Narrativas
de incômodo histórias de mulheres à margem Agatha Espírito Santo
Narrativas de Incômodo histórias de mulheres à margem
Agatha Espírito Santo
Narrativas de Incômodo
Campo Grande, 2020
Fomos socializadas para respeitar mais ao medo que às nossas próprias necessidades de linguagem e definição, e enquanto a gente espera em silêncio por aquele luxo final do destemor, o peso do silêncio vai terminar nos engasgando.
Audre Lorde
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introdução
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nó corrediço
bolhas de sabão irmã outsider POSFÁCIO
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Narrativas de Incômodo
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Romper silêncios é o primeiro passo para a cura Quanto tempo você não escuta o som da sua própria voz? Por medo de incomodar, a gente cala as justiças Mas dá para promover mudanças no conforto? Assumimos, então, que trazemos narrativas de incômodo Queremos que nossas palavras cortem como navalha a sua indiferença Deixe a sua consciência intranquila cause conflitos e tempestades Eparrei! Desconforto é incômodo necessário O som das nossas rimas vai perturbar o teu sono Desestabilizar a sua calma E ao mesmo tempo mostrar a nós a força da quebra A felicidade de se autodefinir Sim, vou olhar para mim E desta vez vou gostar do que eu vejo E direi para mim o quanto eu sou incrível Vou falar, gritar e me emocionar quando enxergar Dandara em mim E essa voz vai ser coletiva vai ultrapassar fronteiras, tirar a venda dos meus olhos Conceição Evaristo um dia disse “Nossa voz estilhaça a máscara do silêncio” Então fale, destranque, deságue Dá medo, eu sei, mas fale Às vezes a gente acha que o muro é muito alto Mas pule, garota Você não vai nem arranhar os joelhos
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Manifesto/Pule, garota Rimas e Melodias (participação de Djamila Ribeiro)
A
s mulheres são a maioria da população brasileira, 51,8% segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2019. São mais escolarizadas também, de acordo com o estudo Estatísticas de Gênero: Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil1, produzido pelo Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) em 2018; nele indica-se que cerca de 23% das mulheres brancas de 25 anos ou mais possuem o ensino superior completo, enquanto para os homens brancos da mesma faixa etária apenas 20,7% possuem o mesmo nível de estudo. Porém, se fazemos um recorte de cor, as diferenças são nitidamente desconcertantes, para dizer o mínimo. Aproximadamente 10% das mulheres pretas ou pardas de 25 anos ou mais possuem nível superior completo, enquanto para os homens pretos ou pardos a taxa é de 7%. Isso, no quesito gênero, não se reflete, no entanto, no mercado de trabalho, pois o mesmo estudo conclui que o rendimento habitual médio mensal dos trabalhos dos homens é de R$ 2.306 e o das mulheres de R$ 1.764. No levantamento apresentado pela Organização Não Governamental (ONG) Think Olga, pelo Laboratório de Inovação Social Mulheres em Tempos de Pandemia2, as mulheres brasileiras empenham mais de 61 horas semanais em trabalhos não remunerados. Ao contrário do que se imagina, os trabalhos não remunerados vão além dos afazeres domésticos — embora eles façam parte da lista —, incluído, também, o cuidado de pessoas. A chamada ‘economia do cuidado’ é o conjunto de trabalhos essenciais para o funcionamento e manutenção da sociedade e do próprio sistema capitalista. É um esforço empenhado em algo que não possui reconhecimento, não possui um contracheque, 1 Primeira publicação do IBGE em consonância com o Conjunto Mínimo de Indicadores de Gênero, feito pela Comissão de Estatística das Nações Unidas em 2013. O documento brasileiro reúne grande parte dos 63 indicadores propostos pela Comissão, e está disponível no link: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/genero/20163-estatisticasde-genero-indicadores-sociais-das-mulheres-no-brasil.html?=&t=publicacoes. 2 A Think Olga é uma Organização Não Governamental (ONG) de inovação social, que utiliza a comunicação para ensinar sobre gênero e suas intersecções, fornecendo os instrumentos necessários para que pessoas auxiliem a mudar e melhorar a vida das mulheres. O Laboratório de Inovação Social Mulheres em Tempos de Pandemia é uma dessas ferramentas, através do relatório e do laboratório de exercícios de futuro, dados sobre a atual situação de mulheres durante a pandemia do novo coronavírus estão disponíveis para consulta. Disponível em: https://lab. thinkolga.com/.
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não possui uma carga horária com início e fim, um trabalho infinito sem remuneração. Mesmo sendo mais escolarizadas e com uma carga de trabalho superior à dos homens, quando falamos da remuneração, as mulheres sequer recebem de forma equânime. Esse trabalho invisível citado, representa cerca de 11% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, como mostra o estudo Os afazeres domésticos contam3, realizado por Hildete Pereira de Melo, Cláudio Monteiro Considera e Alberto di Sabbato. Se o trabalho de cuidado realizado pelas mulheres fosse somado aos bens e serviços de 2019, equivaleria a R$ 803 milhões. Um valor superior a qualquer produção, de qualquer indústria, no mesmo período. No “A DIFERENÇA EM RELAÇÃO AO TRABALHO mundo, segundo a publicação da DOMÉSTICO RESIDE NO FATO DE QUE ELE NÃO SÓ International Labour Office (ILO) de TEM SIDO IMPOSTO ÀS MULHERES COMO TAMBÉM 2018, o trabalho não remunerado FOI TRANSFORMADO EM ATRIBUTO NATURAL das mulheres seria superior a $ 10 DA PSIQUE E PERSONALIDADE FEMININAS, trilhões. Isso significa que, se soUMA NECESSIDADE INTERNA, UMA ASPIRAÇÃO, mássemos somente o trabalho inviSUPOSTAMENTE VINDA DAS PROFUNDEZAS sível das mulheres, ele seria a 5ª DA NOSSA NATUREZA FEMININA. O TRABALHO economia mundial, ficando abaixo, DOMÉSTICO FOI TRANSFORMADO EM ATRIBUTO apenas, dos PIBs da Índia, União NATURAL EM VEZ DE SER RECONHECIDO COMO Europeia, Estados Unidos e China. TRABALHO, PORQUE FOI DESTINADO A NÃO SER Segundo a intelectual militante REMUNERADO.” de tradição feminista marxista SilO ponto zero da revolução, Silvia Federici, 2019. via Federici4, o trabalho doméstico é a violência mais sutil já perpetua3 O estudo procura mensurar as atividades domésticas realizadas, partindo do princípio que sem elas o sistema capitalista não teria as dimensões atuais. Publicado em 2007, os autores utilizam dados da PNAD Contínua para chegar ao valor aproximado do quanto valeriam os afazeres domésticos, caso considerados como bens e serviços. Estudo completo no link: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-06182007000300006&script=sci_ abstract&tlng=pt. 4 Em O Ponto Zero da Revolução, traduzido pelo Coletivo Feminista Sycorax e publicado no Brasil pela editora Elefante. Obra completa disponível gratuitamente em: http://coletivosycorax.org/wp-content/uploads/2019/09/ Opontozerodarevolucao_WEB.pdf
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da contra qualquer setor da classe trabalhadora. Para Silvia Federici, não é só o cuidado de pessoas e os afazeres domésticos que deveriam ser contabilizados como trabalho, mas, em alguns casos, as relações sexuais também. As mulheres recebem a promessa de que a sexualidade é o único momento em que podem ser elas mesmas, espontâneas a ponto de atingir conexões mais íntimas e verdadeiras do que nas relações sociais do dia a dia. “PELO FATO DE ESPERAR QUE PROPORCIONEMOS Com a evolução do pensamento UMA LIBERTAÇÃO, INEVITAVELMENTE NOS feminista, a chegada de partidos TORNAMOS O OBJETO SOBRE O QUAL OS HOMENS ao poder e a ampliação da batalha DESCARREGAM SUA VIOLÊNCIA REPRIMIDA. por direitos, algumas políticas SOMOS ESTUPRADAS, TANTO EM NOSSA CAMA públicas voltadas ao bem-estar das QUANTO NA RUA, PRECISAMENTE PORQUE FOMOS mulheres foram implementadas, CONFIGURADAS PARA SER AS PROVEDORAS DA mas isso não significa que a luta SATISFAÇÃO SEXUAL, AS VÁLVULAS DE ESCAPE PARA tenha chegado perto de um fim. TUDO O QUE DÁ ERRADO NA VIDA DOS HOMENS, E OS A disseminação das fake news e o HOMENS TÊM SIDO SEMPRE AUTORIZADOS A VOLTAR retorno do conservadorismo, no SEU ÓDIO CONTRA NÓS SE NÃO ESTIVERMOS À Brasil e no mundo, têm evidenciaALTURA DO PAPEL, PARTICULARMENTE QUANDO NOS do que o pouco que foi conquistaRECUSAMOS A EXECUTÁ-LO.” do pelas minorias nos últimos 10 O ponto zero da revolução, Silvia Federici, 2019. anos corre grande risco, especialmente porque o retrocesso político-econômico obriga milhões de mulheres a voltarem ao ambiente doméstico. Esse êxodo forçado das mulheres do mercado de trabalho aumenta a vulnerabilidade socioeconômica de milhões de famílias. Segundo o IBGE, em 2018 cerca de 11% das mulheres do Brasil eram as principais responsáveis pela família (Gráfico 1), vivendo sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos. Destes arranjos familiares, 54% vivia em condições de pobreza ou extrema pobreza, sendo as mulheres pretas e pardas as mais prejudicadas do tecido social. Esses
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Gráfico 1 | Proporção de pessoas e arranjos domiciliares por situação de pobreza e extrema pobreza, 2018.
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família casal sem casal com formada por filhos filhos responsável sem cônjuge domicílios extremamente pobres com filhos até 14 anos domicílios pobres unipessoal
família família formada formada por por mulher mulher sem branca sem cônjuge e cônjuge e com com filhos filhos até 14 até 14 anos anos
família formada outros por mulher preta ou parda sem cônjuge e com filhos até 14 anos
Fonte: Dados obtidos em Síntese de Indicadores Sociais (IBGE), 2018. Os domicílios extremamente pobres são aqueles cuja renda domiciliar per capita é até $ 1,99 por dia (PPC) e os domicílios pobres aqueles com renda até $ 5,5 (PPC).
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níveis maiores de pobreza em lares chefiados por mulheres precisa ser analisado sob uma perspectiva multidimensional, levando em conta não apenas a renda, mas também as condições de trabalho, o acesso à saúde, educação, entre outros fatores importantes. A maioria das mulheres que se declaram mantenedoras do lar o fazem por ser a única opção viável (Gráfico 2), já que o cônjuge abandona o lar, aumentando a vulnerabilidade dessas famílias5.
Gráfico 2 | Perfil das mulheres chefes de família do Brasil, 2015. 10,67% 5,42% Nunca viveu
Nunca viveu
34,98% Sim
13,51%
Não, já viveu antes
81,07%
Moram com cônjuge
54,35%
Não, já viveu antes
homens
mulheres
Fonte: Dados obtidos no estudo Pobreza dimensional das mulheres chefes de família da região nordeste que utiliza os índices apresentados pela PNAD em 2015. 5 De acordo com o estudo Pobreza dimensional das mulheres chefes de família da região nordeste, produzido por Nadja Simone Menezes Nery de Oliveira e Jandir Ferreira de Lima, analisar os índices da pobreza sob a perspectiva unidimensional — considerando a renda como principal fator de bem-estar — não é apropriado, já que o poder de compra muda dependendo da região ou país em questão. A perspectiva multidimensional é a que analisa a pobreza se baseando também no acesso a serviços considerados básicos, como alimentação, mas também como alfabetização, moradia e saneamente, por exemplo. Quando se amplia o leque de análise, o número de famílias em situação de pobreza tende, também a crescer. Artigo completo em: http://anpur.org.br/xviiienanpur/anaisadmin/capapdf. php?reqid=49
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É possível perceber uma grande desigualdade nesses casos, pois mais de 81% dos homens que chefiam suas famílias no Brasil moram com um cônjuge, enquanto as mulheres na mesma situação, cerca de 35%. Quando uma mulher com filhos, sem estrutura ou rede de apoio, precisa se lançar no mercado de trabalho, ela acaba optando por empregos de meio período ou temporários. O cuidado dos filhos e da casa não é terceirizado, segundo dados recentes da PNAD Contínua, enquanto 40% das mulheres declaram empregar seu tempo no cuidado de pessoas, entre os homens, o número chegou a 28%. Até aqui, numa retrospectiva bem sintética, as mulheres estudam e trabalham mais do que os homens, mas recebem menos e estão mais vulneráveis à pobreza. A pandemia do vírus Sars-COV-2, o fechamento das escolas e o planeta em crise não desfizeram a tendência de descartar mulheres. No estudo Mercado de Trabalho e Pandemia da Covid-19: ampliação das desigualdades já existentes?6, realizado na segunda quinzena de março, a partir dos dados da PNAD Contínua, que analisou a segunda quinzena de março de 2020, mostra que cerca de 7 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho. As mulheres fazem parte, junto com os jovens, do grupo com maiores chances de perder o emprego, aproximadamente 20%. “Os mais afetados em termos de perda de ocupação foram as mulheres, os mais jovens, os pretos e os com menor nível de escolaridade.” 6 O estudo tem como objetivo identificar quais os trabalhadores mais afetados com a perda de ocupação no Brasil. Artigo completo no link: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/mercadodetrabalho/200811_BMT_69_ mercado_de_trabalho.pdf.
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Não é segredo que os direitos das mulheres lhes são negados diariamente, e que a luta pela visibilidade e pelo acesso ao básico são necessários e contínuos. O livro-reportagem Narrativas de Incômodo apresenta, então, a história de três mulheres. O espaço geográfico e social no qual elas se inserem, experimentam sua sexualidade e seu corpo são distintos. O que as une é o fato de serem mulheres no Brasil de 2020, causando perceptível desconforto nos arranjos sociais, cada uma à sua maneira. Se percebemos vítimas do patriarcado em diversos momentos, também notamos que a mesma estrutura que pune, as tenta invisibilizar. Uma das frases feministas mais divulgadas nas redes sociais nos últimos dois anos é: “mulher em casa, revolução atrasa”. Tentemos estendê-la aos micro espaços de poder: se as vozes e as vivências dessas mulheres permaneceram aterradas no desespero conservador da lógica capitalista conservadora, pouco ou quase nada pode mudar. É a ocupação das minorias sociológicas — que na maior parte das vezes representam maiorias quantitativas — nos espaços de poder que viabiliza a possível implementação de projetos e leis que as enxerguem como cidadãs e possam promover uma necessária qualidade de vida.
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“DURANTE A ÚLTIMA DÉCADA, AS MULHERES ABRIRAM UMA BRECHA NAS ESTRUTURAS DO PODER. ENQUANTO ISSO, CRESCE EM RITMO ACELERADO OS DISTÚRBIOS RELACIONADOS À ALIMENTAÇÃO, E A CIRURGIA PLÁSTICA DE NATUREZA ESTÉTICA VEIO A SE TORNAR UMA DAS MAIORES ESPECIALIDADES MÉDICAS. NOS ÚLTIMOS CINCO ANOS, AS DESPESAS COM O CONSUMO DUPLICARAM, A PORNOGRAFIA SE TORNOU O GÊNERO DE MAIOR EXPRESSÃO, À FRENTE DOS DISCOS E FILMES CONVENCIONAIS SOMADOS, E TRINTA E TRÊS MIL MULHERES AMERICANAS AFIRMARAM A PESQUISADORES QUE PREFERIAM PERDER DE CINCO A SETE QUILOS A ALCANÇAR QUALQUER OUTRO OBJETIVO. UM MAIOR NÚMERO DE MULHERES DISPÕE DE MAIS DINHEIRO, PODER, MAIOR CAMPO DE AÇÃO E RECONHECIMENTO LEGAL DO QUE ANTES. NO ENTANTO, EM TERMOS DE COMO NOS SENTIMOS, DO PONTO DE VISTA FÍSICO, PODEMOS REALMENTE ESTAR EM PIOR SITUAÇÃO DO QUE NOSSAS AVÓS NÃO LIBERADAS. PESQUISAS RECENTES REVELAM COM UNIFORMIDADE QUE EM MEIO À MAIORIA DAS MULHERES QUE TRABALHAM, TÊM SUCESSO, SÃO ATRAENTES E CONTROLADAS NO MUNDO OCIDENTAL, EXISTE UMA SUBVIDA SECRETA QUE ENVENENA NOSSA LIBERDADE: IMERSA EM CONCEITOS DE BELEZA, ELA É UM ESCURO FILÃO DE ÓDIO A NÓS MESMAS, OBSESSÕES COM O FÍSICO, PÂNICO DE ENVELHECER E PAVOR DE PERDER O CONTROLE.” O mito da beleza, Naomi Wolf, 1992. 21
NÓ CORREDIÇO Há quase 30 anos, a escritora norte-americana Naomi Wolf publicava seu livro que, muito provavelmente, nunca vendeu tantas edições quanto nos últimos anos. Arrisco que seja uma narrativa atemporal, assumindo que nada mudou nas últimas três décadas em relação à estética dos corpos femininos. Melhor dizendo, mudou a indústria, que se aprimorou. Se antes tínhamos que lidar com exercícios aeróbicos na sala de casa, vendidos em fitas VHS, e com a compra de aparelhos nada convencionais que prometiam tonificar glúteos e outras partes do corpo em 60 dias, agora recorremos à lipoaspiração que simula os músculos da barriga tanquinho, à harmonização facial e até à ninfoplastia. Nas próximas páginas, Marina relata sua relação controversa com essa indústria estética que há muitos anos ganha espaço na vida de milhares de mulheres ao redor do mundo. Marina não é seu nome verdadeiro, ela prefere se manter anônima para conseguir falar sobre o que vive. A beleza padronizada é um fenômeno que percorre gerações, oprimindo e mutilando mulheres, e no Brasil a realidade não é diferente, talvez seja pior. É o país que mais realizou procedimentos cirúrgicos em 20177. E nos últimos 10 anos, o número de cirurgias estéticas e reparadoras em crianças e adolescentes cresceu 141%, e o país ocupa o primeiro lugar em procedimentos do tipo, realizados dos 13 aos 18 anos de idade8. 7 De acordo com o relatório apresentado pela International Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS) em 2018, foram 1.498.327 procedimentos cirúrgicos realizados no Brasil no ano anterior. Entre os jovens de 18 anos ou menos, a rinoplastia foi a cirurgia mais realizada no mundo, 55.899 intervenções. 8 Pesquisa realizada pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) entre os anos de 2008 e 2012. De acordo com a associação, o número de cirurgias pásticas em jovens foi de 37.740 em 2008, para 91.100 em 2012.
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AGOSTO, 2014. Acordou com um sobressalto. Em dois movimentos já estava fora da cama, olhou no relógio que ficava ao lado e constatou que ainda era madrugada. Na outra extremidade da cama, Carlos ainda dormia confortavelmente, nem seu pulo o fizera se mover. Eram duas e trinta e cinco, os ponteiros se moviam de forma vagarosa, quase como um metrônomo. Já fazia alguns dias que Marina não se sentia bem, alguma coisa em seu corpo anunciava uma catástrofe de grandes proporções, achou que poderia ser uma gripe causada pela última viagem que fez. Nos últimos meses seu sistema imunológico não andava lá essas coisas, qualquer mudança na rotina, na alimentação ou uma perturbação, por menor que fosse, eram mais que suficientes para ter que ficar de cama por dias. Andou até a cozinha, arrantando os pés pelo caminho — lembrou de Carlos a recriminando — ele detesta o som de pés se arrastando, diz que a incapacidade de erguer os pés para andar é um comportamento preguiçoso. A geladeira emitia os ruídos noturnos de sempre, quase não tinha nada em seu interior, isso fez com que Marina pensasse na lista de compras do dia seguinte enquanto enchia um copo d'água. “Ovos, batata, tomate, alface.” Bebeu a água em três grandes goles e logo sentiu uma sensação de desmaio, sentou-se na cadeira que estava próxima e não enxergou mais nada. Algum tempo depois, sem a noção exata de quanto tempo exatamente tinha se passado, sentiu um chacoalhão. O chão frio da cozinha dava uma sensação de alívio para o seu corpo cansado e febril. “Marina. Marina!” Ela foi recobrando aos poucos a consciência, percebeu alguns raios de sol entrando pela janela e ouviu o barulho de trânsito matutino na região. Tentou se sentar, mas uma sensação de formigamento nas pernas e nas costas impediram que seu esforço tivesse êxito. Carlos a levou para o quarto. Na cama, ela olhou novamente para o relógio, seis e quarenta e oito. Pensou, um pouco insatisfeita, que provavelmente teria que cancelar seus programas do dia. A A matéria completa está no link: http://www2.cirurgiaplastica.org.br/2013/08/07/numero-de-cirurgias-plasticas-entreadolescentes-aumenta-141-em-4-anos/.
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geladeira continuaria vazia — Carlos detesta passar no mercado, inventa qualquer desculpa para jogar a tarefa adiante, mas come igual um porco qualquer refeição meia boca que apareça na sua frente. A palavra hipócrita ficou ressoando na cabeça de Marina até ela adormecer. Quando acordou seu corpo estava pior, começou a pensar seriamente que estaria morrendo aos poucos. O formigamento evoluía para uma dor latente que irradiava da lombar até os joelhos. Com um pouco de esforço, colocou as mãos nas coxas, quentes. Foi subindo, percorrendo as pernas até chegar nas nádegas, pareciam incinerar. Tentou se levantar novamente, dessa vez foi muito difícil se colocar em pé, era impossível sentar-se na cama para criar um apoio seguro sem correr o risco de cair. Teve que rolar para o lado direito até conseguir sair da cama, lateralmente. Quando finalmente se colocou de pé imaginou que suas pernas fossem explodir. Andou até o banheiro e se prostrou na frente do espelho, seu rosto estava inchado e opaco, parecia que sua alma tinha sido sugada pela dor. Tirou o pijama e começou a vasculhar pelo corpo a origem da dor. A barriga parecia normal, as costas, embora doessem, também não tinham sinais aparentes de lesão. Foi só quando olhou suas nádegas que encontrou algo diferente. Uma mancha escura do lado esquerdo, sobre uma pele vermelha e quente, não era como o roxo de uma pancada, de formas arredondadas, parecia uma contusão espinhosa que lembrava ligeiramente o mapa da Itália. Olhando minuciosamente, percebeu também uns caroços embaixo da pele do quadril, duros e extremamente doloridos. Marina foi perdendo o ar, não sabia o que fazer ou com quem falar. Pensou em ir ao médico, mas isso implicaria em uma sucessão de exames e minutos preciosos do seu dia deitada em uma maca. Ligou o chuveiro e permaneceu embaixo daquela corrente fria de água por mais de 15 minutos, sem se mover. Tinha lido em alguma revista sobre as vantagens de tomar banho gelado quando se está com febre, e era assim que ela se sentia, com febre e cansada. Se enrolou cuidadosamente na toalha, com calma, sem qualquer toque brusco ou batida nos quadris, cuidando para não piorar tudo. Andou lentamente até a cama e tentou se sentar, em vão. Então foi se arrastando de bruços
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pela cama, ainda de toalha e com o corpo úmido, até achar uma posição confortável o suficiente para conseguir dormir mais um pouco. — Marina, você não se levantou dessa cama hoje? Não esquece que a gente combinou de jantar com o Júlio e a Carol, acho que a gente podia sair daqui 19h40, o que você acha? Marina nem tentou responder, a dor tinha chegado a um ponto que era difícil demais empenhar energia em algo diferente de tolerá-la. Carlos se sentou ao seu lado, afastou os cabelos do seu rosto e encostou os lábios na sua testa. — Você está muito quente, o que aconteceu? — disse em tom de preocupação. A partir desse momento não tinha mais como esconder, Marina desatou a chorar. Soluçava ainda de bruços na cama, juntando forças para tentar explicar o que achava que estava acontecendo. — Carlos, eu acho que estou morrendo. Tem alguma coisa no meu corpo que está fazendo ele apodrecer por dentro — disse em meio a soluços — Eu preciso ir ao hospital, não dá mais para aguentar. Os momentos seguintes se tornaram confusos com o passar do tempo, o interior da ambulância, os corredores claros do hospital, o quarto gelado e os exames. Não precisou muito tempo para que o médico de plantão confirmasse as suspeitas de Marina, uma ressonância magnética foi capaz de mensurar os efeitos de um procedimento estético mal sucedido. Microesferas de alguma substância injetada nos glúteos se espalharam pelo corpo, provando infecções graves. Não existiam mais motivos para esconder, aquilo podia matá-la. Há dois anos ela tinha se submetido a um preenchimento nas nádegas em uma clínica de estética indicada por suas amigas, o produto usado se chamava metacril.
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PROCEDIMENTOS ESTÉTICOS Segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) as cirurgias estéticas aumentaram 25% no país, nos últimos anos. Ao contrário da cirurgia plástica reparadora, que corrige deformidades causadas por traumas ou doenças, a estética tem o intuito de modificar o corpo do paciente que busca atingir algum padrão de beleza que considere adequado. No Brasil, mais de 60% das cirurgias plásticas têm fins estéticos e 39,7% são para o tratamento de doenças e melhoria de funções corporais9.
Cirurgias reparadoras corrigem e/ou reconstroem partes do corpo prejudicadas por má-formação ou acidentes. • reconstrução mamária • reparação de lábio leporino • reconstrução da pele • retirada do excesso de pele • correção de deformações ósseas • reconstrução de orelha
Cirurgias estéticas mudam a aparência corporal em busca de um ideal estético. • lipoaspiração e lipoescultura • mamoplastia (mamas) • rinoplastia (nariz) • bichectomia (bochechas) • implante capilar • mentoplastia (queixo)
9 Números apresentados no Censo 2018 da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), disponível no link: http:// www2.cirurgiaplastica.org.br/wp-content/uploads/2019/08/Apresentac%CC%A7a%CC%83o-Censo-2018_V3.pdf.
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Com a promessa de mudar a aparência de forma pouco invasiva, os procedimentos estéticos não cirúrgicos são muito procurados e representavam 49,9% das cirurgias realizadas em 2018. A toxina botulínica (95,7%), o preenchimento (89,6%), o peeling (21,8%) e a suspensão com fios (21,6%) foram os mais realizados no período. Sem cortes, sem pontos e com uma recuperação mais rápida que os procedimentos cirúrgicos, são os motivos de quem opta por essas alternativas. Dentre os principais tratamentos, o preenchimento corporal é uma modalidade muito requerida pelos pacientes. Correção de rugas, “bigode chinês”, olheiras profundas, diminuição da flacidez, aumento dos lábios, modificação do formato do rosto, preenchimento de depressões na face, harmonização dos traços, chegando ao aumento das mamas, preenchimento de celulites, aumento dos glúteos, quadris e até mesmo das pernas, simulando músculos. Atuando como preenchedores, diversas substâncias podem ser injetadas no organismo, atualmente, como ácidos, vitaminas, colágeno, polimetimetacrilato, e até algumas proibidas no país, como o hidrogel, silicone industrial e outros óleos impróprios que também aumentam o volume nas áreas aplicadas. Um tipo de procedimento, que caiu no gosto popular com o engajamento de influenciadores digitais nas redes sociais, é a aplicação de ácido hialurônico — biopolímero que ocupa os espaços entre as células do corpo, conferindo à pele uma textura lisa e mais elástica. Os efeitos da aplicação duram de seis a 15 meses, e depois desse período o corpo absorve o produto, sendo necessário refazer as aplicações, constantemente, para que o resultado permaneça. É considerado um procedimento seguro10 porque cerca de 55% da pele é composta de ácido hialurônico, o que facilita a absorção do material com o passar dos meses. Mas, como qualquer procedimento, oferece riscos. Se 10 O ácido hialurônico pode ser de origem animal ou sintetizado. "Dos diversos produtos, o ácido hialurônico (preenchedor reabsorvível, temporário) tem sido um dos mais utilizados. Ainda não há disponível no mercado substância ideal, pura e livre de efeitos colaterais." (CROCCO, ALVES, ALESSI, 2012, p. 259). No último relatório, apresentado pela International Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS) em 2018, o ácido hialurônico foi o segundo procedimento não cirúrgico mais realizado no mundo, por homens e mulheres, ficando atrás apenas da toxina botulínica. Segundo os dados apresentados pela ISAPS, foram 3.729.833 preenchimentos relatados ao redor do mundo. Relatório completo em: https://www.isaps.org/wp-content/uploads/2020/10/ISAPS-Global-SurveyResults-2018-1.pdf.
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a quantidade de ácido injetada for grande demais, pode provocar isquemia — o desvio do fluxo sanguíneo daquela região como consequência da compressão de vasos e artérias. Em outros casos, a aplicação pode atingir diretamente um vaso, podendo provocar até necrose da pele no local. No Brasil os procedimentos não cirúrgicos são realizados por médicos especializados em cirurgia plástica e dermatologia, mas também por biomédicos, dentistas, esteticistas e, em alguns casos, por pessoas que não possem nenhum tipo de qualificação. O mercado de procedimentos estéticos só cresce, de acordo com a pesquisa de 2018 da International Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS), 2.267.405 procedimentos (cirúrgicos ou não) foram realizados no Brasil, sendo a mamoplastia de aumento e a lipoaspiração os mais procurados no período11. A busca pelo corpo ideal, o constante reajuste dos padrões de beleza e o aumento no uso das redes sociais criam a fórmula perfeita para que a indústria estética e de cosméticos lucrem com a baixa BOMBARDEIO IMAGÉTICO DE autoestima de milhões de pessoas. PADRÕES DE BELEZA
INSATISFAÇÃO, BAIXA AUTOESTIMA E SENSAÇÃO DE CULPA
VENDA DE PRODUTOS QUE PROMETEM RESULTADOS RÁPIDOS ASSOCIAÇÃO DE PRODUTOS A ESTILOS DE VIDA E HÁBITOS SAUDÁVEIS
11 A pesquisa foi realizada em 2017 e apresentada no ano seguinte. No Brasil, a mamoplastia de aumento foi feita por 275.283 pacientes, e a lipoaspiração por 248.112 pacientes. Os dados obtidos relatam os números de procedimentos feitos por cirurgiões plásticos cadastrados em associações médicas oficiais, não sendo possível saber a quantidade exata de cirurgias totais feitas no país, isso porque existem pacientes que se submetem a intervenções por profissionais sem especialização ou qualificação apropriadas.
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Entre os produtos que podem ser utilizados para criar volume corporal existem os absorvíveis e os inabsorvíveis. O primeiro tipo engloba substâncias sintéticas ou orgânicas que o corpo absorve com o passar dos meses ou anos, como a toxina botulínica e o ácido hialurônico, por exemplo. Já o segundo tipo, os inabsorvíveis, são considerados permanentes, pois o corpo não possui a capacidade de absorver, como o polimetilmetacrilato (PMMA).
SUBSTÂNCIAS ABSORVÍVEIS Chamado de biomaterial ou biopolímero — substância sintética para uso biológico — o PMMA foi sintetizado pela primeira vez em 1902 e, a partir dos anos 1940, passou a ser utilizado na Odontologia, com a produção de próteses dentárias, e também na Ortopedia, funcionando como cimento ósseo. Mas apenas 40 anos depois, na década de 1980, o PMMA começou a ser aplicado em tecidos moles, atuando como um preenchedor permanente. O polimetilmetacrilato nada mais é do que o acrílico, um plástico utilizado tanto na medicina quando em outros setores industriais12. No Brasil, até o ano de 2007, era permitido que o PMMA fosse manipulado em farmácias, o que, segundo médicos especialistas na aplicação do produto, fazia com que as partículas de acrílico fossem irregulares e rugosas, aumentando os riscos de rejeição do corpo, podendo causar edemas e granulomas, além de infecções mais graves13. Desde então, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu a manipulação do polimetilmetacrilato e liberou a comercialização apenas quando produzido industrialmente. Três marcas fabricam o produto no país atualmente: Biossimetric, MetaCryll e Linnea Safe. As empresas trabalham com a produção de microesferas regulares de PMMA, que podem ter de 35 a 50 micra de tamanho, sendo lisas ou nanotexturizadas. 12 Dados obtidos na Revista Brasileira de Cirurgia Plástica, Volume 34, Suplemento 2, 2019. A publicação concentra estudos de caso sobre complicações desencadeadas por intervenção plástica ou traumas, e os tipos de tratamentos efetuados. Disponível no link: http://www.rbcp.org.br/content/imagebank/pdf/v34supl2.pdf. 13 Ibidem, pp. 19–20.
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De acordo com Roberto Chacur, médico especialista em cirurgia plástica, o PMMA é comercializado na forma líquida, sendo composto de 20% de microesferas do biopolímero purificadas e 80% de um gel de síntese orgânica, que serve como veículo para as partículas. Se um paciente aplicar 1 mL do produto, por exemplo, 0,2 mL será o PMMA e 0,8 mL será a resposta do organismo, que produzirá tecido conjuntivo rico em colágeno. Assim que o material entra nos tecidos subcutâneos ou nos músculos é encapsulado, ou seja, adquire o formato de microesferas e se aloja nos tecidos, o corpo humano reage gerando uma inflamação como resposta a essas partículas de acrílico. É esse processo que provoca volume nas áreas desejadas. Chacur, pesquisador de preenchimento facial e corporal há 13 anos, acredita que o uso de preenchedores por pessoas sem especialização é o que leva às complicações médicas dos pacientes. Aplicar produto de má qualidade, em excesso ou ainda enganar os clientes, trocando o composto na hora do procedimento, são alguns dos fatores que ele elenca como prejudiciais. O médico afirma que a taxa de complicação para aplicações corretas do PMMA é de 1,88%, número inferior às reações adversas causadas pela cirurgia de próteses glúteas, de 30,5%, e da lipoescultura, que atinge 10,5% dos procedimentos14. De qualquer forma, o polimetilmetacrilato é um preenchedor definitivo, o que significa que quando aplicado não pode ser retirado sem danos extensos aos tecidos e músculos da região que se encontra. Embora seja um produto autorizado pela Anvisa, especialistas e representantes de órgãos de saúde indicam que sua utilização seja apenas em procedimentos reparadores, como em pacientes com lipodistrofia15 provocada pelo uso de antirretrovirais no tratamento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA) ou correções em pacientes afetados pela poliomielite, por exemplo. Nesses casos, 14 Dados apresentados no estudo Gluteal Augmentation with Polymethyl Methacrylate: a 10–year cohort study, feito com 1.681 pacientes que realizaram o preenchimento e foram acompanhados de 2009 a 2018. Disponível em: https:// www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6571318/. 15 "As alterações corporais observadas na síndrome lipodistrófica estão claramente ligadas à redistribuição da gordura corporal, devido à perda da gordura periférica, ao acúmulo de gordura central e a um catabolismo exacerbado e crônico que acabam por induzir a uma diminuição do índice de massa corpórea" (SERRA, 2004, p. 6).
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o PMMA é utilizado em pequenas quantidades, com o intuito de melhorar o bem-estar de pessoas afetadas por enfermidades que geram algum prejuízo corporal. Por ser uma partícula inabsorvível, quando causa complicações16 elas costumam ser devastadoras, podendo gerar embolia vascular, necrose, reação alérgica e infecção; em casos crônicos, os pacientes podem apresentar granulomas, edemas, deformidades e processo inflamatório crônico. A única forma de combater o processo inflamatório causado pelos biopolímeros — sem se submeter a um processo cirúrgico para retirada do produto — é com o uso de corticóides, em alguns casos os pacientes precisam de injeções do remédio dentro de cada um dos nódulos, semanalmente. Não é novidade que o uso prolongado de corticóides pode causar diversos efeitos colaterais, inibindo a produção natural de cortisol o corpo fica exposto a outras infecções, além disso também é responsável pelo aparecimento de úlceras, cansaço, fraqueza muscular, ansiedade, depressão e até diabetes. Alguns pacientes passam anos sem apresentar complicações, como se o procedimento tivesse sido bem sucedido, porém, qualquer processo inflamatório do organismo, mesmo que em áreas distantes do local de aplicação, pode desencadear uma resposta imunológica da região ocupada pelo preenchedor. É como se fosse uma bomba-relógio, podendo ser acionada a qualquer momento e sem aviso prévio, apresentando edemas, granulomas e necrose. Os biopolímeros são inertes, infiltram músculos, tecido adiposo e qualquer outro tecido que encontrem pelo caminho, e embora sejam vendidos como um material fixo, em muitos casos eles migram para outras regiões do corpo, causando processo inflamatório em outras áreas.
16 No artigo Complicação grave do uso irregular do PMMA: relato de caso e a situação brasileira atual, publicado em 2019 na Revista Brasileira de Cirurgia Plástica. Disponível em: http://www.rbcp.org.br/details/2362/pt-BR/complicacaograve-do-uso-irregular-do-pmma--relato-de-caso-e-a-situacao-brasileira-atual.
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JUNHO, 2012. O espelho era seu amigo e inimigo. Por mais que adorasse observar as mudanças no seu tônus muscular, no delineado cada mês mais marcado de seu corpo, parecia que a evolução não era rápida o suficiente. Não adiantava academia, dieta, remédio para emagrecer, remédio para os músculos crescerem, massagem, drenagem, ou o que mais estivesse na moda na época, nada disso fazia Marina ter o corpo perfeito. Horas empenhadas em procedimentos e exercícios que dificilmente davam resultado. Quando trabalhava, ora era taxada de magra demais, ora de flácida, ora de gorda. Dependendo do contratante ou do grupo de mulheres em que ela se inseria no momento, alguma coisa no seu corpo era apontada como errada. Marina trabalhava como modelo desde os 14 anos, passou a adolescência em concursos de beleza e alguns ensaios fotográficos para empresas da cidade onde morava. Mas foi aos 17 anos que conseguiu começar a fazer dinheiro próprio. Não que precisasse, curitibana de classe média, já tinha ganho um carro do pai antes mesmo de concluir o ensino médio. Mas foi a idade em que ela sentiu que tinha conquistado sua liberdade fazendo uma coisa simples, indo a eventos. Era contratada para frequentar espaços, ser objeto de desejos de homens e mulheres. Os homens porque queriam tê-la; e as mulheres porque queriam seu estilo de vida. Ela sentia que vendia sonhos só por caminhar. Com o tempo começou a ser chamada para aparecer em outras cidades, São Paulo, Rio de Janeiro, até para Salvador já tinha ido. Em alguns ia como acompanhante de subcelebridades locais, em outros era paga apenas para comer e beber. Foi fazendo amigas de casting, disputando trabalhos e, aos 19 anos, percebeu que só a sua imagem não bastava mais. As mulheres eram cada vez mais belas, mais definidas, ostentavam corpos perfeitamente bronzeados e, mesmo que pulassem, nada naqueles corpos mexia. A academia se tornou sua segunda casa, a alimentação mudou e os anos foram passando. Quando completou 25 anos, as orientações mudaram. Tudo, a partir daquele momento, era feito preventivamente. A corrida contra o envelhecimento, contra o aumen-
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to de peso que a idade traz, contra a flacidez, contra os cancelamentos de trabalho. Passou a aplicar toxina botulínica duas vezes ao ano, recebia massagens faciais e, uma vez, até se submeteu a um tratamento que consistia em apanhar no rosto, teoricamente isso estimularia a produção de colágeno. Quando a única coisa que importa no seu trabalho é a imagem, existem sérias chances de se perder o emprego antes dos 30. Um boato que corria há alguns meses pela agência que Marina trabalhava era a novidade curitibana de "bombar" o bumbum sem cirurgia plástica. Duas meninas do casting dela já haviam feito, e os resultados eram realmente notáveis. Sem problemas com pós-operatório, a recuperação desse procedimento era de 48h. — Como só dois dias? — Marina perguntou aflita. A menina de 21 anos, nova na agência, cheia de trabalhos e tão loura que chegava a irritar, respondeu que era um preenchimento feito com um produto que o Brasil e os Estados Unidos aprovavam, era tiro e queda. — Elas usam um tal de PMMA, não sei bem do que é feito, mas é coisa rica. — Todas as meninas sorriram, era um desejo de pelo menos 70% das que estavam ali naquela sala. Entre trocas de roupas, encontros e trabalhos, o que mais se falava era desse tal preenchimento milagroso, mesmo que muitas meninas tivessem como exigência a magreza, ter uma bunda arrebitada e redonda não deixava de ser um sonho.
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Seis dias depois, Marina entrou em um carro com mais três amigas, o destino era a clínica de estética indicada pela colega da agência. Chegaram por volta de 18h no local, Marina lembra de ficar olhando para o celular no momento em que estacionaram, queria algum motivo para não entrar ali, mas a euforia das outras meninas acabou contagiando o momento, era compartilhado o desejo de exibir, o quanto antes, os resultados do preenchimento na praia. A clínica estava vazia, nenhuma cliente na sala de espera. A recepcionista disse que elas eram as últimas do dia. — A Doutora estava só esperando vocês. Todas vão apli-
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car? — Elas acenaram que sim com a cabeça. Dolores era quem tinha ligado no local e marcado o procedimento e isso acabou deixando Marina um pouco aflita, ela se aproximou do balcão da recepção para conversar um pouco mais com a moça. No jaleco bege, o nome Juliana estava bordado em azul marinho. A recepcionista aparentava ter uns 30 anos, tinha os olhos cansados, mas sorria bastante. — Juliana, a mulher que vai atender a gente é médica mesmo? Dolores e Amanda, as amigas que também foram fazer o procedimento, riram como duas gralhas. O tom de deboche era comum nas duas, que sempre procuravam se misturar aos ambientes que frequentavam, como se tivessem nascido neles. Inseparáveis, uma copiava os movimentos da outra, era difícil saber quem copiava quem, mas pareciam gêmeas, ou personagens de algum filme de terror barato. Juliana se esforçou para não rir junto com as meninas, esboçou um sorriso e explicou: — Ela é médica, sim. Tem registro e tudo. Não lhe ocorreu naquele momento que uma simples busca do número do Conselho Regional de Medicina na internet já elucidaria suas dúvidas. Não refletiu também quais eram as chances de uma médica realizar procedimentos estéticos não cirúrgicos em uma clínica estética, não em seu próprio consultório. As coisas pareciam estranhas, mas ela sonhava dia e noite com um corpo mais bonito, mais desejável, então apenas se conformou com aquela situação e seguiu com o procedimento. A médica atendeu as meninas separadamente, segundo ela por riscos de contaminação da sala. Marina foi a última a se submeter ao procedimento, percorreu um longo corredor quando foi chamada, procurando no caminho indícios que pudessem fortalecer a ideia de que estava tudo bem. Era uma clínica bonita, bem arrumada, não lembrava em nada um hospital, mas mantinha uma certa assepsia hospitalar. A sala em que realizou o procedimento era relativamente pequena, tinha uma maca e, além da médica, duas outras mulheres estavam à sua espera. Ela se lembra de tirar as roupas, ficando apenas de sutiã. Pensou que receberia um avental daqueles médicos, com as costas abertas, mas ao invés disso recebeu uma calcinha preta. Ela colocou a peça e se deitou de bruços na cama, uma das mulheres que
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estavam na sala rasgou as laterais da calcinha e amarrou para deixá-la três vezes mais apertada do que o tamanho original. Marina sentiu seu corpo se dividindo ao meio e o sangue tendo dificuldades em percorrer toda a sua extensão de 1 metro e 73 centímetros. A médica disse que esse era o procedimento padrão, a calcinha era utilizada para moldar o bumbum e deixar o produto alojado nas partes em que ele deveria permanecer. Por ser um biomaterial permanente, essas medidas foram adotadas para diminuir os erros médicos. Depois disso, uma mulher, que se apresentou como anestesista, aplicou diversas injeções na região glútea e deu à Marina um líquido esbranquiçado em um copo de plástico. Segundo a médica, aquelas eram anestesias locais e a bebida era um calmante, mas tudo correria bem e ela ficaria acordada durante todo o procedimento. Marina não relutou, bebeu todo o conteúdo do copo. Inicialmente, ela e a médica acordaram o que deveria ser feito, algumas regiões e seus glúteos foram desenhadas, marcando os locais de incisão da agulha. As três mulheres conversavam bastante, no início de assuntos que não faziam diferença para Marina, pessoas que ela nunca tinha visto, lugares que ela não tinha frequentado. Quando começaram as aplicações a conversa mudou, falavam como ela ficaria linda, como seus glúteos ficariam redondos e seriam motivo de inveja e desejo. Uma das mulheres segurava o preenchedor nas mãos, em um tubo branco sem rótulo, e, toda vez que era solicitada, passava o tubo para a médica. As agulhas eram enormes, qualquer pessoa teria medo de imaginar aquilo entrando na pele. — Por que as agulhas são tão grandes? — A médica respondeu que o preenchedor era espesso, agulhas comuns não dariam conta de depositar o conteúdo no local certo sem quebrar. A primeira aplicação foi a pior. Mesmo que não sentisse a dor da agulha, provavelmente por conta das anestesias locais, assim que o preenchedor ia entrando em seucorpo parecia queimá-la por dentro. Ia abrindo espaço entre tecidos jovens e pouca gordura, criando um caminho inexistente, nunca percorrido. A ardência era tanta que ela parava de falar por alguns momentos e a dor só cessava quando a agulha parava de ser pressionada. A partir da segunda aplicação o ambiente foi se tornando turvo, ela já não conversava mais. Pelo menos não se recorda de falar a partir daquele momento. A
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dor parecia que não acabaria tão cedo, era como se estivesse sendo submetida a uma tortura, perdendo a noção do tempo e sem conseguir distinguir o que era real do que era fruto de sua imaginação. Marina acredita que tenha permanecido naquela sala menos de uma hora. Não checou o relógio. A médica disse que ela tinha que ficar com aquela calcinha rasgada e apertada por três dias, caso contrário o produto poderia descer para suas pernas por puro capricho da gravidade. Ela colocou um vestido cinza que tinha levado na bolsa, e saiu caminhando em direção à recepção. As duas amigas já não estavam mais lá, Juliana disse que estavam cansadas e pediram que Marina ligasse assim que a aplicação terminasse. Em poucos minutos já estava em um carro a caminho de casa, a recepcionista fez a gentileza de poupar o trabalho de Marina gastar o pouco de sua energia solicitando uma condução. Aquela madrugada foi longa. Sentiu dores, tontura e muita fadiga, mas a médica havia passado seu contato pessoal, com a indicação de ligar a qualquer momento. Isso a tranquilizou um pouco. Marina acordou no dia seguinte com seu telefone tocando, era Dolores perguntando se tinha dado tudo certo. Uma faísca de animação, aquela sensação de euforia tomou conta do seu corpo. Levantou-se sem muitas dificuldades, olhou no espelho que tinha na frente da cama e ergueu o vestido cinza que havia colocado na noite anterior. Ela se sentiu uma deusa, poderosa. — Ficou perfeita! — Disse em tom convencido. — Como ficou a de vocês? Dolores confirmou que tudo tinha dado certo com ela, mas que Amanda havia passado mal durante a madrugada e tinha ido para o hospital com seu namorado. — Nada grave, a Amanda é fraca pra essas coisas. Imagina se tivesse colocado bunda com bisturi? — A ligação se encerrou, Marina não pensou muito nas amigas nos dias que se passaram. Se ocupou em esperar o tempo correto para tirar aquela maldita calcinha horrorosa e apertada.
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Uma semana depois, voltou ao seu trabalho normalmente. O procedimento — ou a autoconfiança — lhe renderam bons trabalhos no resto de 2012. O ano seguinte foi de novos ciclos, Marina conheceu Carlos e se mudou para São Paulo. Deixou a agência que trabalhou durante seis anos e entrou em uma nova, por indicação de seu namorado. Carlos trabalhava na empresa de construção civil do pai, mas tinha bons contatos na área da moda. As viagens, o trabalho, o relacionamento e as novas companhias lhe renderam bons momentos. Isso não a impedia de lidar com as exigências, cada vez mais sujas e baixas, da estética brasileira. Fez rinoplastia, preenchimento no queixo, continuou com suas aplicações de botox e muita academia. Era o preço que Marina achava que tinha que pagar por querer empreender com o próprio corpo, as cobranças diárias sobre sua aparência, as comparações com mulheres mais jovens, eram só negócios.
SETEMBRO, 2014. Estava há 11 dias no hospital, os antibióticos intravenosos e o abuso de corticóides não tinha data para acabar. Mais do que um corpo doente, Marina tinha em seu colo a pesada realidade. A conclusão que os médicos chegaram não era tão simples, o preenchedor no seu organismo não era PMMA, como acreditou desde o início. Seu corpo estava tomado de silicone industrial. E embora tentasse relembrar cada segundo do seu procedimento há dois anos, os detalhes fugiram da sua memória naqueles dias. A única coisa que conseguia pensar era que não queria morrer. Sentia-se desesperada e impotente. Os médicos diziam que cada hora sem complicação, no seu quadro, já era uma vitória. Na primeira semana em que esteve internada, algumas pessoas do seu círculo social foram visitá-la. Levavam flores, sorrisos e fofocas. Mas o flerte com a morte foi mudando algo dentro de Marina, a compaixão que seus visitantes traziam vinha acompanhada, na maioria das vezes, de uma curiosidade sem tamanho. Era como se estivessem ali apenas para se certificar de que a desgraça dela conseguia superar a dos outros. Deitada na cama, sem poder se esticar já que usava drenos nos quadris para que a infecção
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saísse de seu corpo, ela se sentiu como o exemplo a não ser seguido. Tinha certeza de que seria pauta nas rodas de conhecidos como aquela que sucumbiu aos exageros da estética, só porque teve complicações, claro. No 13º dia passou por uma cirurgia de emergência, foi-lhe informado que precisariam retirar pelo menos o silicone líquido que havia migrado para seus quadris e coxas. O produto era altamente tóxico, sem nenhuma compatibilidade com o corpo humano e, uma vez iniciado o quadro de infecção, não existia mais retorno, a única saída era tentar retirar o máximo de produto possível. Com essa informação, não existia muito o que Marina pudessa ponderar, não existiam argumentos. Se imaginar retalhada já fazia parte da sua realidade, que ao menos ficasse viva então. Marina sobreviveu, caso contrário não narraria essa história, e, assim como imaginou, com cicatrizes que percorriam boa parte de seu corpo. Na coxa esquerda um retalho maior que um palmo em uma linha vertical. Seu corpo tinha depressões por toda parte. Mas aquela não seria a última cirurgia de emergência que faria, Marina passou 83 dias no hospital e por mais quatro procedimentos de retirada do silicone industrial. Durante esses quase três meses, começou a se informar sobre o que era esse produto, qual a extensão do problema que tinha e quais os médicos especialistas em retirada de preenchedores em São Paulo ou no Brasil, ela só queria acabar com aquele sofrimento, independente do quanto tivesse que viajar para recobrar sua saúde. Como era de se esperar, seus amigos ficaram perto menos de 15 dias. A convivência com Carlos timidamente foi criando um hiato de estranheza. O relacionamento não era o mesmo, ele dizia. Quando ele a conheceu, ela era luz, agora só reclamava, ele fazia questão de enfatizar. Marina tentou sustentar pelos dois um sentimento que nunca existiu, mas em dois meses ele já havia pulado fora, com direito a postagem nas redes sociais, justificando sua tentativa sem resposta da outra parte, que não sentia vontade de melhorar. Seus pais e sua irmã foram os únicos que ficaram, para Marina eles não tinham escolha, ninguém mais o faria. Mas foi importante perceber que algumas pessoas se esforçavam para vê-la melhorar, mesmo que não existisse mais afinidade e os encon-
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tros só se dessem nos natais, ainda assim era melhor que nada. Achar um filho bonito é quase uma obrigação de pais e mães, e talvez, justamente por isso, era tão difícil para seus familiares compreender os motivos de Marina ter se submetido a tantos procedimentos estéticos. Fato é que cada geração carrega suas dores isoladas com, talvez, um ponto em comum, a busca das mulheres por se encaixarem nos padrões de beleza da época. Um ponto que vai se tornando cada vez mais apertado, com enlaces cada vez mais complicados a cada década. É como um nó corrediço, fácil de fazer, mas à medida em que o peso vai exercendo sua força o nó se aperta e o fio se tensiona. Tudo o que fica entre os fios se aperta, quanto maior o movimento e o peso, mais difícil de sair. O nó corrediço dos padrões estéticos mutila gerações de mulheres, cortando a circulação sanguínea de seus membros, tornando, muitas vezes, impossível escapar da situação.
SILICONE INDUSTRIAL
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Fórmula base do silicone.
O silicone é um polímero e foi sintetizado pela primeira vez no início do século XX, utilizado em massa na Segunda Guerra Mundial. Para compreender um pouco mais a fundo, faz-se necessário um pequeno parêntese na sua estrutura química, um pouco entediante, mas apenas para contextualização. Lembra das cadeias orgânicas ensinadas na escola? Essas cadeias formam as estruturas dos materiais orgânicos presentes na natureza, isso só é possível porque o carbono consegue fazer ligações com outros átomos. Pois bem, temos alguns tipos de cadeias: as abertas, nas quais existe uma
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ligação entre os carbonos deixando as extremidades livres; as cadeias fechadas, nas quais as ligações entre os átomos formam um ciclo; e as mistas, que consistem na mistura das duas anteriores. Agora voltando ao silicone, na sua estrutura ao invés de carbono, o silício se liga ao oxigênio formando uma cadeia. Isso acontece, porque o silício pertence à mesma família que o carbono na Tabela Periódica, o que significa que ambos possuem propriedades físicas e químicas semelhantes, sendo possível que o silício faça ligações assim como o carbono. O silício não é a mesma coisa que o silicone, mas é um de seus principais componentes. Existem dois tipos de silicone utilizados atualmente, o dicloro-dimetil-silano e o dicloro-difenil-silano. A diferença entre os dois está na reação, no primeiro a sílica reage com o cloreto de metila, enquanto no segundo reage com o cloreto de fenila. Dessas misturas, obtém-se um monômero17 que reage com a água e forma um polímero, o silicone. É um polímero estável que aguenta altas temperaturas, podendo variar de consistência, indo do líquido ao sólido. Com tudo isso explicado, vamos ao silicone de fato. Um implante de silicone possui textura gelatinosa e é revestido. Assim, a substância mais gelatinosa não se espalha diretamente no organismo já que possui uma cápsula/película, que pode ser feita também de silicone ou de poliuretano, com uma densidade maior. Há, porém, muitos casos de rompimento de próteses, demonstrando que não são 100% seguras. Alguns estudos, realizados pelas próprias fabricantes de próteses, indicam uma taxa de ruptura entre 9% e 10% nos primeiros 10 anos, mas esses números não são confirmados pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) ou outros órgãos oficiais. Para todos os efeitos, usaremos como exemplo o estudo18 de Milton Jaime Bortoluzzi Daniel e Ivan Maluf Júnior, médicos na área da cirurgia plástica. De acordo com eles, não existem dados na literatura científica que mencionem a durabilidade de uma prótese glútea. Dos 380 pacientes atendidos para a pesquisa, 70 passaram por nova cirurgia, e em apenas 2,8% 17 O monômero é a estrutura de uma molécula. A junção e repetição desses monômeros formam um polímero. 18 Informação obtida a partir do estudo Qual a durabilidade da prótese glútea?, publicado em 2012 na Revista Brasileira de Cirurgia Plástica. Disponível no link: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S198351752012000100015&script=sci_arttext&tlng=pt.
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dos prontuários as próteses estavam íntegras. O silicone líquido é um produto utilizado na manutenção, limpeza e polimento de peças automotivas e aeronáuticas. Segundo a médica membro especialista em cirurgia plástica, Luciana Leonel Pepino, mistura-se o silício com óleos vegetais, minerais e outras substâncias para obtenção desse tipo de silicone, não sendo um composto estéril. Esse fluido é muito utilizado também na área da construção civil, para impermeabilização e vedação. Por não ser livre de bactérias, o contato com o corpo em forma de aplicações pode causar infecções graves, além de migrar para outras regiões do organismo com a simples influência da gravidade, já que não possui um invólucro como as próteses de silicone autorizadas. A Anvisa é o único órgão que pode autorizar ou não os produtos utilizados em procedimentos estéticos e médicos no país. É ele quem checa a segurança, a qualidade e a aplicabilidade de cada item comercializado. De acordo com a agência, aplicar silicone industrial no corpo humano é considerado crime contra a saúde pública, sendo enquadrado em exercício ilegal da medicina19, curandeirismo20 e/ou lesão corporal21. Em janeiro de 2019, o Projeto de Lei 7208/201422, que tipifica como crime a utilização de silicone industrial em procedimentos no corpo humano, foi arquivado na Câmara dos Deputados. De acordo com o artigo 10523 do Regimento Interno da Casa, “finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em tramitação, bem como as que abram 19 O arigo 282 do Código Penal prevê que "exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites" é crime, e a pena é a detenção de seis meses a dois anos. 20 Previsto no artigo 284 do Código Penal, é considerado crime de curandeirismo: "i - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; ii - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; iii - fazendo diagnósticos." 21 Artigo 129 do Código Penal, "ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem", com detenção de três meses a um ano. 22 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=607236. 23 O Regimento Interno da Câmara dos Deputados pode ser acessado pelo link: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/ rescad/1989/resolucaodacamaradosdeputados-17-21-setembro-1989-320110-normaatualizada-pl.html.
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crédito suplementar, com pareceres ou sem eles.” Esse mesmo PL já havia sido arquivado em 2015 pelo mesmo motivo, fim de mandato. O médico especializado em cirurgia plástica Domingos de Paola, afirma que os principais riscos que o paciente pode correr quando aplica silicone industrial são infecção generalizada, embolia pulmonar, necrose da pele, deformidades e morte. “Os pacientes têm que saber que o silicone industrial anda pelo corpo, ele não é inerte. Quando é aplicado na região glútea, por exemplo, pode migrar para os quadris, tornozelos e para os pés. As pacientes transexuais costumam chamar esse efeito de migração do silicone para os tornozelos e pés de ‘pata de vaca’, porque a região fica completamente deformada.” Segundo Domingos, os pacientes que aplicaram em algum momento o silicone industrial devem procurar um médico especializado para avaliar qual sua situação. Ele indica a remoção do produto, mesmo que não existam sinais de alerta, porque é um produto incompatível com o organismo, o que sugere que em algum momento dará complicações, mesmo que elas demorem 20 anos para aparecer. Mas a retirada não é assim tão simples, o silicone industrial acaba aderindo aos tecidos e músculos do local, sendo impossível sua remoção total. Domingos é membro titular da SBCP, membro da International Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS), membro da Sociedade Americana de Cirurgia Plástica, membro da Academia Americana de Cirurgia Cosmética e membro do Colegiado Internacional de Cirurgiões. Trabalha com a retirada de silicone industrial há mais de 20 anos, e também realiza o procedimento em casos de complicações com PMMA, hidrogel, bio-gel, synthol e óleo mineral. Em uma busca nas redes sociais e páginas de pesquisa sobre os procedimentos do médico, foram encontrados resultados que se contradizem. Em um primeiro momento, navegando superficialmente nas buscas, é possível encontrar que Domingos de Paola é um cirurgião que possui uma técnica inovadora de retirada de produtos exógenos. Em sua própria página no YouTube é possível compreender o procedimento. Ele retira o silicone líquido com cânulas de lipoaspiração, realizando a sucção do máximo de material que encontrar. Essa cirurgia causa depressões
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na região em que o produto é retirado, o que pode ser contornado por um implante de silicone na mesma cirurgia. A prótese é colocada embaixo do músculo, região que não entra em contato com a outra substância, segundo o médico. Mas cuidado, buscas mais atentas disponibilizam uma grande quantidade de processos judiciais de pacientes que tiveram maus resultados com os procedimentos estéticos do doutor. Inclusive, um perfil no Instagram de várias vítimas de Domingos de Paola, justamente na realização desse procedimento. Intitulado vítimas pós-retirada bioplastia, a página reúne relatos de mulheres que sofreram com os resultados do procedimento. Segundo as administradoras do perfil, algumas dessas mulheres permitiram a veiculação de seus relatos de forma anônima, com o intuito de avisar outras pessoas antes que se tornem vítimas.
Relatos de vítimas
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RELATO 3
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Domingos de Paola não quis responder, formalmente, aos questionamentos e reclamações, apenas informou que a página e os relatos em questão são de apenas duas mulheres, que se passam por várias. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), entre 2008 e 2017 o número de processos judiciais contra profissionais da saúde cresceu 130%, chegando a 26 mil processos do tipo em 2017. A “judicialização da saúde"24 não trata de um fator em especial, é um fenômeno. O número crescente de processos judiciais ainda não pode ser explicado integralmente, mas é necessário um olhar atento visto que o sistema de assistência à saúde, segundo o CNJ, atinge aproximadamente 10% da renda nacional, crescendo significativamente nos últimos anos.
DESATANDO O NÓ Marina é sobrevivente de um procedimento estético mal sucedido. Seis anos se passaram desde a sua primeira internação e as cinco primeiras cirurgias de emergência. Os resultados estéticos foram desastrosos, suas pernas e glúteos passaram por procedimentos traumáticos e extensos. Em 2018 ela conseguiu iniciar uma série de cirurgias reparadoras para que pudesse retomar sua vida. Ela não trabalha mais como modelo desde a primeira internação, o contrato foi rescindido antes de que ela pudesse sair do hospital na primeira internação. Atualmente ela trabalha como representante de uma marca de cosméticos, mas sente falta de todo o agito que a vida de antes lhe proporcionava. A busca por um médico especializado em retirada de silicone industrial foi intensa, várias pessoas se apresentaram, mas ela decidiu não cair no mesmo erro de antes e pesquisou a fundo cada uma delas. A escolha final foi por Felipe Tozaki, especialista em ci24 Segundo o Relatório Justiça e Saúde, encomendado pelo CNJ, a "judicialização da saúde" ainda não possui literatura suficiente para explicar suas causas e efeitos. O fenômeno tem muitas variáveis, na saúde privada está mais relacionada aos planos de saúde e seus beneficiários, enquanto do Sistema Único de Saúde (SUS) os processos estão mais atrelados às ineficiências da autoridade de saúde. Relatório completo em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/ uploads/2019/03/66361404dd5ceaf8c5f7049223bdc709.pdf.
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rurgia plástica e retirada de biopolímeros. Para Marina, o diferencial foi ele apresentar estudos científicos e disponibilizá-los para que ela os pudesse ler. No início, acreditava que em pouco tempo estaria livre dos hospitais. Teve contato com um médico, algumas semanas antes de conhecer Tozaki, que realizaria a retirada do silicone e colocaria as próteses ao mesmo tempo. Ela não quis revelar o nome do médico, mas explicou que ele é muito conhecido por esse procedimento simultâneo, que nem sempre dá certo. Para Tozaki a lipoenxertia ou a gluteoplastia de aumento devem ser feitas seis meses após a retirada do silicone industrial, nunca ao mesmo tempo. Isso porque o silicone industrial é um produto contaminado, e sua aplicação feita em condições e locais inadequados não permite garantir ao paciente que não ocorrerá nenhuma infecção posterior. Além disso, por ser líquido, o sistema linfático se encarrega de fagocitar pequenas quantidades do silicone, que acabam percorrendo o corpo através do fluido linfático. Os fagócitos são essenciais ao corpo humano porque combatem infecções e auxiliam no fortalecimento do sistema imunológico, mas nesse caso, quando fagocitam o silicone, acabam transformando-o em pequenos nódulos que podem causar infecções ainda mais graves. Depois de retirar cerca de 75% do silicone industrial do corpo, em duas cirurgias separadas, Marina agora pensa na reconstrução do seu corpo. Por mais que cada cicatriz a faça lembrar que está viva, isso não é motivo suficiente para que ela deixe de se odiar. Saber que a busca pelo corpo perfeito foi a principal razão dela passar por tudo que passou ainda não é desconstrução suficiente de um pensamento enraizado nos padrões estéticos. De acordo com Naomi Wolf, mencionada no início dessa história, a “beleza” é uma invenção do sistema patriarcal para aprisionar as mulheres que conseguiram se desvencilhar da domesticidade dos seus corpos nas décadas de 60 e 70. Saíram para o mercado de trabalho, conquistaram o direito a frequentar Universidades, mas continuam amarradas. Responsáveis pela maior parte do trabalho invisível, com a responsabilidade de cumprir suas jornadas de trabalho remunerado (quando possuem), somam à essa equação as exigências com a aparência. Os procedimentos estéticos, invasivos ou
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não, indolores ou não, são realizados majoritariamente por mulheres que, em busca de amansar suas insatisfações corporais criadas pelo próprio sistema, fomentam, a cada ano mais, a indústria de cosméticos e de cirurgias. As redes sociais, com os perfis de influenciadoras digitais e blogueiras, auxiliam na manutenção da lógica inatingível do "belo", vendendo padrões corporais e de comportamento como se fossem simples tomadas de decisão. A maioria desses criadores de conteúdo trocam os procedimentos estéticos que fazem, por publicidade gratuita em suas redes, o que denota o grande perigo que nos cerca. Além disso, outras várias contas são constantemente denunciadas por propagar distúrbios alimentares como processos naturais de embelezamento. Dicas de rotina, de atividades físicas e de alimentação, sendo oferecidas por pessoas que não possuem formação acadêmica na área. Grupos em aplicativos de mensagens, sem limites de consumo, acompanhados por crianças de 13 anos, idade mínima para possuir conta em algumas redes sociais. É justo que as mulheres, desde a pré-adolescência, sejam socializadas para agradar opiniões externas, normalmente masculinas? Qual é o limite de compra e venda de produto que prometem mudanças estéticas e corporais? A "beleza" reside na nivelação e aproximação de um ideal ou pode ser entendida como diversidade? Como promover a diversidade em um país forjado na desigualdade e no preconceito dos corpos, especialmente negros e indígenas? Flora nasceu de um parto normal, às 13 horas do dia 20 de janeiro de 1995. Sua mãe
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BOLHAS DE SABÃO costumava dizer que sempre soube que aquela seria a data que ela viria ao mundo, era uma questão de conexão. Seu pai nunca se atreveu a fazer piada, em casa esse era um assunto sério. Na verdade, essa seriedade toda emana da sua mãe desde que ela consegue se lembrar. Em todas as fotos de família, depois da maternidade, a mãe exibe um semblante sisudo, quase triste. As escassas fotos em que aparece sorrindo são de antes da Flora existir, algumas da viagem de lua-de-mel, outras de umas férias que tiraram juntos em 93. Seu pai é o oposto, sempre contando piadas, sempre sorrindo nas fotografias. Segundo sua mãe, por motivos óbvios: "Ele é pai, por isso sorri tanto. Queria ver se fosse mãe." Sua infância no fim da década de 1990, início dos anos 2000, foi como a maioria das outras. Era filha única e moravam todos em uma casa simples de um bairro tranquilo na cidade em que nasceu, com muitas brincadeiras próprias da época, com os brinquedos que acompanhavam essa onda noventista. Em 2004 se mudaram para uma casa maior, seu pai conseguira um bom emprego e sua mãe, que antes vendia panos de prato e costurinhas — como ela mesma se referia àquele trabalho extenuantemente tedioso —, pôde finalmente se dedicar à casa. Queriam mais um filho, um menino dessa vez, e tentaram por muitos meses. A casa nova era própria, e até tinha um quartinho extra para a chegada do futuro irmão. Mas o irmão nunca veio e, com o tempo, o espaço acabou tendo outras utilidades, a depender das invenções da mãe. Em março era ateliê, em junho escritório, em agosto sala de brinquedos, e assim ia.
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Essa mudança acabou favorecendo o convívio com a família do irmão de seu pai. Eles tinham um primo que batia com a idade de Flora, era só três anos mais velho, e outros dois filhos mais novos que faziam um pouco de inveja na mãe, cujo sonho foi mitigado pela infertilidade do pai. Os finais de semana eram sempre com a família do tio:, churrasco, cerveja e muita saladas, cuidadosamente produzidas pelas esposas. No fim de 2004 todos viajaram juntos para o litoral de São Paulo, e aqueles dias foram um sopro de alegria na vida de Flora. Foi a primeira vez que ela viu o mar. a primeira vez que ficou até tarde acordada, a primeira vez que comeu peixe cru e quando se apaixonou pela natureza em seu estado mais bruto. A constância das marés, o barulho das conchas, o brilho do sol refletindo na areia e aquela imensidão de água. A imensidão. A melhor viagem de sua vida. Quando completou 10 anos, Flora sentiu que algumas coisas mudaram. Seu primo, que aqui chamaremos de Miguel, tinha seus completos 13 anos e, certa vez, compartilhou algumas revistas de mulheres nuas com ela. Flora nunca tinha olhado uma mulher nua antes -, com exceção de sua mãe -, e aquelas imagens trouxeram à tona algo que estava muito bem guardado com a inocência da infância, sua orientação sexual. Foi a partir dali que ela começou a compreender que algumas coisas dentro de si mesma estavam se delineando, seguindo um rumo próprio para que, no futuro, se transformassem em algo que pudesse ser compreendido. No início era só curiosidade. Foi também nesse mesmo ano que seu tio começou a tecer cada vez mais constatações e análises sobre seu corpo. Dizia o tempo todo aos seus pais que ela daria muito trabalho, que estava ficando bonita demais. Flora corria para se olhar no espelho, mas sempre se deparava com o rosto sujo de terra, ou um bigode de suco de uva de pózinho. Ela não entendia muito bem aqueles elogios, ou o porquê de seu pai sempre se chatear quando isso acontecia. Sua mãe sempre sorria com um olhar de orgulho olhando para o chão, e sua tia só se calava. Mas as coisas não passavam disso, Flora se sentia bonita e depois patética e extremamente infantil, sempre nessa ordem. Os anos seguintes foram colocando à prova sua predileção afetiva pelas meninas. Teve seu primeiro amor platônico pela professora de português aos 12, e aos 13 beijou
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sua melhor amiga, Ana, em uma brincadeira no intervalo da escola. A aproximação das duas se intensificou a partir da troca, não conseguiam mais se separar. Era como se o toque dos lábios já tivesse sido o atestado de um compromisso sério. Na adolescência tudo é sério. Depois de passar dias refletindo, decidiu tentar um primeiro diálogo com sua mãe sobre o assunto. Perguntou quando ela tinha percebido que gostava de garotos e não de garotas. A pergunta não foi bem recebida pela mãe, que encerrou o papo em poucas palavras: aquilo não era certo, não existia e não era coisa para se pensar. Nunca havia lhe ocorrido que gostar de meninas poderia não ser aceito pela sua família. Será que esse seria o trabalho excessivo que daria aos seus pais? Sempre gostou de ser filha de quem era, sempre admirou a passividade e força de sua mãe e a leveza e esforço de seu pai. Não sentia a necessidade de odiar seus pais como a maioria dos amigos da mesma idade, o ambiente familiar sempre lhe remeteu a aconchego e zelo. Isso fez com que refletisse profundamente sobre sua orientação: será que de fato era sapatão ou se sentia inspirada por aquelas mulheres e acabava confundindo os sentimentos? Fato é que a conversa com sua mãe a fez se afastar de Ana. Hoje é possível perceber como os pais exercem influência devastadora na vida de seus filhos. Depois de dias fugindo, Ana a encurralou em uma ida ao banheiro. Flora sentia suas pernas tremerem quando a viu se aproximar, a boca ficou seca e uma sensação de mal estar percorreu seu corpo. Encarar aquelas sensações não foi algo simples, sua imaturidade a paralisava. Mas Ana a poupou do sofrimento, ou passava pelas mesmas dúvidas e confirmações, lhe entregou um bilhete e saiu. Anos depois do ocorrido, Flora não se lembra das palavras exatas, apenas do conteúdo. “É uma pena. Queria ter guardado aquele bilhete, mas muitas coisas daquela época acabei me desfazendo ou perdendo. No fim das contas, a Aninha dava a entender que me amava. Num primeiro momento, senti que ia explodir de felicidade, mas depois lembro que senti dúvida. Ela não tinha sido exatamente clara naquele bilhete, o que acabou me deixando ainda mais ansiosa e frustrada na época.” Se a primeira reação de Flora foi se afastar da amiga após a conversa com a mãe, quando recebeu o recado de Ana, quase não se conteve de alegria. A mais remota
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chance de manter um relacionamento com quem a atraía causava aquela infinidade de sensações em suas entranhas. A garganta apertada, o estômago em euforia e a cabeça a milhão. Depois de levar o enquadro no banheiro, Ana sumiu por dias da escola. Em uma época predominantemente analógica, em que uma das únicas formas de estabelecer um diálogo fora dos limites da escola era através do telefone residencial, o desespero tomou conta de Flora. Incomunicáveis há dias, a vontade crescente de ficar com Ana preencheu todos seus pensamentos, independente das dúvidas plantadas pela mãe, ficar com a amiga virou uma necessidade. Ela aguardava Ana na frente da escola todos os dias, esperando que o Santana prata de seu pai estacionasse diante dos portões azuis. Foram três ou quatro dias de expectativa. Em uma manhã nublada, o Santana prata surgiu na esquina. Hoje, lembrando daquela época, Flora compara o automóvel a uma carruagem. “Nunca tinha percebido como existiam Santanas na cidade. Todos que cruzavam meu caminho faziam com que eu suasse frio, procurando pelos cabelos curtos e castanhos de Ana no banco do passageiro. Mas é claro que ela não estava em nenhum desses carros que eu vi. Fico pensando, o que eu faria? Me jogaria na frente dele? Gritaria o nome dela enquanto ele passasse?” Aquele reencontro fez seu corpo vibrar. Seu rosto esquentou, o nervosismo tomou conta dela. Provavelmente, tenha deixado de respirar por alguns segundos, seu coração pulou uma das batidas. Ana tinha a bonita capacidade de facilitar as coisas, nunca exigia explicações, aceitava todos os pedidos de desculpas e não guardava rancor. Quando se desentendia com alguém, 10 minutos eram suficientes para que voltasse a conversar normalmente com quem quer que fosse. Ela estendeu a mão para Flora, que fazia esforço demais só em permanecer de pé. Elas entrelaçaram as mãos e a partir de então eram namoradas. Simples assim. Bastou uma troca de olhares e um enlace dos dedos para que assumissem algo tão singelo e particular. Passaram a trocar muitas cartas, inúmeras. Era tanto papel que a mochila de Flora já não tinha mais espaço para livros e cadernos. Não podia correr o risco de guardá-las em casa, mas também não tinha maturidade suficiente para perceber que em algum momento elas seriam descobertas.
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Em setembro de 2008, uma das cartas de Ana foi interceptada pela professora de matemática. A matéria que Flora achava mais inútil na história do ensino escolar. Mesmo que frequentassem as mesmas aulas, o romance juvenil tem a estranha tendência de tensionar as barreiras do excesso e da negligência. No mesmo dia os pais foram chamados para uma reunião de emergência, as duas estavam esperando na sala da diretora, com uma assistente social junto. Naquela ocasião nem passava pela cabeça delas o motivo de um profissional da Assistência Social estar presente, só depois dos 20 que Flora compreendeu que o motivo era sua orientação sexual. A reunião não durou muito, apenas tempo suficiente da diretora entregar a carta aos pais e da assistente social falar um pouco sobre a necessidade de ambas receberem acompanhamento profissional. No fim, foi dito que aquela era uma política da escola, que não incentivavam o relacionamento amoroso entre estudantes e, nesse caso específico, a reincidência levaria à expulsão das duas. Um choque. Seu pai não emitiu sequer um som durante o caminho de volta para casa e, assim que chegaram, trocou de roupa e saiu com seu tio, que passou para buscá-lo em poucos minutos. A primeira conversa que teve foi com a mãe, a fala era entrecortada pelos soluços inconsoláveis. Depois de 40 minutos sem conseguir dizer frases inteiras que fizessem sentido, a mãe se levantou do sofá e foi incisiva. — Não quero sapatão em casa, não criei você pra isso. Não inventa mais de falar com essa menina, porque se eu descobrir que isso ainda está acontecendo, você vai levar uma surra. E se depender de mim também muda de escola — gritou. Flora se manteve firme, não disse sequer uma palavra, mas manteve os olhos em sua mãe, sem piscar. Queria passar a mensagem de que aquilo era inadmissível, mas não falou em voz alta porque provavelmente seria interrompida pelo choro. A mãe deu um tapa em seu rosto tão forte que Flora teve que se apoiar no sofá para não cair, a mãe seguiu batendo em sua cabeça, na nuca e nos braços. Depois ela foi para seu quarto e não saiu mais. Flora também foi para seu quarto. Era uma sexta-feira, o que tornava a situação toda ainda mais caótica. Sem possibilidades de se comunicar com Ana, teria que passar o final de semana suportando aquela situação. O sábado foi estranho e
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vazio, seu pai não a olhava, sua mãe não se levantou da cama. Mas a reunião de família do domingo prosseguiu normalmente, seus tios e primos chegaram cedo com a carne crua e as caixas de cerveja. Os ânimos se alteraram ao longo do dia com tanta bebida alcoólica. O sol já tinha se posto quando seu tio, coçando a barriga exposta na camisa de botões totalmente aberta, disse para todos ouvirem: — Sabe, Flora, essas coisas não são certas. Você precisa de um direcionamento na vida, um homem que te ponha no caminho. Não adianta nada estudar e ser inteligente, dá nisso. As mulheres acham que podem fazer umas coisas que, debaixo das asas dos maridos, não fazem. Flora ficou atônita. Todos que estavam à mesa silenciaram com as palavras. Miguel, o primo, riu. Seu pai se levantou da mesa e voltou com mais cerveja. A tia, tentando mudar o assunto, pediu que Flora levasse os pratos para a cozinha. Aquela situação era ridícula. — Só levo se o preguiçoso do Miguel levantar a bunda dele também — o tio completou — Viu? Por isso que mulher não pode estudar, cara. — Mas Miguel não levou a situação adiante, se levantou e começou a juntar os pratos. Flora se encaminhou para a cozinha, lavando toda a sujeira. Os adultos começaram uma partida de baralho típica dos domingos. Quando acabou a limpeza da louça, Flora percebeu que Miguel permaneceu ali, todo o tempo a observando. — Relaxa, prima. É que você pegou todo mundo de surpresa. Daqui uns dias todo mundo volta ao normal — disse tranquilamente o primo. Ela nem acreditava que todos já estavam sabendo do ocorrido, seus olhos marejaram. Ali, encostada na pia, se sentiu estranhamento desprotegida e sozinha. O primo, se comovendo com a situação, mas sem saber muito bem como proceder, a convidou para que deixassem os adultos e saíssem. — Vamos para minha casa, por enquanto não tem muito o que você possa fazer — disse Miguel. Ela se animou, sair daquele ambiente e da vigilância de seus pais, sob olhares de condenação, provavelmente lhe faria bem. Desde aquela viagem à praia que não passava tempo sozinha com o primo, a lembrança daqueles dias foi a justificativa final. A casa dos tios ficava tão perto da sua que em menos de dez passos já estavam diante dos portões amarelos. Percorreram o imenso jardim recheado de flores, que deman-
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dava horas de esforço semanais de sua tia, até entrarem pela porta da sala. Em poucos minutos já estavam sentados no sofá de couro marrom e velho, que provocava situações constrangedoras a depender da forma como rangia. Miguel foi até à cozinha e, para a surpresa de Flora, voltou com uma garrafa de vinho do pai. Ela nunca havia bebido, antes disso sua maior aventura alcoólica tinha sido bebericar cerveja quente nos copos que o pai e o tio largavam pela varanda nos fins de semana. Mas ela se permitiu, estava tão enrolada com a família, que diferença faria? Miguel ligou Gran Turismo no videogame da sala e em pouco tempo os dois já estavam rindo à beça. Depois de dois copos americanos daquele vinho horroroso que deixava a boca seca, Flora sentiu seu corpo amolecer. Levantou-se com a intenção de ir ao banheiro, mas o peso nas pernas era tão grande que caiu sentada no sofá. Miguel riu. Flora também. Ele sugeriu que ela se deitasse no quarto dele e esperasse algum tempo antes de voltar pra casa, na certa o efeito do álcool passaria rápido, já que tinha bebido tão pouco. Flora concordou, o jogo de cartas costumava se estender até a madrugada, daria tempo para se recuperar. Entrou no quarto do primo e tentou assimilar a quantidade de informações que aquele espaço transmitia. Entre pôsteres de jogos, mulheres nuas e bandas barulhentas, ela viu uma foto de quando viajaram à praia. Na imagem, ela e Miguel sorrindo, dourados de tanto sol, cada um com uma viseira. Flora começou a chorar, se lembrou daqueles dias, de quando ainda não sabia o que viria pela frente. Miguel a abraçou, disse que a entendia e que estava tudo bem. Deitou-a confortavelmente em sua cama e se colocou ao seu lado. Flora dormiu. Ela acordou com falta de ar. Quando abriu os olhos, percebeu que Miguel estava sentado em seu peito. As pernas dele prendiam seus braços. Uma das mãos tampava sua boca, para impedi-la de gritar enquanto usava a outra para desabotoar a própria calça. Quando começou a se debater, percebeu que o toque do lençol era direto com a pele do seu corpo. Estava nua e presa. O desespero foi tomando conta de Flora, a mão no seu rosto impossibilitava a passagem de ar e isso a fez movimentar a cabeça muito rápido. Miguel tirou a mão, enquanto puxava o ar muito forte sentiu uma pancada no rosto.
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A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA LÉSBICAS De acordo com o levantamento da Gênero e Número25, cerca de seis mulheres lésbicas foram estupradas por dia em 2017. Dos 2.379 casos registrados, mais de 60% deles ocorreram dentro da própria casa da vítima, sendo que em 96% deles o estuprador era homem. A Lei 13.718, que tipifica novos crimes de abuso sexual contra mulheres LGBTQI+, só foi sancionada em setembro de 2018, ela altera o Decreto-Lei nº 2.848 de dezembro de 1940 — o Código Penal vigente no Brasil, que entrou em vigor durante o Estado Novo. Essa Lei, extremamente recente, é a primeira que menciona o chamado “estupro corretivo”, mas o utiliza apenas como causa de aumento de pena, entre 1/3 a 2/3 de aumento. Segundo estudo do Centro de Apoio das Promotorias Criminais, do Júri e de Execução Penais26, do Ministério Público do Paraná (MPPR), antes da alteração do Decreto-Lei as únicas formas de enquadrar os crimes contra a dignidade sexual seriam em estupro27, violação sexual mediante fraude28 ou importunação ofensiva ao pudor29. É apenas a partir de 2018 que importunação sexual e divulgação de cena de estupro passam a ser incluídas, com o estupro coletivo — com a participação de dois ou mais agentes — inserido, também, como fator agravante. O “estupro corretivo” é quando o agressor utiliza a violência sexual para “corrigir” 25 A Gênero e Número é uma startup e organização de mídia independente que utiliza dados abertos para guiar suas produções, feitas para fomentar o debate acerca de equidade de gênero. A matéria na íntegra pode ser lida pelo link: http://www.generonumero.media/no-brasil-6-mulheres-lesbicas-sao-estupradas-por-dia/. 26 O estudo Lei nº 13.718/2019 Crimes Contra a Dignidade Sexual: breves apontamentos, publicado em 2018, está disponível no link: https://criminal.mppr.mp.br/arquivos/File/Estudo_Lei_13718_2018_Mudancas_nos_Crimes_Sexuais_ versao_final_2.pdf. 27 Art. 213 do Código Penal: "Constranger alguém, mediante violência, grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso." Com pena de seis a 10 anos de prisão. 28 Art. 215 do Código Penal: "Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima." Com pena de dois a seis anos de prisão. 29 Art. 61 da Lei das Contravenções Penais: "Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor." A pena prevista é multa de duzentos mil réis a dois contos de réis.
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a vítima de algo que o desagrada, pode ser o comportamento, a forma de se vestir, de falar ou com quem se relaciona afetivamente. É praticado, na maioria dos casos, contra mulheres LGBTQI+, cis ou trans, para “curar” sua orientação sexual ou identidade sexual; mas também é infligido contra mulheres heterossexuais como ferramenta de controle por seus cônjuges ou namorados. É importante perceber “A VIOLÊNCIA É USADA COMO UM CASTIGO PELA que o estupro como instrumento NEGAÇÃO DA MULHER À MASCULINIDADE DO de controle dos corpos é praticado HOMEM. UMA ESPÉCIE DOENTIA DE 'CURA' POR majoritariamente por homens. De MEIO DO ATO SEXUAL À FORÇA. A CARACTERÍSTICA acordo com o 14º Anuário BrasileiDESSA FORMA CRIMINOSA É A PREGAÇÃO DO ro de Segurança Pública, em 2019 AGRESSOR AO VIOLENTAR A VÍTIMA. OS MEIOS ocorreu um estupro a cada oito miDE COMUNICAÇÃO INDICAM CASOS EM QUE OS nutos no país. As vítimas são maAGRESSORES CHEGAM A INCITAR A 'PENETRAÇÃO joritariamente crianças — 57,9% CORRETIVA' EM GRUPOS DAS REDES SOCIAIS E tinham no máximo 13 anos — e em SITES DA INTERNET.” 85,7% dos casos eram mulheres. Atualização Legislativa: Lei 13.718/2018, sancionada em 24/09/2018, O estupro contra lésbicas é Rogério Sanches, 2018. praticado com a intenção de “corrigi-las” da não-heterossexualidade30, é um crime que humilha, ofende, inferioriza e subjuga as vítimas com a única intenção de silenciar qualquer comportamento que destoe do considerado “normal”. De acordo com o Minimanual do Jornalismo Humanizado - Parte V, produzido pela Think Olga31, toda vez que o “estupro corretivo” for abordado em alguma reportagem deve vir acompanhado de aspas, já que nenhuma pessoa deve ser corrigida de algo que é natural à sua existência. O Minimanual auxilia também na compreensão de dois termos, orientação sexual e identidade de gênero. 30 Disponível em: https://www.editorajuspodivm.com.br/cdn/arquivos/a717a7b72e63e04daed4a6ff7491c46b.pdf. 31 Um dos projetos desenvolvidos pela ONG Think Olga, foi a sequência de sete Minimanuais do Jornalismo Humanizado, que explicam algumas regras básicas para que jornalistas e profissionais da comunicação não errem ao produzir conteúdo de gênero, Pessoas Com Deficiência (PCD), LGBTQI+, aborto, entre outros. Disponível em: https:// thinkolga.com/ferramentas/.
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O QUE É ORIENTAÇÃO SEXUAL?
A orientação sexual contempla o L, o G e o B da sigla, referindo-se a qual ou quais gêneros uma pessoa se atrai. Gays e lésbicas têm orientação homossexual, isto é, atraem-se pelo mesmo gênero que o seu. Quem se atrai por pessoas de ambos os gêneros é bissexual. O termo “opção sexual” já caiu em desuso, sendo substituído por “orientação sexual”, por não se tratar de uma escolha. Além disso, o termo “opção” culpabilizava as pessoas por suas sexualidades, quando na verdade não há nada de errado com elas.
O QUE É IDENTIDADE DE GÊNERO?
Já a identidade de gênero define com qual gênero (feminino, masculino ou não-binário) uma pessoa se identifica, independentemente de sua genitália e de como ela foi classificada ao nascer (homem ou mulher). Quando a pessoa se identifica com o mesmo gênero que foi designada na infância, diz-se que sua identidade de gênero é cissexual (exemplo: Reynaldo Gianechinni, Suzana Vieira). Quando é diferente, dizemos que a pessoa é transexual (exemplos: Roberta Close, Lea T., Tammy Gretchen, Laerte). São as travestis, transexuais e transgêneros. O T da sigla.
Fonte: Minimanual do Jornalismo Humanizado V. Think Olga, 2017.
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A população LGBTQI+ sofre diariamente com violência sistêmica, discurso de ódio e apagamento social, o “estupro corretivo” é mais uma ferramenta lançada pelo patriarcado para enfraquecer a minoria que não se enquadra na heterossexualidade considerada natural ou esperada. Tanto que a Lei 13.718/2019 não prevê esse tipo de violência sexual como um crime específico contra mulheres LGBTQI+, mas “EM SÍNTESE: NÃO SE OBSERVA NO NOTICIÁRIO como um agravante, uma questão UM PADRÃO INQUESTIONÁVEL QUANTO AO RELATO que pode ou não aumentar a pena DESSAS MORTES, AO CONTRÁRIO É CONSTANTE O do agressor. Vale frisar que nem USO INADEQUADO DE TERMOS PARA DESIGNAR A todo estupro cometido contra muORIENTAÇÃO SEXUAL DA VÍTIMA, DESRESPEITO AO lheres LGBTQI+ são considerados NOME SOCIAL DE TRAVESTI E TRANSEXUAL, FORMA “corretivos”, em alguns casos não há SENSACIONALISTA PARA CONSTRUIR AS MANCHETES como provar que o suspeito sabia da E EM CERTOS CASOS, EXPOSIÇÃO DA VÍTIMA NA orientação sexual ou da identidade CENA DO CRIME, EM EVIDENTE DEMONSTRAÇÃO DE sexual antes de cometer o crime. HOMOTRANSFOBIA. O MESMO SE DIGA A RESPEITO De acordo com o relatório Mortes DOS CASOS DE AGRESSÕES, TENTATIVAS DE Violentas LGBT+ — 2019, realizado HOMICÍDIOS, LESÃO CORPORAL GRAVE, ALÉM DAS pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), de MORTES VIOLENTAS (HOMICÍDIOS, LATROCÍNIOS), todos os casos registrados no ano, IMPONDO A MUITAS DAS VÍTIMAS O ESQUECIMENTO cerca de 10% das mortes violentas32 E A INJUSTIÇA, QUANDO NÃO DESAPARECEM PARA eram de mulheres lésbicas. A subnoSEMPRE, EM CORPOS PUTREFATOS AO RELENTO.” tificação, contudo, é a maior barreiMortes Violentas LGBT+ — 2019, José Oliveira e Luiz Mott, 2020. ra enfrentada ao pesquisar dados da população LGBTQI+, e isso acon32 No relatório o suicídio também é incluído como morte violenta, porque "por trás desse ato extremo de morte voluntária, encontra-se a homotransfobia estrutural, como mobilizador do fracasso da autoestima da pessoa, minando suas forças para construir estratégias de sobrevivência em meio a tantas incompreensões e dificuldades de toda ordem, ainda mais desgastante para as minorias sexuais, desde financeiras, relacionais, afetivas entre outras" (OLIVEIRA, José Marcelo Domingos de, MOTT, Luiz (org.), 2020, p. 75). Disponível em: https://grupogaydabahia.com.br/ relatorios-anuais-de-morte-de-lgbti/.
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tece porque na maioria dos crimes não existe comprovação sobre a orientação sexual e identidade de gênero da vítima, ora por incompetência policial, ora por homotransfobia33. Além disso, o relatório critica explicitamente os meios de comunicação, que ao relatar as mortes usam termos e abordagens inapropriadas e preconceituosas. Desde o seu surgimento, o GGB se esforça em acompanhar e reunir dados relevantes sobre a população LGBTQI+ em seu portal. Com mais de 40 anos de estrada, tem acompanhado o crescimento no número de mortes violentas das minorias sexuais, como podemos analisar no gráfico a seguir:
Tabela 1 | Casos de mortes violentas de LGBT+, Brasil, 2000–2019. Ano
Número de vítimas
Total
4809
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019
260 266 338 314 329 329 343 445 420 329
Fonte: Mortes Violentas de LGBT+ — 2019.
33 Homotransfobia é a violência infligida contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Em uma sociedade que naturaliza comportamentos e uniões heterossexuais, qualquer orientação ou identidade sexuais que difiram da regra estão mais vulneráveis à violência e à morte violenta.
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A queda de 21,67% no número de mortes LGBTQI+ no último ano causa estranhamento, mas segundo o antropólogo e pesquisador Luiz Mott, as pessoas homossexuais e transexuais têm tomado cuidado redobrado, evitando exposições e enfrentamentos. Ao passo que morrem menos, as pessoas LGBTQI+ se isolam mais e procuram incomodar o sistema o mínimo possível, já que o discurso de ódio é estimulado pela atual onda conservadora, inclusive endossada publicamente pelo atual Presidente da República. Outra justificativa para a diminuição do número de mortes pode ser atribuída às subnotificações, que encontram apoio tanto da polícia quanto da mídia. A ausência de seriedade nas investigações policiais e a homotransfobia explícita da comunicação garantem que os casos se percam, que os números não sejam atribuídos de maneira correta nas estatísticas, e que, consequentemente, medidas legais e governamentais não sejam tomadas. A postura adotada pelo Governo Federal, desde a alçada de Jair Bolsonaro à presidência, é de apagamento das minorias sexuais. O decreto 9.759/2019 extinguiu o Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT, que fazia parte do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). A justificativa dada pelo atual presidente é que o excesso de conselhos prejudicava o funcionamento da máquina pública, já que empregava funcionários indicados por outros governos. Uma rápida pesquisa no site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos é suficiente para comprovar a ausência de conteúdo atual sobre a população LGBTQI+. Na barra centrais de conteúdo é possível acessar a aba LGBT, mas a única informação disponível é um documento em PDF do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência LGBTfóbica, publicado em setembro de 2018. Inclusive, esse tal pacto nacional sequer destina verba para auxiliar no enfrentamento da homotransfobia, é apenas um documento em que o Estado firma um compromisso de facilitar que as Secretarias Estaduais promovam políticas para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. O documento em questão pouco ajuda no desmonte das políticas públicas destinadas ao movimento LBGTQI+.
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O Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, em palestra de abertura34 no seminário “Globalismo”35, promovido pelo Itamaraty e pela Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), afirmou que a “ideologia de gênero”, o “racialismo”36 e o “ecologismo”37 são alguns dos conceitos mais difundidos pelo “globalismo”. Segundo o ministro, quando o liberalismo econômico retirou deus da centralidade de suas ideias, acabou deixando o caminho aberto para o “gramscismo”, cuja moral é muito mais agressiva porque promove um ideal absoluto do politicamente correto e dos direitos universais. O tal “globalismo”, encarado por muitos como mais uma teoria da conspiração, é utilizado atualmente como slogan político pela direita populista, segundo matéria veiculada na BBC38. O conceito engloba tudo o que for considerado incômodo pela onda conservadora e, em uma esfera mais elaborada, qualquer coisa que possa ser considerada “contrária à pátria”. A palavra tem enlace forte com a moral cristã, a união heterossexual e a branquitude. Ernesto Araújo, segundo apuração da Folha de S. Paulo39 em 26 de junho de 2019, orientou diplomatas que, durante negociações multilaterais, frisassem que para o governo brasileiro “a palavra gênero significa o sexo biológico: feminino ou masculino”. De acordo com a Folha, o Itamaraty afirmou que o atual governo busca uma retomada da definição tradicional de gênero. E não parou por aí, em Genebra, em uma reunião da ONU, o Brasil vetou todas as referências ao termo “gênero” dos documentos analisados, sugerindo que fossem trocados por “igualdade entre homens e mulheres”, como apre-
34 A fala de abertura pode ser vista na íntegra no link: https://www.youtube.com/watch?v=pPzwpAK-llA. 35 O seminário foi realizado no dia 10 de junho de 2019, a programação completa pode ser vista no link: http://funag. gov.br/index.php/pt-br/2015-02-12-19-38-42/2937-itamaraty-e-funag-realizaram-seminario-sobre-o-globalismo. 36 Segundo o chanceler, Ernesto Araújo, o "racialismo" é a divisão do mundo em raças, e esse seria o principal motivo para que crimes de racismo ocorram. 37 "Ecologismo" seria a ideologização da ecologia. 38 Reportagem veiculada no dia 3 de fevereito de 2019, disponível no link: https://www.bbc.com/portuguese/ internacional-46786314. 39 Reportagem completa no site: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/06/itamaraty-orienta-diplomatas-a-frisarque-genero-e-apenas-sexo-biologico.shtml.
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sentado no artigo40 de Jamil Chade no site da UOL. Em 2019 o Brasil também foi reeleito como membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU, submetendo um documento que não fazia menção às palavras gênero, desigualdade ou tortura, mas mencionava a palavra promoção familiar nove vezes, segundo reportagem41 do G1. Antes da votação em Nova Iorque, quase 200 países se pronunciaram42 contra a participação do Brasil no Conselho, afirmando que a política praticada por Jair Bolsonaro é incompatível com a agenda de Direitos Humanos. Mesmo assim, o país foi reeleito, recebendo 153 votos contra 105 da Venezuela. O atual ministro citado, apenas verbaliza — para o mercado exterior, no caso — o que há anos vem sendo delineado: a luta contra o “inimigo vermelho”. Esse inimigo nem sempre é necessariamente vermelho, fazendo uma alusão ao comunismo, mas pode assumir variadas formas de acordo com o momento. Pode ser o comunismo sim, mas também o petismo junto com aquele que é apontado por forças políticas de direita como seu maior vilão, Lula. Em outra ocasião, pode ser o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), porque, segundo os agropecuaristas, invadem propriedades privadas, ou em um contexto mais urbano, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que tomam casas de “cidadãos de bem”. Pode ser o movimento feminista, que retira as mulheres de sua posição de submissão, ou a comunidade LGBTQI+, que reúne os abjetos. Mas o inimigo também assume a forma de palavras, conceitos, identidades, conselhos, opiniões ou mesmo dados. A busca do atual governo não é diretamente pela evangelização de seu povo ou pela institucionalização da família heterossexual, mas sim pelo apagamento das suas minorias. É apagando as diferenças, sumindo com as palavras que dão nome a essas diferenças, que o conservadorismo age para reter o poder. A crítica ao “moralismo gramsciano” que o ministro Araújo fez no seminário “Glo40 Artigo publicado no dia 27 de julho de 2019, na íntegra em: https://jamilchade.blogosfera.uol.com.br/2019/06/27/ brasil-veta-termo-genero-em-resolucoes-da-onu-e-cria-mal-estar. 41 Matéria publicada em 11 de julho de 2019, na íntegra em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/11/semmencao-a-genero-e-a-tortura-brasil-apresenta-documento-de-candidatura-a-conselho-da-onu.ghtml. 42 Carta na íntegra disponibilizada em: https://jamilchade.blogosfera.uol.com.br/2019/10/08/mais-de-cem-entidades-seunem-contra-eleicao-do-brasil-na-onu/.
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balismo” é uma estratégia adotada em debates e discursos realizados por integrantes da direita conservadora. Ao afirmar que “hoje um homem olhar para uma mulher já é tentativa de estupro”43, o chanceler menciona a Lei 12.015/2009, que em seu artigo 213 dispõe que “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” é crime. Dessa forma, o artigo 2133 passa a compreender o “ato libidinoso” como estupro, sendo que antes era compreendido apenas como “atentado violento ao pudor”. Essa mudança, além de aumentar a pena das violações sexuais, passa a considerar que homens também sofrem estupro, algo que antes não podia ser enquadrado em nenhuma lei específica. As mulheres são objetificadas pelos homens e pela sociedade, mas qualquer forma de liberdade sexual que não seja destinada ao consumo masculino é criticada, apagada ou “corrigida”. Lésbicas são fetichizadas, e a pornografia contribuiu muito para colocá-las em uma posição de subalternidade sexual em relação ao homem, mesmo que suas relações afetivas sequer considerem a presença de um corpo masculino. Constantemente são constrangidas em público, sendo obrigadas a performar um beijo lésbico para agradar à audiência. Mas, caso as investidas dos homens não resultem no esperado, sofrem o “estupro corretivo”, acompanhado de frases com teor lesbofóbico e com a intenção de "apresentá-las" ao pênis, "corrigi-las" da falta de penetração, "salvá-las" de sua incompletude.
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Flora não é o nome verdadeiro da protagonista dessa história, que hoje mora em Corumbá e preferiu não se identificar. Mas ela conta que permaneceu na casa dos pais até os 17 anos, naquele mesmo local, perto da casa dos tios. “Nada daquilo foi levado a sério pela minha família. Ninguém me levou em um hospital, na polícia. Era como se eu estivesse mentindo, mesmo que todo mundo tenha me visto logo depois que tudo aconteceu”. Ela é formada em Letras pela Universidade Fede43 A frase foi dita pelo atual ministro na abertura do seminário "Globalismo" e, no vídeo disponibilizado, pode ser encontrado aos 34'59''.
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"ME DEBATI COM MUITA FORÇA. ISSO FEZ COM QUE ELE ME DESSE MAIS SOCOS NO ROSTO E NO CORPO. DEPOIS DE UM TEMPO, NÃO SEI AO CERTO SE FORAM MINUTOS OU HORAS, EU PAREI DE LUTAR. FECHEI OS OLHOS O MAIS APERTADO QUE CONSEGUI E COLOQUEI NA MINHA CABEÇA QUE AQUILO IA ACABAR. PENSEI QUE TUDO, ABSOLUTAMENTE TUDO, NO UNIVERSO TEM UM FIM. NESSA HORA TENTEI ME APEGAR ÀS COISAS MAIS BONITAS QUE EU JÁ VI MORREREM. PENSEI EM BURACOS NEGROS, LEMBREI O QUANTO EU SEMPRE GOSTEI DE OBSERVAR O CÉU QUANDO ERA CRIANÇA. IMAGINEI ÁRVORES CENTENÁRIAS, E ME MATERIALIZEI NA FRENTE DE UMA. ME ESFORCEI PRA TENTAR SENTIR O TOQUE DA CASCA DAQUELA ÁRVORE, O CHEIRO DA TERRA ÚMIDA E O SOM DE FOLHAS BALANÇANDO COM O VENTO. NESSA HORA EU LEMBREI DE COMO GOSTAVA DE SOPRAR BOLHAS DE SABÃO NA INFÂNCIA. FICAVA FRUSTRADA COM A RAPIDEZ QUE ELAS DURAVAM NO MUNDO. SABE, ISSO ME FEZ TER POUCAS LEMBRANÇAS DAQUELE DIA. NÃO MORRI PORQUE AS COISAS SIMPLES ME SALVARAM."
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ral da Grande Dourados (UFGD), e foi a universidade que garantiu a liberdade que ela procurava. Os pais nunca falaram sobre o crime ou sobre a orientação sexual de Flora novamente, a única providência foi a mudança de escola. “Nunca mais vi a Ana. Uma vez eu procurei na internet e achei, mas isso me fez muito mal. Quando eu olho pra ela não lembro da gente ou do nosso namoro adolescente, lembro de como tudo acabou. Fico revivendo aquelas horas do domingo, pensando que se eu tivesse ficado em casa, ou se eu não tivesse bebido, hoje eu seria outra pessoa. Eu sei que isso de ficar me culpando não é certo, mas o silêncio dos meus pais fez com que eu carregasse essa culpa por anos.” Flora não mantém contato com os pais, atualmente, mas recebeu auxílio financeiro durante os anos na faculdade. Ela acredita que foi a forma que eles encontraram de afastar os problemas sem abandoná-la financeiramente. Para ela, as minorias sexuais se inserem em uma grande área cinzenta na qual muitas famílias sequer cogitam adentrar, presumem a heterossexualidade de seus filhos desde o nascimento e ignoram qualquer outra possibilidade. A sexualidade ainda é uma seara de grande desconforto, o crime que sofreu provém de uma relação doentia que a sociedade tem com a heterossexualidade, como se tudo, inclusive o estupro, fosse válido para corrigir um “desvio” na sexualidade. Em maio de 1990 a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista de doenças internacionais, assumindo que não existe tratamento “corretivo” que faça o indivíduo mudar sua orientação ou identidade. É justamente por isso que não é correto utilizar o termo “homossexualismo”, a palavra carrega um cunho patológico, pressupondo a condição de doença, de enfermidade. De acordo com o Dicionário Houaiss, o sufixo “-ismos” pode abranger uma grande categoria de palavras, desde as que designam ações, como também doutrinas ou patologias. Obviamente o sufixo44 não carrega o mesmo cunho em palavras como paraquedismo e feminismo, uma denota 44 De acordo com o estudo de Vanderlei Gianastacio (2009), do século XVII ao XIX o sufixo passou a ser muito utilizado pela medicina para designar intoxicação, por exemplo em alcoolismo e iodismo. E entre os séculos XIX e XX, o sufixo passou a ser empregado em movimentos sociais, religiosos, ideológicos, políticos entre outros. O artigo de Gianastacio faz menção à história da gramática no Brasil..
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ação e a outra um movimento social. A despatologização da homossexualidade fez com que um olhar mais atento fosse lançado ao uso de termos pejorativos para se referir às pessoas que fogem da norma heterossexual. Atualmente, por exemplo, não fazemos mais menção à “opção sexual” dos indivíduos, e sim à orientação sexual de cada um. Essas mudanças na linguagem não são caprichos, elas acompanham uma organização muito bem fundamentada do movimento LGBTQI+, pois o tratamento dado às pessoas importa, as palavras utilizadas para nos referirmos a alguém, importam. Mesmo assim, essas mudanças na linguagem ficaram restritas ao elitismo acadêmico de classe média e alta, sem raízes sólidas em outros segmentos da sociedade, como nas famílias periféricas ou mesmo nas famílias religiosas. Essa questão é amplamente questionada por Flora que, durante sua entrevista, bate nessa tecla diversas vezes. “De que adianta o movimento LGBT lutar por causas se não consegue inserir cada uma delas depois na sociedade? Será que todos estão preparados para ter essa discussão? Meus pais sequer olham na minha cara, acha que eles vão saber diferenciar as palavras? Algumas pessoas acham que a orientação sexual de alguém é safadeza, é promiscuidade ou, em alguns casos, apenas confusão. De um jeito ou de outro as minorias continuam sofrendo, eu continuo sofrendo. Como pedir que o tratamento que me dão seja humanizado se eles acham que bandido bom é bandido morto e que homossexualidade é crime? Eu não sei, acho que ainda temos um longo caminho pela frente. Sei que em alguns lugares as coisas parecem ter caminhado, e muito, nos últimos anos. Mas acho que essas pessoas falam dos seus respectivos locais, sabe? Cada um está falando de suas vivências em particular e dos espaços que vivem. Acha que a mesma mudança que acontece em São Paulo vai acontecer aqui em Corumbá? Em Ribas do Rio Pardo? Jaraguari?”
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PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA “TODOS OS SERES HUMANOS NASCEM LIVRES E IGUAIS EM DIGNIDADE E DIREITOS. TODOS OS DIREITOS HUMANOS SÃO UNIVERSAIS, INTERDEPENDENTES, INDIVISÍVEIS E INTER-RELACIONADOS. A ORIENTAÇÃO SEXUAL E A IDENTIDADE DE GÊNERO SÃO ESSENCIAIS PARA A DIGNIDADE E HUMANIDADE DE CADA PESSOA E NÃO DEVEM SER MOTIVO DE DISCRIMINAÇÃO OU ABUSO.” Princípios de Yogyakarta, 2006.
Entre os dias 6 e 9 de novembro de 2006, em Yogyakarta na Indonésia, especialistas de 25 países adotaram os Princípios de Yogyakarta45 sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero. Esse documento deixa claro que a obrigação de garantir a aplicabilidade dos direitos humanos para a população LGBTQI+ é dos Estados, e que em cada caso específico a forma de atuação pode mudar, prevalecendo, sempre, a implementação dos direitos humanos. Com 29 princípios, o documento tem recomendações de como os governos devem atuar para garantir o acolhimento das pessoas LGBTQI+. Em novembro de 2017, dez princípios foram adicionados46 ao documento com o intuito de acompanhar o debate mundial que vem sendo realizado sobre orientação 45 O documento Princípios de Yogyakarta de 2006 pode ser acessado pelo link: http://www.clam.org.br/uploads/ conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf. 46 Chamado The Yogyakarta Principles plus 10, o documento atualizado de 2017, que conta com mais 10 recomendações e obrigações, está disponível mas apenas na sua versão em inglês no link: https://yogyakartaprinciples. org/wp-content/uploads/2017/11/A5_yogyakartaWEB-2.pdf.
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sexual e identidade sexual. O Brasil teve sua representante na redação dos dois documentos, tanto o de 2006 quanto o de 2017, demonstrando que o país tem acompanhado o resto do mundo ao exigir e cobrar do poder público que o movimento LGBTQI+ seja respeitado. Infelizmente, embora endossado por diversas organizações, como a ONU por exemplo, os Princípios de Yogyakarta não são obrigatórios. Eles existem apenas como recomendação, obrigatoriedade, nem como meio de controle. Precisamos sempre ter em mente que o incômodo que uma mulher causa por não atender às expectativas e imposições masculinas vão além do espectro comportamental, atingindo também sua sexualidade. Qualquer orientação sexual que difere da heterossexualidade incomoda porque não oferece nenhum benefício ao sistema. A mais remota ideia de que uma mulher não precisa de um homem para viver ou constituir família desagrada quem sempre teve privilégios na exploração dos corpos femininos. Flora compartilhou uma história que marca sua existência, mesmo que nenhuma de suas escolhas tenham machucado ou provocado sofrimento em outras pessoas. Por não se reconhecer dentro de um sistema machista e misógino, a dor infligida em seu corpo rompeu a lógica do tempo e anda de mãos dadas com ela.
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" HE DICHO ESCUELA DEL SUR; PORQUE EN REALIDAD, NUESTRO NORTE ES EL SUR. NO DEBE HAVER NORTE, PARA NOSOTROS, SINO POR OPOSICIÓN A NUESTRO SUR. POR ESO AHORA PONEMOS EL MAPA AL REVÉS, Y ENTONCES YA TENEMOS JUSTA IDEA DE NUESTRA POSICIÓN, Y NO COMO QUIEREN EN EL RESTO DEL MUNDO. LA PUNTA DE AMÉRICA, DESDE AHORA, PROLONGÁNDOSE, SEÑALA INSISTENTEMENTE EL SUR, NUESTRO NORTE."
Universalismo Constructivo, Joaquín Torres-García, 1944. 75
IRMÃ OUTSIDER “A 'ESCOLA DEL SUR' PROPOSTA POR TORRES-GARCÍA SUGERE QUE A AMÉRICA LATINA INVERTA A POSIÇÃO DE DEPENDÊNCIA, VALORIZE SEU LEGADO, RESGATANDO A ARTE INDÍGENA COM SUA GEOMETRIA, ENTRETANTO ESTABELECENDO UM DIÁLOGO ENTRE UMA ARTE CONSTRUTIVA QUE HARMONIZASSE COM AS LEIS UNIVERSAIS E COM O SABER DE TODOS OS TEMPOS HISTÓRICOS. (...) OS DIÁLOGOS TRANSNACIONAIS QUE AS NOVAS TECNOLOGIAS PROPORCIONAM ROMPEM OS LIMITES GEOFÍSICOS E CONSTROEM TERRITÓRIOS ANTES INEXISTENTES. AS RELAÇÕES INTERCULTURAIS DESLOCAM E AO MESMO TEMPO RESSIGNIFICAM OS ESPAÇOS LOCAIS, CRIANDO A SENSAÇÃO DE HABITARMOS UM NÃO-LUGAR.” O mapa de ponta-cabeça, Maria Luiza Caliim de Carvalho Costa, 2011.
O mapa invertido é uma obra do artista uruguaio Joaquín Torres-García, feita em 1935, quando propõe a Escuela del Sur na pintura El norte es el Sur. Um ano antes, Torres-García retorna à Montevidéu com a intenção de encontrar a raiz da cultura latino-americana. Segundo ele, era através da junção entre a arte indígena colombiana e a arte construtiva, que o hemisfério sul deixaria de ser o "outro" europeu e norte-americano.
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Outra referência existente antes mesmo do último capítulo iniciar é o nome. Irmã outsider faz referência à obra homônima da escritora feminista Audre Lorde. Outsider em português significa estrangeiro, estranho ou deslocado. O livro de Lorde reúne ensaios e conferências das quais fez parte, com sua escrita marcada pelo "estrangeirismo", a autora percorre o cruzamento de muitas minorias sociológicas: mulher, negra, mãe e lésbica. Como falar de mundo sem considerar as intersecções das quais se faz parte? Lorde e Torres-García em muito colaboram para a construção da última narrativa, à qual a interseccionalidade presente na primeira, e a crítica ao colonialismo presente no segundo, se abraçam na tentativa de tentar compreender onde o "outro" se encaixa. Lóren Berlim Preta é artista, artesã, catadora de latinhas e uma flâneur47 sobre rodas. Negra e transexual, habita um corpo que não pertence à norma mítica48, um corpo que rompe com todas as concepções binárias do gênero e da identidade. Quando perguntei como ela se traduzia, a resposta foi assim: "O que eu mais uso é negra, pobre, atrasada, marginalizada, de baixa escolaridade e com essa intelectualidade. Esse é o termo que uso, negra, pobre, atrasada, semi-analfabeta, com baixa escolaridade...sou atrasada mesmo, com baixíssima escolaridade e com essa força revolucionária." Nascida e criada em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, a artista concluiu o nível médio no fim dos anos 1990 e, em 2000, passou na primeira fase do vestibular da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) para Artes Visuais. A segunda fase — composta de uma prova específica na área em que se avalia as percepções visuais e 47 Com raízes no verbo francês flanêr, que significa passear, o termo flâneur é utilizado para designar pessoas andarilhas, observadoras, ociosas e passeadoras. 48 O termo "norma mítica" é usado por Audre Lorde no texto Age, Race, Class and Sex: Women Redefining Difference, publicado em 1984. "Em algum lugar, em um canto da consciência, está o que eu chamo de norma mítica, cada um de nós, em nossos corações, sabe que 'isso não sou eu'. Na América, essa norma é usualmente definida como branca, magra, masculina, jovem, heterossexual, Cristã e financeiramente segura. É nessa norma mítica que residem as armadilhas de poder da nossa sociedade. Aqueles de nós que estamos fora do referido poder muitas vezes identificamos de uma maneira que nos faz diferentes, e assumimos que essa é a causa primária de toda opressão, esquecendo de outras distorções relativas à diferença, algumas das quais, talvez pratiquemos. Dentro do atual movimento de mulheres, as mulheres brancas centram na sua opressão de gênero e ignoram as diferenças de raça, orientação sexual, classe e idade. É a pretensa experiência homogeneizada escondida sob a palavra sororidade que de fato não existe" (LORDE, Audre, 1984, p. 2) tradução nossa.
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espaciais dos candidatos — não foi realizada, já que ela chegou ao local atrasada. Mas isso causa estranhamento, como se denominar semi-analfabeta quando se tem nível médio completo? Os locais que Lóren frequenta, os espaços que a artesã ocupa para vender seus trabalho, são ocupados, em sua maioria, por jovens universitários, recém-formados ou profissionais já bem estabelecidos em suas profissões. "Só falam que eu deveria ter faculdade senão não sou pensadora, senão não sou inteligente. Sem faculdade, não sou inteligente. Sem faculdade, eu sou uma pessoa atrasada. Eu não tenho faculdade, então tenho baixíssima escolaridade. É o termo que eles usam, essa garotada que nós conhecemos no pedaço agora. Eles me invisibilizam."
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A sensação de deslocamento e descontinuidade veio cedo, ainda na primeira infância. Aos quatro anos já pedia à mãe — costureira de mãos cheias — que cortasse as golas de suas camisetas, de modo que suas roupas se aproximassem de um ideal feminino de vestimenta. O comportamento permaneceu no espectro de excentricidade, nenhum esforço foi feito, naquele momento, para buscar compreender sua extensão indentitária. A escola era um ambiente conservador, reproduzindo e reforçando normas heterossexuais sob uma perspectiva determinista. Lóren passou a infância e adolescência presa à uma realidade binária e masculinizada, mas sem perspectiva de que poderia mudar algo. O fim dos estudos marcou também o encerramento de sua vida masculina. Para conseguir frequentar os ambientes escolares, precisava se tornar "passável", ou seja, tinha que passar despercebida. Em um corpo masculino, precisou encarnar aquele papel até não precisar mais se justificar à ninguém. Lóren parou no tempo. Não teve os romances despreocupados ou os namoricos juvenis próprios da idade, estava enclausurada em um corpo que não traduzia sua essência e isso impossibilitou que experimentasse sua sexualidade livremente. Quando conseguiu finalizar o ensino médio, sentiu que poderia começar a abandonar aquela falsa identidade.
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Sem conseguir ingressar na universidade, Lóren precisava, então, conquistar algum tipo de liberdade financeira. A família sempre foi pobre, o pai não demonstrava interesse algum em auxiliar com as despesas, e a mãe — uma espécie de faz-tudo, trabalhando de faxineira à costureira — era quem precisava suprir as necessidades básicas de todos os integrantes da casa. Foi também nessa época que a irmã de Lóren engravidou de uma pessoa em situação de rua. Os gastos, que já eram exacerbados considerando o montante que recebiam, duplicaram. Enxoval, berço, exames pré-natal e mais um membro na família. O pai da criança se juntou ao arranjo familiar, sendo mais uma boca para a mãe de Lóren alimentar. Da mãe herdou o hábito de caminhar pela cidade, sem utilizar nenhum tipo de condução pública. Desde a infância se lembra de participar dessas andanças, sempre tendo como destino final algum local para trabalhar. Mas seria preciso mais que um capítulo para tentar explicar as influências que a mãe exercia na vida da artista. Ser autônoma é uma delas. E decisão de sair de casa a pé, com uma sacola na mão para catar latinhas aos 20 anos, é outra. Em busca de liberdade, Lóren passou a trabalhar como catadora, começando então sua trajetória nas ruas da cidade.
TRANSEXUALIDADE E A ABJEÇÃO DOS CORPOS De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) a expectativa de vida de uma pessoa trans é de 35 anos49, menos da metade da expectativa nacional, que segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é de 76 anos50 e três meses. Esse número consegue ser mais baixo do que a realidade brasilei49 Dados disponíveis no link: https://antrabrasil.org/category/violencia/. 50 Para se calcular a expectativa de vida brasileira, o IBGE realiza o cálculo da Tábua de Mortalidade e disponibiliza o resultado desde 1999. "Os principais indicadores extraídos das Tábuas Completas de Mortalidade são as probabilidades de morte entre duas idades exatas, em particular, a probabilidade de um recém-nascido falecer antes de completar o primeiro ano de vida, também conhecida como taxa de mortalidade infantil; e as expectativas de vida a cada idade, em especial, a expectativa de vida ao nascimento." Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/ sociais/populacao/9126-tabuas-completas-de-mortalidade.html?=&t=o-que-e.
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ra da década de 1940, quando o índice era de 45 anos e cinco meses. Calcular a expectativa de vida de um país reflete não apenas sua realidade sanitária, mas também socioeconômica, já que os índices de mortalidade são considerados no cálculo das Tábuas Completas de Mortalidade51. Considerar que a expectativa de vida de um segmento populacional está muito abaixo do índice nacional é buscar compreender quais são os fatores que se incidem sobre esses corpos.
“O QUE TEM AINDA SE AGRAVADO COM A FALTA DE TRANSPARÊNCIA DO ESTADO E NUMA POLÍTICA ESTATAL DE CONSTANTE MITIGAÇÃO DE DADOS GOVERNAMENTAIS SOBRE VÁRIOS TEMAS, COMO A PRÓPRIA PANDEMIA. E COM A INSTITUCIONALIZAÇÃO DE UMA AGENDA "ANTI-GÊNERO", QUANDO EM SUA POLÍTICA EXTERNA O BRASIL TEM RECUADO NAS DISCUSSÕES DOS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS, DIVERSIDADE, DIREITOS DA POPULAÇÃO LGBTI+ E ADOTADO UMA POSTURA QUE VAI NO SENTIDO OPOSTO DE ACORDOS INTERNACIONAIS ANTERIORMENTE ASSUMIDOS AO NEGAR RECONHECER O DIREITO À IDENTIDADE E EXPRESSÃO DE GÊNERO, ASSIM COMO O RECONHECIMENTO DE CRIMES DE ÓDIO MOTIVADOS POR ORIENTAÇÃO SEXUAL E/OU IDENTIDADE DE GÊNERO NO PLANO DE TRABALHO DISCUTIDO EM REUNIÃO NA COMISSÃO PERMANENTE DE PESSOAS LGBTI COM AS MAIS ALTAS AUTORIDADES EM DIREITOS HUMANOS NO MERCOSUL. GERANDO REPERCUSSÃO E REPÚDIO DE ENTIDADES NACIONAIS.” Boletim nº 05/2020, Antra.
51 A última atualização brasileira está disponível no link: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/3097/ tcmb_2018.pdf.
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Nos 10 primeiros meses deste ano o Brasil já apresenta um aumento de 22% no número de assassinatos de pessoas trans do que 2019 inteiro, o levantamento52 foi apresentado pela Antra no dia 31 de outubro de 2020. As 151 pessoas mapeadas expressavam o gênero feminino, sendo travestis ou transexuais, sendo possível relacionar os crimes com a violência de gênero e a transfobia. Os estados que mais registraram mortes de pessoas trans foram São Paulo, com 21 assassinatos, Ceará, com 19 casos, e Bahia, com 17 assassinatos. Mas esses dados não representam, necessariamente, a realidade, já que a política de subnotificação é constatada pelas organizações e associações de pessoas LGBTQI+. Como mensurar em números o caráter trágico do preconceito contras pessoas trans? Sequer os órgãos governamentais — que possuem mais dispositivos metodológicos do que outras organizações — apresentam a estatística dos crimes de ódio. O Atlas da Violência 2020, utilizado para compor grande parte da base teórica deste livro, disponibiliza apenas um compilado generalizado da população LGBTQI+. Associações como a Antra e o Grupo Gay da Bahia (GGB) necessitam de suporte financeiro e estrutural para conseguir alcançar uma estimativa aproximada da realidade dos grupos que pesquisam. Financeiro porque qualquer pesquisa quantitativa e qualitativa requer tempo e interpretação especializada para traduzir dados; e estrutural porque esses dados precisam existir. Como solicitar que as delegacias enviem os números de travestis e transexuais mortas se essas pessoas não são incluídas no sistema policial sob a identidade correta? O Brasil ocupa o 1º lugar no ranking de assassinatos de transexuais há mais de 10 anos53, segundo o Transgender Europe (TGEU), que realiza o monitoramento dos crimes desde 2008 ao redor do mundo. Através do projeto de pesquisa Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT) o TGEU realiza o Monitoramento do Assassinato Trans (TMM), fazendo um balanço anual e disponibilizando os dados em infográficos e mapas interativos. No dia 20 de novembro de 2020, Dia Internacional da Memória Trans 52 Boletim nº 05/2020, disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/11/boletim-5-2020-assassinatosantra.pdf. 53 É possível acompanhar de maneira interativa os países monitorados pela TvT pelo link: https://transrespect.org/en/ map/trans-murder-monitoring/.
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(TDoR), a atualização nos dados de assassinatos contra pessoas trans, cometidos entre 1º de outubro de 2019 e 30 de setembro de 2020, revelou um aumento mundial de 6%. De todos os assassinatos cometidos, 98% eram de mulheres trans ou de pessoas que expressavam o gênero feminino, 62% trabalhavam com prostituição. A idade média das vítimas é de 31 anos, 38% dos crimes ocorreram na rua e 22% na própria residência. Alguns países expressam os crimes de ódio de acordo com o preconceito presente em suas bases fundacionais, nos Estados Unidos 79% das vítimas eram negras, e na Europa, 50% eram migrantes. E, por fim, 43% dos homicídios contra pessoas trans ocorreram no Brasil. Na plataforma da TvT é possível, também, acompanhar os dados absolutos, ou seja, todos os homicídios monitorados desde 2008 até o presente momento. O Brasil, que ocupa o primeiro lugar, possui 1520 assassinatos registrados, 992 casos a mais que o México, que ocupa o segundo lugar, com 520 crimes contra pessoas trans ou travestis. A Lei Maria da Penha54 e a Lei do Feminicídio55, importantes mecanismos na proteção de mulheres, também podem ser acionadas em casos de mulheres trans, já que não foram redigidas exclusivamente para mulheres cisgênero. Mas a existência de uma legislação punitiva não reduz o nível de preconceito e violência que as transexuais e travestis sofrem apenas por existirem. Como denunciar uma agressão quando ela ocorreu durante o trabalho de prostituição? Como denunciar a violência doméstica se, por vezes, as trans não são consideradas mulheres? Como denunciar os abusos se muitas vezes é praticado pelos familiares mais próximos? Talvez seja necessário retroceder um pouco para que possamos continuar a narrativa compreendendo a violência sistêmica que esses corpos sofrem.
* 54 Lei 11.340/2006 que combate a violência doméstica e familiar, além de criar mecanismos para reduzir o número de casos e prevenir que aconteçam. 55 Lei 13.104/2015 que prevê o feminicídio como circunstância qualificadora para o crime de homicídio, sendo considerado o limite máximo de violência de gênero.
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Ainda dentro da barriga da mãe, em um ultrassom de rotina, já é possível saber se o feto gerado é menino ou menina, se o enxoval será rosa ou azul e decidir o nome da criança. O sexo biológico de um indivíduo já é determinado antes mesmo do seu nascimento, através de constatações físicas a respeito de sua genitália. Determinar o sexo biológico de um bebê também implica em atribuir-lhe um gênero, ou seja, se a criança gerada possuir pênis, seu sexo biológico será masculino e seu gênero será homem. Se a criança gerada tiver vulva, seu sexo biológico será feminino e o gênero atribuído será mulher. Gênero então é um conjunto expectativas culturais que a sociedade espera que aquele corpo cumpra ao longo de sua vida, marcando também suas diferenças. Dessa forma, o gênero é uma ótica cultural que pressupõe que todas as identidades assumam os papéis a elas destinados antes mesmo do seu nascimento. Essa universalização da sexualidade acaba excluindo da sua lógica os corpos que não correspondem ao padrão determinado. Pressupor que uma criança com sexo biológico masculino assuma um gênero masculinizado é, também, retirar dela inúmeras possibilidades de experienciar sua própria existência. Além disso, a lógica determinista do gênero também incide sobre a orientação sexual de cada um de forma automatizada. Por considerar, biologicamente e socialmente, apenas pessoas binárias (macho–fêmea/homem–mulher) também se espera que sejam heterossexuais ou homossexuais, excluindo todas as outras categorizações. As pessoas transgêneros são aquelas que fogem desse determinismo biológico e cultural, elas transitam entre os gêneros impostos. Essa categorização é considerada ampla e abarca várias outras identidades. A transexualidade diz respeito à identidade. Quando uma pessoa não se identifica com o sexo biológico que lhe foi atribuído, diz-se que ela é transexual. Ou seja, nasci com uma genitália considerada feminina, mas reivindico a minha existência como masculina, portanto sou trans homem. Ou, nasci com uma genitália considerada masculina, mas reivindico a minha existência como feminina, então sou trans mulher. Destaca-se, ainda, que não é necessário passar por nenhum tipo de intervenção cirúrgica ou hormonal para se considerar transexual, essa seria, inclusive, mais uma forma de negar a existência das pessoas trans.
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As travestis são pessoas que possuem um gênero feminino, mas não reivindicam uma existência binária, de acordo com o guia Orientações sobre identidades de gênero: conceitos e termos56, elas pertencem à uma terceira categoria de gênero ou um não–gênero. Muitas transexuais se identificam como travestis e vice–versa, borrando os limites das categorizações, mas é importante reconhecer que as próprias categorizações em si refletem a mesma ótica binária de gênero que determina qual papel cada um deve cumprir. Portanto, é importante procurar compreender em qual lógica cada corpo se insere, é importante, também, nomear cada uma dessas lógicas, mas levando em consideração as vivências desses grupos em si, sem partir para um caminho que apenas reforça as desigualdades. Existem, ainda, os crossdressers, homens, normalmente heterossexuais, que não são transexuais, mas experienciam o gênero feminino. Normalmente o fazem dentro de casa, sem necessariamente reivindicarem uma existência diferente da que já vivem. As drag queens e os drag kings utilizam da performatização e da espetacularização para, propositalmente, encarnarem os estereótipos de cada gênero. São artistas que, de forma caricata, tensionam as barreiras de gênero e sexualidade em suas apresentações. As transexuais, as travestis, os crossdressers, as drag queens e os drag kings são considerados transgêneros, justamente por transitarem entre os gêneros atribuídos ao sexo biológico. Existem, ainda, as pessoas que não se identificam nem como transgêneros, nem como cisgêneros, sendo chamados de queer. Diferir da norma binária de gênero cria marcas visíveis nos corpos, tão evidentes que cerca de 90% das mulheres trans57 — considerando as transexuais e as travestis — já recorreram ou recorrem à prostituição como ocupação. Atualmente, não existem mecanismos eficientes que sejam capazes de forçar os empregadores a contratar pessoas 56 Publicado em 2012, o guia auxilia para que formadores de opinião compreendam as existências trans. Disponível no link: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/16/o/ORIENTA%C3%87%C3%95ES_POPULA%C3%87%C3%83O_TRANS. pdf?1334065989. 57 Dados obtidos no Dossiê dos Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais em 2019, disponível no link: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/01/dossic3aa-dos-assassinatos-e-da-violc3aancia-contra-pessoas-transem-2019.pdf.
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trans, apenas iniciativas de ONGs e algumas pontuais no setor privado. Essa dificuldade em encontrar dados sobre a população transgênero, além de inviabilizar a criação e manutenção de políticas públicas, torna, também, esse segmento populacional invisível. Em 2016 foi assinado o Decreto nº 8.727, que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero das travestis e transexuais, no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Mas esse reconhecimento não se tratava da alteração no registro civil, apenas da aplicabilidade do nome social. "O nome social é uma forma de evitar ou diminuir a transfobia e o constrangimento da pessoa que se identifica e se apresenta conforme determinada identidade masculina ou feminina, e tem um nome que não corresponde a ela."58 A alteração no registro civil implica em conhecer o contexto da região que se vive no Brasil, isso porque a jurisprudência pode variar dependendo do município em questão. Em alguns casos, basta que seja solicitada a alteração, em outros a alteração do nome é autorizada, porém, condicionada à cirurgia de redesignação sexual, e, ainda em última instância, não se autoriza a alteração do registro civil sem a cirurgia de redesignação sexual. O respeito à população transgênero começa pelo reconhecimento da sua identidade, pelo correto uso do nome social e pela alteração no registro civil. Condicionar a mudança de qualquer reconhecimento das identidades trans ao processo de transgenitalização é o mesmo que patologizar a transexualidade. Em junho de 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a 11ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID), em que retira as pessoas transexuais e travestis da categoria de "transtornos mentais ou do neurodesenvolvimento". Ao desatrelar as identidades de gênero do conceito de doença ou enfermidade, a OMS despatologizou-as. Essa reclassificação, feita 28 anos depois da última edição, é uma forma de facilitar o acesso das pessoas trans ao sistema de saúde, podendo ser reconhecidas e respeitadas, sem serem classificadas com "transtorno de gênero". 58 Disponível no estudo Transexuais: transpondo barreiras no mercado de trabalho em São Paulo?, publicado em 2018 e desenvolvido por Cecília Barreto de Almeida e Victor Augusto Vasconcellos. Artigo completo no link: https:// www.scielo.br/pdf/rdgv/v14n2/1808-2432-rdgv-14-02-0302.pdf.
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AUTONOMIA Hoje Lóren trabalha principalmente com artesanato, e uma das maiores satisfações que sentiu foi quando conseguiu a carteirinha do artesão com seu nome social. A mudança nos documentos é um processo demorado e, no caso dela, sem alteração no registro civil. Isso significa que o sexo atribuído na sua certidão de nascimento ainda consta como masculino, para todos os efeitos, ela ainda é ele. Sentir que sua existência é minimizada e até mesmo descartável é algo constante. Até mesmo por isso, ela procura viver de forma autônoma, necessitando o mínimo possível de terceiros, com o tempo e a caminhada, aprendeu a se proteger e esperar muito pouco das pessoas. Decidiu não depender de transporte público depeois de perder a prova específica do vestibular para Artes Visuais nos anos 2000, desde então percorre a cidade com sua bicicleta. Nela carrega seu trabalho, seu corpo e, principalmente, seus sonhos e observações. É esse objeto que lhe fornece tanta liberdade, que possibilita que Lóren cumpra seu expediente como catadora, caso desejar, que leve todos os seus artesanatos para qualquer evento que esteja acontecendo. Atualmente mora no Bairro Jardim São Conrado, na Região do Lagoa em Campo Grande. O bairro tem suas origens na antiga Favela do Marimbondo, que surgiu na cidade na década de 1970. Região periférica, nos últimos anos recebeu a construção de casas populares e, segundo o Censo de 2010, possui mais de 18.500 habitantes. Com uma taxa de analfabetismo de quase 10%, os últimos dados obtidos do Índice de Qualidade de Vida (ICV) colocavam o bairro em 64º lugar, de um total de 79. Segundo Lóren, a casa onde mora atualmente é um "barracão" em uma rua sem pavimentação, que abriga mais seis outros moradores, sendo dois trans homens. Em setembro deste ano, uma outra moradora da casa, amiga de longa data de Lóren, foi encontrada morta no mesmo bairro onde morava, próxima à sua casa.
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Sucia Labasura Constantino Barbosa tinha 28 anos, era formada em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e foi encontrada enforcada59 em uma árvore no Bairro Jardim São Conrado. Era transexual e, de acordo com Lóren, estava passando por períodos difíceis, mas que não existiam chances dela ter cometido suicídio. A linha de investigação policial descartou qualquer outra possibilidade e encerrou o caso com rapidez. Uma mulher trans que teve a vida encerrada antes da expectativa baixíssima de 35 anos. A perda da amiga fez com que Lóren passasse por um período natural de luto, mas a artesã afirma que não gosta mais de pensar sobre a morte dela, prefere continuar sua vida e lembrar de Sucia enquanto viva. A casa que habita hoje tinha sido alugada pela amiga e seu companheiro, também trans, ambos trabalhavam vendendo cosméticos naturais e estavam recebendo, assim como Lóren, o auxílio emergencial disponibilizado pela Caixa Econômica Federal para garantir a sobrevivência de pessoas vulneráveis em época de pandemia. A disseminação do novo coronavírus fechou bares e encerrou eventos, por tempo indeterminado em grande parte das regiões brasileiras. Com o toque de recolher e a proibição de aglomerações na capital sul-mato-grossense, grande parte da vida noturna sumiu, desaparecendo, também, com a renda de Lóren. O público da atesã sempre foi segmentado, e ela, inclusive, sempre teve preferência por frequentar apenas locais que considere underground, pois possui uma identificação maior com as pessoas e a estrutura dos locais. As feiras ao ar livre, os bares universitários e a cena lado B da cidade sempre foram seus pontos preferidos. A maior parte de sua produção é feita com material reciclável que ela mesma recolhe pela cidade, o trabalho cuidadoso com cada peça, o manuseio, lavagem, corte, pintura e colagem são a assinatura da artista. As garrafas PET aos poucos vão tomando as formas das borboletas, coloridas e autênticas, são os produtos que Lóren mais vende. Em formas de brinco, ímãs de geladeira, broches, presilhas, arquinhos e, até mesmo, como peças de decoração. É interes59 A matéria que noticia a morte de Sucia está disponível no link: https://www.campograndenews.com.br/cidades/ capital/mulher-trans-encontrada-em-arvore-tinha-28-anos-e-era-formada-em-artes-cenicas.
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sante observar a ligação que a artista possui com as borboletas, desde 2009 ela produz as peças. No início, ela não acreditava no artesanato como profissão, trabalhava como catadora de material reciclável, e chegou a trabalhar na área da limpeza no setor público. O trabalho como faxineira na prefeitura fez com que ela abandonasse a veia artística, não existia tempo para produzir nada, quando se bate ponto e o trabalho é braçal, no fim do dia o cansaço toma conta do corpo de qualquer um. Apesar de identificar esse período como uma experiência que adquiriu, Lóren perdeu a disposição que possuía, se sentindo sempre desanimada e desgastada, decidiu pedir demissão. Com 10 meses de trabalho e sem carteira assinada, sem direito a férias ou 13º, ela decidiu retornar aos poucos para seu trabalho como artesã. Em 2019 trabalhou também na área da limpeza em um bar da capital, Rotunda, e foi apenas depois desse período que decidiu trabalhar apenas com o que gostasse, voltando à sua produção de borboletas, à costura e, bem recentemente, à produção de animações em stop motion.
PANDEMIA E COMUNIDADE LGBTQI+ A pandemia impacta de forma diferenciada quando consideramos a população LGBTQI+, a pesquisa60 realizada pelo coletivo #VoteLGBT+, realizada entre os dias 28 de abril e 15 de maio de 2020, apontou que 42,72% dos entrevistados sentem que a saúde mental é o maior problema. Em segundo lugar o afastamento da rede de apoio, seguido pela falta de fonte de renda. Mais da metade dos entrevistados (54%) afirmaram precisar de apoio psicológico, sendo maior em identidades femininas e não-binárias do que em identidades masculinas. A necessidade de uma rede de apoio para as pessoas LGBTQI+ reside no fato de que, na maior parte das vezes, o ciclo de violência se inicia em casa. Quando falamos de mercado de trabalho, os números apresentam uma realidade as60 Foram utilizadas 9.521 respostas, esquisa completa em: https://static1.squarespace.com/ static/5b310b91af2096e89a5bc1f5/t/5ef78351fb8ae15cc0e0b5a3/1593279420604/%5Bvote+lgbt+%2B+box1824%5D+diag no%CC%81stico+LGBT%2B+na+pandemia_completo.pdf.
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sustadora. Metade das pessoas trans que fizeram parte da pesquisa (53,35%) afirmaram não conseguir sobreviver por mais de um mês em caso de demissão, além disso, a taxa de desemprego entre pessoas LGBTQI+ é de 21,6%. A falta de dinheiro foi o principal impacto da pandemia para 14% das pessoas trans, sendo que as pessoas pretas, pardas e indígenas têm 22% a mais de chances de indicar a falta de dinheiro como principal problema pandêmico. O Índice de Vulnerabili“O CENÁRIO DE PANDEMIA QUE IMPACTA TODA A dade LGBT+ à Covid-19 POPULAÇÃO MUNDIAL, QUANDO ENCONTRA AS (VLC), que mede de 0 a 1 PESSOAS LGBTS+, POTENCIALIZA UMA SÉRIE DE quais grupos têm maior PROBLEMAS PREVIAMENTE ENFRENTADOS PELAS vulnerabilidade na pandeMESMAS. PREOCUPADA COM ESSA SITUAÇÃO, A mia — sendo 0 nenhuma ONU CHEGOU A EXPANDIR AS ORIENTAÇÕES PARA vulnerabilidade e 1 maior ALERTAR OS PAÍSES DOS RISCOS ESPECÍFICOS DA vulnerabilidade —, aponCRISE DO NOVO CORONAVÍRUS PARA ESTA PARTE tou que os grupos de trans DA SOCIEDADE.” e pretos, pardos e indígePesquisa LGBT+ na pandemia, 2020. nas são os que apresentam maior vulnerabilidade. O Dossiê de Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2019 também apresenta dados constrangedores, apenas 4% das mulheres trans possuíam emprego formal em 2019, com possibilidade de progressão na carreira, e cerca de 6% estão em atividades informais e subempregos. A maior parte das mulheres trans recorrem à prostituição, e as causas destacadas no dossiê para a baixa empregabilidade são: a reforma trabalhista e previdenciária, aumento na taxa de desemprego da população brasileira, aumento das pessoas que estão na linha da pobreza e aumento da violência contra pessoas LGBTQI+. A Antra estima, ainda, que 13 anos seja a idade média em que mulheres transexuais e travestis são expulsas de casa, 64% dos assassinatos aconteceram nas ruas e 67% das vítimas eram mulheres transexuais e travestis profissionais do sexo. Ou seja, transexuais e travestis são expulsas de sua casa ainda na adolescência,
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“DESSA FORMA, SURGE A NECESSIDADE DE ATENTARMOS PARA UM FATO IMPORTANTE. PESSOAS TRANS COM NOME E GÊNERO RETIFICADOS, PODEM PASSAR POR UM NOVO PROCESSO DE INVISIBILIZAÇÃO NA HORA DE NOTIFICAÇÕES OU REGISTROS DE OCORRÊNCIA. POIS, DE ACORDO COM O REGISTO DOCUMENTAL, ESTARIAM SENDO RECONHECIDAS PELO ESTADO COMO SE FOSSEM PESSOAS CISGÊNERAS. E, POR ISSO, SE TORNA CADA VEZ MAIS IMPORTANTE O USO DE MARCADORES DA IDENTIDADE DE GÊNERO EM FORMULÁRIOS, LAUDOS, BOLETINS DE OCORRÊNCIA, E FICHAS, E NAS MATÉRIAS QUE NOTICIAM ESSAS MORTES, PARA QUE ESTES DADOS NÃO SE PERCAM, OU QUE A POPULAÇÃO TRANS VOLTE A TER SUA IDENTIDADE DE GÊNERO DESLEGITIMADA, OU NOVAMENTE SUBNOTIFICADA, APÓS A RETIFICAÇÃO REGISTRAL. É IMPORTANTE SABER SE UMA PESSOA ASSASSINADA É CISGÊNERA OU TRANSGÊNERA PARA QUE POSSAMOS FAZER O CRUZAMENTO DOS DADOS E PARA QUE O ESTADO DÊ CONTA DESTES ASSASSINATOS. E ISSO SÓ SERÁ POSSÍVEL, COM O MARCADOR DA IDENTIDADE DE GÊNERO EXISTENTE, DEVIDAMENTE PREENCHIDO E PUBLICIZADO; BEM COMO AS EQUIPES QUALIFICADAS PARA O PREENCHIMENTO E CIENTES DE SUA IMPORTÂNCIA (DOSSIÊ DOS ASSASSINATOS E DA VIOLÊNCIA CONTRA TRAVESTIS E TRANSEXUAIS BRASILEIRAS EM 2019).” Dossiê dos Assassinatos e da Violência Contra Travestis e Transexuais, Antra, 2020.
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72% não possuem o ensino médio, e 56% não concluíram o nível fundamental. Apenas 0,02% das mulheres trans ingressam na universidade, por limitação ao acesso básico acabam recorrendo a subempregos ou à prostituição. De todas as mulheres trans assassinadas em 2019, a Antra destaca, ainda, que 82% eram pretas ou pardas. Dos jornais que veicularam os crimes, apenas 29% respeitaram a identidade de gênero da vítima, e 91% expuseram o nome de registro delas: As vítimas continuam invisibiizadas mesmo após sua morte, tendo suas identidades negadas mais uma vez. Sofrem crimes de ódio, em 2019 cerca de 80% dos assassinatos possuíam requintes de crueldade, e em 52% dos casos de espancamento, o assassino utiliza outros métodos durante o crime, como afogamento, tortura, estupro, entre outros. A existência marginalizada das mulheres trans é reforçada pela mídia brasileira, que não apresenta as informações corretamente, apenas compilando uma série de informações presentes nos boletins de ocorrência que, na maioria das vezes, denota o caráter transfóbico da atuação policial. Esses comportamentos, atrelados à falta de políticas públicas eficientes, se unem para apontar a abjeção dos corpos trans, negar-lhes seus direitos e permitir que tenham o mínimo de acesso a ferramentas que possam auxiliar na autonomia dessas pessoas. Mas além da pandemia, 2020 também apresentou mudanças na política brasileira. As eleições municipais tiveram um aumento de mais de 220% no número de candidaturas trans, quando comparado a 2016. Foram 294 candidaturas este ano, e 89 em 2016, 52% dos candidatos se lançaram em partidos de esquerda, 11% de centro e 37% de direita. Foi o primeiro ano em que os candidatos tinham a opção de utilizar o nome social, além de ser o ano que o país mais elegeu pessoas trans, foram 30 pessoas, quase quatro vezes mais que em 2016, que apenas oito foram elei-
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tas. Esse ineditismo tem acompanhado a insatisfação da população LGBTQI+ com o governo neoliberal de Jair Bolsonaro, mais de 98% dos entrevistados para o Diagnóstico LGBT na pandemia reprovaram a atual gestão. Essa novidade na configuração política do país talvez apresente seus frutos futuramente, tendo pessoas trans que possam pensar em seus pares e na melhoria do bem-estar da população LGBTQI+. Homens, brancos, heterossexuais e cisnormativos já ocupam as cadeiras da política há muitos anos, talvez até tempo demais, se levarmos em conta o atual estado do país. É o momento de minorias assumirem compromissos com os eleitores, procurarem, dentro das próprias estruturas de poder, maneiras de reduzir a desigualdade social e a violência.
BORBOLETAS Lóren não foi expulsa de casa aos 13 anos, como a média brasileira nos mostra, ao contrário, permaneceu em casa até a idade adulta. Mas isso não significa que foi aceita pelos familiares facilmente, assim que iniciou seu processo pessoal de reconhecimento da própria identidade, a mãe acreditou que apenas uma intervenção divina pudesse livrar "disforia de gênero" da filha. A casa passou a ser frequentada por boa parte da comunidade evangélica da região, as orações eram infinitas e a lavagem cerebral era constante. Não existe reza e nem Deus capaz de mudar algo inerente ao indivíduo, não existe vontade própria no mundo que conserte algo que não está quebrado. Para permanecer fora de casa o máximo de tempo que conseguisse, durante a noite a artista saía para trabalhar como catadora e, durante o dia, procurava locais pela cidade que pudesse frequentar, como bibliotecas e parques públicos. Esse contato com a rua foi naturalmente transformador, conhecer outras realidades, ganhar dinheiro próprio e poder ter tempo para se conhecer a fundo, trouxeram à tona Lóren Berlim Preta, uma artista multifacetada que retrata as realidades periféricas que vivencia. Em 2010 se interessou pela política, compreendendo que não existe mudança sem política pública,
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e passou a frequentar reuniões de partidos de esquerda locais. Em 2013, no auge do movimento passe livre, Lóren sentiu-se descontente com os rumos que as coisas tomavam, sua presença no partido que preferiu não falar o nome era útil não como voz ativa, mas como propaganda política. Os debates se acaloravam para reivindicar ainda mais direitos para a classe média do município, sem enxergar as pessoas em extrema vulnerabilidade, indivíduos em situação de rua, indivíduos morando nas periferias e sem acesso à saúde, transexuais e travestis que, assim como ela, não tinham o direito de ser ouvidas. Para Lóren, política se faz no dia-a-dia, ocupando os espaços mais necessitados, ouvindo quem é naturalmente invisibilizado pelo poder mítico, majoritariamente branco. Essa insatisfação, que se somou à criminalização da esquerda pelos partidos de centro-direita posteriormente, fizeram-na se afastar do partido que era filiada. Durante a entrevista, a artesã foi enfática ao dizer que sua presença incomoda quem menos deveria, os universitários e pessoas da classe média de esquerda. Sendo considerada um corpo incômodo demais para as elites, e transgressor demais para a branquitude escolarizada, ela optou por se isolar socialmente. Aos 41 anos de idade, fabricando borboletas que vende online, a trans preta e periférica compreende muito mais os estudos de gênero e interseccionalidade do que muitos que frequentam a academia. Lóren é um corpo descolonizado, com marcas visíveis e invisíveis que ocupa, mesmo que à força, as ruas da cidade em que vive. As borboletas são muito significativas nessa narrativa. Para a comunidade transgênero, significam a metamorfose. Dentro do ovo, antes mesmo de nascer, uma infinidade de expectativas recai sobre sobre a borboleta, quando nasce não se parece nem um pouco com aquilo que se espera, é como se a lagarta ocupasse um corpo que não é seu de fato. O processo segue, e, enquanto pupa, aquela largarta desajustada se fecha em si mesma, constrói a crisálida, e ali permanece até se metamorfosear por completo. O estágio de se enclausurar não é simples, leva tempo e energia, paciência, tanto da lagarta, quanto do espectador. Se o casulo for violado, aquela lagarta, em processo de transição, nunca atingirá sua fase adulta, não terminará o seu ciclo. Quando findam os dias de espera, daquela casa pequena e apertada emerge uma borboleta. Nessa fase, a borboleta já não
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se alimenta mais de folhas, como a lagarta, é capaz de se alimentar do néctar das flores e passa a participar ativamente da polinização, assim como as abelhas, auxiliando na formação de flores e frutos das árvores.
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POSFÁCIO A vivência das mulheres é marcada, antes mesmo do nascimento, por um processo de generificação dos seus corpos. Essa movimentação social também incide sobre os corpos masculinos (ou masculinizados) mas, na prática, é uma ferramenta de controle sistemático, que relega as mulheres de participar, ativa e igualitariamente, das tomadas de decisões de seus espaços. A construção dos papeis de gênero põe as mulheres em posição de inferioridade, são o que Simone de Beauvoir chamou de o “Outro” da sociedade. Segundo a filósofa francesa, o “Um” só pode existir enquanto houver o “Outro”, ou seja, a estrutura patriarcal, capitalista, heterossexual, branca e cisnormativa existe enquanto oposição direta aos “Outros”. Se, na teoria beuvoriana, a mulher é o “Outro” do homem, inferior e incapaz, onde estão as mulheres negras? Segundo Djamila Ribeiro (2017), desdobrando Grada Kilomba, elas ocupam um “terceiro espaço”, não são nem homens, nem brancas. Dessa forma, as mulheres negras seriam, então o “Outro do Outro”, em uma posição estrutural ainda mais inferior, com menos acesso e sofrendo mais violência do que as mulheres brancas. Quando Kilomba se apropria de uma teoria feminista clássica para desdobrar o sentido de ser mulher negra, compreende-se, então, a interseccionalidade. Essas interseccionalidades — ou “avenidas da diferença” — medem o grau de vulnerabilidade de uma mulher e como ela experiencia gênero na sua trajetória pessoal. Uma transexual negra será muito mais suscetível às violências do que uma mulher branca. E um dos principais instrumentos patriarcais utilizados para reprimir e oprimir as minorias sociológicas é o silêncio. Quem não fala não é ouvido, e a história é contada por quem ocupa os espaços de poder. As vozes abafadas das mulheres ao longo da história marcam a dominação masculina que, aos poucos, vem sendo desmontada por movimentos sociais, como o feminismo e o movimento negro.
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“NO INÍCIO ERA O VERBO, MAS O VERBO ERA
DEUS, E HOMEM. O SILÊNCIO É O COMUM DAS MULHERES. ELE CONVÉM À SUA POSIÇÃO SECUNDÁRIA E SUBORDINADA. ELE CAI BEM EM SEUS ROSTOS, LEVEMENTE SORRIDENTES, NÃO DEFORMADOS PELA IMPERTINÊNCIA DO RISO BARULHENTO E VIRIL. BOCAS FECHADAS, LÁBIOS CERRADOS, PÁLPEBRAS BAIXAS, AS MULHERES SÓ PODEM CHORAR, DEIXAR AS LÁGRIMAS CORREREM COMO A ÁGUA DE UMA INESGOTÁVEL DOR, DA QUAL, SEGUNDO MICHELET, ELAS “DEVEM O SACERDÓCIO.” As mulheres ou os silêncios da história, Michelle Perrot 2005.
O livro-reportagem Narrativas de Incômodo é resultado do desenvolvimento de histórias de mulheres que cansaram de se silenciar e, para abandonar o que Perrot (2005) chama de “oceano de silêncio”, usam sua voz. O principal objetivo com a produção do material é de visibilizar narrativas e auxiliar no processo de redefinição das vozes consideradas oficiais. A área da comunicação possui um papel importante no rearranjo das estruturas. Ao escolher uma fonte para compor uma reportagem automaticamente se tensiona ou não a história. Por isso, compreendo o jornalista como participante ativo da escrita da história de um país, que escolhe quem vai falar.
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IMAGENS As imagens veiculadas neste livro foram produzidas, em sua maioria, por vetorização no Adobe Illustrator a partir de obras ou fotografias já existentes. Os gráficos foram produzidos do zero, e os mapas foram retirados de sites oficiais de Campo Grande, Mato Grosso do Sul: capa | Katrien de Blauwer, Rendez-vous 45, 2014. p. 20 | feita
a partir de uma fotografia tirada em casa. p. 26 | Ludwig Hoffmann, Folding, 2017. pp. 50-51 | feita a partir de uma fotografia tirada em casa. p. 74 | feita a partir do mapa da América Latina. p. 76 | Joaquín Torres-García, El Norte es el Sur, 1935. pp. 86-87 | Mapas do Bairro Jardim São Conrado, disponibilizados pela Solurb, 2017. pp. 89 e 95 | ilustração feita a partir de obras da Lóren Berlim Preta, disponibilizado em outubro, 2020.
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livro-reportagem produzido por Ágatha Rodrigues do Espírito Santo, como Projeto Experimental de Conclusão de Curso do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
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