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Fernanda Palheta Juliana Barros Juliane Garcez
Campo Grande 2015/2
Creative Commons 2015 Fernanda Palheta, Juliana Barros e Juliane Garcez Fica permitida a reprodução e derivações desta obra, parcial ou integrante, desde que não seja usada para fins comerciais. Este livro faz parte do trabalho final apresentado à disciplina Projetos Experimentais, de Fernanda Letícia Silvino Palheta, Juliana Barros Corrêa Borges e Juliane Carolina Garcez, pela graduação em Comunicação Social - hab. em Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Reitora Célia Maria Silva Correa Oliveira Diretora do Centro de Ciências Humanas e Sociais Vera Lúcia Penzo Fernandes Orientador do Trabalho de Conclusão de Curso José Márcio Licerre Coorientador do Trabalho de Conclusão de Curso Marcos Paulo da Silva Não é elogio - Assédio de rua em Campo Grande Fernanda Palheta, Juliana Barros e Juliane Garcez Campo Grande Semestre letivo 2015/2 1ª Edição Ilustrações: Juliane Garcez Texto, projeto editorial e gráfico: Fernanda Palheta, Juliana Barros e Juliane Garcez
Agradecimento Agradecemos às nossas famílias que nos apoiaram em nossa passagem pela universidade e nesse processo tão complexo que nos tirou muitas vezes de suas companhias. Ao nosso amigo Jones Mário pela leitura crítica e olhar atento ao nosso texto. Aos nossos orientadores José Márcio Licerre e Marcos Paulo da Silva por nos encaminhar nessa etapa. Às professoras do curso que compartilham as nossas angústias e nos dão forças para continuar caminhando. Às pessoas que se evolveram no trabalho de alguma forma. Às mulheres que participaram da nossa pesquisa e que se prontificaram a compartilhar com suas amigas nossa enquete e a todas que concordaram em dividir suas histórias particulares, com seus conhecimentos e suas vivências. E dedicamos esta obra a todas as mulheres que em seu cotidiano enfrentam as várias formas de assédio e têm seu espaço violado. Que as histórias compartilhadas nos unam para combater essa sociedade patriarcal e nos dê forças para sermos a mudança que acreditamos.
´ Sumario ~
~ Apresentacao Prefacio Inofensivas Quadras Quer Carona? Canteiro de Obras Fora do Corpo ^ ´ Referencias Bibliograficas
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~ Apresentacao Abordar a questão feminista em nosso Trabalho de Conclusão de Curso não estava planejado, mas caiu como uma luva em nossas vidas. A universidade fez com que pudéssemos enxergar esse universo de uma maneira mais crítica e ativa. Em 2011, iniciamos nossa jornada acadêmica com a inocência de quem sai do ensino médio. Nos aventuramos no movimento estudantil e a partir desse momento surgiram muitos aprendizados e vivências. Começamos a entender como o feminismo é importante na vida das mulheres e como a autonomia sobre o próprio corpo, ou melhor, sobre a própria vida, é essencial. Dentre muitas teorias e acontecimentos do dia a dia percebemos a importância de abordar o assédio de rua em um trabalho acadêmico. Com o livro pretendemos mostrar às mulheres como é importante discutir esse assunto e questioná-lo. Queremos mostrar a todas que não devemos aceitar o assédio e nem qualquer outra forma de violência. E o momento é propício para essa revolução, visto que cada vez mais as mulheres reivindicam o direito sobre seus corpos e buscam sua autonomia. Pretendemos inovar a linguagem jornalística em nosso livro-reportagem com o uso das histórias em quadrinhos. Nos falam que ao produzir o projeto experimental devemos explorar coisas novas e realizar um conteúdo diversificado. Testamos novas linguagens e usamos este espaço para colocar em prática as ideologias que acreditamos e pela forma lúdica mostramos os problemas enfrentados pelas mulheres. 11
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´ Prefacio Foi com muita honra que recebi e aceitei o convite para apresentar este livrorreportagem idealizado e concretizado por Fernanda Palheta, Juliana Barros e Juliane Garcez, sob orientação dos Professores José Márcio Licerre e Marcos Paulo da Silva e que marca a conclusão da graduação em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. A iniciativa de retratar o assédio pelo qual passam cotidianamente mulheres e meninas, do ponto de vista da violação dos direitos humanos de nós mulheres, traz a tona uma reflexão muito importante: o assédio, a cantada, as investidas insistentes causam constrangimentos e são ofensivos, podem gerar traumas, cultivar medos e ferir a dignidade de todas nós. Para entender isso, Fernanda, Juliana e Juliane percorreram as histórias e as vivências de várias mulheres e é por esses dois motivos, pela escolha do tema e por fazerem de seu trabalho de conclusão de curso um lugar em que todas nós pudemos ser assunto de pesquisa e sujeitas de nossa própria história, é que este trabalho se torna muito significativo às mulheres e aos feminismos. Mulheres escritoras, pintoras, poetisas, mais tarde pensadoras pelas diversas ciências como a historiografia, a sociologia, a filosofia, nos mostraram de que forma ao longo dos tempos as mulheres foram bastante descritas e representadas por homens ao mesmo tempo em que eram silenciadas, por séculos impedidas de se pronunciar, algumas utilizaram-se de estratégias como o uso de pseudônimos masculinos para se manifestar e só foram reconhecidas postumamente. Esta repreensão histórica impossibilitou nossa chance de apreender suas experiências de vida particular e todos 13
os elementos que circundavam suas existências. Foi da luta e resistência que esses anônimos cotidianos passaram a ganhar visibilidade e é por iniciativas como a deste livrorreportagem que nós mulheres conseguimos romper os silêncios e entender o caráter político- ideológico das relações de poder desse estruturado sistema opressor, descortinando os olhos para fatos que são tratados como algo habitual e banal, como o assédio. Campanhas como ‘Think Olga’ e ‘Chega de Fui-Fui’, citadas no capítulo Inofensivas Quadras, representam mais uma forma de manifestação política adotada por mulheres ativistas que preconizam uma era onde novas ferramentas fortalecem a luta por equidade. A comunicação social, nesse sentido, torna-se crucial para a larga difusão de ideias e debates sobre aquilo que nos unifica, o enfrentamento as desigualdades de gênero. Mesmo os feminismos ganharam ampla projeção neste contexto e com isso tivemos que repensar nossos próprios planos de comunicação e incidência política, para garantir respeito a nossa liberdade de expressão, compreensão da nossa luta e nossa arte por parte da sociedade brasileira. Também é parte dessa luta mudar o lugar que os diversos meios de comunicação costumam relegar a nós mulheres. A sensibilidade desse trabalho, pioneiro em sua forma de escrita enquanto trabalho de conclusão do curso de Comunicação Social no estado, mostra como essa ciência permite-se repensar e desconstruir os discursos hegemônicos e como a academia continua a ser um espaço de debates para a transformação social. Este livro facilita nossa leitura e compreensão de um tema invisibilizado, sobre um corpo exposto às práticas de um poder vil e perturbador, o mesmo poder 14
que insiste na domesticação de nossos corpos e em nos predestinar ao papel social de reprodutoras. O resultado de toda essa combinação é um corpo feminino indignado, cansado e que não pretende mais cerrar seus lábios diante das tentativas de sujeição. Por isso, recomendo a leitura desta obra que está atenta às questões de gênero e de raça/etnia. Saúdo e felicito as comunicadoras responsáveis pelo projeto e elaboração do livro, Fernanda Palheta, Juliana Barros e Juliane Garcez e congratulo mais uma vez Juliane Garcez, agora pelo apreciável trabalho de ilustração que marca este livroreportagem. Convido todas as pessoas a se debruçarem sobre este material que é um instrumento capaz de transformar nossos olhares.
Nathália Eberhardt Ziolkowski Socióloga, feminista e escritora Ativista da Articulação de Mulheres Brasileiras no Mato Grosso do Sul Integrante do Núcleo de Estudos de Gênero – NEG/UFMS Na luta pela descolonização dos nossos corpos.
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Inofensivas quadras
Meu nome e´ Amanda Amaral, tenho 23 anos e sou jornalista, Me formei recentemente. ´ gosto de varias artes! 18
Eu fui visitar uma amiga
Ela mora hA´ quatro “inofensivas” quadras
~ tenho carro, Como nao ando muito a pe´
de onde eu moro
Sozinha, ´ delicia?
Nessas quatro quadras,
~ teve UM homem que nao ~ nao tenha mexido comigo
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´ me acompanhou durante uma quadra Um taxi eu fiquei com muito medo
~
~
Faco a corrida de graca!
~ dei moral e seguiu eu nao
Quer caron a?
~
~ Adiante, dois caras que vinham na direcao ´ contraria ficaram impedindo a minha passagem 20
ele viu que
N
“
ós somos condicionadas a nos sentirmos oprimidas pelo azar de sermos percebidas como mulher, sozinha e frágil na madrugada”. As quatro inofensivas quadras do trajeto da jornalista Amanda Amaral
fizeram com que ela saísse de sua rotina e despertaram sua indignação por ser invadida por estranhos na rua. Amanda busca saídas para evitar o assédio que é frequente em sua rotina. “Na verdade rola todo dia. E como aconteceu esses dias eu tenho pensado mais sobre. Não tenho carro, quase nunca dirijo o dos meus pais e até certo horário não dá mais pra pegar ônibus e pagar por um táxi não deveria ser obrigação”. Ao analisar os índices de violência contra a mulher, Mato Grosso do Sul aparece como um dos estados do Brasil onde mais se encontra casos notificados. Conforme dados da Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande, no primeiro ano 21
de funcionamento foram atendidas 11.070 mulheres e foram realizados 63.836 procedimentos, como acolhimento, triagem com psicólogas, assistentes sociais, boletins de ocorrência, prisões, medidas protetivas, orientações jurídicas e encaminhamento para o mercado de trabalho. As famosas “mexidas” ganharam um olhar mais crítico das mulheres e são vistas como assédio de rua. A socióloga Ana Maria Gomes caracteriza as “investidas” na rua. “É tudo aquilo que traga constrangimento para a mulher, que pode ser desde a passada de mão no peito ou na bunda, esse tipo de coisa na rua, no transporte coletivo, o cara que se masturba, se esfrega em você, até palavras que te deixam mal, que te deixam constrangida”. A atuação política da militante feminista Ana Maria Gomes teve início no movimento social desde o fim dos anos 1960, quando trabalhava em uma fábrica e participava do movimento operário na grande São Paulo durante a Ditadura Militar (1964-1985). A socióloga relembra sua trajetória. “Passei por organizações clandestinas, por prisão, fui presa política, refugiada no Chile, Suécia, França e lá eu adquiri a minha consciência dessa especificidade da mulher e depois nunca mais larguei o movimento de mulheres, o movimento feminista”. Amanda se sentiu ameaçada ao voltar da casa de sua amiga, mas não teve como evitar as importunações masculinas. Uma vez ao pegar um táxi foi mal tratada pelo próprio taxista, pois o caminho é muito curto e não é lucrativo. A jornalista não sabe o que fazer, pois não se sente segura ao andar a pé sozinha e já foi assaltada ao voltar do trabalho. Mestre em história e ativista da Articulação de Mulheres Brasileiras, a soció22
loga Nathália Eberhardt Ziolkwski tem sua militância pautada na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher. Com um recorte histórico, busca no movimento feminista o início da problematização do assédio. “A própria ideia vem cunhada pelo feminismo quando se começa a pensar em como definir essas agressões que eram dirigidas às mulheres: verbais, psicológicas, físicas. Ela vem dentro desse processo”. O conceito de assédio de rua tem origem no abuso de poder em ambiente de trabalho. Nathália explica que veio inserido a este espaço. “A ideia nasce dessas formas de agressão à mulher, nasce vinculada ao espaço do trabalho, era luta das mulheres, na década de 1970 incorporando-se ao mercado de trabalho que fez com que essas violações fossem percebidas dentro dessas relações de poder, dentro do espaço, dos chefes, ou mesmo a questão de gênero dos homens para com as mulheres”. A penalidade para os crimes de violências contra as mulheres são recentes no Código Penal. A Lei nº 10.224 tipifica o assédio sexual em ambiente de trabalho como crime desde 2001, em seu artigo é descrito que constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, que se prevalece da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função tem como pena detenção de um a dois. A feminista, mãe, militante de direitos humanos, assistente social de formação e especialista em saúde do trabalhador e em psicologia social, Estela Scandola, tem nas relações entre capital e trabalho traçadas toda sua trajetória e conceitua o assédio em ambiente de trabalho. “O assédio no local de trabalho é caracterizado como uma atitude contínua que causa discriminação, desprezo e sofrimento ao trabalhador. É amplamente discutido, embora sejam novas as conquistas da classe trabalhadora”. 23
Para a assistente social e militante de direitos humanos o termo ganha outras definições e é preciso repensar sua conceituação. “O que se tem visto agora é que estamos chamando de assédio aquilo que, culturalmente, antes se chamava de violência psíquica que causa insegurança, medo, deixa a pessoa subvalorizada”. Estela entende o assédio de rua como uma violência social e não interpares. “Um dos equívocos é achar que esse tipo de violência tem um violador e um violado. Não é aquele homem e aquela mulher, não é aquele fato em si, é essa forma de tratar as mulheres que coletivamente nos faz sentir como bifes”.
“É essa forma de tratar as
“Estamos falando de uma ação do assédio, desses procedimentos, dessas atitudes, a mulher
mulheres que coletivamente nos faz sentir como bifes”
andando e passa por dois homens e os dois ho-
Estela Scandola
ver mais dois homens na próxima esquina eles vão
mens olham e falam: ‘nossa, que gostosona’. Se tifazer a mesma coisa. Não é uma ação daqueles dois
homens, aqueles dois homens na verdade são a ponta do iceberg de uma coisa que está submersa na realidade”, problematiza Estela. O assédio como é colocado parte do princípio de seu conceito nas relações de poder dentro do ambiente do trabalho e se amplia para um contexto macro da sociedade, materializado nas cantadas e assobios que ocorrem na rua. Como no trabalho, é uma ação contínua que está presente no cotidiano das mulheres e se baseia nas relações desiguais de poder entre homem e mulher e causa constrangimento. Para Estela, é preciso dividir a ideia de assédio. “A expressão da cantada é uma expressão focada, mas de algo que está subjacente. Ao enfrentar essas cantadas vamos 24
compreender uma coisa que está mais embaixo, que são as relações de alguém que acha que tem poder sobre o corpo do outro, inclusive de avaliar o corpo do outro”. As cantadas e assobios se estruturam dentro das identidades de gênero, pois são a expressão de um assédio existente na sociedade que acontece numa determinada relação, que uma pessoa não respeita o outro. É um processo coletivo dentro da sociedade. Defensora pública há dez anos, Thais Dominato atua na área da defesa da mulher desde 2014 e está à frente do Núcleo de Defesa da Mulher (Nudem) em Campo Grande, Mato Grosso do Sul (MS). Ela explica que com uma definição ampla o assédio de rua pode ser entendido como uma violência sexual contra a mulher por estar ligado à dignidade e à liberdade sexual da vítima. A defensora explica que em um sentido mais restrito é enquadrado como assédio verbal. “A cantada não é uma paquera, paquera tem que ter consentimento. Alguém que grita na rua e te canta, não espera que você vá consentir. O homem faz isso para subjugar, e a mulher se sente constrangida, não quer, não gosta, por isso é um tipo de violência sexual”. Thaís Dominato vê duas formas de interpretação, na sua forma restrita e de maneira ampla. O assédio sexual no conceito restrito necessita dessa situação de hierarquia entre a vítima e o agressor e da relação de emprego e se caracteriza por constrangimento e ameaças. O assédio sexual no sentido amplo pode se enquadrar tudo: o estupro, a cantada, a importunação ofensiva ao pudor, a passada de mão. Em meio aos primeiros debates sobre o tema, nasce em junho de 2013 a campanha nacional Chega de Fiu-fiu, do projeto feminista Think Olga, com proposta 25
de traçar um panorama macro do assédio de rua e combatê-lo. Com mensagens que repudiam esse tipo de violência a campanha cresceu e deu início a um movimento contra as cantadas e assobios na rua. Inspirada na atitude de uma amiga, a jornalista Juliana de Farias decidiu falar sobre o que por tanto tempo foi um tabu, o assédio de rua. Presente desde sua infância, a jornalista por muitos anos não falou sobre as tão “inocentes” cantadas que para ela começaram aos 11 anos, quando ouviu de um estranho na rua comentários sobre seu corpo. A partir da experiência de falar sobre o que tantas vezes não é notado surgiu o movimento que passou a questionar o fiu-fiu. Para dar visibilidade ao tema que não havia sido problematizado, a campanha Chega de Fiu-fiu do coletivo Think Olga caracterizou o assédio de rua e mostrou que “todos os dias, mulheres são obrigadas a lidar com comentários, olhares, intimidações, toques indesejados e importunações de teor sexuais afins que se apresentam de várias formas e são entendidas pelo senso comum como elogios, brincadeiras ou características imutáveis da vida em sociedade”. A campanha deu origem a um estudo online elaborado pela jornalista Karin Heuck para pesquisar a opinião das mulheres sobre as cantadas e os fiu-fiu que vêm da rua. Foram ouvidas 7762 mulheres de todo o país, o “Chega de Fiu Fiu” apontou que 99,6% das participantes já foram assediadas e 98% destes assédios ocorreram na rua. A pesquisa deu origem ao Mapa Chega de Fiu-fiu, uma ferramenta na qual as mulheres podem indicar geograficamente os locais onde estas violações de rua acontecem. Sem dados locais sobre assédio de rua na Cidade Morena, a enquete online exploratória “Assédio de rua em Campo Grande”, realizada entre os dias 20 de no26
vembro de 15 a 4 de janeiro de 2016, pesquisou a opinião de mulheres que moram em Campo Grande sobre as cantadas de rua. A pesquisa desenvolvida por estudantes de jornalismo apontou que 98,4% das mulheres já receberam algum tipo de cantada, assobio ou olhares de desconhecidos na rua. Com 449 participantes, o levantamento foi realizado online e respondido por mulheres que se solidarizaram e quiseram contribuir para a construção desse panorama em Campo Grande. As redes sociais foram a plataforma de divulgação da enquete.
A pesquisa apontou que 98,4% das mulheres já receberam algum tipo de cantada, assobio ou olhares de desconhecidos na rua.
À frente da Secretaria Municipal de Políticas Públicas para Mulheres de Campo Grande, Leyde Pedroso vê as cantadas de rua como uma violação de direito. “Você ser assediada, alguém te falar alguma coisa ou fazer um fiu-fiu ou te chamar de gostosa no momento que você não está interessada. Ou você está trabalhando e o seu chefe te faz uma proposta indecente quando você está ali pra trabalhar. Isso pra mim é assédio”. Com a trajetória de luta pelos direitos das mulheres, em movimento social e organização política, a jornalista especialista em gênero e políticas públicas e atual secretária,
Leyde Pedroso, militou no movimento popular da mulher, no cole-
tivo de mulheres negras e lutou pela inserção da mulher dentro dos partidos políticos. Ana Luisa Alves Cordeiro, militante do Coletivo de Mulheres Negras de Mato Grosso do Sul desde 2009, é graduada em teologia e cursa administração. Em seu doutorado em educação, estuda os impactos da falta de acesso ao ensino superior 27
de negros e negras. Para a militante, as cantadas de rua são uma violência. “O assédio é uma violência que implica na sua dignidade enquanto ser humano, em que você ultrapassa essa barreira do respeito”. Ana Luisa vê o assédio como uma invasão ao outro. “É se achar no direito de tocar a mulher, inclusive de bater nessa mulher, de chegar nesse ponto, e de matá-la, achar que o nosso corpo, o corpo das mulheres, é um território a ser dominado. E isso a gente precisa combater, essa violência precisa desconstruir, porque ela começa nessas coisas pequenas, no assédio dentro do ônibus”. Os locais onde essas violações acontecem não se restringem a rua. O transporte público também é cenário das cantadas. Amanda conta que no ônibus sempre aconteceu. “Uma vez que eu estava com minha amiga indo pra faculdade e perguntei se meu vestido estava curto. Um velho ouviu e respondeu: ‘não tá nada, tá delícia’. Minha amiga não se aguentou e xingou ele: ‘seu velho babão, que nojo’. Sei lá, acho que todo dia, toda mulher deve esperar por algum tipo de babaquice”. Dentro dessa nova perspectiva, o movimento de mulheres problematiza as cantadas recebidas em locais públicos, as quais passam a ser entendidas como uma violação que ocorrem de forma contínua e causam constrangimento e insegurança. É uma violência coletiva que tem como agente um setor da sociedade. Estela vê o assédio como uma violência não só contra a mulher. “É uma expressão dessa desigualdade de gênero que ocorre com mulheres porque historicamente os seres masculinos se acham com direitos sobre os corpos das mulheres. É uma violência mesmo”. Para a defensora pública Thais Dominato, o assédio de rua se enquadra juri28
dicamente no art. 61 da Lei de Contravenções Penais, delitos mais leves, que descreve que ao importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor terá como pena apenas multa. Existe um processo criminal em relação a esta situação, ou seja, é possível que a mulher faça um boletim de ocorrência. “A cantada, a grosseria no ônibus, no metrô, ou mesmo na rua, eu entendo como uma importunação ofensiva ao pudor, ela não é um crime, não está prevista no Código Penal, mas ela é uma Contravenção Penal”. À frente do Núcleo de Defesa da Mulher, Thais Dominato pontua as várias formas de violência contra a mulher. “Nós temos diversos tipos, pode ser violência física, que é a mais comum, todo mundo tem conhecimento. Em relação a ela eu sempre destaco que acontece geralmente em um número grande de ataques com arma branca, com faca”. Thais afirma que a maneira como o crime acontece deixa claro a questão do gênero no ato da violência. “Quando fazemos uma pesquisa nesse sentido, quando tratamos essa violência física contra a mulher há um significativo número de ataques com a faca. Por que a faca desfigura, consegue estragar o rosto, o corpo da mulher, mostra bem a intenção do homem de destruir a imagem da mulher”. Além da violência física, a defensora pontua que há também a psicológica, que é uma grave violação dos direitos humanos das mulheres e produz reflexos diretos na sua saúde mental e física. A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera essa tipificação como a forma mais presente de agressão intrafamiliar à mulher e sua naturalização é marcada como estímulo a outras violências. “É uma forma de violência contra a mulher que traz dano emocional, traz diminuição da autoestima, humilha e 29
às vezes acham que a psicológica não é violência”. Entrelaçada com a violência psicológica está a violência moral, que é praticada pelos parceiros das vítimas e muitas vezes usada como justificativa para um ato violento. “A violência moral acontece quando há calúnia, difamação e injúria em uma relação”, explica Thais. Todos os casos estão elencados no art. 5º da Lei Maria da Penha, que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. A militante do movimento de mulheres negras, Ana Luisa pontua que as leis existentes hoje foram conquistadas pelas mulheres dentro dos movimentos organizados. “É o nosso exercício enquanto cidadãs, conseguirmos garantir em lei que isso seja criminalizado, combatido. Entre a lei e aquilo que é feito sabemos que tem um avanço e o movimento social precisa monitorar pra que seja realizado”. Ana Luisa considera as “cantadas” como um assédio moral que dá margem para outros tipos de violência muito maiores. “Precisamos desconstruir isso na nossa sociedade. Por isso eu vejo o papel da educação muito importante, pois formam cidadãos e cidadãs. É ali no pequeno, no cotidiano que a gente começa a desconstruir essas violências e outras também”. Indagada sobre o que mais a assusta, Amanda conta que ultimamente está mais impressionada com assalto porque já foi assaltada duas vezes por homens, mas que também sente medo de ser assediada. “Nós nos acostumamos, achamos que vai parar naquele limite da pessoa só mexer, mas às vezes não. Vemos que acontece, mas 30
por nunca ter acontecido nada de ‘mais grave’ comigo eu fico mais preocupada com assalto”. Ana Maria acredita ser necessário classificar dos tipos de violência para que elas não sejam banalizadas na sociedade. “Não necessariamente dizer que esta fere mais que aquela, porque depende. Imagina uma menina mais tímida, mais fragilizada que sofre esse tipo de assédio de rua, para ela o impacto pode ser tão grande quanto um tapa. Mas em termos de punição, tem que classificar esses tipos de violência e combater todos igualmente”. Para a Secretária Municipal de Políticas Públicas para Mulheres de Campo Grande, Leyde Pedroso, é necessário tratar essas questões de violação dos direitos das mulheres, o constrangimento no direito de ir e vir. “Quando estão dentro de um transporte coletivo, quando estão andando na rua, ou em seu espaço de trabalho é que muitas sofrem a violência do assédio. Seja dos patrões querendo alguns benefícios e usando de sua força de ser o chefe, seja as mulheres quando estão no ônibus lotado que não tem como se movimentar e chega um cidadão querendo encostar, encoxar”, pontua
“Mato Grosso do Sul, por
ser eminentemente rural, é conhecido como um estado conservador. Significa que atitudes, comportamentos mais conservadores estão mais fortes aqui” Ana Maria
Leyde. Quaisquer tipos de assédio configuram
uma forma de violência contra a mulher e devem ser tratadas como tal. “Não acho que se tem um estágio menos, ou mais, porque tudo aquilo vai acarretar na mulher. 31
Então eu trato tudo no campo da violência, porque pra mim assédio, qualquer que seja ele, é uma violência”, afirma Leyde. Nathália afirma que o assédio teria que ser observado como violência há muito tempo. “É muito recente se a gente for pensar na nossa história. Eu diria que o assédio é uma forma de abuso, de poder. Então eu acho que não estão desvinculados”. Para a socióloga Ana Maria as características do estado influenciam nos dados. “Mato Grosso do Sul, por ser eminentemente rural, é conhecido como um estado conservador. Significa que atitudes, comportamentos mais conservadores estão mais fortes aqui. Não é que sejam mais inteligentes, menos inteligentes, não é essa a questão, é por ter valores e a gente sabe que as sociedades camponesas são mais conservadoras, sociedades rurais são mais conservadoras. Não à toa que Mato Grosso do Sul é o quinto estado com maior índice de violência contra a mulher”. A jornalista Amanda Amaral é natural de
Bonito, interior de Mato Grosso
do Sul, e lembra que quando tinha apenas 11 anos foi assediada por um garçom de um restaurante da cidade. “Eu passava direto na frente de um restaurante, minha mãe estava na outra esquina comendo, sei que subi e desci umas quatro vezes, via uma revistinha e ia perguntar pra minha mãe se podia comprar”. Toda vez que Amanda passava em frente ao restaurante os homens que trabalhavam ali mexiam com ela. A jornalista tinha consciência de que era apenas uma criança e criou coragem e respondeu ao garçom. “Para, vou falar com o cara que trabalha aí [gerente], eu tenho 11 anos”. Amanda disse que falou isso tremendo de vergonha e de medo. “Falei e não sei o que aconteceu, os caras que estavam em volta riram dele. Existia assédio na cidade onde eu morava e existe aqui”. 32
Para Amanda o assédio começa desde cedo para as mulheres. “Acho que é quando começamos a criar corpo, eu sempre tive o cabelo comprido e deve ter alguma relação. Começa muito cedo para qualquer menina, às vezes mais cedo ainda para outras. Não tem muito a ver com a roupa que você usa, eu sempre fui ‘molecona’ de usar bermudão e tênis”. Ana Maria esclarece que esses fatos são resultados das construções sociais e que em cada lugar, seja no Brasil ou em outros países, haverá diferenças em relação ao conservadorismo. “Se comparar com a Suécia, as mulheres já conseguiram muito mais. A compreensão dessa questão é diferente de uma mulher em um país muçulmano fundamentalista com uma mulher em um país tradicional da América Latina”. Nathália tem o mesmo pensamento que a socióloga Ana Maria. Para ela, Mato Grosso do Sul é diferenciado pela cultura rural e assim definido de várias formas, como provinciano e arcaico. “A gente tem que analisar o perfil da nossa população, onde esses casos estão acontecendo, qual o perfil da vítima para poder fazer uma análise de porque existem tantos casos aqui no Mato Grosso do Sul. Era para ser um Estado com um debate muito amplo disso, falando sobre isso constantemente, alertando as mulheres pra autodefesa, por exemplo”.
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“Quer carona?”
~
Meu nome e´ Bruna Garcia Cardoso, tenho 17 anos e faco faculdade de Artes Visuais, estou no segundo semestre na ufms e moro no ~ Conrado. bairro Sao 36
´ dois anos atras
Era umas 10 horas da noite e minha rua estava totalmente vazia
estava voltando ^ do volei, tinha descido do ^ onibus e morava ´ la´ no bairro Santa Emilia estava indo a pe´ pra minha casa e parou um carro perto de mim
~
Ele abriu a porta e ^ falou “voce ~ quer dar nao um passeio, ~ quer dar nao uma volta comigo moca?“
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~ “Nao� continuei indo reto
´ e ele ainda estava me olhando olhei pra tras
~ falou mais nada Ele fechou a porta do carro e foi embora e nao 38
“
O
assédio de rua acontece diariamente e tem coisa que você já apaga, porque é tão normal que não tem mais aquela importância toda, mas estou contando o que mais me marcou. É um desrespeito total
invadir o espaço de alguém, invadir a privacidade de alguém”. É assim que Bruna se sentiu ao ser seguida por um carro. A situação causou muita insegurança e se tornou uma das mais marcantes em sua vida. Assim como para grande parte das mulheres, o assédio de rua também faz parte da rotina de Bruna. O hábito de andar com fones e ouvir música faz com que muitos passem despercebidos. “A cada dois dias” e “uma vez por semana, no mínimo” foram as frequências descritas pela acadêmica, que acredita que as cantadas na rua são uma violência psicológica. Para Bruna esse tipo de violação tem como característica acontecer em locais 39
públicos. “Em ponto de ônibus, no sinaleiro, no terminal, na frente de bar, mas a maioria é em rua. Na frente da faculdade é o que mais tem, você para ali no sinaleiro, vai passar um cara babaca e vai buzinar, vai assobiar, vai falar alguma coisa, sempre acontece. Eles pensam que vamos achar lindo, que vamos querer, que isso é um elogio, mas não é.”. Há poucos dias a situação se repetiu. Era pela manhã e Bruna ia para faculdade, desceu do ônibus 070 – General Osório/Bandeirantes no ponto do mercado Atacadão, que fica próximo a UFMS. Naquele ponto sempre há muito movimento de carros por estar localizado em uma das principais avenidas de Campo Grande. Quando parou no semáforo, um homem de meia idade gritou do caminhão: “quanto tá o programa?”. Bruna acredita que ele “mexeu” por causa da roupa que estava vestindo. “Só porque eu estava de saia curta ele acha que é assim, um monte de cara acha. Só porque você está vestida com determinada maneira acha que pode chamar de puta, prostituta ou o que for?” A discriminação de gênero não é uma realidade exclusiva de Campo Grande ou do Brasil. O fato acontece em outras partes do mundo. Essa violência se manifesta de várias formas, desde as mais veladas, como o assédio no trabalho, nas ruas e nos transportes públicos, até as mais explícitas, como o estupro e feminicídio1. O medo de uma abordagem na rua já fez com que Bruna deixasse de sair em determinados horários, sozinha ou com certa roupa. Hoje se diz liberta desses padrões. Quando está com calor ou com vontade de usar uma roupa ela simplesmente usa. A mudança veio no final do terceiro ano do ensino médio quando Bruna teve 1 Feminicídio se configura quando são comprovadas causas de assassinato que ocorrem exclusivamente por questões de gênero, ou seja, quando uma mulher é morta por ser mulher.
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contato com o feminismo e, começou a ver as relações de gênero de forma diferente. As violências que ocorrem contra a mulher são legitimadas pelas relações sociais que a coloca em um lugar na sociedade e o homem em outro. Os estudos de gênero ajudam a compreender como se dá esse contexto social. É um vínculo assimétrico de poder do masculino sobre o feminino, que determina a violência que ocorre contra a mulher e é movida pela discriminação e pela desigualdade. Estas situações são mais normalizadas por um e menos por outros. A assistente social Estela Scandola recupera as primeiras discussões sobre o tema. “Gênero começa a ser debatido na universidade pelas feministas. E é muito interessante porque entra com um viés de discussão a partir da ótica das mulheres”. A filósofa e ativista feminista Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo” pensa gênero como uma construção resultada da sociedade. Nas palavras da autora, “não se nasce mulher: torna-se. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino”. As identidades sociais estão atreladas ao pensamento de Simone de Beauvoir e ela pioneira em problematizar os papéis sociais que estão intrinsecamente ligados à relação de poder de um gênero sobre outro. Trata-se da construção de um imaginário social em relação ao homem e à mulher em vários aspectos da vida, da sexualidade, como uma questão da identidade, de comportamento, de inter-relação. Para a socióloga e militante feminista Nathália Eberhardt Ziolkwski, a proposta de gênero é desconstruir a ideia do determinismo biológico. “Simone de Beau41
voir ajuda a desconstruir a ideia da essencialização, vem com a proposta de não pensar o corpo a partir da perspectiva do biológico, mas pensar o comportamento como uma perspectiva social”. Nathália ressalta a importância desta nova visão para transformar as relações
“A forma como as relações
sociais. “Fazer a desconstrução do determinismo biológico e desses papéis é permitir que eles sejam
são construídas hoje, quando olhamos para a mulher identitariamente falando, entendemos que ela é a sujeita que tem os direitos mais violados na nossa sociedade”
mutáveis. Da perspectiva biológica eles seriam
Nathália Ziolkwski
mulheres conceituam gênero. Pela perspectiva
imutáveis a menos que transformemos a biologia. Pela perspectiva de gênero eles são transformáveis e é por isso que existe toda a luta para que essa transformação realmente aconteça”. Além de Simone de Beauvoir, outras de Heleieth Saffioti, socióloga, professora e mi-
litante feminista brasileira, as relações sociais se dão pela dominação e exploração do masculino sobre o feminino. O conceito se desvincula da biologia do corpo e é entendido como identidade de gênero, que é como o individuo se apresenta para si e para a sociedade, como masculino ou feminino, independente do sexo biológico, ou da orientação sexual. É a forma como se reconhecem e como desejam ser reconhecidos pelos outros. O contato com o feminismo fez com que Bruna compreendesse gênero como identidade. “Tanto as trans como as mulheres em geral passam por isso. Somos vistas como inferior, o objeto de tudo, menos valorizadas. Essas violações acontecem por 42
acharem que: ‘ah, ela é mais fraca, então é mais fácil pra estuprar ou pra assediar e não vai dar em nada’. E as mulheres travestis e trans sofrem muito mais, por serem vistas como a escória da sociedade”. A socióloga Nathália explica que a violência tem recorte de gênero porque se consolida pelas relações sociais. “Gênero é o que fundamenta a maioria das violências na sociedade, mas claro que existe a questão étnico-racial. A forma como as relações são construídas hoje, quando olhamos para a mulher identitariamente falando, entendemos que ela é a sujeita que tem os direitos mais violados na nossa sociedade por essa construção”. Há um imaginário vigente na sociedade no qual alguns valores são postos nas socializações das pessoas, o que reflete nas violências legitimadas. “Acham que o homem pode tudo, ele é o centro, que o conhecimento dele é o que vale e que ele é o chefe da casa. Ainda tem tudo isso, mas sabemos que na realidade, no dia a dia, muitas mulheres tocam suas casas, estudam mais e mesmo assim sofrem esses assédios”, afirma a militante do Coletivo de Mulheres Negras de Mato Grosso do Sul, Ana Luisa. Nas últimas férias, Bruna se deparou com outra situação que mexeu com sua rotina. De manhã, indo para casa de um amigo do curso de Artes Visuais, passou pela avenida Presidente Ernesto Geisel, uma via movimentada que corta a cidade inteira. Ela estava próxima ao Norte Sul Plaza, um dos principais shoppings de Campo Grande. Todos os carros seguiam na via, mas uma moto ficou parada. “Eu imaginei: ‘deve ser um conhecido’, o motoqueiro parou e ficou olhando pra trás e só estava eu 43
na rua. Andei reto, tentei reconhecer quem era, cheguei perto e vi que não conhecia, ele tirou o capacete e falou: ‘você não quer uma carona?’”. Bruna respondeu não e ele insistiu: “você tem certeza que não quer uma carona, eu te dou uma carona, aonde você vai?”. A estudante reforçou a resposta e disse que morava perto e o motoqueiro foi embora. “Sei o sentido disso e não é um: ‘eu estou te oferecendo carona’ é tipo: ‘você quer uma carona’, [com uma entonação diferente]. Na hora eu fiquei com um pouco de medo. Não ligo quando são cantadas e assobios como acontece direto; estou na rua, independente da roupa, e um cara babaca fala: ‘ai gostosa’, ‘ai delicia’, ‘fiu-fiu’. Agora quando chega e para, e oferece carona
“O homem quer subjulgar a
você já fica pensando, ele poderia ter feito alguma coisa”.
mulher, se impor, dominar, porque a violência sexual é isso.”
ca Thaís Dominato de acordo com circunstâncias
Tháis Dominato
fraco”. “O homem quer subjulgar a mulher, se im-
O assédio é tratado pela defensora públicomo a dominação do “mais forte” sobre o “mais por, dominar, porque a violência sexual é isso. Fica
gritante essa dominação do homem, ela sofre pelo fato de ser mulher, pelo fato de ser considerada inferior”. A construção do que é ser mulher e o que é ser homem determina o que é esperado de cada um. Essas relações colocam o homem no espaço público junto com sua sexualidade, visto como conquistador e incontrolável, o que legitima que os homens não resistam ao corpo. Enquanto essa naturalização colocou a sexualidade da mulher no espaço doméstico, que dá a ideia de que ela serve apenas para a reprodução 44
e o homem para a produção. Para Nathália, os papéis de cada gênero se perpetuam através da cultura e da forma como as pessoas são socializadas. “Todos nós somos agentes, porque nós somos parte dessa sociedade que dizemos que é machista, que oprime. Tudo que vivemos, todas as nossas socializações desde dentro de casa e até mesmo antes de nascermos, tudo tem efeito nas violências que sofremos, a forma como são praticadas, quem são os públicos que são atingidos por ela, quem são os agressores, quais são esses perfis, tudo passa pelo gênero”. Bruna entende como a cultura em que está inserida reproduz os papéis de gênero. “Já tem essa cultura, passada de pai para filho, de geração em geração, isso já é estruturado no ambiente onde as pessoas vivem. As mulheres, como lidam a vida inteira com um pai machista, um tio machista, muitas vão ter uma relação com um homem machista, são acostumadas e conformadas. Às vezes não tiveram acesso ao feminismo, não tiveram acesso a outras coisas, então aquilo será normal”. Ser mulher é enfrentar situações extremamente adversas o tempo todo, mesmo antes de nascer, explica a socióloga Ana Maria. “Até como um professor trata as meninas na sala de aula é diferente, elas são comportadas, mas nunca são inteligentes. Os meninos são inteligentes. Uma vez uma aluna minha fez uma dissertação sobre o ensino de matemática e as meninas eram sempre classificadas, quando elas eram boas em matemáticas é porque eram as comportadinhas e estudiosas. Enquanto os meninos eram inteligentes e por isso eram bons”. O machismo está tão arraigado que pode passar despercebido, como na diferença das aulas nas escolas para meninos e meninas, como problematiza Ana Maria. 45
“A Educação Física é completamente diferente para meninos e meninas, eles podem praticar atividades físicas, jogar futebol. Para as meninas era o passa anel, corrida do ovo na colher. Quer coisa mais simbólica do que isso, elas correndo com ovo na colher? E as meninas que tentavam jogar futebol eram ridicularizadas e constrangidas. Isso é um tipo de assédio”. Ana Luisa esclarece que as mulheres são educadas até dentro de casa a ver o homem nos espaços públicos. “Temos a imagem daquele que tudo pode. É muito triste quando ouvimos mulheres naturalizarem a violência, fomos criadas nesse imaginário patriarcal, nessa legitimação. Então temos esse papel de desconstruir tudo isso”. A militante fundamenta que os homens foram educados em torno destes papéis de gênero. “Começa desde: ‘você não usa essa cor’, ‘não faz isso’, ‘não vai lavar louça porque você é menino’, ‘não vai arrumar sua cama porque você é menino’. E colocam a menina pra fazer tudo isso. Então essas construções que também saem das bocas das mães, de mulheres, vão ajudar nessa formação de caráter. A ponto do homem achar que ele pode muito mais determinadas coisas que as mulheres e inclusive nessa questão da violência”. A forma como meninas e meninos são educados coloca cada um em um lugar da sociedade, como aponta a socióloga Ana Maria. “Mulher é aquela que está destinada ao mundo privado, mesmo que ela tenha uma profissão e estude. O objetivo maior dela é casar, ter filhos e ser responsável por eles, cuidar de uma casa. Enquanto o homem vai ter uma profissão mesmo antes de nascer. Vai ser jogador de futebol, vai ser engenheiro, vai dirigir um caminhão. Enquanto a mulher é: ‘ai que linda, vai fazer 46
companhia para a mamãe’, ‘vai ajudar em casa’, inclusive é exigido isso das meninas, e não dos meninos”. O Censo de Educação Superior do ano de 2012, divulgado pelo Ministério da
Educação (MEC), abordou a divisão dos cursos superiores por gênero. Dentre
os cursos com maiores números de matriculados estão direito com 391 mil mulheres e 345 mil homens; pedagogia com 556 mil mulheres e 46 mil homens; enfermagem com 198 mil mulheres e 35 mil homens; engenharia civil 54 mil mulheres e 143 mil homens e engenharia de produção com 39 mil mulheres e 90 mil homens. A secretária de políticas públicas para as mulheres, Leyde Pedroso, afirma que as mulheres sempre sofreram mais violência. “Temos dados que nos mostram isso, realmente as mulheres são mais assediadas, são mais violentadas, são estupradas, são assassinadas, são mortas todos os dias. Nós temos o Mapa da Violência, é um absurdo o índice de violência que acontece todos os
“Esse pensamento machista
existente na nossa sociedade precisa ser desconstruído. Tanto na escola, na universidade e também dentro de casa, no trabalho, em todos os outros espaços”
dias contra as mulheres”.
Ana Luisa
Dados do “Mapa de Violência 2015 – Homicídio de Mulheres no Brasil” mostram que o país possui uma taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres. Este índice da Organização Mundial da Saúde (OMS) coloca o Brasil na 5ª posição do ranking em um grupo de 83 países, abaixo de El Salvador, Colômbia, Guatemala e a Federação Russa. Nathália se preocupa com a situação, fala sobre a importância de se discutir 47
gênero nas escolas e como é problemática a retirada do assunto no plano de educação. “Não evoluímos em nada, as pessoas não entendem do que se tratam as questões de gênero no Brasil, a importância de implementar políticas. Isso se perpetua e os agentes responsáveis por isso somos todos nós. A mulher também tem um papel na sociedade”. A solidariedade feminina, também conhecida como sororidade, é algo que é discutido atualmente no mundo todo pelas feministas. Nathália acredita na ideia de que as mulheres irão parar de julgar umas as outras, de reproduzir que são uma ameaça, ou perigosas de alguma forma. “Temos que tentar não fortalecer esse imaginário social que fala sobre essa mulher. A Marcha das Vadias2 foi um movimento que mudou a ordem do social, foi a apropriação do discurso do opressor. É dizer: ‘eu sou vadia mesmo e isso também não te dá o direito’ vem pra quebrar isso; vem desse momento da solidariedade feminina para quebrar ideia de que: ‘aquela mulher não presta, essa daqui é pra casar’. Todo esse imaginário que se constrói dentro dessas relações de poder”. O assédio nas ruas e nos espaços públicos ocorre com frequência no dia a dia das mulheres. As violências de gênero, quaisquer que sejam, devem ser combatidas e o modelo cultural necessita ser modificado. A sociedade deve ser (re)construída para que todas possam caminhar tranquilas pelas ruas. As pessoas têm o dever de compreender que o espaço público e os meios de transportes pertencem a todas e todos. “Esse pensamento machista existente na nossa sociedade precisa ser desconstruído. Tanto na escola, na universidade e também dentro de casa, no trabalho, em 2 O movimento Marcha das Vadias surgiu a partir de um protesto realizado no dia 3 de abril de 2011 em Toronto, no Canadá, e desde então é realizado em diversas partes do mundo. O ato protesta contra o pensamento de que as mulheres são culpadas pelos ataques sexuais que sofrem pelo modo de se vestir ou agir.
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todos os outros espaços. A religião é uma das grandes instâncias que ajuda a legitimar essas relações, quando dá ao homem toda a aura religiosa de status. Então são os passos que precisam ser transformados, a nossa luta ainda é muita”, declara a militante Ana Luisa. Thaís Dominato aponta que a mudança só virá quando todas as pessoas entenderem que há uma igualdade entre homens e mulheres. “Infelizmente alguns homens vão ter que aprender isso pela punição, porque é a mulher que está em uma situação mais grave. Mas tem que mudar mesmo a educação, entender que homens e mulheres são iguais em direitos”. As mulheres tiveram importantes conquistas, mas estas realizações criam uma sobreposição de tarefas, que são vários turnos de responsabilidades tanto no espaço privado como no público. “O espaço público acolheu a mulher com a diferenciação salarial, com a diferenciação de cargos, com a não presença no poder legislativo, com sua pouca presença no poder executivo, nos espaços de poder. Mas o mesmo não acontece no inverso, o papel do homem no espaço doméstico, das outras funções”, reflete Nathália. Segundo dados da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, nas eleições de 2014 concorreram ao cargo do Senado 34 mulheres e 138 homens, apenas 5 delas saíram vitoriosas diante de 22 deles. Este número corresponde a 18,5% de mulheres eleitas. Apenas um terço dos cargos foi disputado, e com este resultado as eleitas somaram às outras sete senadoras já nomeadas. São, portanto, 12 mulheres, ante 69 homens, em porcentagem 14,8% de mulheres e 85,2% de homens no Senado. A socióloga complementa que estas conquistas trazem novas questões a serem 49
repensadas. “O gênero está em todas essas formas de violação. Até onde vão nossas conquistas, tudo está permeado pelas relações sociais. Sofremos constantemente essas formas de violências que são graves pra nós”. Bruna acredita que a educação e a arte podem ser instrumentos de transformação. “A arte está dentro de cada um, as pessoas despertam isso. E com a arte, quando as pessoas começam a entrar em contato com as cores, ela consegue ter mais sensibilidade. Eu quero dar aula, eu quero ajudar a revolucionar a mente das crianças, desde a base. A educação precisa ser reformulada urgentemente.”
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Canteiro de Obras
~
Meu nome e´ Kamila da Silva, tenho 28 anos, ^ sou academica de Servico Social, estou do quarto ano
estou no meio do meu TCC, ando pra baixo e pra cima ´ distraida, pensando no que preciso fazer pra terminar
~ estou fazendo o TCC na minha irma, ~ entao ia e voltava pra pegar livros ´ varias vezes por dia
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´ tres meses atras ^
Perto da minha casa tem uma obra e eu precisava passar por la´ todo ~ Sempre que passava na frente, um dia pra ir pra casa da minha irma. dos pedreiros me olhava e falava alguma coisa pra mim
~
Quando eu ia entrar em casa, via que ele cruzava os bracos, ~ na cintura e colocava a mao ficava olhando
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era meio dia, passei por la´ e pela primeira vez entendi o que ele disse
Eu deixaria uma mulher dessa galopar em mim a noite inteira
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~
olhei bem pra cara dele. senti um nojo muito grande, ´ vinham varias coisas na minha cabeca. Resolvi responder: falei pra ele entender que eu ~ tinha medo nao dele, mesmo ficando insegura. foi bem constrangedor, porque todas as vezes que eu passava ele dizia alguma coisa
Depois disso, ele parou. Na verdade sumiu, nunca mais o vi
Essa foi a situacao que mais me deixou apreensiva
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E
“
u saio para a rua sabendo que vão dizer alguma coisa todos os dias, então para mim é meio que rotina já. Você faz algumas umas estratégias de sobrevivência para poder sair dessas situações”. Mesmo
comum em sua rotina, para Kamila o assédio de rua não é natural. A cena de uma mulher passando por um canteiro de obras ilustra o que é considerado uma típica “cantada”, o “mexer” com mulheres na rua. Mas esse “mexer” vai além de uma simples palavra ou assobio. A “cantada” não se restringe a canteiros ou pedreiros, ela se faz presente na rua, no espaço ocupado por homens. Quando a mulher sai de casa sabe que vai encontrar na maioria das esquinas olhares, palavras travestidas de elogio que aprende cedo o que significa. O assédio de rua entra para a rotina das mulheres, ouvir homens falando sobre seu corpo assume a mesma posição dentro da normalidade e transforma-se em algo comum. 56
“Você passar em lugares onde tem homem sentado tomando cerveja, passar por um local onde tem um grupinho de homens conversando, passar em construção e saber que vai acontecer alguma coisa e tem que fazer de conta que não está escutando, mas que te causa mal estar e que você às vezes até desvia, faz uma volta pra não passar, constrange”. É assim que a socióloga Ana Maria elucida uma parte da realidade da mulher em seu dia a dia. “Era sirene de polícia, no semáforo era o cara que buzinava, motoqueiro buzinava, virava o pescoço, falava alguma coisa, ou ele ou o carona”. A estudante de serviço social,Kamila da Silva, de 28 anos, enumera os tipos de situações que passa na rua. Sempre de vestido ou saia longa, o tipo de roupa preferida, ela conta como se sente com esses episódios. “O que eu já ouvi e ouço muito é o desejo que eles têm de descobrir o que existe por baixo”. No fim da faculdade e focada no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) a estudante se desliga do mundo e só pensa no que precisa ser feito. “Nunca percebo quando me olham, sempre percebo quando falam alguma coisa. Geralmente são palavras muito agressivas. Estou pensando no TCC e no que tenho que fazer amanhã e de repente o cara vira e, não é legal isso. Mas acabamos nos acostumando, aprendendo a lidar”. Usar um vestido que marca as curvas do corpo conforme bate o vento não deveria ser um problema se os homens não se sentissem no direito de ofender uma mulher. “O cara falou pra mim: ‘nossa, mas que curva hein? Principalmente essa do meio’. Eu estava tão avoada e não saquei o que ele falou, depois de uns 15 passos que percebi”. 57
A cena de assédio se torna frequente. “Eu passo na rua e o cara fala: ‘gostosa, quero saber o que passa no seu vestido’, ‘mexeu com os meus desejos mais profundos’. Já ouvi isso e foi ridículo. Infelizmente isso pra mim é um pouco normal. Normal porque acontece todos os dias”. Essas “cantadas” que ocorrem nos espaços públicos são carregadas pela ideia de que o corpo da mulher é público, que pertence à coletividade e dá direito do outro sobre si. As palavras e expressões “ô gostosa”, “lá em casa”, “princesa”, “linda”, “delícia”, “meu deus”, “nossa”, “oi moça”, ou mesmo um “bom dia” são repetidamente ouvidas por mulheres, com uma malícia no tom de voz ou no olhar. Kamila busca palavras para descrever a forma como esse tipo de assédio acontece. “Geralmente o tom é diferente, é um tom meio que de desejo. Nunca vem assim: ‘oi princesa’, é assim: ‘nossa, que princesa!’, você sente a malícia na pessoa e isso é constrangedor. Você finge que não viu, vai mexer em alguma coisa e passa reto”. O assédio não ocorre apenas verbalmente, existem gestos, olhares, sons e assobios que constrangem as mulheres e cerceiam a liberdade de ir e vir como e onde quiserem. A gravidade da opinião do outro sobre o corpo passa despercebido na correria do cotidiano. Entrar no ônibus, subir os degraus, dar bom dia para o motorista e girar a catraca são ações que fazem parte do dia de muitas mulheres. Essa rotina, porém, contabiliza inúmeras situações constrangedoras para as moradoras de Campo Grande. A lotação dos transportes coletivos não apenas priva o conforto dos passageiros como também se acrescenta ao cenário onde um homem se vê no direito de assediar uma mulher. 58
Do momento em que a mulher encosta o cartão no leitor e gira a catraca até sentar em um dos bancos ou permanecer em pé, ela precisa lidar com os olhares intimidadores carregados de desejo, ou como as encoxadas e as pernas abertas esbarrando nas delas. Esse quadro pode ser visualizado na própria cobertura cotidiana da mídia local. É o caso, por exemplo, do jornal online Campo Grande News, que no ano de 2013 noticiou a violência sofrida por uma jovem de 21 anos que foi abusada sexualmente em um transporte coletivo da capital sul-mato-grossense. A vítima relatou que um homem se masturbou e ejaculou em sua calça, sem que ela percebesse na
“O rapaz que passa a mão em uma mulher dentro do ônibus, isso é uma ação pontual que está dentro de um contexto global, ele só faz porque a sociedade é permissível em relação”
hora do ato.
Estela Scandola
Kamila não se deparou com um caso de abuso no ônibus. A estudante narra uma experiência que teve no ônibus na qual um senhor idoso começa a puxar assunto. “O homem estava alcoolizado, dava pra sentir, e falou assim: ‘você é muito linda’ e encostou no meu braço”. Quando percebeu as segundas intenções do homem, a estudante logo agradeceu e se afastou. Sem esconder sua incredulidade diante da situação, ela continua a contar e relata que o senhor pediu para que realizasse sexo oral nele. “Eu fingi que não vi e desci no meu ponto. Nunca mais vi esse senhor”, conta, visivelmente incomodada ao relembrar a história. Esse é um exemplo dentre tantos outros tipos de assédio que as mulheres são 59
obrigadas a enfrentar todos os dias, não apenas nas ruas, mas também nos transportes públicos, abarrotados de pessoas que presenciam esses atos e não se manifestam. “O rapaz que passa a mão em uma mulher dentro do ônibus, isso é uma ação pontual que está dentro de um contexto global, ele só faz porque a sociedade é permissível em relação”, afirma a assistente social Estela Scandola. Sair da aula e voltar para casa também parece uma tarefa simples. Os portões da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) localizam-se na avenida Costa e Silva, movimentada via que conecta a região central da cidade com bairros periféricos e rodovias que levam para outras partes do estado e do país. No cruzamento, o assédio aparece na forma de buzinadas que vêm de carros, de motos ou de caminhões. Entre uma pista e outra da avenida as mulheres ficam cercadas por veículos, que vêm e vão assim como as cantadas. Ao chegar ao ponto de ônibus ainda é possível ouvir as buzinas e perceber os olhares. É difícil imaginar que os assédios possam acontecer até quando se está dentro de um carro, onde nenhuma parte do corpo está à mostra, pois muitas pessoas acham que a provocação está aí. Para uma mulher, parar no sinal dentro de um automóvel ao lado de um carro com homens também se torna algo constrangedor, pois eles se veem no direito de olhar e soltar um “nossa que linda” e rirem entre eles. O sinal abre e aquilo foi mais um episódio de “cantadas” que não precisam ser ouvidas, muito menos feitas. A risada faz com que as cantadas sejam vistas como uma brincadeira e reforçam a naturalização ao tirar a seriedade desta violação. Para a subsecretária de Mulheres do Município de Campo Grande, Leyde Pedroso, tudo isso é o retrato do 60
machismo. “Os homens acham que podem se apropriar do corpo das mulheres, que são seres consideradas inferiores, que ‘eu posso me apropriar de você e usar do seu corpo da forma que eu bem entender’. Nós somos donas do nosso corpo, da nossa vida e da nossa história”. As cantadas na rua muitas vezes não são vistas como uma violência. A sociedade costuma não dar peso para essas ações e quando se fala em violência contra a mulher o foco do debate se torna a violência doméstica. Ana Maria acredita que a violência só é compreendida como tal quando se torna física.
“O assédio de rua é
completamente aceito” Ana Maria
“O assédio de rua é completamente aceito, se aquele mais violento que mata, que aparece marca é aceito, esse então é mais ainda. Isso ocorre porque o assédio contra a mulher é legitimado pelas relações de gênero”. A defensora pública Thais Dominato explica que a sociedade diferencia a gravidade dos assédios e talvez, por esse motivo, a “cantada” que se enquadra como um assédio verbal é tão naturalizada e entendida como algo que faz parte do cotidiano das mulheres. “Hoje se encara o estupro de uma forma e se encara o assédio verbal de outra. É claro que na gravidade são diferentes, não tem comparação. Mas se a gente for ver a raiz do problema dos dois crimes é a mesma. A questão da nossa cultura machista, da nossa cultura patriarcal, dessa ideia de que a mulher nasceu pra servir e aí eu falo na questão sexual também, que o homem subjulga, que o homem domina”. Há inúmeras formas de cometer violência contra mulher e ela é quem vai di61
zer como se sentiu. É o ponto de vista da mulher que deve ser levado em consideração nesses casos. Estela exemplifica como a sociedade é flexível em relação a essa cultura de assédio, julgando o que é ou não assédio de rua. “Se eu vou ao show e a Anitta está cantando e os homens estão lá, aplaudindo lá embaixo e falando: ‘gostosona’, isso é permitido, não é? É permitido. Na hora que a mulher passa sozinha e um homem faz isso, não é permitido. Por que um é permitido e o outro não? Por que a regra social é tão maleável para algumas coisas?”. Leyde espera que as pessoas contribuam no processo de transformação da sociedade. “A sociedade precisa se alertar. Por que o fiu-fiu? Qual é o sentido do fiu-fiu? Qual é o sentido da cantada? Tem uma diferença você estar paquerando uma pessoa e você estar sendo vítima de uma violência”. O assédio de rua costuma ser confundido com elogio. As palavras usadas nas ruas são adjetivos. Como o “linda”, que segundo o dicionário, significa agradável à vista e que suscita prazer admirativo, mas dentro do contexto de rua são atitudes que demonstram poder e intimidação. Estela acredita que discutir as cantadas torna possível compreender as consequências de um sistema patriarcal em que as mulheres são vistas como inferiores. “Ocorre porque historicamente os seres masculinos se acham com direitos sobre os corpos das mulheres, inclusive de emitir opinião sobre ele. De dizer se ela está magra, se ela está gorda, se ela tem peito, se ela não tem peito, se ela tem bunda, se ela não tem bunda, quer dizer, é o controle que se faz sobre os corpos das mulheres. É uma violência mesmo”, contextualiza Estela. 62
As definições dos papéis de gênero se misturam na educação das crianças. Crescer em uma sociedade onde as mulheres são ensinadas a enxergar o assédio como um elogio vindo de um desconhecido, as priva de viver. O menino desde cedo é ensinado a ser “macho”, ensinado que o corpo da mulher pertence a todos, menos a ela mesma. Se tornar um assediador ocorre naturalmente, quando ainda criança ouve de sua família: “olha lá as meninas bonitas, mexe com elas”. “Porque também a sociedade vai exigir que o homem seja assim. Se estiver em um barzinho com quatro carinhas em uma mesa e passa umas meninas e eles não fazem nada, eles são os boiolas da turma. Porque essa cultura de que o homem precisa fazer coisas é uma cultura horrível e que exige esse tipo de atitude. Eu estou falando que a sociedade diz: ‘olha camarada, você tem que ser macho’”, pontua Estela sobre as consequências da socialização do machismo para os meninos. O assédio é a expressão de uma desigualdade de gênero existente. Para Estela, a sociedade é machista, e não as pessoas. “Estamos falando de uma desigualdade de gênero que também exige do homem. As pessoas não são individualmente machistas, elas são criadas num contexto em que a sociedade machista tem mais ou menos influência sobre cada uma delas.” Ana Maria explica que as relações sociais não são construídas de um lado só. “As mulheres são partícipes dessa construção e reproduzem tanto quanto o homem, mas elas estão em uma posição desfavorável, porque é sobre elas que vem o peso, e elas é que estão em uma posição de inferioridade”. A socióloga Nathália Ziolkowski vê que é dessa forma que as relações de poder e papéis de gênero se perpetuam. “E quem são os agentes responsáveis por isso? 63
No caso, todos nós, porque somos parte dessa sociedade que dizemos ser machista, que oprime, então a mulher também tem um papel na sociedade”. Esses papéis de gênero são reafirmados com diversos elementos culturais que permeiam a sociedade. Garota de Ipanema, de Vinícius de Morais e Tom Jobim, é uma das músicas brasileiras mais conhecidas no mundo. O calçadão de Ipanema, no Rio de Janeiro, se tornou o cenário desse ícone da Música Popular Brasileira (MPB) que narra um assédio de rua, mas com palavras bonitas e um tom suave não se percebe seu conteúdo. Estela problematiza a aceitação da cantada na sociedade, dando como exemplo a canção. “E se pegarmos do ponto de vista macro, por que a cantada continua acontecendo? Porque de uma certa forma nós normalizamos a cantada. Quando cantamos Garota de Ipanema nós a normalizamos. O que é a Garota de Ipanema? É um velho babão que ficava num bar vendo uma gatinha passar e falava pra ela”. A música conta a história de um homem que se depara com uma mulher e diz que ela “é a coisa mais linda que já viu passar”. Estela conta como esse estilo musical tem influências da representação da mulher para além do Brasil. “Em um debate em Portugal, eu estava tentando explicar que nós achamos que essa sexualização da mulher brasileira é um equívoco e ouvi que ‘inclusive as músicas da MPB que vocês falam são sobre isso’. Nós fomos levados a normalizar essas relações sexistas e ainda achamos lindo, essa coisa de cantar a mulher brasileira, de falar das curvas”. Estela acredita que a maioria das pessoas não tem olhar crítico sobre a aceitação do assédio contra a mulher, pois a “cantada”, por exemplo, está implícita nas músicas que a sociedade reproduz. “Porque está cheio de músicas desse jeito, tem as 64
cantadas mais sutis como essa [Garota de Ipanema]. Não, essa não é sutil, as palavras são bem postas. Assim como a do Michel Teló, ‘Ai se eu te Pego’. Elas estão falando a mesma coisa, não tem diferença. Eles estão falando de uma forma poética diferente, mas é a mesma coisa, estamos falando do mesmo processo de erotização das mulheres”. Presente em grande parte dos discursos da sociedade, o corpo feminino não tem voz. Associado à natureza, as representações em músicas, poemas, quadros, esculturas, cartazes, propagandas estão presentes nas ruas das cidades. Essa reprodução, entretanto, não encontra seu sujeito. Fala-se das curvas das mulheres, mas elas não falam. A socióloga e militante feminista Nathália problematiza que a forma como os corpos eram vistos anos atrás interferiu no silenciamento da mulher. “O padrão era o corpo masculino, e o corpo feminino era a imperfeição. Dizia-se que por falta de um sopro divino a mulher ficou com tudo retido dentro do corpo e faz comparações do sexo reprodutor feminino e masculino”. Desde o século III até o ano de 1.700 o que se estudava na anatomia e na medicina era o
A pesquisa “Assédio nas ruas de Campo Grande” mostra que 94,1% das mulheres campo-grandenses se sentem inseguras e desconfortáveis ao receberem “cantadas”, olhares e assobios. Dentre elas, 92,9% não compreendem essas práticas como elogio.
corpo masculino. A ciência nunca havia dessecado um corpo feminino – o que valia para o homem valia para a mulher. “Jogava-se a mulher no esquecimento, no silêncio de todos os silêncios”, enfatiza a socióloga. 65
O assédio de rua é visto na sociedade como algo natural, virou rotina para quem assedia, não para quem é assediada. E apesar do assédio de rua ser naturalizado na sociedade, dados mostram que essas “cantadas” causam incomodo. A pesquisa exploratória elaborada por estudantes de jornalismo “Assédio nas ruas de Campo Grande” mostra que 94,1% das mulheres campo-grandenses se sentem inseguras e desconfortáveis ao receberem “cantadas”, olhares e assobios. Dentre elas, 92,9% não compreendem essas práticas como elogio e não se sentem mais bonitas com palavras de um sujeito que nunca viu na vida. O levantamento aponta que quando as mulheres falam sobre os assédios que sofreram no espaço público 67% das vezes não tem as violações vistas como um assunto sério. Para a defensora pública, Thais, essa desvalorização é um reflexo da sociedade. “O nosso sistema, os policiais, defensores, promotores, juízes, delegados não estão acostumados e tendem a não acreditar na palavra da vítima, acham que se levou uma cantada é porque estava com a roupar curta. Isso acontece na sociedade e também reflete no nosso sistema de justiça, é temos que tentar mudar essa mentalidade”. Kamila sabe o que é ser cantada na rua todos os dias e o desconforto que isso traz. Ela não tem interesse nas opiniões masculinas sobre seu corpo. “Geralmente eles alegam que nós é que provocamos. O que estou provocando? Se estou passando na rua, se a minha beleza ou a minha roupa provoca a imaginação dele, ele que guarde para si, que tenha respeito com a minha pessoa”. A inversão de valores de vítima e agressor acontece porque a sociedade busca nas atitudes das mulheres a justificativa da violência. A roupa que usava, o horário que saiu ou a falta de proteção de um homem tornam-se a causa do assédio. 66
A culpabilização da vítima faz com ela não se veja como tal e muitas vezes permaneça no ciclo de violência. Thais Dominato pontua que essa inversão de papéis acontece porque a mulher acha que deu causa à aquela ação, por conta de tudo que já ouviu a vida inteira da sociedade, inclusive de familiares. “Ela tem que se comportar, ser recatada, não usar roupa curta, não pode beber, não pode fumar, não pode voltar tarde para a casa. E quando isso acontece ela não consegue se enxergar como vítima. Quem falou que a mulher não pode? Isso é uma diferença criada pela nossa sociedade, pela nossa história machista, são diferenças que são mentirosas. A única diferença entre homem e mulher é a física, a biológica, as outras foram criadas e precisam ser destruídas”, afirma a defensora. Assim como as violações que as mulheres sofrem na rua são naturalizadas, a inversão de papéis também se tornou aceita na sociedade. Instituições como a família, a igreja e as escolas são responsáveis por perpetuar esses estereótipos. Segundo Ana Maria a sociedade interfere diretamente na vida das vítimas por meio de suas instâncias – a família, a escola, a igreja, o bairro, a universidade. “Quando você entra no banco os caras consideram que você não entende nada de aplicações e economia porque você é mulher; na rua quando você está dirigindo leva um monte de xingos porque os caras já partem do princípio que você dirige mal por ser mulher. Todas as instâncias da sociedade corroboram pela reprodução dessas relações”. Para Nathália, o silêncio representa que as possibilidades das mulheres ainda estão cerceadas. “Porque o silêncio pode ter várias origens, pode ser por medo, pode vir de uma ameaça, pode ser da vergonha ou da preocupação da exposição. Ele pode 67
ter várias origens, mas eu acho que independente disso, simbolicamente, ainda não temos esse espaço para falarmos sem preconceito das problemáticas que vivemos, sem medo de dizer”. Estela acredita que o silenciamento de uma mulher é sua maior fala e saber interpretá-lo é determinante para quebrá-lo ou não. “Tem muita gente que condena o silêncio das mulheres. Eu não condeno não. Acho que o silêncio é o período em que ela ainda não está preparada. Uma mulher em silêncio deveria dizer mais pra nós porque a que fala já está em outro momento e a mulher que silencia é aquela que não confia na política pública, não confia na sua família, não confia que vai ser aceita, que vai ser acolhida. Essa aí deveria ser a mais falante pra nós”. Nathália esclarece que ninguém tem o direito de infringir os limites dados pelas mulheres ou atentar contra a sua dignidade independente da roupa que esteja usando. As mulheres ficam cada vez mais cientes sobre seus direitos sobre o próprio corpo. “Eu acredito que é porque historicamente a gente vem reconhecendo aos poucos que isso são violações de direitos. E atribuo muito isso às mulheres organizadas que passam a questionar tudo”. Piadas que satirizam a violência contra a mulher banalizam a situação em que a vítima se encontra e dessa forma contribuem para que a sociedade seja conivente com o assédio. “O assédio é uma violência contra a mulher e ele é encarado assim. Dentro do movimento até muitas vezes nos chamam de feminazi3, porque a gente diz: ‘não, nós não aceitamos piada’, porque até pouco tempo atrás aceitava-se: ‘tudo bem é uma piada, vamos rir, fingir que passou e que isso não foi uma reprodução de uma violência que a gente sofre diariamente, então tudo bem’. Agora as mulheres 3
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Feminazi é o termo pejorativo usado para designar feministas radicais.
resolveram dizer não, eu não aceito essa piada”, acrescenta. Muitas das mulheres foram ensinadas a ver o homem como alguém superior, mesmo inconscientemente. Foram ensinadas a se calar, tentam escapar ou simplesmente abaixar a cabeça quando são olhadas de maneira inibidora. Procuram andar em lugares movimentados, de preferência com amigos homens, e ainda existem diversas maneiras de mascarar essa difícil rotina que é ser mulher. Em uma das situações na qual Kamila sentiu-se ameaçada pelo assédio sofrido, recorreu aos seus amigos homens. “No dia em que aconteceu liguei pra alguns amigos para eu descer um ponto antes, porque fiquei com medo. Às vezes acho que as mulheres acabam ficando na delas por medo de situações piores”. A estudante passou por uma segunda situação constrangedora dentro do transporte público. Em um dia comum de rotina, um rapaz tentou passar a mão em seu corpo, não conseguiu porque esbarrou em sua mochila e ela o encarou. “Fui na delegacia, abri um boletim de ocorrência contra o cara e o delegado falou que o nosso problema é que a gente fica quieta. Por vergonha”. Nathália ainda explica que as mulheres estão em um processo de reconhecimento das formas de assédio, estão entendendo que não são questões naturais do ser humano, que o homem não age pelo seu instinto sexual. “São questões que estão produzidas em nossa sociedade e enquanto produzidas, sendo a cultura dinâmica, são transformáveis. E para isso acontecer não é simples, porque é tão forte, tão arraigado, justamente porque estamos inseridos nessa cultura desde criança. Então vamos aprender desde pequeno o que se espera da gente. A cultura vai se transformar e a gente vai dar o tom dessa transformação”. 69
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Fora do corpo
Meu nome E´ Dandara, Tenho 24 anos, sou ´ professora de lingua portuguesa e inglesa. e me formei na UFMS de Aquidauana 72
´ Eu morava perto da Avenida Julio de Castilho quando passei por um momento ^ ~ de terror na minha vida. Para ir trabalhar, pegava o onibus 5h40 da manha. Tinha que subir umas quatro quadras ate´ chegar no ponto, e sempre com ´ fone de ouvido, escutando uma musica pra animar
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~
´ indo Enquanto caminhava na Tamandare, ~ ao ponto, vi que tinha um em direcao ´ de mim cara atras
estava escutando o meu sambinha e nem percebi o cara se aproximar
~
De repente, aconteceu tudo ao mesmo tempo: senti ele me pegando por ´ tirei o fone de ouvido e o portao ~ de elevacao ~ de uma casa estava tras, abrindo, o morador estava saindo de carro
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virei e ele ja´ estava de costas, indo embora
eu comecei gritar e xingar
~
O rapaz que estava saindo de casa parou o carro. E perguntou: “Moca, o que aconteceu?”
Aquele ca ra passou a mao em mim! Nossa, mas ele te roubou? Na ~o, na~ o d tempo eu !
~ esta´ Entao tudo bem
~ consegui Eu fiquei arrasada naquele dia. Cheguei na escola e nao ´ ´ so´ o meu corpo fisico trabalhar. Fiquei la, 75
“
F
alo de acordo com a minha vivência. Nosso corpo é muito mais sexualizado, vemos isso quando os caras falam: ‘ai que mulata4 gostosa’”. Pela trajetória e pelos tantos acontecimentos de assédio em sua vida,
Dandara5 vê e sente que o corpo da mulher negra é o mais objetificado na sociedade. É por essas questões que o assédio deve ser olhado em todos os recortes sociais; e foi por meio deste pensamento que surgiu o conceito “interseccionalidade”. Que começou a ser discutido em 1991 pela afroamericana Kimberlé Williams Crenshaw, 4 Mulata é um termo com significado pejorativo que indica mestiçagem e impureza. A palavra surgiu na Espanha e é baseado na “mula” – animal híbrido, originário do cruzamento entre jumentos com éguas ou cavalos com jumentas. 5 Nome fictício para a personagem que não quis se identificar.
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feminista e professora especializada nas questões de raça e gênero. O termo foi usado pela primeira vez em uma pesquisa sobre as violências vividas pelas mulheres negras nas classes baixas nos Estados Unidos. Este conceito sociológico estuda as diferentes relações nas vidas das minorias entre diversas estruturas de poder. A interseccionalidade nada mais é que a consequência das várias formas de dominação ou discriminação e trata esses fenômenos por meio das interseções. Para Kimberlé Crenshaw, a interseccionalidade captura os efeitos da relação entre as formas de subordinação, como o sexismo, o racismo e o patriarcalismo. Não é levado em consideração apenas o fato de ser mulher, mas também o fato de ser negra, indígena, deficiente,
“Se olharmos para a história
do Brasil as mulheres brancas sempre lutaram pelo espaço no mercado de trabalho, enquanto nós, mulheres negras, desde que aqui chegamos, trabalhamos” Ana Luisa
camponesa, LGBT – lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgênero – e em qual classe social pertence. A socióloga Ana Maria considera estes recortes fundamentais ao analisar a questão do assédio, pois as relações desiguais de gênero perpassam todas as camadas sociais. “O salário das mulheres negras ainda é menor que das mulheres brancas, elas têm menos escolaridade que as mulheres brancas. Tudo isso tem que ser visto, tem que haver um recorte, porque a vivência é diferente dependendo da camada social da qual pertencemos, e as dificuldades são maiores”. A teóloga Ana Luisa se denomina feminista negra e a sua luta vai além. A militante deixa clara que a realidade em ser mulher negra na sociedade é diferente. “Se 77
olharmos para a história do Brasil as mulheres brancas sempre lutaram pelo espaço no mercado de trabalho, enquanto nós, mulheres negras, desde que aqui chegamos, trabalhamos”. A militante problematiza que a luta não é por trabalho, mas sim pelos lugares que lhes são dados, as rendas que lhes são pagas. Com a Lei das Empregadas Domésticas6, as mulheres negras, que ocupam 63% desta classe trabalhadora, obtiveram seus direitos após tanto tempo resguardado. “É um resquício da escravidão”, afirma Ana Luisa. “Penso muito no que é ser mulher negra. Penso naquilo que o padrão heteronormativo, racista e machista historicamente renegou a nós mulheres nessa sociedade brasileira. De que quando eu nasço o meu lugar é ser doméstica, aquela que vai servir. É esse ser mulher que eu combato enquanto militante, e me refaço e me torno mulher negra em um outro sentido, de me afirmar em uma trajetória acadêmica, profissional e enquanto identidade de mulher negra para longe desse não lugar social que me foi dado historicamente no Brasil”. Ana Luisa problematiza os padrões sociais e a importância de desconstruí-los. “O que é o padrão heteronormativo? É o padrão centrado no homem, branco, heterossexual, rico, estudado, urbano, adulto, cristão. Esse padrão que tem ditado os nossos livros didáticos, a forma como os professores dão aula, as disciplinas, as nossas relações em si. Precisamos desconstruí-las”. A secretaria de políticas públicas para mulheres de Campo Grande, Leyde Pedroso, também se enxerga nesta relação de ser mulher negra e estar duplamente 6 A Lei das Empregadas Domésticas foi sancionada no dia 2 de junho de 2015 pela presidente Dilma Rousseff e garante novos direitos à categoria, entre eles o seguro-desemprego, salário-família, auxílio-creche e seguro contra acidentes de trabalho.
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comprometida com a quebra de paradigmas. “Nossa vida cotidiana é lutar contra o preconceito, o racismo, a discriminação, é superar a intolerância. O tempo todo temos que provar que somos capazes, independente da nossa cor, da nossa pele, dos nossos cabelos cacheados”. É grande a importância em tratar as diversas esferas sociais de formas diferentes, como destaca Ana Luisa. “Temos outras lutas e as mulheres com deficiência terão outras, as indígenas terão outras e as brancas têm as suas lutas também e temos uma luta que é nossa, mas eu não
“Somos povos originários
da terra, nós temos todos os direitos e além. E esse além não quer dizer nos colocar dentro da aldeia e cercar, blindar” Elisangela Candelaria
posso negar essa interseccionalidade enquanto feminista negra”. A realidade das mulheres indígenas também é muito complicada. Uma companheira desabafou sobre os problemas da comunidade para a socióloga Ana Maria. “Até para denunciar a violência é mais difícil, porque elas chegam e nem falam português, e isso nem passa na cabeça da gente, então imagina a dificuldade”. A indígena Terena e assistente social, Elisângela Candelaria, tem dúvidas sobre o direito diferenciado dado aos povos indígenas. “Somos povos originários da terra, nós temos todos os direitos e além. E esse além não quer dizer nos colocar dentro da aldeia e cercar, blindar. Porque se blindou, os problemas continuam lá dentro e quando fecham não tem como sermos inseridos em um sistema, não tem como fazermos diferente”. Nas aldeias Terenas, por exemplo, há uma relação de poder muito forte. As 79
mulheres são submetidas não só aos maridos, como também aos caciques. “Eu acredito que a mulher ainda vai conseguir se apropriar dos direitos que tem, vai conseguir ter a voz que precisa ter, não ficar só lá dentro da comunidade lavando, cozinhando, plantando, vindo pra cidade”, expõe a Terena. Dentro das comunidades indígenas as mulheres são quem geram a renda da família – elas que plantam, colhem e vão vender na cidade. “A mulher indígena é uma grande empreendedora, ela só ainda não descobriu. Alguém vê homens com a bacia na cabeça no meio da cidade? Não vê. Vê quem? As mulheres que são as negociantes, então é isso que a gente pensa em mudar. Fazer com que elas se apropriem do seu direto, se aproprie do conhecimento para que elas possam falar”, indaga Elisângela. Segundo Ana Luisa, para entender cada necessidade dessas mulheres é preciso um mapeamento para conseguir políticas públicas e leis de combate. “A questão da localização geográfica, de onde estão essas mulheres, que verá como é a realidade na cidade, no campo, na periferia, no centro. A questão racial se for branca, negra, indígena, amarela. Temos que olhar pra essa questão religiosa também, porque é um discurso que legitima desigualdades. Temos que olhar a questão da escolaridade dessas mulheres, a idade delas”. As diferenças entre os recortes sociais não ocorrem exclusivamente no terreno dos direitos. Os assédios são vistos de várias formas pelas distintas mulheres. Ana Luisa diz que a violência e o assédio de rua são históricos na sociedade e fruto do machismo que ganha também característica racial. “Não podemos negar que 54% dos índices de homicídio contra a mulher negra aumentaram, entre 2003 a 2013, enquanto que das mulheres brancas nos últimos dez anos caiu 10%. Então tem uma 80
violência de gênero, que é também de gênero racial no nosso Brasil. Tenho a sensação de que a qualquer momento eu posso ser a estatística de amanhã”. Nas comunidades indígenas a sensação não é diferente. A situação se torna delicada quando se vê meninas sendo aliciadas desde cedo por homens indígenas. Um assobio se torna algo assustador na vida dessas mulheres. “Quando ouvem um assobio se sentem muito amedrontadas, fogem na realidade, elas fogem porque têm medo disso. O abuso, o início começa por ai, mexe hoje, é um assobio hoje, é um ‘olá’ outro dia e se elas ficam desapercebidas, é onde acontece o ato violento”, explica a terena Elisângela. A mulher indígena é vista como diferente, e consequentemente sofre com o preconceito. Elas não se sentem bonitas, não se sentem valorizadas. Quando recebem uma “cantada” se sentem ainda mais vulneráveis, por todos os estes aspectos negativos que sofrem durante a vida. “São mulheres com uma cultura diferente, costumo dizer que o preconceito está enraizado em nós mesmas indígenas, mesmo que seja diferente, mas aqui na nossa cabeça a gente já tem aquilo pré-disposto, quando a gente chega as pessoas já têm um olhar diferente”. Os adjetivos usados em um assédio de rua tem explicitamente um recorte racial, mas não apenas. É o que afirma a estudante Larissa Melo, que é negra, tem 24 anos, natural do Rio de Janeiro e veio para Campo Grande em 2013 para cursar faculdade de Letras na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Por ter crescido em um meio onde é natural chamar uma pessoa de “morena”, “mulata”, “pretinha”, a estudante acha que o debate também tem um recorte de classe. “Não cresci na favela, mas conheço pessoas do meio. É normal falar assim ‘ah 81
pretinha’, temos música, samba assim. Então o contexto lá não é tão inserido nessa divisão racial, mas quando vim para cá senti que não é só recorte de classe, é recorte racial que existe”. Larissa tem uma família com uma boa condição financeira e que mora em um bairro de classe média alta no Rio de Janeiro. Quando chegou à capital sul-mato-grossense ela sentiu que sua cor de pele ditava mais sobre quem ela era. “É como se fosse assim: ‘ah, é a mulata que veio pra cá, que não sei o que’. Eu nunca tinha sentido isso. Às vezes eu acho engraçado eu nunca
““A luta de nós, mulheres
ter passado por isso, aí vir pra cá e esse turbilhão de sentimentos. E realmente perceber que existe
negras, é contra a violência de gênero e contra o racismo. Porque sofremos também dos homens negros uma violência de gênero, uma desigualdade”
essa problemática de diferença de cantadas e in-
Ana Luisa
acordo com a minha vivência, se estou com uma
tenções e assim: ‘ah, a mulata é bonita’”. Dandara também sente essa dificuldade na pele. Acha que o tipo de abordagem deixa claro o fetiche existente pela mulher negra. “De amiga, por exemplo, branca, os caras mexem
mais comigo. Não porque sou mais bonita, mas vejo muito por conta da minha cor mesmo. ‘Ô mulata gostosa’, ‘eita morena’, não sei parece que é muito automático ver uma morena e falar: ‘ô morena’, ‘ô morena gostosa’. A professora conta ainda que é muito difícil se dirigirem a ela com adjetivos como “linda”, justamente por essa sexualização. “Comparando, por exemplo: ‘linda’, ‘ô linda’, é bem difícil. Já rolou assim: ‘ô morena linda’, ‘ô gostosa’. E fazem isso por essa sexualização histórica da mulher negra e da mulher morena”, sustenta. 82
Os corpos das mulheres são vistos de diferentes formas – a branca é vista socialmente para se ter um relacionamento, para casar. Já a negra é vista como um objeto sexual, para saciar os fetiches masculinos, tanto dos homens brancos como dos homens negros. “A luta de nós, mulheres negras, é contra a violência de gênero e contra o racismo. Porque sofremos também dos homens negros uma violência de gênero, uma desigualdade”, pontua a militante Ana Luisa. Larissa se compara muitas vezes a uma iguaria, pois nas vezes em que saiu para determinados lugares se sentiu uma exótica pela forma que as pessoas a olharam. Ela se pergunta por que isso acontece: se é pelo fato de ser negra, alta ou pelo jeito de se vestir. Para ela, seus trejeitos são normais. “Nunca tinha sentido isso. E mexe um pouco também, essa diferença de cantada. Eu nunca tinha me sentido uma beleza exótica. Sinto tudo um pouco mais ofensivo aqui. É um sentimento real”. “Depende da maneira de abordar”. Essa é uma das formas que Dandara identifica o assédio que sofre na rua. Ela afirma que quando um homem está realmente interessado é sentido no olhar. A maneira de abordar é diferente, o olhar fica vidrado em seu rosto. “E não olhando para o corpo de uma maneira sexual. Falamos de um processo histórico do homem e da mulher, a abordagem de um homem já vem de um histórico de assédio e repressão de violação do corpo da mulher e direitos”. A forma de olhar faz diferença e traz uma das principais características do assédio. Como exemplifica a assistente social e militante feminista, Estela Scandola: “ele faz nos sentirmos bife”. O olhar traduz o desejo do sujeito da ação que recai sobre um corpo sem identidade. O corpo torna-se objeto. A objetificação foi um tema amplamente discutido nas décadas de 1960 e 83
1970 pela forma como as mulheres eram retratadas em propagandas. Nas décadas seguintes o assunto não ganhou destaque. Em seu blog, quem faz esta constatação é Caroline Heldman, PhD em Ciências Politicas pela Rutgers University, ativista do movimento antiestupro nas universidades, especializada em mídia, gênero e raça no contexto norte-americano. A cientista política define a objetificação como o processo de representar ou tratar uma pessoa como um objeto, que serve somente para oferecer prazer sexual ao outro. É ver alguém como instrumento de desejo e não enxergar o indivíduo com personalidades, atributos emocionais e psicológicos. Caroline problematiza as consequências desse processo que traz a dicotomia, ou seja, a oposição entre sujeito e objeto. Os sujeitos são quem praticam a ação enquanto o objeto está sempre subordinado ao sujeito. O conceito da objetificação trata de reforçar as relações da cultura patriarcal na qual a mulher, enquanto objeto, é vista como subordinada ao homem. Tornar um objeto é para a socióloga Nathália Ziolkwski transformar o corpo da mulher naquilo que a sociedade quer. “É deslocar o sujeito, deslocar o corpo das suas subjetividades e transformá-lo no que o seu pré olhar diz sobre aquele corpo. Torná-lo objeto é lançar preconceitos e estereótipos sobre ele. Os próprios assédios e as violências investidas contra nós são parte dessa forma de olhar o corpo feminino”. Num local próximo à UFMS enquanto atravessava a rua, Dandara foi vítima de mais um assédio. “Um cara no trânsito meio que parou o carro e deu uma abaixadinha no vidro para poder me olhar”. A professora descreve que todo tipo de cantada causa incômodo, deixando-a com uma sensação de ser um objeto de fato. “Porque 84
um cara que nunca te viu na vida, ou já te viu, mas não conhece sua história, não sabe das suas qualidades, nunca trocou uma ideia, passa na rua e assobia para você? Ele está te vendo como um pedaço de carne andando na rua”. Para a militante feminista negra, Ana Luisa, a objetificação tem como maior consequência tornar o corpo da mulher um território a ser dominado. “Isso é histórico. E emerge ainda nos materiais didáticos, nas escolas, na mídia, e na religião. Se constrói uma imagem em relação ao corpo da mulher. São situações em que o homem se acha no direito de tocar no meu corpo e de dominar esse corpo. Acredito que está tudo bem entrelaçado. Desde ser visto como um território a ser dominado, e aí dominado como? Sexualmente, intelectualmente, em todas as instâncias”. A mulher é vista como uma propriedade e a coletividade legitima essa ideia: as escolas, as igrejas, os bairros, os pais, os irmãos. “O homem é quem determina se a mulher trabalha fora de casa ou não, se ela pode estudar depois do casamento, e dessa maneira se torna uma propriedade que ele pode espancar, ameaçar, até matar”, problematiza a socióloga Ana Maria. A sexualização do corpo parte da perspectiva da posse, do homem sentir que o corpo feminino se destina para o seu olhar, para os seus desejos, e que pode ser usufruído como quiser. O homem é visto como protagonista. A erotização do corpo contribui para torná-lo um objeto. A militante feminista negra, Ana Luisa, vê o imaginário simbólico religioso como uma ferramenta que legitima o discurso sobre o corpo da mulher. “Hoje a violência de gênero e racial estão institucionalizadas dentro desse discurso religioso muito forte de intolerância, de fundamentalismo”. 85
A socióloga Nathália contextualiza que há formas como as mulheres precisam ser e estar na sociedade para serem aceitas. “Existe o aspecto da construção cultural para a erotização do corpo que está ligado a questão da mulher negra no Brasil no período da escravidão, que é a imagem que se vincula da mulher no exterior”. No campo institucional, a secretária de políticas públicas Leyde Pedroso problematiza a imagem que é construída da mulher. “Quando eu trabalhei com turismo era perceptível que elas eram até vendidas, entre aspas. As mulheres brasileiras eram
“As mulheres brasileiras eram
colocadas como exportação, seus corpos eram colocados até nos panfletos que divulgavam o
colocadas como exportação, seus corpos eram colocados até nos panfletos que divulgavam o Brasil lá fora, como atrativo turístico”
Brasil lá fora, como atrativo turístico. Isso é co-
Leyde Pesroso
cação atinge a mulher por toda sua vida. “Ela é
locar a mulher em forma de objeto, não somos produto de exportação, não somos produto turístico”. Para a socióloga Ana Maria, a objetifiobjeto para ser assediado, pra ser usado, para ser
estuprado, para apanhar, para ser considerada uma profissional menos competente do que o homem. Para ser desvalorizada, por isso o salário mais baixo. Por essas relações de gênero, a mulher não é nada mais além de esposa, mãe e objeto sexual, e como é um objeto sexual o corpo dela tem que corresponder a um padrão criado na sociedade”. O corpo feminino historicamente precisa corresponder a um padrão de beleza para cumprir o ideal determinado, como o casamento. A mulher precisa ser 86
legitimada como uma beleza. Ela não é ensinada a ser bonita para si e acaba se submetendo para corresponder a um padrão de beleza que não é instituído por elas, mas que seguem. Essa objetificação tira o protagonismo da mulher, do direito a voz e autonomia sobre a própria vida sexual. Seu corpo ainda é visto para a reprodução. A liberdade sexual e métodos contraceptivos dão a falsa ideia de que essa obrigação foi superada. “Simbolicamente é o que se espera, mas, na prática, as mulheres ainda vivem isso. Se for olhar para a licença maternidade, por exemplo, e para a licença paternidade, o próprio Estado não confere igualdade para os homens e mulheres nessa perspectiva. Existe isso no imaginário das pessoas”, acredita Nathália. A militante afirma ainda que o corpo da mulher é focado na reprodução desde sua estética. “Pensando em termos históricos a questão estética do corpo feminino já sofreu inúmeras variações, e desde a época do paleolítico são imagens da deusa, que acho que é a primeira imagem da mulher, a ideia da fertilidade, dos seios fartos, do abdômen farto”. Desde o início de sua problematização, a objetificação está ligada à maneira como as mulheres são retratadas. O papel da mídia, propaganda, jornais e novelas, é imprescindível para criar e reforçar os lugares e a construção simbólica de o que é ser mulher. Em seu blog, a ativista Caroline Heldman enumera situações em que a imagem da mulher é objetificada. Quando mostram apenas partes de seu corpo e nunca a cabeça; quando a imagem é sensualizada sem propósito; quando retratam uma violação da integridade física sem seu consentimento; quando mostram uma pessoa sendo 87
exibida como mercadoria; quando o corpo é usado como tela para passar alguma mensagem. A militante e feminista Nathália vê a mídia como reforçadora da cultura em que está inserida. “Estive em uma discussão sobre questão racial esses tempos e uma das perguntas era se essas pessoas se sentem representadas na mídia. E a resposta foi não, elas não estão representadas. Existem estereótipos que a mídia ajuda a reforçar, infelizmente ela traz a reprodução do que é o social”. A mídia é uma ferramenta importante para a construção e manutenção cultural, e assume papel reforçante na objetificação do corpo feminino. Além das propagandas, a forma como as notícias são construídas assumem papel importante na forma que a sociedade enxerga a violência. Ao levantar informações sobre feminicídio, a militante Ana Luisa questiona a forma como essa violência é narrada nos jornais. “Quando uma mulher é assassinada, é colocado no título como: ‘mulher é assassinada porque engravidou de outro homem’, ‘mulher foi assassinada por isso’. Como se ela fosse culpada por ter sido assassinada. A forma como a mídia coloca muitas vezes legitima essa violência: ‘ela não estava certa’, ‘ela traiu o homem’, ‘ela teve filho com outro’ ou ‘ela saiu com a roupa assim’. As notícias culpabilizam a mulher pelas violências que ela sofre. Nada dá ao homem o direito de tirar a vida, de assediar, de fazer seja lá o que for com uma mulher”. As propagandas são meios de comunicação que corroboram as desigualdades das relações entre os gêneros. Leyde Pedroso vê a necessidade de repensar o papel da mídia. “Na propangada de cerveja estará lá: ‘a toda boa de não sei o que’. São pro88
cessos que precisamos superar, que a sociedade precisa compreender. A cerveja não tem nada a ver com a propaganda de mulher em uma situação de objeto. São lutas que teremos que travar contra essas formas em que somos colocadas, como cidadãs de segunda categoria. Somos mulheres e precisamos ser respeitadas o tempo todo”.
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