados e as declarações colhidas nos permitem ter uma ideia precisa de como ele funcionava. À primeira vista, a criação não possuía muitos segredos e consistia basicamente em três etapas: o entalhe da madeira, revestimento com a cera de abelha e o acabamento (pintura dos cabelos, nariz, olhos e

Tainá Jara

sobrancelhas). Porém, cada fase possuía suas particularidades e era envolta por curiosas histórias de uma artista pesquisadora, que como afirma Maria Adélia Menegazzo, trazia elementos de seu próprio cotidiano para a composição de suas esculturas.

Da cepa de mandioca ao tronco de árvore

Os bugres de Conceição passaram por diferentes aspectos até chegarem ao que eram quando consagrados pela divisão do estado de Mato Grosso. A substituição da cepa de mandioca pelos troncos de árvore foi o primeiro aperfeiçoamento feito pela artista. Tal material acabou sendo o suporte utilizado por toda a vida para dar forma aos bugrinhos e foi a matéria-prima essencial para dar singularidade a cada um deles. Em entrevista concedida a Aline Figueiredo (1979, p. 214), a própria Conceição reconhece a importância da madeira em seu trabalho: “Começo a fazer e já vai saindo aquela forma de costume. Muitas vezes nem penso nisso e sai um rindo. Parece que a madeira quer que saia assim. Acho que a madeira manda, manda mais do que eu.”

Humberto Espíndola destaca como a simplicidade dos traços de Conceição não era intimidada pela instabilidade dos troncos de madeira. “Os bugrinhos da Conceição cada um tem uma personalidade, cada um tem uma fisionomia, cada um está olhando para um lado, embora tenham todos sido feitos com uma sim-

46

Conceição

plicidade: dois buracos para os olhos, um traço para o nariz, um traço para a boca, um traço para marcar o queixo; mas têm mão, têm postura. A Conceição era muito criativa em relação ao formato da madeira. Ela via o bugre antes de começar a fazer no pedaço de tronco. Às vezes, se tinha um galho para fora ela fazia um bracinho. Ela tinha essa coisa de saber aproveitar o formato da madeira”, constata.

Observando os bugres mais antigos, como os das fotografias de Aline Figueiredo (1979, p. 212 -213), referentes a criações do ano de 1970, percebemos que eles pouco lembram a imagem de um bugre. Possuem cortes mais brutos e o rosto mais arredondado, embora o alto da cabeça já fosse reto. Levando em conta a revelação de Ilton, que a intenção inicial da mãe era reproduzir padres, temos a impressão de que os primeiros bonecos realmente lembram mais os catequizadores do que propriamente alguma miscigenação com etnias indígenas.

Apesar de não utilizar requintadas ferramentas para a produção dos bugres, foi no entalhamento da madeira que houve uma necessidade de variação de instrumentos, principalmente, devido aos tamanhos que as esculturas foram tomando. Humberto Espíndola conta como foram essas adequações. “O processo de criação começou com a mandioca que era uma coisa que ela esculpiu a faca. Depois os primeiros bugrinhos pequenos ela esculpiu no facão. Depois, quando começou a aumentar de tamanho os bugres, porque foi

Tainá Jara

estimulada a ter uma proposta de mais presença, ela passou a esculpir no machado”. O neto Mariano ainda acrescenta a utilização de um serrote e o auxílio de um formão9 .

No trabalho de extração da matéria-prima era o momento em que Conceição necessitava do suporte do marido e dos filhos. Afinal, ela era uma senhora já de idade e também havia uma certa dificuldade em captar o material, já que a madeira era retirada diretamente do local onde estava plantada, sendo necessário o corte ou até mesmo a derrubada de algumas árvores menores para conseguir o tronco que viria a ganhar corpo e cara de gente. “Eu dei um apoio para ela. Por exemplo, ela me chamava e falava ‘Ilton, serra essa tora aqui para mim’. Eu serrava. Minha mãe falava para o meu pai ‘Abílio, busca madeira para mim’. Meu pai primeiro cortava a madeira, depois chamava carroceiro por carroceiro. A maioria dos bugres da minha mãe naquela época foi o seu Benedito (carroceiro) quem carregava a madeira pra ela”, relata o filho Ilton. Em seu processo de aprendizagem, o neto Mariano também deu assessoria nessa fase de produção.

Conforme as obras de Conceição alcançaram maior reconhecimento, passou a haver pedidos para que produzisse versões ampliadas dos bugres. Algumas dessas peças viajaram para a exposição do IBEU no Rio de Janeiro, em 1971. Humberto Espíndola lembra que foi por conta dessas esculturas maiores que o críti-

9. Utensílio com uma extremidade chata e cortante, e outra embutida cabo.

Conceição

co Walmir Ayala achou que a arte se assemelhava à dos esquimós, que costumavam esculpir animais em osso ou marfim para que as crianças brincassem10. O artista plástico ressalta que o aperfeiçoamento não se limitou apenas a ampliação da peça. “A Conceição foi crescendo como artista e os bugres também foram crescendo de tamanho. Depois até virarem totens. Uma cabeça em cima da outra. Que já não era uma coisa original. Mas já era uma coisa assimilada do totem que alguém deve ter posto na cabeça dela, mas que não deixou de perder o valor dentro daquele trabalho”.

A fase do entalhamento da madeira foi a mais mutável no decorrer de todo o trabalho de Conceição como artista. Era um momento muito particular, que permitia que ela depositasse toda uma série de sensações e sentimentos em suas peças, tornando-as tão únicas como são únicos cada um dos dias da vida de um ser humano.

Roupa dos bugres

Nos enigmas oníricos Conceição encontrou um dos segredos de sua arte:

Uma vez sonhei que o Abílio foi ao mato e trouxe bastante mel. Logo pensei em tirar cera. Espremi ligeiro e pus no fogo a ferver. A cera ficou bonita, amarelinha e então eu peguei um pincel e comecei a passar cera nos bugres. No dia seguinte mandei

10. Conforme explica artigo “Esquimós” do site http://www.klickeducacao. com.br/2006/enciclo/encicloverb/0,5977,IGP-8790,00.html.

49

Tainá Jara

o Ilton comprar cera. Eu já sabia do efeito através do sonho, já havia gostado. Achei que ficou igual ao sonho e não deixei mais de usar. (DA SILVA apud FIGUEIREDO, 1979, p. 215)

A descrição feita pela própria artista foi registrada em entrevista concedida a Aline Figueiredo. O segundo elemento da obra de Conceição também teve a natureza e seu imaginário como provedores.

Os primeiros bonecos de Conceição não possuíam essa camada de cera. Humberto Espíndola relata que inicialmente eles eram envernizados. Já a nora, Sotera Sanches e o neto Mariano, afirmam que era a parafina, usadas em velas, o elemento utilizado para finalizar os primeiros bugres. Mas foi a cera de abelha que ficou na memória de quem conheceu Conceição. Talvez pelo misticismo de sua origem ou pelo efeito estético que dava às peças. Ainda na mesma entrevista a Aline (1979, p.215), Conceição foi questionada de por que ela não podia deixar de usar a cera do mel. A resposta foi categórica: “Não posso. Acho que com a cera fica melhor. A cera não deixa a madeira trincar com o vento. E para mim a cera representa a roupa. Antes o bugre andava nu, agora anda vestido”.

A história da roupa do bugre é relembrada também pelas amigas Idara Duncan e Margarida Gomes Marques. “Eu ria muito, porque quando se perguntava à Conceição por que eles eram amarelos, por que eles tinham cera de abelha, ela dizia que era a roupa deles. Que os bugres para ela eram os índios que antes andavam nus e depois passaram a se vestir por força da ‘ci-

Conceição

vilização’ e os dela se vestiam de cera de abelha, que era uma coisa natural”, conta Margarida apontando mais um elemento que reforça a ligação com os indígenas.

A cera de abelha trouxe mais singularidade às peças de Conceição, além de um efeito diferente. Humberto Espíndola lembra que, quando as esculturas foram apresentadas em exposição no Rio de Janeiro, algumas pessoas acreditaram que eles eram feitos de pedra. Observando os diversos acervos particulares de bugres, percebe-se que as peças possuem diversas variações de tons. Um dos motivos é a ausência da cera. Estes bugres costumam possuir a cor da própria madeira, que vai escurecendo com o tempo. Quando passaram a ser vestidos, os bugres ganharam variações mais claras, do conhecido amarelo até cores mais acinzentadas.

Esta variação de cores é um dos elementos mais espontâneos da produção dos bugres. Era um fenômeno que ocorria por acaso e que Conceição não via necessidade de tolher. Como explica Ilton Silva: “Essa diferença não precisava minha mãe perceber. No momento da criação ela esquece matemática, esquece tudo e se volta na sua criação. Então cada um é um. E a tonalidade, minha mãe não botou a cera no bugre porque gostava da cor, mas porque ela sonhou”.

Humberto Espíndola procura dar motivos mais concretos para essa peculiaridade das esculturas de Conceição. “Eu acho que essas cores diferenciadas têm muito a ver com a cera. Tem abelhas que fazem uma cera mais clara. Tem abelhas que fazem uma cera mais

Tainá Jara

escura. Mais cinzenta. Também a cera, às vezes, tinha que ser comprada. Às vezes, era conseguida de uma cera de abelha natural, porque a Conceição tinha os meios de conseguir. Então, essas coisas são mais ou menos por aí. Depois, de certa forma, se uniformizou numa coisa amarela, porque eu acho que ela descobriu um lugar que vendia cera. Então, essa cera passou a ser comprada e ela tinha um tom colorido de amarelo que permaneceu na maioria dos bugres”.

Apesar da simplicidade para explicar a origem da cera e as suas variações, Roberto Higa acredita que essa “enzima” é o grande segredo da artista Conceição dos Bugres. “O mais interessante que eu acho, que é um segredo que a Conceição levou para o túmulo, era a cera que ela produzia para cobrir os bugrinhos dela. Ela produzia uma enzima que ela não mostrava para ninguém, não deixava ninguém ver. Que era uma enzima que ela usava pra cobrir os bugrinhos. Tanto é que eu tenho alguns bugres que não foram feitos por ela onde a enzima derrete e os dela não. Eu nunca vi! E olha que eu conheço quase toda a coleção do Humberto Espíndola e eu nunca vi os dele derreter. Eu vi um em Santa Catarina há pouco tempo, lá em Floripa, uma pessoa que tinha um bugre da Conceição no jardim que estava do mesmo jeito, tomando sol e chuva em um lugar úmido para burro. Esse bugrinho da Conceição estava do mesmo jeito”.

Conceição

Cabelos, olhos, sobrancelhas e nariz

A utilização da cor preta nos traços do rosto da escultura, nariz, cabelos, olhos e sobrancelhas, passa despercebida por quem descreve a obra de Conceição. Ao serem questionadas sobre esse detalhe, as respostas não são acompanhadas de comentários ou análises profundas. São tratados como acabamentos. Mas foram estes os elementos essenciais para caracterizar as esculturas como bugres. É o sinal de que Conceição permitiu e aceitou que seus bonecos tivessem a identidade vista por tantos na obra desenvolvida por ela. Esta foi a última fase a se integrar ao trabalho de criação da artista.

“Piche” e “tinta preta” são alguns dos nomes citados de maneira incerta entre os entrevistados para se referir ao material utilizado. Apesar de não ser fruto de um sonho, como as etapas anteriores, a maneira como surgiu a tinta preta utilizada por Conceição comprova como a religiosidade estava impregnada em seu dia a dia. Ilton Silva revela como foi o processo de pesquisa de sua mãe, para encontrar o que seriam os traços mais característicos dos bugres reais em suas esculturas. “Minha mãe gostava muito das suas panelas. Como é que eram as panelas da minha mãe? Preta, preta, preta, mais gastada. Ela deu uma olhada e pensou: ‘Cabeça dos bugres!’. Aí que nasceu a cabeça preta. Ela raspava a panela e depois pegava uma vela e acendia. Minha mãe era espírita, como eu falei para você. Ela acendia

Tainá Jara

as velas para os santos dela. Para os caboclos, para os negros-velhos, para os padres e para os anjos. Aí ela acendia cinquenta velas, pegava uma latinha, que criava uma fuselagem e botava lá. Usava um pouquinho de querosene naquela fuselagem e surgia a cabeça dos bugres. Então a minha mãe fabricava. Não foi a cera, porque não deu certo. A tinta preta era ela quem fazia. Técnica!”.

Embora Ilton não deixe claro em sua fala, fica sugerido que a fuselagem era criada por Conceição ao queimar uma lata. Aquela cinza preta que nascia do contato entre alumínio e fogo era retirada com o querosene e misturada à parafina das velas. Esse processo dava origem à tinta preta.

Pretos e Pedras

Mesas, pilões, quadros, igrejinhas de madeira, crochê... Estas são algumas das outras peças que, vez ou outra, eram produzidas por Conceição, segundo contam alguns dos entrevistados. Apesar de não aprofundadas, estas declarações revelam certa inquietude artística da personalidade de Conceição, bem como sua versatilidade como escultora. Na produção dos bugres esta característica não ficou ausente. A artista foi capaz de produzir raridades dentro da própria temática do bugre, mesmo que com o tempo eles tenham adquirido um determinando padrão estético e definidas matérias-primas.

Conceição

Foram pessoas bem próximas de Conceição que tiveram o privilégio de conhecer e adquirir exemplares quase exclusivos de algumas de suas experiências de variação de material e estética. Talvez os questionamentos acerca dos bugres serem feitos em pedra, por conta do efeito dado pela cera de abelha, motivaram Conceição a fazer algumas tentativas com o material. Tanto Margarida Marques e como Idara Duncan adquiriram peças esculpidas em pedra-sabão.

“Ela fez uma vez só bugres de pedra-sabão. O Ilton foi a Minas e trouxe um pedaço para ela. Ela achou absurdo aquilo. Não tinha nada a ver com ela. Mas ela foi mexer e achou maravilhoso, macio e fez três bugres. Depois queria mais pedra-sabão11 e não tinha, porque não era oriunda daqui”, relata Margarida Marques.

Idara Ducan foi a segunda contemplada com o bugre de pedra-sabão. “Ela [Conceição] uma vez ganhou uma pedra-sabão e fez três bugres. Por sorte, eu e Margarida Marques estávamos passando, indo para a Universidade, nós fomos visitá-la e ficamos encantadas e, claro, compramos. Não sei quem comprou o terceiro. Mas que eu saiba ela só fez esses três.”

Se de fato foram produzidas três peças com esse

11. Esteatito (também pedra de talco ou pedra-sabão) é o nome dado a uma rocha metamórfica, compacta, composta sobretudo de talco (também chamado de esteatite ou esteatita) mas contendo muitos outros minerais como magnesita, clorita, tremolita e quartzo, por exemplo. É uma rocha muito branda e de baixa dureza, por conter grandes quantidades de talco na sua constituição. A pedra-sabão é encontrada em cores que vão de cinza a verde. Ao tato, dá uma sensação de ser oleosa ou saponácea, derivando-se daí sua designação de pedra-sabão. Existem grandes depósitos, de valor comercial no Brasil, em maior escala no estado de Minas Gerais.

Tainá Jara

material, a terceira pode ser a que se encontrava em posse de Mariano e estava à venda em seu ateliê, como se constatou em visita ao local durante etapa desta pesquisa.

Como mais uma das inspirações provenientes de suas crenças, Conceição criou também pequenos bugrinhos de madeira com todo o corpo pintado pela mesma tinta que utilizava nos cabelos de seus bonecos. Bugres pretos, como conta Mariano. “Os negrinhos eram bem pretos mesmo. Essa tinta preta ela passava todinha no corpo dele. E o cabelo fazia de pó de serra com cola. Bem cabelo de preto mesmo”, revela.

Ao que parece, estes eram produzidos como uma espécie de amuletos. Maria da Glória Sá Rosa é uma das que foi agraciada com um desses talismãs. “Até hoje, guardo comigo um bugrinho preto, que ela fabricou especialmente para me dar sorte”, confessa a escritora no livro Crônicas de Fim de Século, de 2001. O cantor Geraldo Espíndola e o professor e colecionador Gilberto Luis Alves também possuem exemplares dessas peças.

56

This article is from: