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Feios, mansos e complexos
Conceição
Posição de sentido, corpo amarelado, pés discretos, nariz, cabelos, olhos e sobrancelhas pretos, um traço fundo para a boca e expressões que mudam a cada novo olhar de quem os contempla. Assim era a maioria dos bugres de Conceição. Cuja feição muitos dizem ser semelhantes as do próprio rosto de sua criadora. No mesmo ano em que se nasce o estado de Mato Grosso do Sul, desmembrando-se de Mato Grosso, nascia também uma nova Conceição, a Conceição dos Bugres.
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Esta Conceição já vinha sendo gestada e nasceu da necessidade de se criar uma identidade cultural genuína para Mato Grosso do Sul. Por ela ser uma artista já conhecida nacional e internacionalmente, tornar sua obra uma representação da nossa cultura foi um processo natural. A singularidade e a identificação de aspectos regionais na figura do bugre tornaram sua adoção como referencial simbólico da população desta região praticamente inquestionável no meio artístico.
Mas porque houve essa identificação? Por que denominaram bugre uma peça cuja a intenção da artista ao fazê-la era quase oposta ao que surgiu? Por que essa escultura ultrapassou as fronteiras mesmo carregando traços de uma regionalidade tão específica? Por que foram os bugres que ficaram marcados na memória das pessoas, havendo aqui esculturas tão belas como as perfeitas curvas dos animais em pedra e madeira de Júlio César Rondão, o Índio?
Em torno de questionamentos como estes surgiram associações e teorias na tentativa de procurar
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respostas à origem e ao magnetismo dos bugres de Conceição. Porém, nenhuma dessas deduções foi capaz de explicar de forma completamente racional esse fenômeno artístico. O misticismo de Conceição sempre envolveu sua criação.
Maria Adélia Menegazzo relembra a associação feita certa vez por uma antropóloga, entre os bugres de Conceição e arte desenvolvidas pelos povos Andinos. Idara Duncan deduz uma relação entre as esculturas da artista e os Moais da Ilha de Páscoa12, no Chile. Roberto Higa encontra nas próprias pinturas rupestres dos morros de Aquidauana e da cidade de Nioaque, no interior no estado de Mato Grosso do Sul, alguma elucidação sobre as inspirações de Conceição. O fotógrafo cita também as figuras publicadas no livro “Eram os Deus Astronautas?”, do suíço Erich von Däniken13 .
Inferências à parte, apenas uma teoria se consolidou, ganhando espaços em artigos acadêmicos e outras publicações artísticas. Porém, tais conclusões não deixaram de lado o caráter ancestral dos bugres de Conceição proposto por alguns dos entrevistados.
No relatório final do subprojeto de pesquisa “O Artesanato em Mato Grosso do Sul: Análise Centrada na Organização Técnica do Trabalho”14, o professor e
12. São as mais de 887 estátuas gigantescas de pedra espalhadas pela Ilha de Páscoa, no Chile. Construídas por volta de 1200 d.C. a 1500 d.C. pelo povo Rapanui. 13. Escrito em 1968, o autor teoriza a possibilidade de antigas civilizações terrestres serem resultados de alienígenas (ou astronautas) que para as épocas relatadas teriam se deslocado. 14. Relatório final do subprojeto de pesquisa “O Sindicato de Artesãos de Mato Grosso do Sul e o desenvolvimento regional: história e implicações 60
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colecionador Gilberto Luiz Alves apresenta uma teoria a respeito. Em sua discussão, acreditando ser a mais fecunda sobre a obra de Conceição, ele considera relevante “o fato de a forma geral dos bugres se muito assemelhada à dos pequenos totens reproduzidos na obra Os Caduveo em fins do século de XIX”. Tal publicação, a que Gilberto se refere, é de autoria do fotógrafo, pintor, desenhista e etnólogo italiano Guido Boggiani que, em 1887, aventurou-se pelo interior do Brasil, Bolívia e Paraguai para documentar a vida dos índios da região e comercializar com peles de animais, especialmente dos cervos do Pantanal.
Através desse debate, Alves conclui que:
O entendimento adotado é o de que essas formas são manifestações resultantes do processo cultural tal como se engendrou e se desenvolveu em Mato Grosso do Sul. Nesse processo, a presença indígena foi relevante e muito contribuiu para a constituição da singularidade regional. A forma que passou a identificar os bugres de Conceição, reveladora dessa singularidade, foi suscitada inconscientemente no processo de concepção da artista. A força influenciadora dessa forma decorria do fato de se encontrar difusa nas relações sociais. Logo estava presente em Conceição, enquanto figura submetida às práticas sociais e à memória coletiva do espaço em que vivia.
Tal teoria também é apresentada pelo artista plástico Humberto Espíndola, em um folder da exposição “Conceição e sua gente”, realizada no Museu de
culturais e ambientais”, integrante do projeto Propostas de desenvolvimento regional em Mato Grosso do Sul e suas implicações culturais e ambientais, financiado pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Anhanguera-Uniderp.
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Arte Contemporânea de Mato Grosso do Sul, Marco, em 2004, em Campo Grande. Humberto descreve o seguinte:
Reconhecida, internacionalmente, ainda em vida, Conceição criou, inconscientemente, um obra que reata, no tempo e no espaço, a confecção de bonecos de madeira que Guido Boggiani constatou como tradição artesanal entre os índios da família Mbayá-guaicuru que habitavam nossa região e o Chaco Paraguaio, interrompida no início do século passado. E essa retomada, iniciada pela nossa Conceição, parece-nos hoje um fato definitivo, quando observamos que mesmo depois de sua morte, os “bugres” continuam vivos e procriando-se.
Guido Boggiani registrou bonecos de madeira muito parecidos com os bugres de Conceição. Segundo Boggiani, os bonecos representavam para os indígenas deuses ou ídolos ancestrais, porém as mesmas esculturas eram utilizadas como brinquedos pelas crianças (BOGGIANI apud SANCHES e CAMPOS, 2011, p. 8).
Humberto Espíndola acredita que esses bonecos eram feitos em contraposição aos santos barrocos dos espanhóis e portugueses que exploraram a região durante esse período. O artefato funcionava como uma espécie de contracultura aos exploradores europeus. Para ele, os bugres de Conceição são uma retomada desses bonecos . Essa ideia acabou ficando na atmosfera desta região.
Como confirmação dessa ancestralidade, Humberto Espíndola conta um episódio em que um macaco chimpanzé de um circo, vizinho à casa de sua família, teria sido levado por dona Alba, mãe de Humberto, a fazer uma visita à residência. Durante a recepção o
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macaco se portou educadamente, até o momento em que se deparou com um dos bugres da Conceição e se curvou diante dele como se aquilo fosse uma espécie de santo ou símbolo de adoração, assim como os bonecos produzidos pelos Kadiwéus.
Apesar desta articulada teoria, que apresenta uma ligação entre os bugres de Conceição e peças produzidas no século XIX, sua obra possui um caráter contemporâneo. A crítica de arte Maria Adélia Menegazzo aponta como recorrente o uso de artes primitivistas por diversos artistas na intenção de inovarem seus trabalhos. “Eu acho a linguagem utilizada por Conceição em sua escultura extremamente contemporânea. Os bugrinhos possuem traços essenciais da forma humana. Na história da arte vemos, por exemplo, quando os modernistas vão buscar na arte primitivista um parâmetro para a constituição da forma. Se pegarmos, por exemplo, Matisse15 e Picasso16, na Europa, no início do século XX, eles observam exposições de arte primitiva e mudam totalmente a história da arte. O cubismo, quando começa, tem na arte africana e na arte dos povos da Oceania um referencial importantíssimo. Se virmos as máscaras que o Matisse e o Picasso colecionavam e depois vemos os desenhos ou esculturas deles falamos: ‘Pronto! Já sei de onde vieram.’ É
15. Henri Matisse foi um artista francês considerado, juntamente com Picasso e Marcel Duchamp, como um dos três seminais do século XX, responsável por um evolução significativa na pintura e na escultura. Faleceu em 1954. 16. Pablo Picasso foi um pintor espanhol, Falecido em 1973. É reconhecido como um dos mestres das artes do século XX.
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uma redução do humano a sua essência em termos de traços. São poucos, mas você olha, vê e fala: ‘Isso é uma figura humana’. Então eu acho que a arte da Conceição tem essa característica. Ela é uma arte extremamente limpa e sintética, mas que expressa com propriedade aquilo que ela quer passar”, conclui.
A palavra “bugre”
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2000, p.111) define a palavra “bugre” de quatro formas: “1. Etnôn. Indivíduo dos bugres, povo indígena que habita o S. do Brasil. sm. 2. Fig. Designação genérica dada ao índio, especialmente o bravio ou aguerrido. 3. Fig, Indivíduo rude ou inculto. 4. Pertencente ou relativo a bugre.”
A falta de uma definição categórica para tal palavra nos mostra claramente uma incerteza sobre seu real significado. Em outras publicações “bugre” é associado a um denominação dada aos indígenas brasileiros pelo fato de serem considerados não cristãos pelos europeus17. Também é reafirmada, assim como na definição do dicionário Aurélio, a ligação com os índios do sul do país, mais especificamente a tribo dos Caingangues18, da qual Conceição contou a Roberto Higa descender. Apesar das inexatas definições, em todos os
17. Segundo a definição dada pelo site “Wikipédia - A enciclopédia livre”, no endereço: http://pt.wikipedia.org/wiki/Bugre. 18. Segundo um das definições dadas site Dicionário Informal, no endereço http://www.dicionarioinformal.com.br/bugre/
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casos a palavra está sempre associada aos indígenas.
Porém, os diversos significados não apresentam o tom pejorativo que a palavra carrega ao ser usada cotidianamente. No estado de Mato Grosso do Sul é comum ouvirmos a expressão ser utilizada pelos fazendeiros para se referirem a tribos indígenas que ocupam terras, na intenção de recuperarem seus tekohas19 , como denominam os Guaranis.
As acadêmicas Silvana Colombelli Parra Sanches e Maria Luiza Silva de Campos, em artigo intitulado “A Obra de Conceição dos Bugres: ancestralidade e identidade”, citam Luís Augusto de Mola Guisard para explicar a origem da palavra “bugre” e sua significação mais usual:
Os bugres eram indivíduos com características indígenas, sugerindo uma origem distante dos centros urbanos. O termo era usado principalmente nos espaços públicos – especialmente em referência àqueles que possuíam características específicas ligadas a uma tradição indígena da região – mas poderia ser usado também em espaços mais reservados. Fica claro que o termo é pejorativo, para identificar aqueles que apresentam alguns traços físicos específicos – cabelo de flecha, liso, escorrido; olho rasgado, nariz meio achatado; escuro sem ser negro – que estão associados a aspectos culturais, sociais, psíquicos e econômicos também específicos: o bugre é rústico, atrasado; o bugre verdadeiro é do mato, aquele
19. “Tekoha” significa para os índios a sua terra, seu espaço vital de sobrevivência, necessário para viver, plantar e se desenvolver. De ‘teko’ (= costume, modo de ser) e ‘ha’ (= lugar em onde), é uma palavra Guarani que significa não só o território físico no qual uma comunidade indígena vive, mas também as relações sociais (do mesmo modo, não só as relações econômicas e de subsistência, mas também as interpessoais) e espirituais que ocorrem neste lugar.
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que está escondido, mais agressivo e arredio; [...]. [grifo do autor]. (GUISARD apud SANCHES e CAMPOS, 2011, p. 06)
O professor Américo Calheiros comentou sobre a contribuição dos bugres de Conceição para ressignificação dessa expressão. “A força indígena está presente em todo país e ela conseguiu produzir na sua forma de expressão, a que foi dado o nome de ‘bugre’, essa força do índio brasileiro ou do bugre. Inclusive, extrapolando esse sentido e essa visão mais de desprezo que as pessoas sempre tinham com a palavra ‘bugre’. Desse preconceito também. ‘Bugre’ era sempre assim: ‘Aquele bugre!’ Aqui em Mato Grosso do Sul, sempre a palavra ‘bugre’ carrega a tinta do desprezo e a Conceição, de alguma forma, quebrou também com esse paradigma. Não que isso esteja completamente ausente da nossa cultura, mas ela contribuiu com um pensamento novo a respeito disso e também com a diminuição desse preconceito em cima do nosso índio. Porque quando você fala ‘índio’ é de um jeito. Aqui quando se fala ‘bugre’, eu sempre observei, é menosprezando.”
O professor Edgar Nolasco (2009, p. 12) no artigo “Bugres sulbalternus” reafirma a importância da adoção do termo “bugre” para se designar as esculturas de Conceição no debate entre opressor e oprimido:
Não veríamos tanto problema se a alcunha de “bugres” para as suas esculturas tivesse partido da própria Conceição dos “bugres”, principalmente porque ela fala de um lugar subalterno específico dentro do contexto da cultura da sociedade hegemônica, branca e letrada. Agora se tal denominação, que é sempre pejorativa, tivesse partido, por
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exemplo, da crítica ou até mesmo de alguma instituição do Estado, avultar-se-ia em tal rubrica uma peja totalmente negativa, culturalmente falando, na produção artístico-cultural da escultora.
O autor ainda acrescenta que a criação dos bugres carrega um caráter político-social: Voltamos agora aos “bugres subalternus” de Conceição dos Bugres, por entender que eles não se prestam tão-somente à apreciação estética, mas também como representações culturais que desarticulam o lugar social que o Estado, assim como os demais discursos dominantes e institucionais, põem aquele sujeito subalterno representado, esculpido no trabalho artístico.
Nós próprios
O resgate das origens da população sul-mato-grossense, que os bugres de Conceição apresentam, pode ser um dos fatores que levou a uma identificação tão marcante com essa obra. Apesar das diversas produções artísticas de Mato Grosso do Sul, foi o bugre que ficou marcado na memória das pessoas. É claro que essa reação acontece, em maior ou menor medida, a partir de condições no sentido de incentivo à valorização cultural inclusive, de políticas públicas, trabalhos de arte e educação e uma infinidade outras iniciativas que ainda não ocorrem de maneira plena. Considerando isto, pode-se dizer que os bugres de Conceição tiveram mais um fator de superação ao serem tomados pelas pessoas ligadas à arte e por parte da população, 67
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como um fator de identificação do nosso povo.
Apesar de toda a discussão em torno do conceito de identidade e todas as significações que esta palavra possa assumir de acordo com determinadas áreas das ciências humanas, é impossível não reconhecer uma ligação entre os bugres de Conceição e a população do Mato Grosso do Sul no que tange a identificação, no sentido de reconhecer alguma coisa sua no outro.
A responsabilidade de depositar na figura do bugre de Conceição a função de identificar o povo dessa região se fortaleceu com a divisão do Estado, como aponta Américo Calheiros. “Foi o primeiro produto de arte que as pessoas qualificaram como um produto genuinamente sul-mato-grossense no campo artesanal. Porque até então, antes de Conceição dos Bugres, você não tinha nada que num estado jovem, que estava mostrando sua cara para os próprios sul-mato-grossenses e para o Brasil, que identificasse no campo da arte algo que fosse a cara de Mato Grosso do Sul. O bugre da Conceição foi o primeiro produto artístico artesanal que conseguiu catalisar essa força da nossa identidade. E até hoje. Passaram-se tantos anos, acho que mais de 40 anos que ela começou esse trabalho, e não perdeu a sua força, a sua energia, e representa com muita autenticidade o que é Mato Grosso do Sul, sua arte e seu povo”.
Diversos fatores podem justificar a identificação desta escultura com nossa terra, nosso povo. Para Margarida Marques, a forte ligação com estes bugres, está justamente no que apresentam no momento em
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que pousamos os olhos sobre eles, a ligação com as populações indígenas, que para a jornalista é presente com muita força em nosso estado. “Ela expressava os primeiros habitantes de Mato Grosso do Sul. O estado é até hoje a segunda população indígena do Brasil. Na verdade, é uma população muito expressiva. Uma população que tem idiomas diversos. São os Guarani-kaiowás, são o Terenas, são os Guatós, os Ofaié-Xavantes”.
A crítica de arte Maria Adélia Menegazzo lembra o quanto a figura do bugre está ligada a nossa cultura local, aparecendo como elemento regional na obra de outros artistas, como o poeta Manoel de Barros. “O bugre também é uma marca da cultura local. Não vou dizer que seja geral, porque se a gente for pensar o que é o Mato Grosso do Sul hoje, ele é um ‘cadinho’ de muitas culturas. Mas o bugre é, sim, uma marca da nossa cultura. Eu acho interessante, porque, por exemplo, você pega um poeta como Manoel de Barros, que é o que a gente pode chamar de uma cultura erudita. Ele não é um poeta popular nesse sentido. Ele é um poeta erudito. E ele sempre fala, ‘sou de bugre’. ‘Eu ando pelos desvios, porque é nos desvios que o bugre acha os araticuns mais maduros’. Então, ele usa sempre informações da cultura local para formação dessa poesia, que não é uma poesia só daqui. Mas eu acho que essa marca do bugre ela vai aparecendo por toda a nossa cultura e nisso a Conceição traz uma contribuição muito grande”.
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O bugre é capaz de ao mesmo tempo possuir características particulares de um povo e de uma região e não ser excludente com essa representação, o que acaba contribuindo com esta identificação, como acredita a artista plástica Lúcia Monte Serrat. “O estado de Mato Grosso do Sul é um estado que tem uma miscigenação, não sei se miscigenação é a palavra, mas ele tem muitas culturas e sempre se procurou uma identidade para representá-lo. De repente o bugrinho ele vem trazendo uma identidade que pode e que mostra que é nossa. Ele não existe em nenhum outro estado. Ele surgiu nesse estado, ele é característico desse estado. Ele representa essa junção cultural, na verdade. Ele não marca nenhuma etnia, por exemplo. Não define nenhuma etnia. Porque se não fica assim: ou é japonês, ou é árabe, ou são os gaúchos. O bugrinho ele é o Mato Grosso do Sul. Ele foi se colocando e as pessoas foram se apropriando dele. Eu acho que foi uma feliz apropriação”.
Além de toda a carga ancestral que leva a identificação com os bugres de Conceição, o fato de ela ter deixado esta produção artística como herança após sua morte, também contribuiu à reafirmação dessa identificação. Com os bugres sempre presentes é difícil não os associarmos a nossa identidade cultural.
O bugre carrega fortes traços que identificam especificidades de um estado que nasceu em meio a chegada de imigrantes, extermínio de etnias indígenas, fronteiras, divisas e limites definidos por questões territoriais, políticas e sociais. Apesar disso, alguns dos
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entrevistados propõem um debate em torno do trabalho de Conceição dos Bugres que vai muito além das representações locais.
Idara Duncan explica a profundidade da obra no contexto de identidade cultural. “O bugre não só é o símbolo da nossa cultura, como ele projetou este estado, não só no Brasil, projetou o estado no mundo. Também é importante por mostrar o que é a força do artista, o que é a cultura como fator de identidade para um povo. Por isso a cultura tem que ser tão valorizada, porque é a carteira de identidade daquele povo. É a cultura que mostra quem você é e o diferencial entre os povos”.
Partindo de uma linha de reflexão parecida com de Idara e elucidando sobre a reais intenções de Conceição ao produzir esta peça, Ilton Silva fala sobre o caráter além de fronteiras da escultura do bugre. “Eu acho que os bugres da Conceição não estão dentro da identidade de Mato Grosso do Sul. Eles vão além um pouquinho. Uma identidade latino-americana. Tem pessoas preocupadas com essa identidade latino-americana. Como tem pessoas preocupadas com a identidade da sua regiãozinha ali. Mas eu tenho certeza que os bugres da Conceição vão além da identidade de Mato Grosso. Na identidade de Mato Grosso estão incluídos, sim, os bugres da Conceição. Isto está pronto! Mas os bugres da Conceição eles têm que servir para quê? Para buscar uma identidade latina. E quando busca essa identidade latina, ela vai para uma identidade
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universal. São critérios que se exigem para chegar ao universalismo. O regional está embutido no universal. O universal está embutido no regional. Mas nós queremos uma identidade latino-americana. Minha mãe se preocupava com essa identidade. Nós não somos só brasileiros. Minha mãe era filha de argentina. E minha mãe buscava um identidade latino-americana. Ela passou essa informação para mim e eu aceitei. Hoje eu não busco mais uma identidade MS. Eu já tenho essa identidade. Isso está em nós”.
Entre a beleza e a utilidade
Escultura, arte e artesanato são os principais termos utilizados para se referir aos bugres de Conceição nos registros documentais encontrados. Em publicações não especializadas, como as jornalísticas, essa variação é mais frequente. Tal aspecto reflete uma certa confusão quanto a definição do trabalho produzido por Conceição, que acaba tornando indispensável um debate sobre a questão.
Conforme é colocado pela pesquisadora Maria Adélia Menegazzo, é comum existir dúvidas se o trabalho da Conceição é arte ou artesanato, por condições colocadas no próprio processo de produção dos bugres. “Existem esses questionamentos devido ao fato de haver a repetição de uma determinada forma. Uma repetição que inclusive continua depois que ela morre.
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Porque o marido dela continua fazendo os bugrinhos e depois que o marido morre, o neto continua fazendo os bugrinhos. Então nessa repetição da forma poderia ter embutido um conceito de artesanato”. Ela ainda acrescenta que podemos falar em artesanato na escultura do bugre, a partir da continuidade feitas por Abílio e Mariano, pois nestes casos já não haveria os traços particulares de Conceição.
Entre os entrevistados, é unânime a colocação dos bugres de Conceição como obra de arte. O principal ponto utilizado para justificar a utilização desse termo é o fato de cada bugre apresentar características muito particulares, apesar de possuírem um certo padrão estético, com suas posições de sentido e cabeças chatas.
A artista plástica Lúcia Monte Serrat justifica o uso do termo arte e onde o artesanato se encaixa nesta discussão. “Cada bugrinho da Conceição tinha uma pesquisa. Tinha a pesquisa da cera que ela usava, a pesquisa da tinta, da cepa. Ela começou com uma cepa, depois mudou. Tudo isso é uma pesquisa de arte também. Porque na verdade, todo artista é um pouco artesão. Aliás, um pouco não, é muito artesão. Eu acho que as duas coisas se misturam muito. O que separa, é que na arte você se coloca, você coloca a sua emoção em cada peça. Você difere uma peça da outra. No artesanato você repete sem muita preocupação de que uma peça seja diferente da outra.
Maria da Glória Sá Rosa usa os ares humanos que Conceição acreditava teren seus bugres para clas-
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sificar tal escultura como arte. “A arte é diferente do artesanato, porque a arte é única. Uma peça dela é única. Você não vai fazer isso em sequência. Só ela podia fazer. A arte é isso, um produto único e indivisível. Como se fosse a representação do ser humano”.
Já Ilton Silva é simples ao definir as obras da mãe como produtos artísticos. “A proposta era ser arte. Porque é impossível uma escultura entrar no artesanato. Porque artesanato não tem três dimensões. Uma escultura tem. Ou uma escultura é arte ou não é arte. O da minha mãe é arte. Poderia não ser arte. Mas nunca foi artesanato, porque é escultura. Então escultura não entra no artesanato. Artesanato é o que? A peça de gesso feita em uma fôrma. Um escultura de gesso tem três dimensões, mas ela teve uma fôrma. Não tem criatividade é uma cópia de uma obra de arte”.
Apesar das opiniões, é possível levarmos essa discussão para um campo mais teórico. Marlei Sigrist (2000, p.77) define artesanato “como todo objeto confeccionado por uma pessoa ou pequeno grupo, com características domésticas, cuja função é utilitária. O objeto produzido pelo artesão tem uma utilidade prática no seu cotidiano, seja para fins domésticos, de trabalho ou religioso”.
Neste sentido, se levarmos em consideração a ancestralidade que envolve as esculturas dos bugres, a intenção inicial da artista era produzir padres e alguns de seus bugres eram apresentados como uma espécie de amuleto, como é o caso dos bugrinhos pretos. Então
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podemos considerar que as peças de Conceição possuem um caráter artesanal.
Marlei Sigrist (2000, p.77) também apresenta o conceito de arte popular, que, segundo a autora, consiste na
(…) produção espontânea do artista que desconhece as regras e os conceitos de arte, estabelecidos por Instituições, empregando o seu padrão ideal de beleza, cuja função é decorativa. Tendo em vista o que já foi apresentado sobre o processo de criação de Conceição dos Bugres suas peças se encaixam perfeitamente nesta conceituação. (grifo do autor)
Após apresentar tais definições, Marlei lembra ainda que muitos artesanatos apresentam manifestações artísticas, cuja finalidade é conseguir melhor visual. Por essa afirmação, a autora mostra que é possível a coexistência dos dois conceitos em uma mesma peça.
O professor Gilberto Luiz Alves (2013, p. 2) define três modalidades artesanais a partir da divisão técnica do trabalho artesanal e das razões que estiveram em suas origens. São elas: artesanato ancestral, artesanato espontâneo e artesanato induzido.
Em sua teorização o trabalho de Conceição é apresentado como espontâneo, aquele que: (…) é produzido individualmente por pessoas simples, que, no passado, exerceram atividades econômicas que lhes permitiram ter certo domínio teórico-prático compatível ao que, no futuro, se caracterizaria como artesanato de peças ornamentais. Foram oleiros muitos ceramistas; foram carpinteiros ou marceneiros muitos entalhadores em madeira; foram seleiros ou peões diversos artífices de peças em 75
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couro. De início, quase sempre, entregavam-se ao artesanato sem visar finalidade econômica. Respondiam a uma necessidade interior e sentiam tal prazer ao realizar o seu fazer que os identificavam como exercício de lazer. Com o tempo, começaram a vender seus produtos, complementando, assim, seus rendimentos.
Para o autor a modalidade de artesanato espontâneo é a principal reserva daqueles artesãos que, pela perfeição de seus produtos, pelo apuro técnico, pela sistemática busca de beleza e pela criatividade, são guindados à condição de artistas. E é neste caso que, segundo Gilberto, se encontram os bugres da Conceição entalhados em madeira.
Do barato ao caro
A dúvida em conceituar os bugres de Conceição como arte ou como artesanato é também acentuada pelo aspecto comercial polarizado a que suas obras foram e são sujeitas. Pelas mãos da artista os produtos eram vendidos por preços muito pequenos. O fotógrafo Roberto Higa acredita que tal atitude está relacionada à personalidade e à própria forma de vida da artista. “Ela só queria saber da arte dela, ou melhor, ela só conseguia entender a arte que ela fazia. Ela não conseguia entender ‘como vou fazer para ficar rica’, ‘como eu vou fazer para morar em uma casa minha’, ‘como é que eu
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vou fazer para ter meu almoço todos os dias’. Esse tipo de artista eu acho que fica em outro patamar, em outro departamento. Porque não tem nada a ver com artista que é bom para comercializar. Então, são dois tipos de arte completamente diferentes”, acredita.
Mesmo a partir do momento em que Conceição passou a fazer da venda dos bugres uma forma de sustento, a artista não acrescentou em sua “tabela de preços” a singularidade de cada uma de suas peças. Maria Adélia Menegazzo relata que apesar da artista vender muito barato ela buscava comercializar todas as peças que produzia. Essa atitude nos apresenta um caráter quase industrial em sua produção, em que se produz muito para se vender barato.
Paradoxalmente, a atitude de algumas pessoas mais instruídas que consumiam as obras de Conceição e tinham consciência de seu valor como obra de arte, era revendê-las a altos preços. Margarida Marques relatou uma situação onde podemos concluir que estas práticas não eram incomuns. “Em 1980 se vendia muito caro no Rio de Janeiro. Porque eu encontrei lá bugres sendo vendidos em casa de antiguidade, muito caros”. A jornalista ainda contou que ao questionar o gerente do estabelecimento sobre qual era a origem de suas compras, ele alegou que não tinha permissão para dar esta informação.
Se na década de 80 já era possível encontrar os bugres sendo vendidos por valores tão altos, como relata Margarida, podemos ter uma noção de quanto deve
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valer um bugre da Conceição nos dias atuais. Provavelmente, chegou ao patamar de ter o valor comercial de uma verdadeira obra de arte. Apesar de questionados, nenhum dos entrevistados soube estimar em quanto está avaliada uma escultura de Conceição.
Humberto Espíndola, sendo detentor de um dos maiores acervos particulares de bugres da Conceição, juntamente com Aline Figueiredo, disse que mesmo tendo consciência do grande valor comercial desta obra, é muito difícil encontrar alguém que queira se desfazer delas. Porém foi possível encontrar no ateliê de Mariano quatro bugres produzidos pela Conceição. Pelos valores a que as peças estavam sendo vendidas, constatamos que o neto possui com os bugres uma relação de comércio semelhante a que Conceição mantinha com eles. O neto da artista oferecia o preço de R$ 4 mil reais por uma família de quatro bugres, três de madeira e um em pedra-sabão. Um valor baixo, se considerarmos os preços que as obras costumam possuir no mercado das artes.
Herança em forma de gente
Talvez a maior peculiaridade das esculturas de Conceição e também o motivo que pode ter deixado os bugres tão marcados na memória do povo sul-mato-grossense, é a continuidade deste trabalho pelas mãos de Abílio e Mariano. O marido e o neto da artista to-
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maram para a si a responsabilidade de não deixar que os bugres caíssem no esquecimento ou se limitassem a serem lembrados apenas entre os intelectuais. A família realiza, inconscientemente, um trabalho de resistência.
Além das técnicas de produção das esculturas, a família de Conceição herdou traços de seu estilo de vida e elementos de seu misticismo, que continuaram a interferir no processo de criação dos bugres. Lúcia Monte Serrat conta sobre uma revelação feita por Abílio em uma das visitas que a artista plástica fez a ele. “Quando a Conceição faleceu o seu Abílio ficou meio depressivo, porque os dois estavam sempre muito juntos, ela fazia a arte dela, mais ele que cortava a cepa, ele que serrava. Ele participava diretamente do trabalho da Conceição. Quando ela faleceu ele ficou meio depressivo. Quando fui visitá-lo, ele me disse que a noite ele teve um sonho em que Conceição dizia: ‘Velho, não fica triste. Não fique triste! Por que você não continua fazendo os bugrinhos? Porque os bugrinhos são uma companhia e você não pode perder a companhia. Se você está se sentindo sozinho, continua a fazer os bugrinhos’. A partir desse sonho, Abílio teria iniciado a feitura de seus bugres, que se diferenciam dos de Conceição pelos traços rigidamente retos e profundos.
Mariano foi o herdeiro formal da arte de Conceição. Pois, desde menino, por volta de seus oito anos de idade, na chácara onde aproveitava para colher guavira, ajudava a avó na produção das esculturas. Depois de quase dez anos observando a gestação e o nascimento
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de centenas de bugrinhos, Mariano dominou as técnicas de produção e também adquiriu um estilo próprio que passou a imprimir em suas peças. Após a morte da avó, fez um ateliê em sua própria casa para por em prática as técnicas herdadas.
A áurea mística de Conceição ainda permanece na produção de Mariano. Apesar de ser evangélico, ele admite que é a presença da avó o que o motiva e também a sua mãe, Sotera, a produzirem os bugres. “Quando produzimos ela está ali perto de nós. Querendo que nós façamos. Não deixando a gente parar de fazer os bugrinhos”, conta o neto. Segundo ele, é necessário que haja uma inspiração para que consiga criar as peças, o que não acontece todos os dias.
Apesar de receber com carinho os bugres da avó, que vez ou outra chegam as suas mãos para passar por uma espécie de restauração, Mariano apresenta o mesmo desapego que Conceição com as peças que produz. “Eu tinha uns bugrinhos originais dela aqui e podia ficar com eles. Mas não gosto de ficar com bugrinhos. Tem que vender. Não quero nada dela, não. Porque é muito triste. Eu já estou fazendo o bugrinho que era ela quem fazia. Estou dando continuidade”.
Aos olhos de cada um
O bugre tem um significado muito particular para cada uma das pessoas. Existem os que acreditam que a ligação com a terra, que hoje é Mato Grosso do
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Sul, e com os povos indígenas é a mais evidente manifestação nas esculturas de Conceição. Esta opinião é compartilhada pela maioria dos nossos entrevistados, inclusive por Raquel Naveira.
A escritora acredita que, mesmo dentro destas manifestações, a artista conseguiu ir além da expressão estética. “Os bugrinhos transcenderam. Eles expressam a própria alma indígena, a alma guarani do sul-mato-grossense. Eles expressam a alma de fronteira do nosso povo, porque nós somos um povo da fronteira. Uma fronteira que fica entre o bem e o mal, entre a beleza e a tristeza, entre a vida e a morte. Os bugrinhos expressam essa alma indígena, rude, tosca, porém sensível e forte do sul-mato-grossense”.
Américo Calheiros afirma que a expressão indígena do estado trazida nos bugres não é capaz de limitar territorialmente a linguagem destas esculturas. “Eu acho que os bugres são a expressão da cultura indígena do Mato Grosso do Sul, que de alguma forma extrapola as nossas fronteiras. Por que não podem ser expressão da cultura indígena brasileira? Afinal ela não era sul-mato-grossense. Ela era uma gaúcha”.
Para alguns dos entrevistados os bugres são capazes de despertar sentimentos muito particulares, que dialogam com a personalidade e com o emocional de cada um. Maria da Glória Sá Rosa acredita que eles são capazes de captar até mesmo sentimentos pessoais da gente desta terra. “Eles expressam um olhar sul-mato-grossense para a vida. Um olhar de confiança.
Tainá Jara
Porque eles estão sempre em posição de sentindo. Você pode olhar! Eles não estão nunca de mãos levantadas, a espera de alguma coisa que vai acontecer. Eu acho que eles expressam um olhar de confiança pela vida. Eles ensinam às pessoas que é preciso confiar. Nunca desesperar. É uma coisa meio religiosa mesmo, mística”.
Talvez pela maior proximidade com Conceição dos Bugres, conhecendo os recônditos da personalidade da artista, Ilton Silva vê características da própria mãe nas esculturas. “Os bugrinhos expressam a Conceição. Uma pessoa de fé. Se você pegar os bugrinhos você vê que eles têm determinação. Tem um que eu botei o nome de Eu vou lá, outro de Vou lá e passo, e o outro de, Eu vou buscar. Então eu acho que é determinação que tem esses bugres. Eles não mostram tristeza. Nem alegria. Eles mostram momentos de uma decisão da vida que você está em busca de alguma coisa. Está buscando com determinação, busca e acabou. Não tem conversa. Não tem obstáculo. Eu acho que esses bugres são muito determinados. Apresentam um desejo de conquista, de uma evolução, de sobrevivência. Determinação mesmo!”
Idara Duncan ousa ir mais fundo em sua opinião. “Eles expressam todos os sentimentos! Porque a partir do olhar de quem vê uma obra, ela responde. Tem bugrinhos alegres, bugrinhos tristes. Quando as pessoas estão tristes elas se identificam. Quando estão alegres se identificam também. Os bugrinhos expressam o povo sul-mato-grossense, o povo brasileiro, o povo mundial.”