O grão não morre: A vida de cinco famílias espanholas na economia do café

Page 1


! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !!!!! !!!! !

O!

grão não morre

! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !

!


!


IZABELA SANCHEZ

O

!!!

grão não ! morre

A vida de cinco famílias espanholas na economia do café ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !

!


! Título:!O!grão!não!morre! Copyright!©!2014!Izabela!Sanchez.! Todos!os!direitos!reservados.! ! ! ! ! ! ! ! Autora' Izabela'Sanchez' ! Fotos' Museu'da'Imigração,'arquivo'de'entrevis; tados'e'arquivo'pessoal' ! Orientador' Prof.'Dr.'Marcos'Paulo'da'Silva' ! Projeto'gráfico'e'diagramação' Guilherme'Cavalcante' ! Contato' sanchezizabela@gmail.com' ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !

! !

Projeto!Experimental!do!Curso!de!Comunicação!Social! Jornalismo!2014! Universidade!Federal!de!Mato!Grosso!do!Sul! !

!


! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! Para'Rosalinda'Sanchez,' uma'das'mulheres'mais'fortes'que' já'conheci.' ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !


! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !


Sumário ! Prefácio'!...............................................................................................!09! Apresentação';!A!Terra,!o!grão!e!a!memória!!...................................!13! Prólogo';!1929,!ou!o!prelúdio!do!quase!fim!!......................................!19! Árvore!genealógica!da!família!Sanchez!...............................................!31! ! Parte'1';'Em'terras'Espanholas!........................................................!33! As!mil!e!uma!noites!..............................................................................!35! Vale!de!las!Batuecas:!inferno!e!paraíso!!..............................................!38! Influenza!................................................................................................!45! Donde!hay!una!fuente,!hay!un!pueblo'!...............................................!49! Os!pilões'!...............................................................................................!51! Almería!e!Múrcia,!Múrcia!e!Almería'!..................................................!55! Uvas,!azeitonas!e!neve'!.........................................................................!57! Começo!do!Século!XX!!.........................................................................!59! 1891,!a!jornada!.......................................................................................!63! Altoamar!................................................................................................!71! ! ! Parte'2';'O'nascimento'do'grão!.......................................................!81! Terra!a!vista'!..........................................................................................!83! Catanduva,!final!do!século!XIX!............................................................!87! 1915,!entre!jaú!e!terras!não!nomeadas!.................................................!93! Cravinhos,!1923'!.....................................................................................!95! Val!de!Palmas'!.......................................................................................!100! Gripe!espanhola'!...................................................................................!104! Café!em!flor'!..........................................................................................!109! Zé!Saqueiro'!...........................................................................................!112! Isabel'!.....................................................................................................!117! ! ! Parte'3';'os'frutos'do'grão'!................................................................!!131! Ramon!Sanchez!&!Cia'!..........................................................................!!133! 1909,!Sanchez!de!Carmona'!..................................................................!!136! São!Bento'!..............................................................................................!!139! 1922,!Corumbá!e!Pantano'!....................................................................!!142! São!Paulo:!Greta!Garbo!e!Miss!Espanha'!.............................................!!146! !


Amores!de!juventude!e!conquistas!econômicas'!................................!!150! A!família!Sanchez!antes!da!crise!de!1929'!...........................................!!158! Patrimônio!da!Rainha!dos!Anjos!do!Batalha'!.....................................!!160! ! ! Parte'4';'A'crise'!..................................................................................!!177! 1929,!o!crack!da!Bolsa'!..........................................................................!!179! Avaí!e!Cafelândia:!início!da!década!de!1930'!.......................................!!183! Catanduva:!início!da!década!de!1930'!..................................................!!188! 1935,!Casa!Chic'!.....................................................................................!!194! A!tourada!de!Josefa'!..............................................................................!!197! A!década!de!1930!e!a!família!Sanchez'!.................................................!!200! 1938,!Rosalinda!e!Ramon!Sanchez'!......................................................!!202! Alameda!Franca:!final!da!década!de!1930'!...........................................!!207! A!Gafieira'!..............................................................................................!!210! Zinho!Alfaiate'!.......................................................................................!!214! A!união!da!colônia!espanhola'!.............................................................!!216! Mauro!Cornélio,!o!domador!de!cavalos'!.............................................!!219! ! ! Parte'5';'O'grão'começa'a'morrer!!..................................................!!239! A!crise!encontra!Cafelândia!'!...............................................................!!241! Viagens,!footing!e!casamentos!'!...........................................................!!245! O!fim!da!Ramon!Sanchez!&!Cia!'!.........................................................!!249! “Rato!branco!igual!eu”!!.........................................................................!!251! O!último!grão!da!Santa!Rosália'!..........................................................!!253! Cafelândia'!.............................................................................................!!258! ! ! Epílogo';!O!último!adeus!a!Santa!Rosália'!.........................................!!269! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !


P"R"E"F"Á"C"I"O" !

Da Embriaguez do Cotidiano ! ! ! ! ! ! !

D

esde! que! são! esboçadas! as! primeiras! pegadas! nessa! coma plexa!atividade!social!que!passou!a!ser!chamada!de!Jornaa lismo! (assim! mesmo,! em! maiúsculo),! algumas! quimeras!

não!se!furtam!de!atormentar!as!cabeças!daqueles!que!se!enchem!de! gás!para!trilhar!sua!longa!jornada.!A!grafia!dessa!prosaica!atividade! cotidiana,!todavia,!não!deveria!ter!como!privilégio!a!opção!pelo!sina gular.!Como!regra!(ou!ao!menos!como!fabulação),!a!práxis!jornalísa tica!poderia!sempre!levar!em!seu!sobrenome!a!consonante!“S”,!tala vez! como! forma! de! “marcar! na! carne”! a! complexidade! que! muitas! vezes!mal!aporta!em!sua!epiderme.!O!Jornalismo,!portanto,!deveria! ser!entendido!em!seu!DNA!pela!pluralidade;!não!apenas!pelo!pluraa lismo!de!possibilidades!de!acesso!às!fontes!de!informação,!mas,!soa bretudo,!diversidade!de!suas!potencialidades!narrativas.!! Refletíamos,! porém,! sobre! quimeras.! Certamente,! uma! das! mais!avassaladoras!veleidades!com!as!quais!um!jornalista!irá!se!dea parar!logo!no!início!de!sua!carreira!consiste!na!sedimentada!utopia! em!torno!da!relação!estanque!que!deve!ser!buscada!entre!pesquisaa dor!(afinal,!todo!repórter!em!sua!essência!é!um!pesquisador)!e!seu! ! 9!


objeto!de!trabalho!–!a!estapeada!objetividade!jornalística.!Ontologia camente!falando,!miséria!pouca!seria!se!nós!–!pobres!mortais!jornaa listas! –! colocássemoanos,! a! exemplo! de! soldados! numa! trincheira! cambaleante,!a!encarar!tal!miragem!como!privilégio.! Eis,!então,!que!a!vida!mostra!que!o!Jornalismo!não!constitui! uma!ilha!isolada!no!oceano!das!ciências!sérias,!tampouco!no!univera so! das! mais! prosaicas! práticas! cotidianas.! Também! na! História,! na! Literatura!e!na!Antropologia,!pesquisador!e!objeto!discutem!a!relaa ção.! Não! se! divorciam,! pois! se! pertencem! mutuamente.! Assim,! as! reflexões! trazidas! ao! cenário! das! Ciências! Humanas! e! Sociais! pelas! correntes! de! estudos! historiográficos! que! rompem! com! o! tradicioa nalismo! da! História! positivista,! por! exemplo,! passaram! a! abrir! caa minho!para!a!experimentação!do!método!e!da!narração.!Bem!coma provaria! o! talentoso! historiador! Alain! Corbin,! que,! inspirado! em! seus! colegas! franceses,! resolveria! contar! a! história! da! Idade! Média! pela!ótica!da!vida!cotidiana!de!um!cidadão!comum,!um!simples!faa bricante!de!tamancos!chamado!LouisaFrançois!Pinagot.! Mas!voltemos!ao!empirismo!deste!livro.!Quando!fui!instado! a! dar! meus! pitacos! para! aquela! então! jovemafuturaajornalista! intea ressada!em!pesquisar!e!reconstruir!a!história!de!sua!própria!família,! não! titubeei! em! elucubrar:! “É! bom! que! ela! prepare! muito! bem! sua! barricada,! pois! os! projéteis! do! jornalismo! tradicional! em! algum! momento! a! atingirão”.! Não! era! por! mal,! uma! vez! que! o! questionaa mento! hora! ou! outra! seria! inevitável:! pode! uma! jornalista! escrever! sobre!si!própria!–!mesmo!que!este!“si!própria”!remeta!às!diferentes! gerações!que!a!colocaram!no!“lugar!de!fala”!que!hoje!ocupa?! Sem!preguiça,!o!desafio!foi!assumido,!conscientemente.!Foa ram! muitas! leituras,! fichamentos! e! debates,! mais! leituras,! mais! fia chamentos!e!mais!debates!–!num!modo!surpreendentemente!discia plinado,! é! importante! que! se! registre.! Madrugadas! certamente! foa ram!deixadas!para!trás!em!diálogos!intermináveis!com!Walter!Bena 10!

!


jamin,! com! a! Nova! História! Francesa! e! com! as! diferentes! gerações! do! New! Journalism! norteaamericano.! Quase! no! crepúsculo! do! dea adline,! eis! que! surge! a! boa! surpresa! de! Joan! Didion! e! sua! rejeição! visceral! frente! ao! jornalismo! convencional! ao! escolher! o! modo! de! contar!a!história!de!seus!próprios!dramas!familiares.! Tudo! pareceria! correr! como! deveria,! mas! ainda! faltava! o! principal:! o! texto! –! a! reportagem! –! sobre! os! percalços! da! família! Sanchez! de! Carmona,! objeto! do! livro.! A! reportagem?! Sim,! embora! muito!embasado,!o!trabalho!de!pesquisa!ainda!estava!por!aguardar!a! construção!daquela!narrativa!que!seria!escrita!pelo!espelho!retrovia sor!–!desafio!que!foi!levado!à!tona!sem!se!furtar!do!distanciamento! crítico!necessário!ao!lapso!da!interpretação!histórica.! O!texto!que!se!apresenta!nos!próximos!capítulos!não!constia tui!uma!reprodução!da!História!maiúscula,!pois!abnegados!seríamos! –!a!exemplo!do!memorioso!Irineo!Funes,!personagem!de!Jorge!Luís! Borges!–!se!tal!tarefa!atingíssemos!enquanto!mortais.!Tampouco!se! trata!de!Literatura!–!uma!vez!que!o!alimento!da!alma!dos!personaa gens!que!se!esbarram!nas!páginas!que!se!seguem!não!é!mero!fruto! da!divagação!de!uma!mente!criativa.! O!que!se!apresenta!à!frente!é,!sim,!Jornalismo.!Um!Jornalisa mo! experimental,! é! bem! verdade,! como! não! poderia! deixar! de! ser! um! projeto! de! conclusão! de! curso.! Porém,! um! jornalismo! também! repleto!das!contradições!inerentes!à!complexa!tarefa!de!narrar!o!coa tidiano!em!toda!sua!densidade!–!no!caso,!o!cotidiano!de!uma!famía lia,!a!própria!família!da!autora.!Contraditório!assim!o!é,!pois!talvez! não! existam! personagens! cotidianos! que! dessa! embriaguez! possam! escapar.! Boa!leitura!! ! Marcos!Paulo!da!Silva! Orientador! ! 11!


12!

!


A"P"R"E"S"E"N"T"A"Ç"Ã"O" "

A Terra, o Grão e a Memória ! ! ! ! !

Q

uando! criança,! meu! horizonte! era! vasto.! Não! no! sentido! fia gurado,!pois!desse!modo!lhes!passo!a!impressão!de!ser,!agoa ra,!uma!pessoa!apática.!Meu!horizonte!era!vasto!porque!era!

só!meu.!Não!pensava!o!que!me!levara!até!ali.!Acordava!todos!os!dias! na!Santa!Rosália!e!a!minha!janela!dava!para!um!mundo!que!me!pera tencia.! Nunca! refletira! sobre! o! fato! de! ter! um! universo! extenso! e! meu.!Meu.!Não!pensava!sobre!a!posse.!Via!outras!crianças,!da!famía lia,!amigos!da!escola,!os!via!diferentes.!Eu!acordava!toda!manhã!e!se! quisesse!gritar!muito!alto,!não!atrapalharia!nenhum!vizinho.!Se!quia sesse!ficar!o!dia!inteiro!longe,!meus!pais!não!se!preocupariam,!pois! estava!no!meu!lugar.!Eu!pensava!que!era!sorte.!Por!certo!eu!era!uma! pessoa!muito!boa!cuja!bondade!me!levara!a!ter!esse!lugar!só!meu.! A! terra.! Algo! sagrado! para! a! família! Sanchez,! sem! dúvida.! Uma! espécie! de! ritual! silencioso! era! feito! por! todos! nós! em! cada! caminho!secreto,!perseguido!diariamente!naquele!lugar.!Minha!avó,! Rosalinda!Sanchez,!era,!na!minha!visão!de!criança,!uma!espécie!de! criatura!mágica!e!inatingível!que!controlava!cada!pequeno!detalhe,! cada!situação!da!fazenda.!Para!confirmar!ainda!mais!em!minha!caa beça! essa! posição,! eu! achava! magnífico! o! fato! de! ela! possuir! um! quarto!no!fim!do!corredor,!com!um!sótão!no!alto!e!uma!escada!que! ! 13!


levava!até!lá.!E!lá!de!cima,!bom,!era!a!vista!mais!extensa.!A!vista!do! dono!daquele!mundo.!E!como!uma!máquina,!a!fazenda!organizava! todos!os!nossos!papeis,!todas!as!nossas!funções.!Que!nem!sabíamos! que!eram!funções,!mas!que!singelamente!se!organizavam!como!tal.! A!terra,!que!para!mim!naquela!época!era!uma!força!pulsante!e!autoa alimentadora,!era!uma!existência!presente.!De!que!modo!isso!se!faa zia?! Não! sei! responder.! Não! projetava! passado! ou! futuro! ali,! não! imaginava.! Era! apenas! um! presente! que! não! tinha! promessas! ou! grandes!projetos,!mas!era!uma!ordem!estabelecida!que!eu!não!devea ria!atrapalhar.! A!terra!que!eu!percorria!de!ponta!a!ponta.!A!terra!que!guara dava!lugares!estranhos.!Velhos,!um!tanto!abandonados,!outros!quaa se!caídos.!Se!eu!fechar!os!olhos!ainda!consigo!me!lembrar!da!magia! de!começar!um!dia!com!lugares!secretos!pra!descobrir.!Muitas!vezes! meu! irmão! me! acompanhava,! mas! eu! tinha! que! seguir! suas! regras,! suas! brincadeiras,! e! outras! vezes,! eram! coisas! de! “menino”! que! ele! faria!com!o!meu!pai!ou!meu!tio!e!que!eu!não!poderia!participar.!Por! isso! minhas! descobertas! foram! mais! solitárias.! Lembro! da! estrada! que!levava!a!casa!dos!meus!tios.!Do!registro!e!da!bomba!de!água!que! todo!dia!alguém!deveria!lembrarase!de!ligar!e!desligar.!“Alguém!desa ligou!a!bomba”?!“Ricardo!!Vai!lá!”!“A!Mara!já!foi”.!E!perto!do!regisa tro!umas!construções!que!lembravam!casas!abandonadas,!de!madeia ra.! Nunca! entrei! lá.! Diziam! que! era! cheio! de! cobras.! Eu! achava! mesmo!é!que!deveriam!ter!fantasmas.!E!o!antigo!paiol?!Outra!consa trução! grande! de! madeira,! cheia! de! móveis! e! coisas! abandonadas.! Para!mim,!um!lugar!caótico!e!atraente.!Sempre!quis!entrar.!E,!é!claa ro,!nunca!entrei.!O!ninho!de!todos!os!bichos!que!qualquer!pessoa!é! ensinada!a!temer.!E!de!fato!um!dia,!olhandoao!de!fora!como!sempre! fazia,! encontrei! três! cascavéis! dentro! de! um! cesto,! me! encarando.! Ao!lado!do!paiol,!a!construção!mais!impressionante!era!o!antigo!tera reiro,! o! pátio.! Uma! superfície! de! piso! de! barro! vermelho,! cheia! de! 14!

!


objetos!estranhos!e!antigos,!onde!provavelmente!eram!guardados!os! sacos!de!café.!Do!alto!do!terreiro!olhavaase!a!estradinha!que!seguia! para!a!casa!dos!meus!tios.! A! terra! era! cheia! de! natureza.! Cheia! de! natureza! que! era! mãe.! Mãe! que! acolhia,! mãe! que! embalava.! Que! incentivava! e! que! chamava.! Terra! de! aventura.! Dois! pequenos! exploradores,! com! água,! comida! e! alguns! utensílios! na! mochila.! E! se! ficassem! perdia dos?!Tinham!que!planejar!muito!bem.!E!lá!iam!os!dois.!Percorriam! algumas!matas,!nunca!por!muito!tempo,!e!que!na!minha!percepção! pareciam!temporadas!inteiras!que!passávamos!descobrindo!a!natua reza!! Sempre! incentivados! por! todos! na! família.! Admiravam! nossa! conexão!com!a!natureza.!Conexão!com!a!natureza.!Relação!mística! trazida!em!boa!parte,!pelo!tio!Flávio.!Tio!Flávio,!irmão!de!meu!pai.! O!andarilho!beat,!iluminado!pela!lucidez!alucinada!da!vida,!que!vez! ou!outra!nos!visitava!na!Fazenda.!Sua!casa!era!o!mundo.!Onde!ana dara!por!muitos!lugares.!Onde!lera!tantas!coisas.!Onde!experimena tara! as! sensações! mais! estranhas.! Onde! ganhara! um! colar! da! tribo! Hopi,! do! Arizona.! De! onde! trouxera! histórias! mágicas! e! os! contos! sinistros!do!“Cão!dos!Baskerville”.!Tio!Flávio,!que!ensinara!que!dea veríamos!pedir!permissão!para!arrancar!uma!folha!que!fosse!de!uma! árvore.!Tio!Flávio!que!nos!ensinou!a!recolher!qualquer!lixo!que!ena contrássemos!nos!caminhos.!Tio!Flávio!que!nos!ensinou!que!a!Terra! é! natureza,! e! que! a! natureza! se! deve! amar.! Tio! Flávio! que! nos! deu! nomes! indígenas.! Nomes! que! nas! fogueiras! nas! festas! juninas,! nos! divertíamos!inventando!histórias.!Tio!Flávio!que!nos!ensinou!tanta! coisa,! e! que! vai! ficar! para! outro! livro,! para! outra! história.! Era! um! curso!de!um!riacho,!uma!árvore!de!casca!vermelha,!um!buraco!ema baixo!de!um!toco!e!de!teias!de!aranha!que!virara!a!casa!de!uma!brua xa!da!floresta.!Nossas!descobertas!da!natureza!eram!compartilhadas! com!o!entusiasmo!e!a!revolta:!“Vocês!nunca!viram!isso!lá?!”.! ! 15!


Os! adultos! viam! a! Terra! de! maneira! diferente.! A! Terra! era! sustento,! história,! trabalho,! a! terra! era! tudo! que! sempre! tiveram.! Eram!as!diversas!plantações,!as!criações!de!bichos,!o!gado!que!chea gava!dos!leilões.!Para!mim,!era!aquele!caminho!da!fazenda!que!levaa va! a! casa! da! Dona! Lala! e! do! Seu! Ângelo,! em! Tibiriçá.! Um! casal! de! que!trabalhara!e!morara!na!Santa!Rosália!muito,!muito!antes!de!eu! existir.!Antes!mesmo!que!a!Santa!Rosália!fosse!Santa!Rosália.!Quana do!ainda!era!Fazenda!Pantano.!Casal!por!quem!minha!avó!nutre!um! carinho!especial.!Casal!que!deixou!memórias!doces!em!mim.!Dona! Lala! costumava! aparecer! pela! fazenda,! sorria! daquele! jeito! que! era! só! dela.! Davaame! pirulitos.! Dona! Lala! era! uma! senhora! fada! que! aparecia! de! vez! em! quando,! vindo! pelo! caminho! mágico.! Caminho! mágico!que!levava!para!a!“cidade”!sem!precisar!do!asfalto.!Caminho! que!tinha!uma!árvore!enorme!e!linda,!cheia!de!raízes!grossas!espaa lhadas! pelo! chão.! Caminho! que! levava! para! a! casa! daquelas! doces! pessoas.! Um! casal! que! viu! muito! do! que! eu! não! vi! naquela! Terra,! que!acompanhou!sua!transformação.!Os!dois!moravam!em!uma!pea quena!casa!de!madeira,!com!um!fogão!a!lenha!que!exalava!sempre! um!cheiro!bom.!“Você!deve!aceitar!o!que!te!oferecem!sempre,!bem”,! era! o! que! minha! avó! orientava! antes! de! irmos! visitáalos.! Era! um! programa!que!eu!adorava.!Caminho!que!levava!aos!diversos!bichos! que!havia!no!quintal!do!Seu!Ângelo,!especialmente!os!coelhos,!meus! preferidos.! Era! o! caminho! mágico.! Era! o! caminho! do! grão.! Percora rendo!aquela!estrada!e!acima!dela,!em!uma!parte!que!ninguém!visia tava!mais.!Ali!estava!o!grão.! O! grão.! Alguns! poucos! pés! de! café! que! sobreviveram! ao! tempo.!Ali,!abandonados.!Não!dava!importância.!Não!entendia!pora que!outros!davam.!Não!compreendia!porque!aqueles!míseros!pés!de! café! abandonados! em! um! pasto! que! ninguém! visitava,! guardavam! essa!admiração.!Os!pés!de!café!no!quintal!de!Dona!Lala!e!Seu!Ângea lo,!que!minha!avó!elogiava!e!passava!oras!a!fio!conversando!sobre!o! 16!

!


cheiro! e! o! grão,! o! que! eu! não! entendia! e! muito! menos! imaginava! que!um!dia!estaria!aqui,!se!transformando!em!palavras.! Uma! criança! em! um! universo! de! imaginação,! acima! e! em! volta!de!todas!as!coisas,!e!que!não!imaginava!o!significado!que!teria am,! depois,! todas! essas! coisas.! Não! sabia! ser! a! Terra,! um! local! que! carregava!uma!história!que!organizou!a!vida!de!tantas!pessoas.!Não! sabia!que!a!Terra!era!uma!luta!para!manter!um!chão!que!já!havia!se! tornado! um! membro! essencial! da! família.! A! luta! para! mantêala.! A! luta! para! compreender! de! que! modo! ela! funcionava.! Um! jeito! que! não!descobrimos.!Um!jeito!que!não!era!o!jeito!que!conheciam.!Um! jeito!que!não!era!o!passado!que!hoje!é!uma!narrativa.!O!presente!sóa lido!desmanchouase!no!ar,!e!a!Terra!se!foi.!Não!sabia!ser!o!grão,!esse! objeto!que!não!era!ouro,!e!que!mesmo!assim!causara!conflitos!e!osa cilações! nas! vidas! de! inúmeras! pessoas! como! se! fosse.! Pessoas! que! não! tenho! a! capacidade! de! projetar,! em! totalidade,! no! centro! do! grão.!O!grão!que!não!é!uno,!que!é!múltipla!espécie,!e!que!causou!o! gozo!e!a!angústia!para!as!mesmas!pessoas.!Como!isso!é!possível?!O! grão,!que!antes!de!ser!semente!é!também!um!mito,!é!também!uma! entidade!que!perdura!e!habita!cada!pessoa!que!se!organizou!em!vola ta!disso!que!chamamos!café.!O!grão!é!uma!pulsante!e!imortal!prea sença.!O!grão!que!também!é!parte!dessa!Deusa!que!é!a!solução!e!o! problema! de! todo! indivíduo:! a! Memória.! A! memória! é! a! Terra,! o! grão! e! toda! vivência! silenciosa! e! marcante,! registrada! ou! não,! e! sempre!significante.!A!memória!é!alimento.!A!memória!é!vida!para! muitas!pessoas!que!hoje!não!tem!um!presente!que!fale!tanto!aos!oua vidos!como!aquilo!que!já!se!foi.!Que!movimente!e!impulsione,!como! foi! o! passado.! A! memória! é! uma! sombra! constante,! que! certifica! e! legitima!a!existência,!afirmando!que!o!que!se!lembra!não!morreu.!A! memória!ilumina!todos!os!cantos!escuros!que!não!se!alcança!de!oua tro!jeito.!A!memória!é!a!Terra,!o!grão!e!esse!lugar!no!espaço!e!tempo! que!me!diz!hoje!o!que!é!a!memória.!! ! 17!


Minha! janela! não! dá! para! um! horizonte! vasto.! Se! eu! gritar! muito!alto,!meus!vizinhos!chamarão!a!polícia.!Se!eu!me!perder!sem! rumo,! mesmo! longe,! meus! pais! se! preocuparão.! A! Terra! se! foi,! o! grão!se!foi!e!ainda!assim!estão!vivos!porque!são!memórias.!O!grão!é! pequeno! muitas! vezes,! e! muitas! vezes! passa! despercebido.! O! grão! são! histórias! contadas! e! recontadas! e! que! se! cravam! na! memória! a! ponto! de! pedirem! uma! saída.! Essas! histórias! devem! ser! contadas,! pois!o!grão!não!morre.!! ! Izabela!Sanchez! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 18!

!


P"R"Ó"L"O"G"O"

1929, ou o prelúdio do quase fim ! ! ! ! ' “Os productos brasileiros na Hespanha Interessantes comunicações recebidas pela Bolsa de Mercadorias do Consul Geral do Brasil A firma desta praça, Ramon Sanchez & Cia, abriu em fins do anno que ora findou, uma sua filial na cidade de Barcelona, grande centro comercial e industrial da Hespanha. É de todo interessante dar a conhecer a nossos leitores as interessantes informações que aquela firma e o cônsul geral do Brasil, naquela praça acabam de prestar a nossa Bolsa de Mercadorias, sobre a colocação, alli, dos productos brasileiros. Eis os termos da carta dos srs Ramón Sanchez & Cia: Barcelona, 12 de setembro de 1927- A bolsa de mercadorias de São Paulo – S. Paulo – “Como associados dessa digna instituição a qual nos honramos pertencer, sabemos do fecundo trabalho que vem realizando essa digna diretoria em prol do desenvolvimento e expansão do comércio ! 19!


brasileiro no exterior, motivo pelo qual, julgamos, lhe será grato saber, que, por estes poucos dias inaugurar-se-á na Via Layetana 13, pral, uma filial dos que esta subscrevem, de onde partirão para o resto da Hespanha agentes de propaganda e venda de produtos brasileiros, e principalmente dos cafés e algodão. A resolução de estabelecermos uma nova filial neste mercado não foi senão conseqüência do amor e gratidão pelo Brasil, criado durante os 36 anos de residência, além dos laços que nos unem à família brasileira, de quem recebemos finezes inesquecíveis, e a formação de um espírito dentro dos princípios da “ordem e progresso”. Essa gratidão, unida ao desejo de dilatar nossos negócios, nos levou a estudar detidamente, no próprio terreno, a questão de intercâmbio hispano-brasileiro; é nesse estudo que vimos com pezar, pela falta de bem se conhecerem, estavam quase divorciados. É de lamentar que o Brasil sendo produtor e estando em condições de exportar café, algodão, milho, cacau, borracha e madeiras, e o comércio hespanhol precisando desses artigos, se tenha visto impossibilitado este de adquiri-los, na sua origem, até que faz pouco tempo, pelas tarifas alfandegárias tão elevadas, que em hora fizera desaparecer o atual governo. O abandono da propaganda por uma parte, e as elevadas tarifas alfandegárias por outra, fizeram com que o café, único produto brasileiro que já dominou este mercado, 20!

!


fosse substituído pelo do Centro America que vendeu o ano próximo passado perto de 500.000 sacas e Africa e India 100.000 enquanto o Brasil com muito custo colocou 35.000. Estamos convencidos de encontrar bastantes dificuldades até conseguir nosso intento, porém também sabemos que não há vitória sem sacrifício, pelo que estamos animados e confiamos no êxito, baseando-nos não só na nossa organização, se não também nos conhecimentos adquiridos como produtores, industriais e comerciantes, durante os longos anos aqui estabelecidos. Os trabalhos de propaganda já foram iniciados em todas as principais cidades hespanholas, nas quais fizemos várias demonstrações práticas de torração e bebida de café, que nos têm proporcionado a realização de vários negócios, além do digníssimo cônsul geral do Brasil. Esse Sr, assim como o novo cônsul adjunto dr. Moreira de Barros, sempre atentos a todo trabalho que pode trazer benefícios ao Brasil, muito se tem esforçado para encaminhar nossos negócios, dando-nos informações e criteriosos conselhos, além de apoiar paternalmente a nossa iniciativa. Como deverão compreender, torna-se necessário dar a conhecer o mais possível, neste mercado, tudo quanto se relacione com a especialidade produtora e comercial do Brasil e particularmente do Estado de S. Paulo, para o que, rogamos se dignem a enviar-nos regularmente, estatutos, ! 21!


dados estatísticos, e o mais que julguem nos poder ser útil para a boa propaganda. Estamos trabalhando de acordo com a Camara do Comércio, Industria e Navegação Hispano Brasileira, junto ao “Centro algodonero de Barcelona”, para ver se se pode unir aos cerealistas e negociantes de colônias com aquela instituição, afim de poder-se cotizar e vender diariamente além de algodão, café e cereais. Esperando saberão relevar nossa liberdade, nos é grato subscrevermos – attos. Cros. Obs – (a.) Ramon Sanchez & Cia. Referindo-se aos trabalhos de propaganda daquela firma, assim se dirige à Bolsa o digno cônsul geral do Brasil naquele centro: Exmo. Sr. Dr. J. Moraes Barros: Barcelona, 14 de dezembro de 1927 – Sr. João Telles da Silva Lobo – ad. Presidente da Bolsa de Mercadorias de São Paulo – “No desempenho de minhas funções consulares, em Barcelona, tenho sempre encontrado entraves por parte de firmas brasileiras no tocante a informações sobre preços, qualidades, espécies, dos gêneros que podem ser, com facilidade, introduzidos no mercado da Hespanha”. Muitas mercadorias deixam de ser adquiridas no Brasil ora por falta de propaganda, ora por desdém dos productores nacionais que não auxiliam a ação dos cônsules enviando-lhes dados que podem servir de guia aos compradores estrangeiros. 22!

!


Assim, foi pra mim uma grande surpresa o estabelecimento, nesta praça, da sucursal da firma brasileira Ramon Sanchez & Cia. Constituiu surpresa porque essa firma, longe de pleitear, como muitas outras, favores e subvenções do governo, está trabalhando honesta e criteriosamente contribuindo de modo eficaz para a maior divulgação dos nossos productos, principalmente do café, em toda a península. Este consulado geral que muito tem trabalhado para tornar mais intenso o intercambio commercial hispanobrasileiro, encontrou na firma Ramon Sanchez & Cia um auxiliar prestimoso e indispensável mercado destarte os meus agradecimentos e louvores. Levo esse fato ao seu conhecimento para que v. s. aconselhe as demais firmas dessa praça a imitarem o procedimento da que acima me refiro porque, assim, mais ampla e proveitosa será minha ação e mais estreitas as relações comerciais entre Hespanha e o Brasil. Aproveito o ensejo para renovar a v. s. os protestos da minha estima e consideração – (ass). Dr. J. Moraes Barros – Consul geral, hespanhol. (Diário Nacional, 6 de janeiro de 1928)

!23!


B

arcelona,!Madrid,!Sevilla.!“A!Espanha!é!realmente!um!territóa rio!continental”,!pensava!Benito,!ao!andar!pelas!ruas!do!país! naquele!ano.!Benito!era!o!homem,!e!o!centro.!Era!o!pai!amoa

roso.!O!avô!querido!de!Rosalinda!Sanchez.!Era!a!criança!sem!pai.!A! criança! com! uma! mãe! que! se! fez! dois! para! ele! e! os! cinco! irmãos.! Que!deixou!a!Espanha!e!os!trouxe!para!o!que!viria!a!ser!tudo!em!sua as! vidas.! A! criança! de! Cepeda,! um! pequeno! povoado! da! Espanha,! que! pisou! no! chão! brasileiro! no! final! do! século! XIX,! e! fez! dele! seu! intento.!Fez!dele!seu!sustento.!Fez!dele!seu!império.!Benito,!que!inia ciara! o! que! hoje! resta! do! grande! grão! cafeeiro! da! família! Sanchez.! Benito!é!o!criador!da!conexão!essencial!que!essa!família!tem!com!a! terra.! Benito! foi! a! terra.! Benito,! hoje! é! uma! presença! imaterial,! o! ponto!cardeal!para!duas!de!suas!“filhas”.!Sua!Filha!Rosalia!e!sua!neta! Rosalinda.! ! !! ! Em! Lins,! pergunto! para! Rosalia:! “E! o! seu! pai! vovozinha! (termo!carinhoso!ao!qual!sempre!nos!referimos!a!ela,!minha!bisavó,! mãe!de!Rosalinda!Sanchez),!o!que!a!senhora!lembraase!dele?”!“Não! tenho! mais! ninguém...! Meu! pai! foi! um! homem! maravilhoso.! Você! ficou!sabendo!já,!né?!São!Paulo,!aquela...!Não!é!indústria,!é...!Uma...! Seleção!de!São!Paulo...!Ele!estava!lá.!Todo!mudo!admirava!meu!pai.! Ele!dava!trabalhos!pras!pessoas,!era!uma!coisa!linda!meu!pai!lá,!toa do!mundo!admirava!ele,!que!homem!maravilhoso!foi!meu!pai.!Hein,! Rosalinda?! Papai! foi! um! homem! maravilhoso...”.! “Foi...! Eu! não! coa nheci! nenhum! como! ele”.! A! memória! de! Rosalia! se! esvai.! É! como! uma!folha!de!seda.!Amarelada!com!o!tempo,!deteriorando,!quase!se! fragmentando.! Mas,! ainda! assim,! com! as! mesmas! palavras! escritas.! Talvez!essa!seja!a!velhice!a!nos!ensinar.!As!mãos!fininhas,!um!pouco! manchadas!por!quedas!diversas.!! 24!

!


O! tempo! é! um! vilão,! e! o! corpo! já! não! suporta! a! sede! de! lia berdade.!Naquele!dia,!Rosalia!estava!aflita!por!oferecer!um!pouco!da! grandiosa!habilidade!que!um!dia!fora!a!sua!especialidade.!A!cerimôa nia.!O!conforto!para!quem!é!recebido!em!sua!presença.!As!mãos!fia ninhas,!tentando!oferecer!cerimônia.!A!filha,!os!netos!e!a!bisneta!ali.! Sua!materialidade!se!esvai!enquanto!tenta!oferecer!um!pote!pequea no!com!algumas!bolachinhas!de!nata.!Quase!tudo!já!se!foi.!Os!anos! passam! e! cada! ano! leva! um! pouco! daquele! velho! corpo.! E! já! se! foi! um!século.!O!tempo!tem!seu!preço.!Cansada,!arfava!uma!longa!gola fada!de!ar.!Talvez!seja!essa!a!velhice!a!nos!ensinar.!A!vida!é!urgente.! Rosalia!senta!todos!os!dias!na!velha!poltrona!localizada!em!um!cana to,! o! canto! que! na! verdade! é! o! centro! da! sala.! O! trono! da! “vovozia nha”.!Os!olhos!muito!azuis!estampados!num!rostinho!transparente.! Afoitos,!observam!o!pedaço!do!céu!que!escapa!pela!janela.!Vê!algua mas!árvores.!Um!céu!azul!rasgado.!“Este!é!o!meu!momento.!A!maa nhã!é!maravilhosa”.!O!pó!dos!dias.!O!que!restou!de!toda!a!liberdade.! No!portaaretrato,!uma!moça!linda,!com!lábios!e!olhos!muito!delinea ados!destacavaase!dos!outros.!Onde!estaria!a!moça,!agora?!! Na! estrada,! voltando! de! Lins! para! Cafelândia,! naquele! pea queno!trecho!verde!musgo,!aquela!paisagem!cansada!da!velha!noroa este,! eu! pensava! sobre! a! brevidade! da! vida! e! ouvia! Caetano! “...por! mais! distante,! o! errante,! navegante...! quem! jamais! te! esqueceria?”.! De! fato,! aquela! família! de! Benito! Sanchez! não! esquecia,! por! mais! distante,! a! sua! Terra.! De! volta! à! cidadezinha! esquecida! no! estado! mais!lembrado!do!Brasil,!os!prédios!ruindo,!restos!do!antigo!impéa rio!do!café.!A!casa!imponente!(parte!da!antiga!fazenda!Leopoldina,! comprada! por! Benito,! de! Souza! Leão,! que! ocupou! as! terras! do! que! hoje!é!a!cidade!de!Tupã!no!interior!de!São!Paulo),!parecia!contema plar! todo! quarteirão! que! um! dia! já! fizera! parte! da! família.! A! casa! imponente.! Grande,! vazia! e! fria.! Perto! de! cada! móvel,! de! cada! côa modo,! em! todos! os! cantos! parecem! cruzar! pessoas! atarefadas! com! !25!


eventos!e!cerimônias!de!família!em!uma!época!que!já!se!foi.!“Dueña! Rosalia”.! A! mãe! de! Rosalia,! Isabel! Carmona,! costumava! censuráala.! A!Dueña!Rosalia!hoje!é!um!fio!de!vida.!A!prova!dos!cem!anos.!A!tesa temunha!da!família.!Uma!das!muitas!sombras!que!ocupam!a!velha! casa.! ! !! ! Mas! em! 1929,! conforme! percorria! as! ruas,! Benito! refletia:! “Há!algo!nesta!terra!que!faz!com!que!eu!não!consiga!me!desconeca tar”.!Seriam!os!negócios,!por!certo,!que!iam!muito!bem!nos!últimos! anos,! deveria! admitir.! Mas! não! poderia! ser! isto! somente.! O! que! é! um!homem!em!sua!terra,!ninguém!o!saberia!dizer.!Este!país,!para!o! café,!ainda!era!um!entrave.!Os!Estados!Unidos!ainda!representavam! o!principal!comprador.!Coisa!que!o!preocupara,!pois!rumores!andaa ram! se! espalhando,! rumores! nada! bons.! Mas! a! Espanha! era! isto.! Sim,!a!Espanha!era!isto.!Como!explicar?!Só!a!família!o!sabia.!A!famía lia! era! tudo.! O! que! era! sem! Isabel,! sem! os! filhos,! sem! os! irmãos?! Sem!a!mãe,!que!fora!quem!o!levara!até!ali?!Nada!seria!sem!eles.!Mas,! sim,!o!café.!Mínima!entrada!do!café!brasileiro!naquelas!terras,!uma! maçada.!As!sacas!do!bom!café!brasileiro,!ninguém!duvidava!da!quaa lidade,!ainda!eram!mínimas!perto!de!outros!países,!perto!de!outras! firmas! que! faziam! um! trabalho! coletivo! melhor! que! as! brasileiras.! Ainda!assim,!tentara.!Não!diria!que!fora!muito!encorajado!para!abrir! a!nova!filial!em!Barcelona.!Os!consulados!pouco!ajudavam,!também.! E!não!imploraria.!Não!chegara!até!ali!implorando,!e!agora!que!não! seria.!A!primeira!venda,!na!beira!da!estrada,!em!Catanduva,!interior! de!São!Paulo.!Quem!poderia!prever!que!tudo!caminharia!tão!bem?! Tinha! Miguel,! era! verdade.! Miguel,! o! sobrinho! mais! velho! de! Raa món,!seu!irmão!mais!velho.!Geriam!os!negócios!juntos,!eram!sócios.! Tropeços! e! mais! tropeços,! mas! era! seu! sobrinho,! afinal,! sangue! do! 26!

!


seu!sangue,!e!não!sabia!dizer!não.!Talvez!este!fosse!o!problema,!não! sabia! dizer! não.! Mas! de! qualquer! forma! ali! estava.! A! sexta! filial! da! Ramon!Sanchez!&!Cia,!aberta!no!último!ano.!Ainda!não!tinha!muita! certeza!do!que!seria,!mas!o!negócio!já!estava!feito!e!ali!era!sua!terra! mãe.!E!sempre!aquela!emoção!de!ensinar!os!novos!processos!aos!esa panhóis,!da!torrefação!até!o!costume!da!bebida.!Era!algo!que!aprena dera!por!si!em!uma!terra!estranha.!Algo!que!se!tornara!seu.!E!o!falaa tório!na!bolsa,!no!banco!e!entre!os!colegas!não!era!má!coisa.!Andara! recebendo! elogios! pelos! corredores! da! Bolsa! de! Mercadorias,! e! os! jornais!haviam!dado!a!atenção!esperada!à!abertura!da!nova!filial.!O! cônsul!brasileiro!finalmente!tinha!posto!seus!olhos!no!negócio.!Tea ria!que!ser!um!trabalho!integrado,!sem!dúvida,!pressionando!o!cona sulado!espanhol,!os!outros!imigrantes!e!o!Instituto!do!café.!Bem,!esa te!de!fato!representaria!um!problema,!sem!dúvidas.!Mas!eram!bons! tempos,!pensava!ele.!As!fazendas!a!todo!vapor,!especialmente!Santa! Rosália!e!Santa!Maria.!Apesar!do!pulso!firme,!da!racionalidade!com! a!produção,!secretamente!ele!tinha!suas!preferências.!São!Bento,!em! Catanduva,!e!Santa!Maria,!em!Rio!Preto.! Boas! roupas,! um! ar! altivo,! realmente! ninguém! que! o! visse! poderia!dizer!que!era!um!imigrante.!Imigrante.!Uma!palavra!que!soa ava! estranha! para! muitas! pessoas.! Voltar! à! Espanha! era! estranho! também,!mesmo!depois!de!todas!as!incansáveis!viagens!de!negócios.! Imigrante.! Um! homem! sem! chão! fixo,! um! homem! que! deixa! para! trás!sua!terra,!seus!amigos,!seu!horizonte.!Muitos!podiam!pensar!asa sim,!não!ele.!Um!sobrevivente.!Ele!chamaria!de!sobrevivente.!Como! o!era!sua!mãe.!Uma!lutadora,!sem!dúvidas.!“E!lembrar!dos!tempos! de!lavoura”...!“Mas!um!homem!sempre!deve!lembrar!do!que!é!o!traa balho,! do! que! é! trabalhar! duro”,! ele! dizia.! E! também! de! suas! oria gens.! Quando! pensava! nessas! coisas! ainda! lhe! vinha! à! memória! o! fogão!à!lenha!na!pequena!casinha!da!colônia.!Tinha!dez!anos,!mas! não!soube!muito!bem!o!que!era!ser!criança.!O!fogo,!algo!perigoso,! !27!


às!vezes!se!queimava.!E!havia!o!peso!da!enxada!e!os!caldeirões!com! a!comida!da!mãe!e!dos!irmãos.!Parecia!outra!vida,!e!de!certo!modo!o! era.!As!ruas!estavam!fervilhando!em!1929.!Com!a!exposição!internaa cional! de! Barcelona! e! a! exposição! iberoaamericana!de!Sevilla,!a!Esa panha!apresentava!ao!mundo!novos!tempos.!E!que!tempos.!Turistas! e!mais!turistas!em!todas!as!cidades!que!visitara!a!negócios!naquele! ano,!principalmente!aquelas!duas.!Barcelona!fizera!de!fato!um!ema preendimento! de! integração! com! a! Europa.! Grandes! descobertas.! Artefatos! novos.! Civilização! em! pleno! vapor,! que! tempos!! Com! Sea villa!sentiraase!mais!conectado,!de!certa!forma.!A!exposição!incluía! os!principais!países!que!foram!colônias!espanholas,!mas!participava! a!América!como!um!todo.!As!exposições!de!café,!que!colosso!!Sentia ra!um!orgulho!de!fazer!parte!daquilo!que!era,!de!fato,!um!império.! Era!só!o!que!ouvira!falar!por!toda!sua!vida.!Café,!o!grão.! O! café,! no! entanto,! era! só! o! motor.! O! comércio! era! um! grande!rio!para!Benito,!e!ele!navegava!muito!bem.!Sempre!dizia!aos! filhos:!“Não!se!enganem!com!fazendas,!ganhei!dinheiro!foi!com!coa mércio”.!Todos!aqueles!artigos!que!levava!todos!os!anos,!não!só!para! o! armazém,! mas! para! São! Paulo! também.! As! uvas,! os! vinhos.! Até! chapéus! femininos! importava.! Ramon! Sanchez! &! Cia.! Mas! ele! é! quem!fazia!as!viagens,!e!por!isso!reparava!sempre!nessas!mudanças! nas!ruas!da!Espanha.!Que!mulheres!elegantes!às!ruas.!E!ficara!feliz! por!pensar!que!suas!filhas!e!sua!mulher!eram!tão!elegantes!quanto! qualquer!moça!fina!de!Barcelona!ou!Madrid.!Rosalia!era!uma!beleza,! como!a!mãe.!Faria!um!bom!casamento..!Não!havia!lugar!na!rua!em! que! não! era! admirada.! Mas! Encarna! era! sua! primeira! filha.! Muito! bonita,!também,!mas!tinha!algo!a!mais.!As!duas!aproveitavam!muito! a!vida!que!ele!lhes!proporcionava!em!São!Paulo.!Teatros,!bailes,!aua las!de!piano.!Encarna!era!interessada!em!tudo.!Lia!livros!como!nina guém,!os!devorava.!Nas!viagens,!sempre!se!demorava!em!uma!livraa ria!ou!outra.!E!assuntos!tão!diversos.!Gostava!das!fazendas!também,! 28!

!


dos!assuntos!de!negócios.!Tinha!espírito.!Sempre!irreverente!nas!foa tografias.!E!muito!talentosa.!As!pinturas,!as!plantas!das!casas,!uma! artista.!Por!isso!a!trouxera!neste!ano,!junto!com!o!filho!mais!velho,! Martin.!Escolheriam!uma!residência!fixa!na!Espanha.!Eram!trinta!e! seis!anos!no!Brasil.!Um!belo!país,!sem!dúvida.!E!era!a!terra!que!o!fia zera! rico,! mas! havia! a! família! na! Espanha,! que! recebera! a! notícia! com!tanta!alegria.!Iria!ser!bom!para!Isabel!e!os!filhos.!E!de!qualquer! modo,! passava! sempre! um! longo! tempo! na! Espanha,! fazendo! as! compras,! talvez! não! mudaria! tanta! coisa.! “E! lembrar! daqueles! cala deirões! que! levava!”.! Outra! vida.! Olhava! os! filhos,! pensava! em! Isaa bel,!e!não!poderia!ser!mais!feliz.!! De!repente!ouvira!os!risos!de!Encarna,!provavelmente!algua ma! brincadeira! de! Martin,! o! navio! não! demoraria! a! sair.! Estavam! voltando! ao! Brasil.! As! pessoas! começaram! a! subir! as! escadas! e! de! repente,!ali,!trinta!e!seis!anos!depois,!Benito!era!assaltado!com!uma! memória!distante.!Tinha!cinco!anos.!Uma!enorme!máquina!pontua da,!e!o!mar!ali.!Grande!demais.!Vasto!demais.!Desconhecido!demais.! Sua! mãe! não! temia,! o! pegara! pelas! mãos! e! o! levara! navio! adentro,! junto!com!seus!irmãos.!Menos!o!bebê.!Luciano!era!seu!nome.!Ficara! com!a!tia,!a!mãe!o!buscou!um!tempo!depois.!Pareciaalhe!estranho,! os!tios!ali,!no!cais,!acenando,!e!o!bebê!ficando!para!trás.!Sua!mãe!era! forte,!hoje!conseguia!entender.!Mas!nunca!a!vira!chorar!tanto!como! naquele!dia.!Era!apenas!um!bebê!e!ela!o!estava!deixando!para!trás,! rumo! ao! desconhecido.! Quem! poderia! afirmar! que! sobreviveriam?! Naquela!época!tudo!era!incerteza.!“Papai!se!fora!de!gripe,!afinal”.!! Talvez! tivesse! sido! tudo! diferente.! Mas! não! foi.! O! apito! do! navio!o!despertou!das!lembranças.!Era!hora!de!partir.!Para!o!Brasil,! como! já! estava! tão! acostumado.! São! Paulo,! terra! de! grandes! hoa mens.!À!terra.!Fértil!e!vasta.!Ao!grão,!o!grão!de!ouro.!Chamou!os!fia lhos,!já!era!tempo!de!embarcarem.! ! !29!


! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 30!

!


Árvore Genealógica da família Sanchez ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !

! 31!


32!

!


P A R T E

1

Em terras espanholas ! ! ! ! ! ! ' ' ' ' ' ' ' ' ' ! ! ! ! 33!


! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 34!

!


As mil e uma noites ! ! ! !

E

u! estava! sentada! no! sofá! da! sala.! Era! uma! noite! fria,! inverno! na! Serra.! Zona! rural! de! Piedade,! interior! de! São! Paulo.! Não! aquele,! do! oeste! paulista,! onde! se! encontram! enterradas,! dea

baixo! das! terras! daqueles! cafezais,! nossas! raízes.! E! de! tanto! outros! mais.! Não.! Aquela! era! outra! terra,! sempre! seria.! Estranha.! Nova.! Fria.!Naquela!casinha!de!tijolos!à!vista,!muito!menor!perto!de!outras! tantas!que!habitaram!essas!pessoas!hoje!trazidas!até!aqui,!buscávaa mos! nos! aquecer.! Se! não! fosse! todo! o! aparato! trazido! do! passado,! não!haveria!reconhecimento.!Móveis!da!antiga!Serraria!da!Santa!Roa sália,!muitos!deles!com!destino!certo.!Um!plano!que!envolve!livrara se!do!antigo!que!não!encontra!mais!espaço.!O!robusto!móvel!coloa nial,! de! verniz! escuro,! ainda! espreita! ao! canto,! pendurado! nele,! o! velho!adereço!usado!pelo!vaqueiro!para!tocar!a!boiada.!Foi!sempre! um!móvel!de!segredos!guardados.!A!mesa!de!centro,!com!as!laterais! desgastadas,!lembravam!anos!de!uso!e!muitas!mãos!encostadas!que! acabaram! por! tornáala! riscada! e! marcada.! Em! cima! dela,! uma! pata! de!madeira!de!pescoço!quebrado!e!colado.!O!velho!hábito!de!insistir! no!que!é!velho,!para!não!vêalo!ir!embora.!Do!lado!oposto,!próximo!a! porta,! o! carrinho! de! chá,! antigo! objeto! mirado! por! crianças! desasa tradas!que!tantos!vasos!já!derrubaram!de!lá.!A!Santa!Rosália!ainda! vive!ali,!de!certa!forma.!Mas!irá!embora.!Tudo!que!é!material!se!desa loca.!Vai!migrando.!Muda!de!mãos.!Uns!apenas!transformam!toda!a! matéria!em!algo!diverso.!Mas!para!aquela!pessoa!que!se!aquecia!na! lareira,!naquela!noite!de!temperaturas!baixas,!desfazerase!desses!oba !35!


jetos! significava! muito.! Significava! aceitar! o! ritmo! natural! da! exisa tência:!certas!coisas!já!não!tem!mais!lugar,!e!devem!ir!embora.!Resa tam! além! dos! móveis,! alguns! livros! que! se! salvaram! das! inúmeras! doações!feitas!ao!longo!dos!anos.!Guardam!histórias!lidas!e!sentidas! muito!próximas!do!momento!em!que!foram!escritas.!Uma!antiga!coa leção!de!poemas!de!Menotti!Del!Picchia!relembra!a!semana!de!arte! moderna! de! 22,! e! não! deixa! esquecer! que! Encarnación! Sanchez! já! vivera!e!lera!tudo!aquilo.!Na!outra!sessão!espreita!uma!literatura!esa pírita!diversa,!indicando!a!entrada!da!religião!no!seio!da!família,!há! muito!tempo!atrás.!Obra!de!Encarna,!também.!A!ironia!do!nome!já! parecia!adivinhar!que!a!moça!amante!da!literatura!convenceria!uma! família! inteira! a! se! converter.! E! por! último,! e,! no! entanto,! sempre! vigilantes,!os!portaaretratos.!Pessoas!congeladas!num!passado!preto! e! branco.! Os! homens! muito! sérios.! As! mulheres! muito! elegantes.! Todos! nos! encaram! fixamente,! e! parecem! nos! lembrar! que! estarão! sempre! ali,! e! que! devem! estar.! Algumas! pessoas! guardam! imagens! de! santos.! Esta! família! santifica! uns! aos! outros.! São! fantasmas! saa grados!que!ainda!guiam!as!ações!daqueles!que!tem!o!duro!dever!de! tomar!grandes!decisões.!Decisões!que!às!vezes,!mudam!tudo.!Aquea cíamoanos!na!lareira.!A!madeira!trepidando.!A!madeira!no!fogo!cana tava.! Ora! sons! mais! ocos.! Ora! mais! agudos.! Alguns! pareciam! mais! um!lamento.!O!fogo!era!um!conforto.!Não!só!para!os!nossos!corpos! precisando!se!aquecer.!Aquela!casa,!variante!do!sépia,!do!cinza!e!do! preto!e!branco,!as!cores!das!habitações!da!família,!enrijecia!a!estrua tura! de! qualquer! um! nos! dias! mais! frios.! O! fogo! era! um! conforto.! Enquanto!a!madeira!cantasse,!não!precisaríamos!falar.!Para!pessoas! que!adoravam!histórias,!aquele!era!um!momento!de!profunda!depua ração.!Sabíamos!que!estaria!para!desenrolarase!um!novelo!guardado! há!muito!tempo.!Um!novelo!colorido.!Com!um!passado!recheado!de! alegria! e! alimentado! por! um! grupo! numeroso! e! apegado! ao! centro! 36!

!


de!si!mesmo.!Mas,!também,!um!novelo!que!lembrava!a!quem!o!dea senrolasse!que!o!que!foi!não!volta!mais.!! Ela!estava!serena!aquele!dia.!No!sofá,!posicionada!no!acento! guardado!a!quem!merecia!por!tempo!e!localização!no!grupo,!o!lugar! mais!perto!do!fogo.!Aqueciaase!com!uma!manta!xadrez.!Quem!não!a! conhecesse!e!a!visse!ali,!até!imaginaria!um!exemplo!perfeito!de!mua lher!idosa!e!frágil.!O!que!não!era.!O!que!nunca!tinha!sido.!De!repena te,!uma!voz!surge!firme,!e!como!sempre,!perguntando!se!não!comea çaríamos.! Aquele! sorriso! meio! brincalhão,! meio! desafiador,! esteve! presente!em!minha!vida!desde!que!posso!me!lembrar.!Tropecei!nas! palavras,! como! se! não! falasse! com! alguém! que! fora! presença! consa tante!em!minha!vida.!Não,!ali!ela!era!alguém!que!me!doaria!um!de! seus! bens! mais! preciosos:! suas! histórias,! as! narrativas! de! sua! vida.! Liguei!o!gravador,!e!um!tanto!errante,!começamos.!! Rosalinda!já!sabia!muito!bem!o!que!dizer.!Dizia!com!prazer.! Cada!frase!era!pronunciada!como!se!revivesse!ali.!E!de!fato!revivia.! “Recordar!é!viver”!é!um!lugar!muito!comum.!Já!no!início!fui!embaa lada! por! uma! espécie! de! encantamento.! Algo! que! eu! reconhecia! muito! bem! das! histórias! contadas! e! recontadas! tantas! vezes.! Fui! transferida!para!uma!versão!adaptada!das!“Mil!e!uma!noites”,!com!a! diferença!de!que!as!epopéias!contadas!ali!eram!alimento!vital,!tama bém,!a!quem!ouvia.!Davam!vida!ao!meu!projeto.!Agarravaame!a!um! fio!antigo.!A!um!sopro!do!passado.!Meu!ritmo!interno!era!incessana te,!e!desejava!que!as!histórias!nunca!acabassem.!Mas!ela,!mulher!via vida,!conhecia!melhor!o!tempo!do!que!eu,!e!administrava!a!narratia va! devagar,! com! o! tom! devido.! Uma! maestra.! Como! era! possível! transportarase!assim!para!um!tempo!tão!distante?!Como!era!possía vel!sentirase!conectado!com!tais!acontecimentos?!Eu!tinha!a!urgêna cia,!como!se!descobrisse!o!mundo!novamente.!! Atrasarei!o!relógio!dois!séculos.! !37!


Vale de las Batuecas: inferno e paraíso ' ! ! ! “O vale de Las Batuecas é uma comarca da província de Salamanca, na região da ‘Sierra de Francia’, na comunidade autônoma de Castilla e León, a maior de toda Espanha. O nome é conhecido por se utilizar da expressão ‘estar em las Batuecas’, que significa ‘encontrar alguém distraído e alheio ao que acontece ao seu redor ou aquilo de que se está tratando’. Lendas locais sugerem que o vale era habitado por criaturas obscuras ou demônios. Agricultores itinerantes temiam adentrar o vale e encontrar tais criaturas ou seitas religiosas satânicas”. (www.iberiarural.es)! ! !! ! “Almería, 17 de agosto de 1952 “Querida Rosalinda, Estamos na Andaluzia e aproveitando bastante. Chegamos hoje e amanhã cedo vamos para Berja, a terra da vovó; vamos procurar o lugar que ela morou e tirar fotografias. Esta nossa viagem é um tanto corrida, pois só temos 17 dias e ainda vamos à Salamanca conhecer a terra do vovô. Como

38!

!


vão todos? Lembranças e abraços a todos, e para você beijos e abraços da mamãe. Rosalia, Mande notícias”.

C

epeda,! final! do! século! XIX.! Difíceis! tempos,! aqueles.! Rosalia! recolhia!as!taças!dos!clientes!e!analisava!o!movimento!da!boa dega.!Para!um!local!ermo!e!pouco!habitado,!até!que!não!estaa

va!tão!mal.!Mas!não!podia!negar.!Difíceis!tempos,!aqueles.!Cepeda! era!um!povoado!encerrado!em!um!vale!que!entornava!muitos!outros! municípios! além! deste.! Vale! de! Francia.! Las! Batuecas.! Uma! cidade! em!pedra!que!guardava!resquícios!de!tempos!muito!longínquos.!Ala guns! diziam! que! muitas! construções! eram! anteriores! aos! romanos,! mas!ela!não!tinha!certeza.!Como!poderia,!aliás.!Não!tinha!tempo!paa ra!esses!gostos!particulares.!! Rosalia! era! uma! mulher! extremamente! católica,! alguns! poa diam!dizer!que!era!até!fervorosa.!Mas!quem!naquele!país!de!Isabel! de! Castela! não! o! era?! O! povoado! tinha! pouco! mais! de! quinhentos! habitantes.!Ela!não!sabia!o!que!era!viver!em!um!lugar!populoso.!Dia ziam!que!a!Espanha!mudara!significantemente.!Notícias!de!lugares! maiores!e!mais!povoados.!Notícia!de!tempos!duros.!Mesmo!ali,!naa quele!lugar!encerrado!entre!as!montanhas,!rumores!estranhos!chea gavam.!Diziam!que!o!mundo!fervilhava,!e!uma!grande!tensão!agitaa va!toda!a!Europa.!Tinha!encarado!seus!próprios!desafios.!Os!negóa cios! estavam! difíceis.! Falavam! até! em! Recessão.! Recessão,! palavra! esquisita.! Sebastián! demorava! cada! vez! mais! a! voltar! das! viagens,! procurando!preços!melhores!para!os!artigos!da!bodega,!como!o!via nho.! E! mesmo! ali,! uma! região! tão! bem! acostumada! aos! produtos! mediterrâneos,!o!preço!da!bebida!nunca!estivera!tão!alto!!Outra!coia sa!a!preocupava.!Por!menor!que!fosse!a!população!de!Cepeda,!estava! !39!


diminuindo! cada! vez! mais.! Jovens! famílias! procurando! bema aventurança! na! América.! América.! Que! ideia!! Um! lugar! fervilhado! por!colonos,!índios!e!exaescravos,!que!imagem!primitiva!fazia!do!lua gar.!Brasil.!Nome!de!uma!árvore!local,!aparentemente.!Mas!era!certo! que! iam.! E! as! novas! se! espalhavam! levadas! de! regiões! a! regiões,! atravessando! os! espaços! daquele! país! de! um! modo! inimaginável.! Imigrar,!era!a!boa!nova!daquele!que!gostaria!de!tentar!a!vida.!! Um!cliente!estalara!os!dedos.!“Mais!vinho,!moça”.!Moça,!ora.! Muito!cedo!acordava!todos!os!dias.!Acudia!os!pequenos.!Cinco.!Lua ciano!ainda!um!bebê.!Acordáalos.!Dar!de!comer.!Vigiáalos.!Guiáalos.! E!o!bebê!chorando.!Não!tinha!culpa,!é!claro.!Mas!como!administraa va!o!que!parecia!ser!uma!orquestra!à!demanda!de!ordem,!não!sabia.! Tinha!Ancelma,!que!ajudava!como!podia.!Ao!menos!uma!era!menia na.!E!Ramón!e!Benito,!os!mais!velhos,!também!eram!bons!meninos.! Ela!dividiaase!entre!a!ajuda!que!lhe!davam!e!o!cuidado!que!necessia tavam.! Luciano! com! a! tia.! Preparar! as! refeições,! servir! o! vinho.! A! igreja,!muitas!vezes,!era!seu!santuário.!Lá!podia!ser!uma!mulher!em! redenção!e!silêncio.!Era!uma!paz!que!não!contava!a!ninguém,!e!que! se! contasse,! não! entenderiam.! “Mais! vinho,! moça”.! “Moça”.! Criatua ras!atrevidas.!Enquanto!Sebastián!estivesse!fora!seria!sempre!assim.! Aguentar! a! falta! de! respeito! destes! sujeitos! que! não! imaginam! a! odisséia!diária!de!ser!uma!mulher.!Uma!mãe!de!cinco!filhos.!Dona! de! uma! bodega.! Quando! Sebastián! estava! presente! era! diferente.! “Senhora”,! a! chamavam.! Homens! podiam! ser! criaturas! prepotentes! quando! queriam.! A! igreja,! as! outras! mulheres.! Era! um! local! seu.! Uma! convivência! com! outras! mulheres! que! entendiam! as! mesmas! dores!que!ela.!Quando!pensava!nos!rostinhos!dos!filhos,!no!entanto,! tudo! se! desvanecia.! Tinha! sorte! de! têalos.! Era! uma! vida! solitária.! “Mais! vinho”.! Levoualhe! outra! garrafa! e! recolheu! os! pratos.! Ramón! ajudava.! 40!

!


Abriu!a!porta!e!saiu.!Fechou!os!olhos!um!instante!e!deixou! que!a!brisa!dos!morros!invadisse!sua!face.!Deixou!que!o!frescor!do! vento!adentrasse!cada!parte!de!seu!corpo,!respirou.!Abriu!os!olhos!e! de!repente!a!luz!a!cegou.!Olhou!em!volta.!Era!um!lugar!pequenino!e! rústico.! Olhou! os! morros! e! pensou! “Deus,! como! estamos! sozinhos! aqui.! Tão! esquecidos! pelo! resto! do! mundo.! Esses! morros! fazem! sombra!à!nossa!vida”.!Desejaria!ver!mais.!Desejaria!conhecer!a!capia tal.! Desejaria! que! os! pequenos! pudessem! mais! do! que! ela! pode.! “Como!estará!Sebastián,!onde!estará!nesse!momento?”!E!uma!lufada! de!ar!bateu!a!porta.! Sebastián!percorria!aquelas!passagens!lentamente.!Um!calor! insuportável! o! invadia! apesar! da! temperatura! baixa! daquelas! mona tanhas.!O!burro!ia!muito!devagar,!talvez!mais!cansado!que!ele.!Na! noite! anterior! fechara! as! últimas! compras! e! pernoitara! no! último! povoado.!Ainda!faltavam!mais!dois!para!chegar!a!casa.!Toda!viagem! lhe! fazia! pensar! como! conseguira! iniciar! outra,! uma! vez! mais.! Os! caminhos!eram!tortuosos,!altos!e!baixos.!Secos.!Poeirentos.! Enquanto!seguia,!o!sol!ia!se!pondo.!De!algum!modo,!aquela! vida! era! uma! coisa! rica.! Formas! divinas.! Sabia! o! que! dizia! o! povo.! Criaturas!escusas!entre!as!montanhas.!Mas!não!viam!o!que!ele!via.! Em! todas! as! viagens,! a! mesma! sensação.! Cada! passo! do! burro,! e! o! peso!da!carga.!Cada!pedra!encontrada,!um!passo.!E!o!sol!ia!descena do!ali.!Os!tons!desenhandoase!devagar,!e!então!tudo!ganhava!outra! forma.!Lugar!belo.!Tudo!mudava!de!cor.!Pensara!nas!crianças,!pena sara!em!Rosalia.!Será!que!Ramon!obedecera!à!mãe?!Estaria!ajudana doaa?!E!Ancelma?!O!bebê!proporcionava!um!trabalho!extra!aos!afaa zeres!de!Rosalia.!Sorte!era!ter!Ancelma.!Com!Benito!não!se!preocua pava,! era! um! bom! menino.! Sonhador! é! verdade,! mas! um! bom! mea nino.!Pensava!em!Rosalia!na!Bodega.!Sabia!que!os!homens!que!não! eram!de!lá!não!a!respeitavam!tanto!quando!ele!não!estava.!Ela!já!se! queixara!disso.!Sebastián!era!ainda!muito!novo,!pouco!mais!de!trina ! 41!


ta!anos.!Ainda!assim,!tantos!dependiam!dele.!Via!seus!rostos!em!caa da!tom!desenhado!nos!morros!pelo!sol.!Desejava!que!vissem!o!que! ele!via.!Que!não!se!preocupassem!tanto.!Que!soubessem!que!havia! beleza!ali.!O!sol!se!punha.!Escurecia.!Teria!que!parar!em!algum!lua gar.! ! !! ! Era!fim!de!tarde!em!Cepeda.!O!sol!descia.!Muito!timidamena te,!uma!lua!fina!e!risonha!aparecia!entre!as!montanhas.!Um!a!um,!os! clientes!iam!desaparecendo!da!bodega,!como!bolhas!estourando!no! ar.!Rosalia!ouvia!os!risos!das!crianças!acompanhando!as!mães.!O!sia no!da!igreja!tocava.!Encostada!na!parede!de!pedra!pintada!de!brana co,!ela!assistia!ao!suave!movimento!desaparecendo!das!ruas.!A!noite! caia.!Mais!um!dia,!pensava.!Estava!exausta.!Seus!pés!doíam.!Desejaa va!estar!com!as!crianças!em!casa.!“Ramon,!vá!guardando!os!mantia mentos! e! recolhendo! as! mesas,! estamos! fechando”.! Via! seu! rosto! iluminarase.! Era! só! uma! criança.! Sabia! o! que! lhe! custava! ajudáala! enquanto!via!outros!meninos!de!sua!idade!brincando!na!praça.!Deia xouase!ficar!um!último!instante!na!rua.! As! ruas! estavam! imersas! na! noite,! apenas! alguns! velhos! lampiões!iluminavam!o!povoado,!e!os!sons!iam!diminuindo,!tomana do! distância.! Tudo! ali! era! preenchido! por! uma! noite! fria! e! quieta.! Chegara! a! casa! e! apertara! Luciano! em! seus! braços! como! se! não! o! visse!há!muito!tempo.!Como!estaria!Sebastián?!Estaria!abrigado!do! frio?! Ancelma! punha! a! mesa! e! a! sinfonia! da! casa! começava! outra! vez.!Cada!um!em!seu!papel.!Ramon!e!Benito!riam!na!escada.!Os!praa tos!mais!antigos!na!mesa,!aquele!era!apenas!um!dia!comum.!Os!taa lheres! do! lado! direito.! O! garfo! antes! da! faca.! Prudêncio! ajudava! a! irmã.!Rosalia!sorriu.!Embalava!o!bebê,!a!sopa!estava!quase!pronta.! 42!

!


Enquanto!colocava!as!crianças!na!cama,!cada!linha!em!suas! faces!despertava!nela!uma!sensação!doce.!Crianças!adoráveis.!“Que! cresçam!para!ver!tempos!melhores”.!Beijou!cada!um!no!rosto!e!fez! as!orações!junto!com!eles.!“Nunca!se!devem!esquecerase!da!Virgem! Maria!e!do!menino!Jesus”,!lembravaaos.!Luciano!ressonava!tranquia lamente! em! seu! bercinho.! Ela! desfez! o! coque! e! trançou! os! cabelos! como!fazia!todas!as!noites.!Olhouase!no!espelho!e!viu!ali!uma!mua lher!que!carregava!o!mundo!nas!costas.!Seu!mundo,!ao!menos.!Deia touase!e!a!cama!ao!lado!lembroualhe!a!solidão!de!seus!dias.!Uma!coa ruja!piou!longe.!Alguma!brisa!mais!forte!sacudiu!um!pouco!a!janela,! Luciano! agitouase! no! berço.! Sentiu! um! arrepio! na! espinha.! “Estou! me! tornando! uma! velha! supersticiosa”,! pensou.! Assoprou! a! última! vela.! O! dia! seguinte! seria! tão! cheio! quanto! fora! este.! Fechou! os! olhos!e!exausta,!adormeceu.! ! !! ! Em! algum! lugar! nas! montanhas,! Sebastián! alimentava! a!foa gueira!com!mais!lenha.!O!burro,!amarrado!ao!lado,!parecia!dormir.! O!fogo!trepidava!e!junto!com!as!corujas!e!os!animais!da!noite,!era!a! única! música! a! tocar.! “Um! violão! não! seria! má! ideia.! Espantaria! a! solidão! dessas! montanhas”.! Espirrara! novamente.! Só! podia! ser! o! frio.!O!frio!e!o!clima!seco.!Andara!sentindo!algumas!dores!no!corpo! e!espirrara!muito!nos!últimos!dois!dias.!Poderiam!ser!os!outros!hoa mens,!também.!Ele!vira!alguns!deles!espirrarem.!“Era!o!que!faltava,! um!resfriado!”!O!fato!de!ter!mais!dois!dias!de!viagem!não!deixava!as! coisas!melhores.!Chegaria!muito!mal!em!casa.!Seria!melhor!nem!se! aproximar!muito!das!crianças,!do!bebê!especialmente.!Baforava!um! cigarro!de!palha!quando!ouvira.!O!burro!ouvira!também!e!ficou!ina quieto.! Sebastián! apurou! os! ouvidos.! O! que! se! seguiu! parecia,! ao! mesmo!tempo,!risos!e!choro.!Alguns!passos!correndo!dentre!as!pea !43!


dras.!Sebastián!quase!levantara!para!pegar!a!espingarda,!e!então!os! sons!cessaram!de!repente.!Muito!estranho.!Mas!algumas!casas!estaa vam! a! poucos! metros! dali.! Estava! imaginando! coisas.! Nunca! fora! supersticioso.! Além! do! mais,! era! um! homem! temente! a! Deus.! O! burro!acalmaraase.!Ele!recostouase!e!procurou!encontrar!o!que!tivea ra!muita!dificuldade!de!achar!o!dia!todo:!tranqüilidade!e!sono.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 44!

!


Influenza ! ! ! ! !

R

osalia!não!dormia!há!dias.!Uma!nuvem!escura!pairava!sobre!a! casa.!Medo!constante.!O!bebê!estava!com!a!irmã,!ser!pequea

nino,!frágil!demais.!Ramón!cuidava!da!bodega,!praticamente!

sozinho.!As!crianças!olhavamana,!seus!olhinhos!inquirindo,!assustaa das.!Não!ousava!passar!muito!tempo!perto,!mal!lhes!explicava!o!que! acontecia.!Ouvira!Ancelma!chorar!no!canto,!os!meninos!a!consolaa vam.!Meu!Deus,!e!como!ficar!com!eles,!como!lhes!dar!qualquer!exa plicação?!! Chegara! como! um! raio,! um! golpe! maldito! do! destino.! Nem! entendia,!ela!mesma.!Se!deixasse!as!mãos!paradas,!podia!vêalas!trea mer.!Não!ousavam!lhe!dizer!nada.!A!família!a!olhava!com!pena.!Oua via!os!cochichos!dos!vizinhos.!Eles!sabiam.!Ela!também!começara!a! compreender.!Ouvira!boatos.!O!caso!se!espalhara!e!as!pessoas!estaa vam!assustadas.!Começavam!a!dizer!de!casos!distantes,!na!Espanha,! na!Itália,!em!toda!Europa.!Não!conseguia!compreender,!no!entanto,! que!desvio!tortuoso!trouxera!aquilo!para!dentro!da!própria!casa.!Via viam! como! Deus! queria.! Era! uma! mulher! honesta,! ainda! jovem,! é! certo,!mas!muito!honesta.!Trabalhavam!ferozmente!dia!e!noite!pra! colocar! comida! no! prato! das! crianças.! Os! pequenos! cresciam! bem,! com! um! futuro,! talvez,! pela! frente.! O! marido! era! um! exemplo! em! Cepeda.!Todas!as!incansáveis!viagens!que!nunca!findavam,!enfrena tava!todo!tipo!de!intempérie!pela!família.!Ela!já!se!queixara.!A!solia dão,! as! noites! de! incerteza.! Quanto! peso! nos! ombros.! O! choro! do! !45!


bebê.!As!crianças!ajudandoase.!Mas!era!raro.!Ele!sempre!a!acalmava.! Davaalhe! coragem.! “Tudo! vai! melhorar”.! Não! podia! desesperarase.! Mas!era!certo,!algo!tinha!feito!a!Deus.!Puniala!assim.!“Até!nisso!erro.! Deus! meu,! o! que! será! de! mim! que! não! entendo! seus! desígnios! e! questiono! seus! caminhos?”.! Não! podia! chorar,! as! crianças! estavam! ali.! Sebastián!chegara!há!dias!em!Cepeda.!Mal!sabia!como!cona seguira!chegar!até!ali.!Piorara!muito.!Viu!nos!olhos!de!Rosalia!o!esa panto!ao!ver!o!marido!naquele!estado.!Magro!como!nunca!estivera,! os!olhos!fundos.!Quase!desmaiara.!Tivera!que!ser!carregado!para!a! cama.!Não!chegava!a!se!queixar!mais!diretamente!sobre!o!que!sena tia.!Desejava!poupáala.!Seu!corpo!lhe!fugia!ao!controle.!O!intestino! mal.!Tudo!lhe!doía.!O!peito!pesava!uma!tonelada.!A!língua.!Aquele! gosto! insuportável.! Sentiaase! tão! frágil! quanto! uma! folha! de! papel.! Quisera!chorar.!Olhar!os!céus.!Chorar!e!perguntar!por!que!fora!esa colhido.! Sabia.! Sentia.! Os! pequenos! eram! proibidos! de! entrar! no! quarto.! Viu! Ancelma! passar! escondida.! Olhavaao! pela! fresta,! a! boa neca! de! pano! na! mão.! Uma...! Duas! lágrimas! escorriam! de! sua! face! pequena.!Ele!tentara!lhe!sorrir,!mas!tinha!uma!âncora!na!garganta.! A! doença! o! sufocava.! Corpo! e! alma.! Benito! passou! atrás! da! irmã! e! puxouaa!pelo!braço.!O!menino!era!tão!bom!à!irmã.!Meus!pequenos,! pensou.! Mais! tarde! naquele! dia,! o! médico! visitou! a! casa! da! família! novamente.! Pelo! conforto,! apenas.! Passara! as! mesmas! prescrições.! Já!não!tinha!mais!o!que!ser!feito.!Sebastián!nem!lutava!mais.!Resiga naraase.! Um! gosto! amargo! e! oco! subiaalhe! desde! o! estômago! até! a! boca.!Tinha!cada!vez!mais!vertigens,!não!distinguia!as!pessoas.!Uma! febre!incessante.!Parte!de!si,!ainda!vivia,!e!queria!arrancaralhe!dali.! Abraçar!Rosalia,!beijar!as!crianças!uma!última!vez.!Nem!isso!o!deia xavam!fazer.!Nem!isso!deixava!a!si!mesmo!fazer.!Algo!ia!mal!naquea la!terra.!O!médico!lhe!dissera!que!a!doença!se!alastrava!como!o!vena 46!

!


to.! Serem! punidos.! Chicoteados! como! gado.! Fizera! algo! de! muito! mal!a!Deus.!E!queria!chorar!sua!alma!fora,!por!saber.!Ela!veio!como! um!raio.!Poucos!dias.!Nem!pudera!lutar.!Em!vão!tentava!apertar!os! punhos,!as!últimas!forças.!A!raiva!de!si.!Mas!aos!poucos,!aquela!para te!de!si!estava!perdendo,!e!deixavaase!ir.!Sentia!como!se!cobrissem! seu! corpo! com! um! tecido! suave,! transparente.! Estava! se! movendo! muito!devagar.!Mas!não,!não!podia!deixar.!E!Rosalia?!O!que!seria!de! Rosalia?!Não!tinha!forças!para!chorar.!Já!nem!era!o!homem!que!foa ra.!Um!espectro.!Podia!chorar,!agora.!Não!conseguia.!O!que!será!dea la,! e! das! crianças?! Como! lhes! ensinará! o! que! eu! nem! disse! ainda?! Deixaria! Rosalia.! Deixaria! Ramón.! Deixaria! Benito.! Deixaria! Prua dêncio.!Deixaria!Luciano.!Deixaria...!Ancelma.!Sua!mente!foi!ao!lona ge.!E!todas!as!cores!misturavamase.! a!Papai!está!morrendo.!! Estavam!todos!reunidos!no!quarto,!e!Ramon!ousara!dizer!o! que!todos!sabiam,!e!ninguém!tivera!a!coragem!de!dizer!em!voz!alta.! Estava!transtornado.!Pequeno!ainda,!nem!ele!compreendia!ao!certo! o! que! saíra! de! sua! boca.! Mas! vira! os! outros! chorarem.! Ancelma! principalmente,! e! os! outros! dois! a! consolavam.! Entendera.! Ele,! o! mais!velho,!tinha!que!ter!alguma!responsabilidade!entre!eles.!Algum! controle.! Devia! ensinaralhes! que! a! vida! era! assim.! Como! mamãe! sempre!lhe!dissera:!“Deus!age!sob!seus!próprios!desígnios”.!Mas!faa lhara.!Seu!corpo!era!pequeno!demais!pra!tudo!que!sentia!sem!coma preender.!Benito!olhou!pra!ele.!Seus!olhos!tornaramase!rios,!presos! demais,!esperando!o!momento!de!transbordar.!Soluçava!e!sacudia!o! corpo!todo!e!naquele!momento!sentia!que!iria!chorar!para!sempre.! Abraçou!os!irmãos.! Rosalia! moviaase! por! inércia.! Em! câmera! lenta,! vira! todos! passarem.!A!família,!os!pequenos.!Por!último!o!padre.!Chegara!para! dar!a!extrema!unção!em!Sebastián.!Ela!não!via!seus!rostos.!Não!falaa va.! Não! conseguira! juntar! duas! palavras! juntas.! Despediraase! mais! !47!


cedo.! Quando! não! havia! ninguém.! Quando! restava! um! pouco! do! que! fora! Sebastián.! O! último! momento! em! que! a! compreendera.! Não!conseguira!dizer!tudo!que!precisava.!Aquelas!pessoas,!naquela! época!e!naquele!lugar,!eram!feitas!de!uma!linha!dura!que!as!amarraa va! por! dentro.! Sempre! fora! assim.! Ela! dissera! com! as! palavras! que! conseguira.!“Tinha!sido!um!ótimo!marido.!Um!ótimo!pai.!Deraalhes! uma!vida!maravilhosa.!Ela!foi!muito!feliz.!Que!ficasse!em!paz.!Que! fosse! em! paz.! Ela! cuidaria! de! tudo.! Tudo! ficaria! bem”.! As! crianças! tiveram! seus! momentos,! também.! Sebastián! conseguiu! transmitira lhes! todo! o! carinho,! especialmente! à! Ancelma,! que! chorava! muito.! Dissera!aos!meninos!que!fossem!homens!fortes.!Que!cuidassem!da! mãe! e! da! irmã,! e! sempre,! uns! dos! outros.! Disse! a! Ramon! que! não! temesse.!Agora!seria!o!homem!da!casa.!Cada!palavra!dele,!por!mais! suave,! era! uma! tortura! para! a! pequena.! Sempre! fora! uma! menina! doce,! mas! ali,! era! uma! criança! assustada.! Benito! abraçavaaa! forte.! Ouvia!o!pai,!consentia.!Segurava!o!choro!o!melhor!que!pudera.! Aquele! ali,! agora,! sendo! mirado! por! todos,! não! era! Sebastia án.!Rosalia!não!o!via!mais.!O!que!restava!naquele!corpo!era!matéria! inanimada,!esperando!por!paz.!Ele!já!se!fora!antes!de!ir!pela!última! vez.!O!padre!disse!as!últimas!palavras.!Um!a!um,!foram!saindo.!Vula tos!desaparecendo!no!ar.!Não!ouvia!os!choros,!não!via!nada!nitidaa mente.!Todos!os!sons!misturavamase!em!um!só!lamento!insuportáa vel! e! desordenado.! Deixouase! ficar! um! último! instante! ali.! Obsera vando!o!nada.!Uma!vertigem!pesada!atingiu!seu!corpo,!apoiouase!na! cabeceira!da!cama!para!não!cair.!Viu!aqueles!olhos!vazios,!era!ora!de! deixáalo.!Naquela!noite,!quando!todos!já!haviam!dormido!um!sono! pesado,!os!olhos!ardendo,!um!sono!sem!sonhos,!Rosalia!caiu!na!caa ma!com!toda!a!força!do!corpo.!Dormiu!chorando.!Sufocara!as!lágria mas!no!travesseiro.!Ninguém!devia!ouvir.! ! 48!

!


Donde hay una fuente, hay un pueblo ! ! ! ! !

N

o! sudoeste! da! Espanha,! na! província! de! Almeríra,! extremo! leste!de!Andaluzia,!havia!uma!pequena!cidade!costeira.!Berja,! com!seus!poucos!mais!de!quinze!mil!habitantes,!já!disputou!

com!outras!duas!a!condição!de!província!de!Almería.!A!cidade,!coa mo! muitas! na! Espanha,! é! o! recinto! da! mescla! cultural! entre! incesa santes! colonizações! cristãs,! romanas,! e! mulçumanas.! É! uma! terra! cujo!chão!foi!depósito!de!muito!sangue.!Como!toda!terra,!se!desena volve!à!medida!que!se!desenvolvem!seus!conflitos.!Espalhados!pelas! ruas,! monumentos! romanos,! odes! arquitetônicas! a! ícones! e! símboa los!mulçumanos.!As!igrejas!e!os!santos!dividem!espaço!com!os!antia gos! banhos! árabes.! Os! que! vivem! hoje! nesses! territórios,! respiram! uma!atmosfera!que!herda!a!disputa!pelo!protagonismo!cultural!ena tre!esses!povos.!! Berja,! cidade! na! costa! mediterrânea,! é,! assim! como! o! mar,! um! movimento.! Um! movimento! de! idas! e! vindas.! De! povos! em! tempos!muito!longínquos,!que!chegavam!do!mar!e!depositavam!na! terra!suas!esperanças.!De!povos,!que!levavam!um!pouco!da!terra!na! sola!dos!sapatos!e!a!cultura!nos!bolsos,!e!aventuravamase!no!mar!ina certo,!em!busca!de!esperança!na!América!do!grão!de!café.!Terra!de! exploração!mineira,!terra!de!cuja!fonte!brota!gente.!A!água,!recurso! precioso!em!lugares!tão!secos!como!os!territórios!mediterrâneos,!é! !49!


mais! do! que! motivo! para! que! se! ajuntem! em! sua! volta! povos! com! ganas!de!situarase.!Água.!Gente.!Terra.!Água!na!terra!é!sinônimo!de! produção.! Terra! do! vinho.! Como! a! maioria! dos! espanhóis! que! imia graram! para! as! lavouras,! Berja! é! mais! um! berço! de! produtores! rua rais.!! Enquanto!Benito,!pequeno!e!sonhador,!adentrava!um!navio! e!a!incerteza!ao!lado!da!mãe!e!dos!irmãos!em!direção!ao!Brasil,!os! “abuelito! e! abuelita”! de! Rosalinda! Sanchez! faziam! o! mesmo.! Eram! os!pais!de!Isabel!de!Carmona.!Junto!com!a!família,!ela!aventuravaase! no!mesmo!sonho,!talvez!com!as!mesmas!incertezas.!O!tempo,!brina calhão,!amarrava!o!futuro!de!muitos!casais!espanhóis!no!Brasil,!pesa soas!que!nem!se!conheciam,!e!que!uniamase!pelos!sinônimos.!Pelos! sinônimos! de! cultura.! Pelos! sinônimos! de! migrar.! Pelos! sinônimos! da! Terra.! Pelos! sinônimos! do! grão.! O! tempo! maquinava! o! futuro! que!nem!Benito!e!nem!Isabel!sabiam.!Uma!vida!que!seria!construída! com!a!união!dos!dois.!Um,!da!terra,!a!outra,!do!mar.!Um!do!norte,!a! outra,!do!sul.! Como!muitos!casais!espanhóis!que!uniamase!no!Brasil,!Benia to!e!Isabel!são!um!dos!elementos!que!solidificam!a!cultura!da!Terra! e!do!grão!no!estado!de!São!Paulo.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 50!

!


Os pilões ! ! ! ! ! !

D

ona!Otília!é!uma!das!muitas!pessoas!de!Cafelândia,!cidade! na! região! noroeste! do! interior! de! São! Paulo,! que! descena dem! de! imigrantes! espanhóis.! É! uma! pessoa! escondida.!

Magra.!Natureza!física!toda!economizada.!A!gente!tem!que!cavar!o! coração!e!a!memória!para!que!ela!se!abra!e!deixe!correr!toda!a!água! das! lembranças.! Olha! como! quem! diz:! “Você! quer! mesmo! saber?! Acho!que!não!tem!muita!importância”.!Um!dos!sintomas!da!velhice! na! nossa! sociedade.! Deixada! de! canto! pelo! culto! ao! novo.! Mas,! de! vez!em!quando,!parecia!que!abria!os!olhos,!viajava!no!tempo!e!relua zia.! Ia! deixando! escapar! alguns! detalhes.! O! avô! muito! amoroso.! O! avô! que! contava! histórias! e! cantava.! “Tudo! é! diferente,! a! cidade!

cheia!de!gente,!a!gente!se!reunia!na!praça,!nas!portas!das!casas”.!A! avó!que!foi!uma!segunda!mãe.!Perdera!a!mãe!quando!tinha!apenas! dois!anos.! A! época! de! muita! gente! se! foi.! Hoje! uns! poucos! detalhes! guardam! o! passado.! A! loja! antiga! na! esquina.! As! terras! arrendadas! para!a!cana.!Perderamase!as!cartas!trocadas!com!a!família!na!Espaa nha.!O!café!das!fazendas!se!foi!e!com!ele,!a!população!da!cidade.!Os! dois!filhos!se!foram!também.!Um,!ainda!bebê,!o!outro,!ela!não!cona tou!como!se!foi.!Otília!e!o!marido,!casados!há!cinqüenta!e!oito!anos,! habitam! uma! casa! próxima! à! loja.! Todos! os! dias! as! coisas! se! repea

! 51!


tem.!Ela!abre!a!loja!que!o!pai!fundou!em!1935.!“Hoje!a!loja!não!vai! muito!bem”.! ! !! ! Lucar,!Almería,!Junho!de!1921.!Alguns!anos!depois!que!Rosaa lia!partira!para!o!Brasil,!no!final!do!século!XIX,!um!casal!e!seus!seis! filhos!pensavam!em!tentar!a!mesma!aventura.!Diferente!do!que!fora! para!Rosalia!e!os!filhos,!na!década!de!vinte!do!novo!século,!a!indúsa tria!cafeeira!já!estava!mais!que!consolidada.!As!fazendas!produziam! a!todo!vapor.!Algumas,!inclusive,!pertencentes!à!firma!Ramón!Sana chez!&!Cia,!empresa!daqueles!dois!meninos!que!deixaram!a!Espanha! logo!após!a!morte!do!pai.!Nessa!época,!o!estado!de!São!Paulo!era!um! dos!maiores!produtores!de!café!do!mundo,!e!aventurarase!no!Brasil! era!uma!escolha!com!grandes!chances!de!obter!bons!resultados.! Este! casal! morava! na! região! Sul! do! território! Espanhol,! em! um!povoado!com!pouco!mais!de!800!habitantes,!não!muito!diferena te!da!pequena!população!de!Cepeda.!Lucar!era!um!povoado!da!proa víncia!de!Almería,!situado!na!segunda!maior!comunidade!autônoma! do! território! espanhol,! Andaluzia.! Lucar,! como! muitos! dos! territóa rios!que!deram!origem!aos!povos!da!imigração,!era!uma!cidade!rua ral,!especializada!na!produção!de!azeite,!vinho!e!demais!produções! que!se!adaptassem!ao!ciclo!escasso!das!chuvas.! Mais! uma! família! que! se! preparava! para! deixar! sua! terra.! A! vida!segue!uma!estranha!ordem.!Misteriosa!e!concomitante.!Adelaia de!Encinas!se!prepara!para!aventurarase!com!o!marido,!Francisco,!e! os!seis!filhos.!Antonio,!Rafael,!Francisco,!Dolores,!José,!Virgínia.!Um! cenário!de!possibilidades!se!abrira!no!horizonte.!Iriam!tentar!a!sora te.!A!família,!diferente!dos!Sanchez,!estava!bem.!Enfrentariam!juna tos!o!desconhecido.!Em!vez!de!deixar!um!bebê!na!Espanha,!Adelaia de!preparavaase!para!ver!nascer!mais!um!membro!da!família.!Teria!a! 52!

!


última!filha!no!Brasil.!Era!uma!decisão!arriscada,!sabia!disso.!Levar! todas!as!crianças!para!um!país!estranho.!Mas!as!notícias!eram!proa missoras,!e!tinham!todo!futuro!pela!frente.!As!crianças!eram!fortes!e! poderiam! ajudar! o! pai.! Antônio,! principalmente.! Era! o! mais! velho,! dezoito!anos.!No!entanto,!deixaria!os!pais.!Deixaria!a!mãe.!Adelaide,! como! muitas! mulheres,! fizera! uma! escolha.! Formara! uma! família! para! chamar! de! sua.! Família! que! deixaria! a! Espanha! para! trás.! No! Brasil!não!havia!lugar!para!os!pais,!já!idosos.!A!lavoura!requeria!braa ços!produtivos.!Mas!a!conexão!com!a!mãe!não!era!algo!que!se!roma pe! como! uma! linha! de! costura.! E! sentira! muito! deixáala.! Escolher! deixáala!e!seguir!viagem!com!o!marido!foi!a!decisão!mais!difícil!que! tomara.! Chegara!o!momento!de!partir.!Ainda!seguiriam!viagem!até!a! cidade! onde! pegariam! o! navio! em! direção! ao! porto! de! Santos,! em! São! Paulo.! Francisco! já! se! despedira,! assim! como! as! crianças.! Adea laide! deixouase! ficar! por! último.! Uma! tentativa! de! deixar! aquele! momento!que!era!tão!breve,!um!pouco!mais!longo.!Sua!mãe!olhara! pra!ela.!Um!momento!que!pareceu!durar!muito.!Começaram!a!choa rar.!Ao!mesmo!tempo!em!que!segurava!suas!lágrimas!também!pena sara! como! era! estranho! causar! dor! àquela! criatura! já! tão! frágil.! Na! última!fase!da!vida.!Abraçaramase!o!máximo!que!o!tempo!permitira.! O!último!contato!físico!que!teriam!pelo!resto!de!suas!vidas.!O!últia mo!afago.!O!último!toque!no!corpo!frágil!de!outro!ser!humano!que! lhe! era! tão! caro.! A! mãe! lhe! pedira! um! último! instante.! Precisava! buscar!algo.!Quando!retornou,!havia!dois!pilões!de!madeira!em!suas! mãos.!“Este!é!o!seu,!Adelaide,!vou!guardar!comigo.!Peço!que!leve!o! meu”,!e!então,!chorou.!Adelaide!pegou!o!pilão!velho,!que!tantas!vea zes! vira! a! mãe! utilizar.! “Terás! sempre! algo! consigo,! que! pertença! a! mim,!e!eu!terei!o!mesmo”.!Adelaide!olhou!a!mãe,!tentando!capturar! cada!traço!em!seu!rosto.!Apertou!o!pilão!nas!mãos.!Partira.!Tinha!a! certeza,! mais! do! que! nunca,! de! que! tinha! muito! mais! da! mãe! do! !53!


aquele! simples! pilão,! que! agora,! valia! muito.! Era! última! vez! que! Adelaide!veria!a!mãe.! ! “Meu pai sempre falava: “o nome Encinas, lá na Espanha, é o nome de uma árvore que fornece alimento pra porcos, umas bolotas pra porcos que a tradição é fazer presunto.”... Eu lembro uma coisa interessante: minha avó quando despediu da mãe dela, queria deixar uma lembrança com ela e queria deixar a outra lá na Espanha, então elas trocaram o pilão... Nunca mais se encontraram, só por carta... Nossa, minha avó falou que foi muito duro sim... Foi duro... Duro mesmo... Deixou toda a família né...” (Entrevista com Otília Encinas). ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 54!

!


Almería e Múrcia, Múrcia e Almería ! ! ! !

A

fonso! e! Franscisco! Garcia! são! homens! típicos! da! terra! do! interior! paulista.! Do! contato! com! a! terra.! Das! botas! sujas! de! lama! num! domingo! de! manhã! e! da! camisa! aberta! por!

conta!do!calor!da!roça.!São!caipiras!porque!não!foram!criados!com! os!costumes!requintados!da!cidade!grande.!São!homens!da!lida!dua ra.! Do! gado.! Da! lavoura.! Quando! os! encontrei! na! manhã! daquele! domingo,! toda! atmosfera! da! casa,! em! Avaí,! interior! de! São! Paulo,! deixava! muito! claro! que! aqueles! eram! filhos! do! interior! paulista.! Não!há!tempo!ruim!pra!quem!luta!todos!os!dias!pela!ordem!do!que! sempre!conheceu!como!base.!A!terra!é,!para!esses!homens,!tudo!que! aprenderam!com!os!pais.!Tudo!que!produz!sentido!lógico.!A!herana ça!dos!imigrantes!que!trouxeram!ao!Brasil!sua!sabedoria,!sua!expea riência!e!sua!relação!com!a!vida!que!nasce!da!terra.!A!fazenda!São! José!foi!comprada!pelo!pai!de!Afonso!e!Francisco!e!é!até!hoje!o!susa tento!e!o!trabalho!dos!irmãos.!Os!dois!não!estão!acostumados!a!ena trevistas.! Não! costumam! ter! suas! opiniões! sobre! a! vida! questionaa das.! A! memória,! puxada! e! trabalhada! a! cada! pergunta! feita,! estava! muito!longe!do!presente.!Não!só!no!tempo.!A!memória!estava!presa! em!um!lugar!onde!é!segura.!Em!um!lugar!onde!aquilo!que!se!conhea ceu!a!vida!toda!ainda!perdura.! Múrcia!e!Almería.!Duas!províncias!vizinhas,!sul!da!Espanha.! Almería! é! província! da! comunidade! autônoma! de! Andaluzia.! Múra !55!


cia,! província! da! comunidade! autônoma! de! mesmo! nome.! Dois! lua gares!que!deram!origem,!através!dos!cultivos!da!Terra,!à!experiência! trazida!nas!malas!desses!viajantes.!Viajantes,!que!no!caso!da!família! Garcia,!só!uniriam!as!experiências!no!Brasil.!O!pai!de!Afonso!e!Frana cisco!veio!de!Almería!com!os!pais!e!os!irmãos!em!1915.!A!mãe!veio! de!Múrcia,!também!com!a!família.!! Josefa!Martinês!é!uma!líder!em!Cafelândia.!Posição!herdada! da!família.!O!tio!era!uma!referência!para!a!colônia!espanhola!da!cia dade.! Uma! senhora! que! aonde! vai! é! reconhecida,! cumprimentada,! respeitada.! Diferente! dos! irmãos! Garcia,! sua! conexão! direta! com! a! Terra! não! existe! mais.! Ela! vive! em! uma! casa! sem! muros,! com! uma! imagem! de! Santo! Antônio! no! Jardim,! no! centro! de! Cafelândia.! O! Centro!Espanhol,!local!que!ela!cuida!e!dirige,!está!logo!ao!lado,!uma! rua!paralela.!O!sítio!do!pai!ainda!conserva!a!mesma!casinha!de!paa redes! brancas,! pequena! e! singela,! em! Cafelândia,! interior! de! São! Paulo.!Casinha!que!abrigou!os!avós!paternos!de!Josefa!e!mais!doze! filhos.! O! sítio! é! uma! viagem! no! tempo! que! transporta! ao! ano! de! 1919.!Com!os!mesmos!traços,!as!mesmas!árvores,!a!mesma!linha!de! trem!bem!acima!do!teto!da!casa.!Os!trilhos!do!grão.!! A! família! do! pai! de! Josefa! veio! de! Múrcia! para! o! Brasil! em! 1914.! Após! a! morte! do! pai,! Josefa! e! os! irmãos! resolveram! vender! a! propriedade.!O!marido!de!Josefa!é!uma!pessoa!urbana,!como!ela!exa plicou.!O!casamento!apresentou!outras!prioridades.!A!Terra!e!o!grão! são!hoje!lembranças!de!tempos!felizes.!De!brincadeiras!no!sítio.!Do! carinho!dos!avós.!O!pai!de!Josefa!é!de!Múrcia,!a!mãe,!de!Almería.! ' ' ' ' ' 56!

!


Uvas e Azeitonas e neve ! ! ! ! !

M

úrcia,!1914.'A!água!corria,!e!o!que!se!plantava!dava.!Múrcia! situaase!no!vale!do!rio!Segura.!Águas!que!fazem!existir!as! tão!famosas!huertas.!Os!cultivos.!Uma!cidade!que!deposita!

muito!de!sua!sorte!na!agricultura.!Uma!terra!que!produz!as!verduras! das! quais! se! orgulham! seus! moradores.! Múrcia! tem! uma! história! que! remete! à! mais! longa! antiguidade.! Província! à! beiraamar,! suas!

terras!já!foram!visadas!por!muitos!povos.!A!arquitetura,!sua!gente!e! seus!símbolos!são!um!pedaço!da!efervescência!cultural!da!Espanha.! A!província!abre!os!braços!para!o!mediterrâneo,!e!o!mar!lhes!trouxe! seus! forasteiros.! Os! anos! de! Múrcia! contam! muitas! batalhas! entre! mulçumanos,!romanos!e!visigodos.!Após!a!reconquista!do!território! espanhol,!o!que!se!observa!são!as!reminiscências!de!um!grande!Ima pério.!O!povo!árabe!deixou!para!Múrcia!a!tecnologia!da!agricultura.! Las!norias,!rodas!enormes!de!madeira!que!retiravam!a!água!para!ira rigação,!encontramase!espalhadas!ao!longo!do!rio!Segura.! Diogo! Martinez! observava! a! propriedade.! Próxima! a! ela,! as! velhas!norias!de!irrigação.!Era!uma!pena!deixar!a!terra.!Era!um!lugar! iluminado!por!diversas!belezas,!tinha!orgulho!de!Múrcia.!Mas!aquea les!não!eram!tempos!de!paz!e!prosperidade!na!Espanha.!Os!cultivos! não!estavam!como!antes.!Desde!a!enchente!que!acabara!com!muitas! plantações! locais! e! fizera! diversos! estragos! ao! redor! da! cidade,! o! tempo!andava!incerto.!Secas!muito!frequentes.!Em!alguns!locais!faa lavaase!em!fome.!Era!muito!difícil!ver!uma!terra!fértil!como!aquela,! !57!


entregue!à!falta!de!esperança.!De!fato!a!onda!migratória!já!começara! há!alguns!anos.!Era!tempo.!As!notícias!eram!preenchidas!com!proa messas!de!muita!prosperidade.!Espanhóis!com!uma!vida!confortável! no! Brasil,! alguns! até! muito! ricos.! E! continuaria! trabalhando! com! a! terra.!Exceto!pelo!fato!de!que!não!seria!a!sua.!Olhava!a!propriedade! e!pesavaalhe!partir.!Quantas!uvas!aquela!terra!já!não!teria!lhe!dado?! Terra!que!lhe!dera!doze!filhos.!Especialmente!por!isso!deveria!para tir.!Maria!há!muito!insistira.!José!já!contava!dezesseis!anos!e!a!Eua ropa! bulia! como! óleo! fervendo.! Logo! chegaria! ali! o! recrutamento.! Guerra.!Palavra!hostil!e!desconhecida.!Havia!medo!e!havia!fome.!A! Guerra!arremataria!aqueles!tempos!difíceis.!! A! família! olhou! as! montanhas.! Múrcia! era! uma! velha! mãe! cujos! filhos! sempre! lhe! deram! brigas! a! apartar.! Olharam! a! casa,! as! rodas,!o!rio.!Tudo!ali!parecia!sofrer!por!ficar!pra!traz.!De!um!modo! ou! de! outro,! sofriam! também! por! deixáalos.! Mas! a! Terra! agora! era! São!Paulo,!o!grão!era!o!café.!Múrcia,!tão!cheia!de!luz,!ponto!de!unia ão! entre! neve! e! calor,! em! breve! seria! diferente.! A! Guerra! chegaria! até!lá!mais!uma!vez.!Partiram.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 58!

!


Começo do Século XX ! ! ! ! !

O

!dia!estava!muito!frio.!Parecia!o!último!presente!que!Múrcia!

dava!à!família!Asnar.!Apesar!do!frio,!a!neve!lhes!presenteava! com!um!espetáculo!que!provavelmente!não!veriam!mais.!O!

Brasil!era!conhecido!por!seu!clima!tropical.!Já!as!montanhas!da!rea gião! sabiam! congelar! seus! moradores! de! vez! em! quando.! Martins! pensava!ser!um!sinal.!Estranhamente,!não!sentia!a!despedida!coma pleta.!Dois!dos!filhos!ficariam!em!terras!espanholas.!Era!realmente! uma!paisagem!bonita.!A!quinta!da!família!Asnar!estava!toda!branca.! Os!flocos!caíam!do!céu!devagar,!a!natureza!construía!uma!sinfonia! muito!particular.! A!quinta!é!o!que!se!conhece!no!Brasil!como!uma!propriedaa de! de! terra! pequena,! uma! espécie! de! chácara,! com! algum! tipo! de! produção.! Ali! viveram! por! muito! tempo! Martins! Asnar,! sua! esposa! Joana! e! os! sete! filhos.! André! era! o! mais! velho.! Deixaria! a! Espanha! com! dezenove! anos.! Possuía! experiência! com! agricultura! e! muita! vontade! de! trabalhar.! Aquele! século! se! iniciou! difícil.! A! neve,! que! caía! muito! raramente! na! região,! era! apenas! um! indício! de! tempos! mais!frios.!Fome,!guerra.!Muitos!debandavam!de!Múrcia,!região!que! enviou!muitos!trabalhadores!imigrantes!para!a!América.!América.!A! propaganda!da!imigração!era!um!verdadeiro!colosso.!Famílias!inteia ras! deixavam! suas! vidas! para! seguir! um! sonho! distante! no! Brasil.! São!Paulo.!Grande!produtor!mundial!de!café.!Val!de!Palmas,!fazena

!59!


da!que!seria!o!destino!dos!Asnar!era!uma!das!mais!produtivas!máa quinas!do!grão!no!estado.!Por!conseguinte,!do!mundo.! André! Asnar! é! também! o! nome! de! um! dos! filhos! que! o! joa vem!André!viria!a!ter!no!Brasil.!O!filho!é!mais!conhecido!como!Zia nho,!o!alfaiate.!Mais!uma!das!personalidades!de!Cafelândia.!O!cena tro! da! cidade! é! residido! por! nomes! notórios.! Próximos! da! casa! de! Zinho! estão! também! Josefa! Martinez,! a! “fina”,! como! todos! a! chaa mam,! e! a! “fazendinha”,! a! casa! e! os! terrenos! da! família! de! Benito! Sanchez,!o!que!sobrou!da!antiga!fazenda!Leopoldina.!! No! dia! que! entrevistei! Zinho,! era! fim! de! tarde! em! Cafelâna dia.! Na! estrada,! as! paisagens! cansadas! da! noroeste! exibiam! o! pôra doasol.! Mais! um! dia! daquela! que! se! tornou! a! maior! viagem! que! eu! realizara! até! o! momento.! Conheço! as! terras! daquela! região! desde! criança.!Lá!sujei!as!mãos.!No!entanto,!havia!todo!um!universo!que! eu! desconhecia.! Cheguei! a! Cafelândia! já! estava! quase! anoitecendo.! Zinho! mora! em! uma! esquina! que! precede! a! rua! que! conheço! tão! bem.!Quantos!natais,!páscoas!e!outras!datas!comemorativas!eu!não! passara!na!antiga!casa!de!Benito?!Quantas!vezes!não!acompanhara! minha! avó,! Rosalinda?! Passei! muitas! noites! ali.! Um! lugar! preso! ao! passado.!Tudo!é!antigo.!O!único!elemento!a!destacarase!como!pera tencente!aos!nossos!tempos!é!a!geladeira.!No!entanto,!logo!ao!lado! está!a!velha!mesa!de!jantar.!Todas!as!vezes!que!vejo!a!sala!de!jantar,! imagino!Benito!e!Isabel!jantando,!pensando!na!vida!extensa!que!reaa lizaram! juntos.! Na! sala,! a! paisagem! da! ilha! de! Mallorca! pintada! na! parede!a!preenche!por!inteiro.!Minha!avó!sempre!contava!que!a!ilha! era! o! cenário! onde! Chopin! e! George! Sand! se! encontravam.! Eram! amantes.! Encarnación! fora! quem! pintara.! Na! estante,! vários! volua mes!sobre!a!vida!da!escritora!e!amante!de!Chopin.!Encarnación!era! mesmo!encantada!com!esta!história.!Hoje!a!casa!está!à!venda.!Sema pre!penso!que!quem!compráala!fará!um!erro!se!encobrir!a!paisagem! de! Mallorca.! Mas! as! coisas,! apesar! de! sólidas,! nunca! são! realmente! 60!

!


nossas,!elas!“estão”!nossas.!No!instante!seguinte,!a!parede!pode!esa tar! branca.! Fazendinha! é! como! nos! referimos! a! velha! casa! da! Leoa poldina.!Foi!ali!que!realizei!meu!primeiro!ato!de!rebeldia.!Com!dois! anos,!em!uma!das!vezes!que!visitávamos!o!local,!escapuli!das!atena ções!de!minha!mãe!e!fui!andar!pelo!centro!de!Cafelândia.!Por!sorte! alguém! que! conhecia! minha! avó! me! encontrou.! E! eu! sabia! bem! o! que! responder:! “Sou! lá! da! fazendinha,! só! vim! dar! uma! voltinha”.! Imagino!que!essa!pessoa!boa!deve!ter!se!divertido!com!aquela!criana ça.! Devolveuame! à! casa! em! segurança.! André! Asnar! filho! e! Josefa! Martinez!moram!muito!perto,!e!nunca!os!conheci.!A!vida!toda,!essas! pessoas!eram!próximas.!De!moradia,!de!identidade,!de!família.!E!eu! nem!o!sabia! Zinho!estava!me!esperando.!Quando!cheguei,!muito!educaa do,!se!adiantou!ao!portão.!Estava!com!seus!óculos!e!a!cadeira!da!vaa randa! mostrava! documentos! que! ele! consultara.! Estava! ligando! o! motor! da! memória.! André! Asnar! filho! é! o! alfaiate! mais! célebre! da! região,! talvez! o! único! em! nossos! dias.! Depois! descobri! que! aquele! senhor! de! olhos! muito! azuis! fizera! várias! das! roupas! que! a! família! Sanchez!usara.!É!um!personagem!de!outros!tempos.!Tudo!em!seus! modos,! sua! fala,! sua! casa,! diz! que! ele! pertence! a! um! tempo! que! se! foi.!Levouame!para!ver!sua!oficina.!No!molde,!um!terno!cinza!escuro! com!a!costura!perfeita.!Conforme!íamos!conversando,!estranhamena te,!eu!me!sentia!em!casa.!A!fala!pausada,!a!noite!quieta.!De!tempos! em!tempos!éramos!interrompidos!por!pessoas!que!o!cumprimentaa vam!da!rua.!Ouvi!ali!uma!palavra!que!talvez!nunca!tenha!sido!diria gida!a!mim.!“Vosso,!vossa,!vossos”.!São!detalhes!que!só!fazem!parte! do!universo!de!lugares!como!Cafelândia.!Uma!terra!cheia!de!memóa ria.!! ! !! ! ! 61!


Naquela!noite!em!Múrcia,!a!família!Asnar!fazia!a!última!rea feição! com! toda! a! família.! Brindavam! a! novos! tempos! enquanto! a! neve! caía! lá! fora.! A! janela! mostrava! as! plantações! de! azeitonas! e! o! gadinho!escasso,!coisas!que!deixariam!para!traz.!Martins!lembravaa se!do!casamento.!Lembravaase!da!vinda!de!Joana!para!Múrcia.!A!esa posa!era!da!fronteira!com!o!Marrocos.!Joana!sentia!de!deixar!os!dois! filhos,! mesmo! que! tivessem! seguido! o! próprio! rumo,! construindo! seu!próprio!destino.!André!sentia!um!misto!de!sentimentos.!Felicia dade.! Medo.! Animação.! Martins! olhava! a! família! e! sentiaase! um! homem!de!sorte.!Em!breve!o!azeite!se!tornaria!o!café.!A!neve!caía.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 62!

!


1891, a jornada ! ! ! ! !

R

amón! ainda! ouvia! os! sinos! da! igreja! tocarem.! BLÉM!! BLÉM!!

BLÉM.!Seu!pai!se!fora!há!meses,!mas!em!sua!cabeça,!os!sinos! continuavam.! Perguntara! à! mãe! se! o! mesmo! acontecia! com!

ela.! Olharaao! de! modo! estranho.! Triste.! Resignada.! Condescendena te.!Passou!a!mão!em!seus!cabelos!e!dissealhe!que!às!vezes,!sim.!Um! dia!passaria.!Não!pensava!assim.!Às!vezes!à!noite,!quando!fechava!os! olhos,!podia!sentir!tudo!de!novo.!Tudo!lhe!voltava!à!mente.!O!choro! dos!irmãos.!A!languidez!da!mãe.!O!último!olhar!que!o!pai!lhe!dera,! como!quem!diz:!sei!que!é!muito!que!deixo!a!você,!és!muito!pequea no.! E! então! os! sinos! do! velório.! BLÉM!! BLÉM!! BLÉM!! Parecia! que! vinham!de!dentro!da!própria!cabeça.!Os!irmãos!iam!bem,!ao!menos! era! a! impressão! que! tinha.! Benito! era! muito! carinhoso! com! os! oua tros,!e!com!ele!também.!Até!Ancelma!já!aparentava!conformarase.!E! não!é!que!ele!não!se!conformasse.!Tentava.!O!esforço!era!grande.!A! verdade!é!que!não!sabiam!como!era!estar!no!lugar!dele.!As!palavras! não!saíam!de!sua!cabeça:!“Não!deves!temer.!Agora!será!o!homem!da! casa.”!Isso!lá!era!coisa!que!se!dissesse!a!uma!criança?!Não!importa!o! que!que!pensassem.!Tinha!quatorze!anos,!ainda!era!apenas!uma!cria ança,!não!queria!ter!tal!responsabilidade.!Não!queria,!mas!não!tinha! o!que!fazer.!A!mãe!era!a!mulher!mais!forte!que!conheceu.!Mas!sabia! que!contava!com!ele!para!continuar.!E!aquele!plano.!Logo!embarcaa riam.!Não!sabia!o!que!iria!sair!disso.!Diziam!que!muitos!morriam!no! caminho.!Morriam!como!o!pai.!Só!de!pensar!o!estômago!embrulhaa !63!


va! de! medo.! Aquele! mar! imenso.! Ninguém! controlava! o! mar.! Nina guém!podia!protegêalos!do!mar.!E!ainda!tinha!Luciano.!O!bebê!ficaa ria!para!trás.!A!mãe!o!buscaria!depois.!Quando!já!tivessem!se!ajeitaa do.!Nem!sabia!como!seria!o!lugar!para!onde!iriam.!Brasil!se!chamava! o!país.!Será!que!havia!mesmo!índios!por!lá?!É!o!que!diziam!alguns.!E! negros.!Negros!sem!emprego,!pobres,!andando!pelas!ruas.!Não!dizia! aos!irmãos,!à!mãe.!Mas!nunca!achara!que!era!possível!uma!criança! sentir!tanta!vertigem.! Benito!estava!animado.!Não!dissera!isso!a!ninguém,!é!claro.! Soaria!estranho.!Não!fizera!muito!que!o!pai!se!fora.!Ainda!estavam! de! luto.! E! Ancelma,! quando! olhava! a! irmã,! quando! pensava! nela,! sentiaase!culpado!por!estar!assim.!Ela!sentia!muita!falta!do!pai.!Mas! sabia!que!um!dia!passaria.!Ele!tinha!seus!momentos,!também.!Mas! era!só!uma!criança.!Tinha!os!irmãos,!a!mãe,!e!aquilo!era!uma!avena tura,! não! podia! negar.! Não! imaginaria! conhecer! outra! cidade,! uma! cidade!com!mar,!ainda!por!cima,!tão!novo.!Tudo!ali!era!diferente.!As! casas.!A!cor.!O!cheiro!de!mar.!As!pessoas!apressadas!e!amontoadas,! todas!com!o!mesmo!objetivo!que!eles,!todas!em!busca!de!um!muna do!novo.!Mas!ouvira!a!mãe!conversando!com!as!pessoas!diversas!vea zes.!Diziam!que!a!terra!era!vasta,!que!havia!muitas!famílias.!Muitos! meninos!como!ele.!Mas!a!mãe!não!lhes!escondeu:!todos!trabalharia am!duro!para!um!futuro!melhor.!Ele,!mesmo!muito!pequeno,!trabaa lharia!tão!duro!quanto!os!outros.!Tinha!um!medo!que!não!era!mea do.!Era!um!frio!na!barriga.!Sentia!que!tudo!mudaria.!Aliás,!já!mudaa ra.!O!pai!se!foi!como!uma!vela!que!a!gente!apaga!quando!vai!dormir,! e!só!então,!percebe!que!era!fogo.!Sentia!falta!daquela!alegria!que!era! sempre!a!mesma,!e!era!sempre!inédita,!de!saber!de!sua!chegada.!Às! vezes!trazia!algum!regalo.!Às!vezes!era!só!seu!sorriso.!E!já!era!o!sufia ciente.!Muito!raramente,!dava!a!sorte!de!encontrar!o!pai!apontando! na! estradinha.! Era! uma! felicidade! genuína.! Benito! era! um! menino! muito! sensível,! muito! apegado! aos! outros.! Sempre! sentira! que! há! 64!

!


uma!espécie!de!sensação!de!lar!que!só!se!completa!estando!com!as! pessoas.! Nunca! estaria! em! casa! de! novo,! não! a! casa! que! conhecia.! Seriam! outros! lares.! O! lar! que! apontava! na! estrada,! com! um! golpe! de!muita!sorte,!em!um!fim!de!tarde.!Nunca!mais!teria!este!lar.!Não! era!tristeza.!Era!um!sentimento!que!Benito,!muito!novo,!nem!sabia! descrever.! Sentiaase! nostálgico.! De! repente! lembrouase! de! cada! momento!precioso!de!tivera!em!Cepeda.!As!refeições!em!família.!As! histórias! do! pai.! Cada! nascimento! dos! irmãos.! A! responsabilidade! de!cuidáalos.!Não!veria!as!montanhas!por!muito!tempo.!A!praça.!As! festas.!Já!sentira!saudade!de!tudo.!Olhou!o!rostinho!de!Luciano!no! colo!da!tia,!ele!esticou!a!mãozinha.!A!garganta!apertara,!tivera!vona tade!de!sentar!e!chorar.!Aquele!mundo!era!demasiado!novo.!As!caa sas!do!porto.!O!cheiro!de!peixe.!Cheiro!de!rua.!Crianças!chorando.! Mães! chorando.! Famílias! inteiras! chorando.! Famílias! inteiras! sorria dentes.!Perfumes!diversos.!Muitas!crianças!pediam!dinheiro.!Sentiu! mais!vontade!de!chorar.!Tudo!rodava!a!sua!volta!e!Benito!se!assustaa ra.!Vira!mulheres!sorridentes!e!com!roupas!estranhas,!conversando! com! homens! no! porto.! Sua! mãe! mandara! não! olhar.! Pela! primeira! vez,!sentira!medo!do!mundo.!E!então!viu!o!navio.! ! !! ! Quando!é!que!se!tinha!certeza!de!algo?!Quando!se!sabia!esa tar! tomando! a! melhor! decisão?! Não! era! uma! resposta! que! Rosalia! sabia!dar.!Há!meses!que!sua!vida!revirara!de!um!modo!inesperado.! Se! parasse! para! pensar,! não! moveria! um! passo! com! precisão.! Se! olhasse! para! trás,! não! encontraria! o! caminho! de! casa.! Sebastián! se! fora,! e! com! ele! o! esteio! que! havia! planejado! toda! a! sua! vida.! Nem! seu!passado!parecia!muito!real!quando!se!lembrava.!O!que!fora!a!via da!antes!de!casarase?!Não!sabia.!O!que!seria!a!vida!depois!de!Cepea da?! Não! sabia.! O! que! não! sabia,! principalmente,! é! de! onde! tirara! !65!


forças.!A!igreja,!os!sinos.!Todo!seu!futuro,!ali!naquela!cova.!Passara! muitos! dias! movendoase! automaticamente.! Fizera! tudo! por! hábito.! Por!costume!de!fazer.!E!então!via!a!cama!vazia!ali,!e!de!repente,!era! puxada!de!volta.!Uma!realidade!amarga.!Cinza.!Encoberta!de!poeira.! Parecia!uma!grande!piada!de!mau!gosto.!Via!a!situação!nas!ruas!caa da! vez! pior.! Pessoas! sem! emprego.! Pessoas! passando! fome.! A! ecoa nomia?! Uma! grande! derrocada.! É! o! que! diziam.! “Senhor,! com! que! forças!enfrentarei!tudo!sozinha?”.!Tinha!de!cuidar!dos!cinco.!Eram! apenas!crianças...!“Tende!piedade,!Senhor,!e!dêame!forças”.! Foi! então! que! se! lembrara! da! palavra.! Imigrante.! Por! um! tempo!relutou!em!aceitar!aquela!realidade.!Não!seria!a!sua.!Não!poa deria! ser.! Como! podia! largar! seu! país?! O! país! de! Sebastián?! Como! podia!deixar!pra!trás!todos!os!sonhos?!As!lembranças.!Cada!tijolo!da! bodega! construído! com! a! esperança! de! um! futuro! próspero.! Como! poderia?!Não!teria!forças!suficientes.!Mas!então!olhara!as!crianças.! Vira! em! cada! rosto! o! futuro! se! ficassem! naquele! lugar.! Fome.! Solia dão.!Falta!de!esperança.!Deveria!lutar.!Só!sobrara!ela!para!olhar!pea los!filhos!afinal,!teria!que!ser!pai!e!mãe.!Passaram!por!muito!nos!úla timos!meses.!Via!em!Ramón!o!medo!da!missão!que!recebera!do!pai.! O!filho!mais!velho!sempre!acabava!sendo!menos!criança!que!os!oua tros,! especialmente! se! fosse! homem.! Lutaria! sempre! e! sempre,! até! acostumarase! à! nova! realidade.! Aprenderia! os! serviços! da! lavoura.! Aprenderia!a!lida!com!o!Café.!Café.!O!grão!seria!sua!vida.!Naquele! momento,!decidiu!que!enfrentaria!a!realidade!crua!e!estranha!que!a! vida!lhe!dera.!Deus!escreve!certo!por!linhas!tortas,!pensou.!A!partir! daquele!momento,!planejou!todos!os!detalhes!da!viagem!para!o!Braa sil.! Rosalia! começou! a! receber! o! apoio! de! conhecidos,! e! também! soube!de!mais!pessoas!que!iriam!se!aventurar!na!América.!A!mesma! fuga.!A!gripe.!A!fome.!! Estimaase! que! a! esperança! de! vida! de! uma! pessoa! na! Espaa nha,!no!final!do!século!XIX!era!de,!em!média,!29!anos.!Segundo!daa 66!

!


dos!da!Organização!Panamericana!de!Saúde,!cerca!de!20!milhões!de! pessoas!morreram!de!influenza!em!todo!mundo,!índice!que!se!deve,! em!boa!parte,!à!intensa!atividade!imigratória!no!final!do!século!XIX! e!início!do!século!XX.! !Partiriam!em!busca!de!condições!melhores.!Condições!mea lhores.!Era!estranho!pensáalo,!quando!partiam!para!substituir!aquea le! que! é! o! estado! mais! baixo! da! condição! humana:! a! escravidão.! Quantos!negros!no!Brasil,!naquele!exato!momento!em!que!preparaa vam! suas! viagens! com! tantos! sonhos! nos! bolsos,! não! sofriam! o! abandono?! A! fome?! A! miséria?! No! mesmo! lugar! cujos! sonhos! de! prosperidade! e! dias! melhores! depositavam! tantos! estrangeiros.! O! ouro!de!uma!pessoa!é!a!miséria!de!outra.!Soubera!que!os!trabalhaa dores! ganhavam! um! pedaço! pequeno! de! terra,! que! alguns! cultivaa vam!o!próprio!café.!E!os!escravos!foram!distribuídos!nas!ruas,!sem! destino!certo.!Vivendo!em!um!país!que!os!ignorava.!Brasil,!este!era!o! país!o!qual!se!aventuraria!aquela!Viúva!e!seus!cinco!filhos.! Olhava!o!porto.!Um!local!vertiginoso.!Cheiros.!Cores.!Sons.! Toda!a!mistura,!procurando!abrigo!no!mesmo!sonho!ao!qual!carrea gava!sua!família.!Nunca!imaginara!dividir!nada!com!desconhecidos.! E!lá!estava!ela.!Partindo,!indo!dividir!um!espaço!em!um!navio.!Mea ses!a!fio.!Pessoas!que!vinham!de!vários!lugares!da!Espanha.!Falando! diferente,! vestindo! diferente.! Pessoas! que! talvez! fossem! para! o! mesmo!lugar!que!ela.!Trabalhar!na!mesma!lavoura.!Suar!do!mesmo! suor.! Se! parasse! para! pensar,! não! moveria! um! passo! com! precisão.! Se!olhasse!para!trás,!não!encontraria!o!caminho!de!casa.!Estava!prea sa!naquele!presente.!Tinha!apenas!uma!visão!borrada!do!futuro.! Pararam!com!a!família!em!um!café.!A!última!refeição!antes! da!viagem.!Sabease!lá!o!que!comeriam!no!navio.!Temia!pelos!filhos.! Mas!a!angústia!que!a!consumia!era!outra.!Era!outro.!Luciano.!O!bea bê! ficaria! com! a! cunhada! na! Espanha.! Pelo! menos! por! um! tempo.! Era! um! risco! muito! grande! levar! um! bebezinho! em! um! navio! com! !67!


todo!tipo!de!gente,!de!todo!tipo!de!lugar.!Uma!perda!já!lhe!custara! muito.!Não!saberia!lidar!se!perdesse!Luciano.!Se!sobrevivesse!ao!naa vio,!ainda!teria!a!incerteza,!não!tinha!lugar!pra!morar.!Pretendia!asa sentarase!como!desse,!junto!com!os!outros!colonos,!até!comprar!sua! terrinha.!Vendera!a!bodega!pensando!nisso.!Um!bebê!passando!por! casas!de!imigrantes,!por!colônias...!Não!era!certo.!As!crianças!estaa vam!caladas.!Comiam!religiosamente.!Olhavam!o!horizonte,!insegua ras.!Sentiaase!responsável!por!essa!insegurança.!Mas!tinha!fé.!Muita! fé.!Tudo!aquilo!iria!compensar.! O! navio! apitou.! As! pessoas! eram! conduzidas,! orientadas! a! subir.!Os!pequenos!olharam!para!ela!e!não!disseram!uma!só!palavra.! Já!era!hora!de!partir.!Sentiu!o!estômago!fundirase!ao!coração!e!batea rem!juntos,!como!se!fossem!um.!Pegou!as!crianças!pela!mão.!Ramón! conduzia! os! outros.! Benito! segurava! a! mão! de! Ancelma.! Ancelma! começou!a!chorar.!É!que!lembrou!do!pai.!Lembrou!que!talvez!nunca! mais! visitaria! seu! túmulo.! Estava! deixando! o! pai! para! trás.! E! doíaa lhe.! Tinha! medo.! Rosalia! sabia! o! motivo! da! angústia! da! filha.! Mas! não!tinha!o!que!dizer,!sentia!o!mesmo.!A!cunhada!entregoualhe!Lua ciano.! Ela! apertou! o! bebê! nos! braços.! Sentiu! o! toque! de! sua! pele.! Viu!seus!olhinhos.!Abraçouao!e!sentiu!o!cheiro!do!bebê!Luciano,!pea la! última! vez.! Quando! o! visse! de! novo,! Luciano! não! seria! mais! um! bebê.! Perderia! essa! transição.! O! navio! apitava.! O! condutor! gritava! para!que!as!pessoas!se!apressassem.!Quando!entregou!o!filho,!divia diuase.! Corpo! e! espírito.! Metade! dos! dois.! Metade! da! pele.! Metade! do!coração.!Fora!dilacerada!ali,!pela!dor.!E!uma!parte!sua!ficara.!Sua biu!com!os!filhos.!Lá!de!cima,!olhava!o!bebê.!As!lágrimas!jorraram,! embaçaram!sua!visão.!Aguentara!tempo!demais.!Ramón!apertou!sua! mão!mais!forte.!Enquanto!via!o!rostinho!de!Luciano!pela!última!vez! no! que! viria! a! ser! uma! espécie! de! eternidade,! pensara:! “Não! sabe! ainda,!mas!estou!salvandoao”.! 68!

!


Benito!vira!tudo!em!câmera!lenta.!As!pessoas!chorando,!sora rindo.!As!pessoas!flutuavam.!Todo!tipo!de!pessoa!que!fazia!parte!de! todo! tipo! de! família.! Alguns! até! traziam! os! animais.! De! repente! lembrou!do!burro!que!o!pai!viajava!pelo!vale,!tantas!vezes.!Lembrou! daquele! sorriso! torto.! Daquele! pedido! de! desculpas! por! ir! embora.! Lembrara!que!um!corpo!ficaria!ali,!naquela!Terra.!Aquela!Terra!que! deixaria.! Aquele! corpo! que! não! veria! mais.! Acompanhou! a! subida! dos! seus! ao! navio.! Viu! a! mãe! tremer! e! chorar,! deixando! Luciano.! Sentiu!o!coração!doer,!estava!deixando!o!irmão!também.!A!cabeça,!a! mente! bagunçada! de! criança,! tentava! dizer! que! o! veriam,! que! não! era!um!despedida.!Mas!seu!instinto!lhe!doía!por!todo!o!corpo.!Estaa va! abandonando! o! irmão.! Viu! a! mãe.! Viu! Ramón! apertar! sua! mão! muito!forte,!temendo!um!abraço.!Apertou!a!mão!de!Ancelma!mais! forte!e!tentou!sorrir!para!Prudêncio.!Parecia!que!era!o!único!tentana do! colocar! uma! superfície! de! calmaria! ali.! O! navio! fez! um! barulho! ensurdecedor,!que!apagou!as!pessoas.!Apagou!os!irmãos,!a!mãe.!Caa lou!todos!os!sons.!Estavam!deixando!o!povoado.!Estavam!deixando! o!porto.!Estavam!deixando!a!Terra.!O!navio!começou!a!se!mover!e! ele!foi!tomado!por!um!azul!imenso!e!vertiginoso.!Sentiu!a!liquidez,! a!instabilidade.!Não!tinha!mais!os!pés!no!chão.! ! “- Engraçado... a história da família teve muitas mulheres fortes... - Fortes. - Vir sozinha com aquela filharada... - E ela deixou o caçula na Espanha com a cunhada, porque se ela trouxesse, morria no caminho, não existia penicilina, e era parece que dois meses no navio, navio não andava depressa como agora, e pegava uma gripe, morria”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez) ! !69!


! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 70!

!


Alto-mar ! ! “Minha mão dormiu e sonhou que a tua me acenava de um navio a minha mão que partiu na última hora lembrou que era parte do corpo e ficava e já me evitava ela também me encontrou” (Navio, Paulo Leminski) ! ! avios,! máquinas! gigantes.! Assustadoras! e! barulhentas.! Monstros! que!poderiam!assustar!aquelas!pessoas!simples,!tão!acostumadas!à! Nterra! firme.! As! maravilhas! dos! tempos! modernos.! O! velho! senhor! da!vida,!de!mãos!cansadas!e!hábeis,!decidia!o!destino!de!muitos.!O! tempo! fiava! ao! som! de! uma! música! ininterrupta! e! jogava! ao! mar! aqueles! que! deixavam! a! sua! terra.! A! onda! imigratória! das! lavouras! de! café! se! iniciou! no! final! do! século! XIX! e! continuou! século! XX! adentro.! As! novas! corriam! das! cartas! dos! que! lá! estavam! e! mantia nham!seus!laços!com!a!família.!Em!tempos!diferentes,!em!navios!dia ferentes,!pessoas!selavam!seus!destinos.!Rosalia,!viúva!e!sem!o!filho! mais! novo,! dava! o! primeiro! passo! junto! aos! filhos,! Ramón,! Benito,! Ancelma!e!Prudêncio.!As!engrenagens!do!café!estavam!começando.!! Francisco!e!Adelaide!também!levavam!os!filhos,!deixando!Lucar!e!os! seus!para!trás.!! Anos!depois,!a!família!Garcia!também!colocava!seus!pés!nos! grandes! vapores! da! imigração,! assim! como! outros! moradores! de! Múrcia,! Diogo! Martinez! e! André! Asnar! e! suas! famílias.! Todos! se! ! 71!


lançavam!rumo!ao!desconhecido.!Nenhum!deles!sabia!com!certeza! o!que!encontrariam!lá.! Maria!Martinez!olhava!o!mar!e!sentia!falta!da!terra.!Os!filhos! todos!ali.!Oito!homens!e!quatro!mulheres.!Tinha!medo!de!perdêalos! de! vista,! mas! não! conseguia! deixar! de! olhar! o! mar.! A! pequena! ana gustiavaaa,!não!estava!bem!há!dias.!Suava!o!tempo!todo!e!mal!dora mia.! Ainda! faltava! muito! para! chegarem! a! Santos.! Tinha! medo! de! que!não!conseguisse.!Ouvira!histórias!sobre!outras!crianças,!velhos,! e!até!homens!fortes!que!haviam!morrido!nos!navios.!Apesar!de!cona siderarase!preparada!para!essa!realidade,!sentir!tão!perto!a!morte!de! alguém!querido!era!algo!que!tirava!parte!de!si.! Enquanto!não!aportassem!em!terra!firme!não!se!sentiria!sea gura.! Mas! lá! estava! José,! o! mais! velho,! sorrindo.! Estava! a! salvo.! Às! vezes!tinha!a!sensação!tola!de!que!a!qualquer!momento!apareceriam! para!fazêalo!servir!o!exército.!Tudo!poderia!ser!diferente,!talvez!o!tea ria!perdido.!Talvez!nunca!teria!visto!o!sorriso!de!José.!As!leis!eram! duras,!ele!ainda!era!um!menino.! Diogo!chegara!devagar,!ou!seriam!seus!olhos!que!viram!daa quele! jeito?! Parecia! que! demorara! uma! eternidade! para! dar! alguns! simples! passos.! Colocou! a! mão! em! seu! ombro! e! encarouaa! longaa mente.! O! chão! abriraase! num! abismo! e! sentia! que! caía! continuaa mente!e!sempre!mais!fundo.!Apoiouase!no!marido.!Os!outros!olhaa vam!com!uma!mistura!de!pena,!medo,!empatia.!Trouxeram!o!corpo! da!menina.!Pequeno,!sem!cor,!apático.!Maria!abraçouaa!e!de!repente! não!estavam!mais!ali,!todos!sumiram.!O!navio,!o!mar,!os!outros,!o! mundo.!Era!uma!superfície!gelada!e!Maria!tinha!as!filhas!nos!braços.! Apenas!essa!realidade!era!concreta.!Ali!Maria!viveu!sua!pequena!via da! paralela! em! um! lugar! do! mundo! em! que! só! existia! aquele! moa mento.!Um!momento!que!durara!para!sempre.! Os!outros!se!achegaram!dela!e!o!marido!implorou!sem!prea cisar!pronunciar!uma!palavra.!Ela!sabia.!O!corpo!doente!não!podia! 72!

!


ficar!ali.!Não!moveu!um!braço.!Inerte,!retiraram!a!menina!e!a!levaa ram.! Maria! quedouase! pesada,! cinza! e! fria.! Quando! voltaram,! não! era!mais!a!filha!que!acalentara,!amamentara!e!vira!crescer.!Era!uma! massa!estranha!e!sem!vida,!envolta!em!panos!de!cor!morta.!Não!toa cou! a! filha! de! novo,! voltara! a! existir! pesada! e! solitariamente,! parte! do!que!seria!de!agora!em!diante.!! Jogaram! o! corpo! ao! mar.! O! pequeno! embrulho! fez! um! vôo! baixo!e!lento!até!atingir!o!chão.!Maria!sentiu!que!a!gravidade!arrana cavaalhe!a!pele!e!puxavaaa!para!o!fundo.!O!corpo!bateu!no!mar.!Maa ria!rompera!por!dentro.!O!corpo!afundou.!Maria!nunca!mais!seria!a! mesma!pessoa.! ! “É, na verdade, agora que a gente tem mais idade, a gente reconhece... Sofreu muito. Ela perdeu uma filha durante a viagem, ter que ver jogar essa filha no mar, deve ter sido... Então pra ela aquilo deve ser muito doído. Uma pessoa com 12 filhos. Chegava aqui tinha a terra, mas não tinha nada. Tinha que plantar pra comer, tinha que lutar com 12 filhos daquele jeito, não deve ter sido fácil pra ela. Então ela era aquela pessoa assim... A gente falava... Dura... Seca”. (Entrevista com Josefa Martinez) ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !73!


! ! !

! Rosalia Salazar. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

! ! ! ! 74!

!


! ! !

! Francisco Encinas à direita. (Foto cedida por Otília Encinas)

! ! ! ! !75!


! ! !

! Adelaide, no centro, e os filhos Antônio, à esquerda, e Rafael, à direita. (Foto cedida por Otília Encinas)

! ! ! 76!

!


! ! !

! Cepeda, Espanha. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

! !77!


! ! !

! Cepeda, Espanha. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

! 78!

!


! ! !

! Berja, Espanha. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

!

! A casa de Diogo Martinez em Múrcia, Espanha. (Foto cedida por JosefaMartinez)

! !79!


! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 80!

!


P A R T E

2

O Nascimento Do Grão ! ! ! ! ! ! ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ! 81!


' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ! ! ! 82!

!


Terra à Vista ' “Laço de fita amarela Na ponta da vela no meio do mar Ei nós, que viemos De outras terras, de outro mar Temos pólvora, chumbo e bala Nós queremos é guerrear” (Peixinhos no Mar, Milton Nascimento) ! !

D

iáspora.! Deslocamentos,! forçados! ou! incentivados,! de! grandes!massas!populacionais!originárias!de!uma!zona!dea terminada!para!várias!áreas!de!acolhimento!distintas.!Sana

tos! representava! a! diáspora.! Não! só! uma.! Várias.! Italianos,! portua gueses,! espanhóis,! japoneses,! alemães,! árabes,! chineses,! coreanos,! lituanos,!russos!e!muitos!outros!povos.!O!porto!fervilhava!de!cultua ras!diferenciadas!misturandoase!em!sons!e!fúria.!Eram!homens,!vea lhos,!mulheres,!crianças...!Eram!pessoas!com!todos!os!tipos!de!famía lia! e! credos.! Eram! pessoas! que! deixaram! sua! terra! por! motivos! dia versos.! Eram! pessoas! que! se! uniram,! no! entanto,! por! possuírem! o! mesmo!sonho!de!prosperar!no!Brasil.!E!Santos!não!só!abrigava!uma! numerosa! colônia! espanhola,! como! também! espalhou! esses! povos! nas!redondezas!do!porto!–!dando!o!apelido,!no!início!do!século!XX,! de!"Barcelona!Brasileira".!! O!porto!era!uma!confusão.!Mães!que!esqueceram!filhos!no! navio.!Pais!que!procuravam!a!mulher!e!os!filhos.!Filhos!que!procua ravam!os!pais.!Pessoas!sozinhas,!também.!Havia!comandantes,!traa !83!


balhadores!do!porto,!donos!de!fazenda,!e!pessoas!da!Hospedaria!dos! Imigrantes.!Alguns!já!possuíam!o!contrato!com!a!terra!e!muitos!oua tros! ainda! passariam! dias! na! pensão,! enclausurados! e! forçados! a! conviver!uns!com!os!outros.!Muito!próximos.!Eram!patrões!apressaa dos,! apitos! de! trens,! crianças! chorando.! De! repente,! um! som! proa fundo.!Mais!um!navio!chegava!ao!porto.! Era! 25! de! novembro! de! 1921.! A! família! Encinas! chegara! a! Santos.!Antônio!olhava!assustado,!o!movimento!encantavaao.!Muito! diferente!de!onde!saíram.!Cheiros!e!cores!diversas.!Línguas!que!ele! desconhecia.!Línguas!que!pareciam!apertar!a!garganta!de!quem!faa lava.!Ao!mesmo!tempo,!o!português!começara!a!caminhar!em!seus! ouvidos,! espalharase! por! suas! terminações! nervosas! e! produzir! ala gum! sentido.! Menos! se! falassem! rápido! demais.! Quando! falavam! rápido!demais,!pescava!as!palavras.!Parecia!que!estava!no!fundo!de! um!vale!olhando!montanhas!ao!redor,!tudo!muito!vasto!e!diverso.! Alguém!os!conduzira!ao!trem.!Nos!vagões,!todo!tipo!de!pesa soas.!Iriam!para!o!mesmo!lugar.!Na!estrada,!paisagens!diversas.!Tua do!muito!verde,!tudo!muito!vivo.!A!atmosfera!respirava!o!ar!úmido! da! serra.! As! propriedades! no! caminho! eram! diversas! das! de! Lucar.! As! casas! eram! outras,! até! o! material! parecia! diferente.! A! mãe! e! as! irmãs!olhavam!fascinadas,!também.!O!mundo!era!grande!e!diverso.! Ficar! muito! tempo! em! um! lugar! tira! das! pessoas! sua! amplitude.! Chegaram! a! São! Paulo,! no! velho! Brás.! Cidade! que! despontava! dos! avanços!da!economia!cafeeira,!símbolo!da!modernidade.!Multifacea tada!como!uma!pintura!cubista.!Logo!a!família!percebeu!a!Hospedaa ria.!Antônio!nunca!tinha!visto!construção!como!aquela,!imponente,! cada!detalhe!do!prédio!diferia!do!que!vira!nas!terras!da!Espanha.! O!prédio!da!antiga!Hospedaria!dos!Imigrantes!é!um!colosso! que!guarda!muita!história!em!suas!paredes.!Sua!construção!se!inicia ou! em! 1886,! e! ainda! em! 1887,! inacabada,! começaram! a! chegar! os! primeiros!imigrantes.!Iniciouase!naquele!ano!o!movimento!que!faria! 84!

!


o!Brasil!receber!mais!de!setenta!nacionalidades!diferentes.!No!início! era! vinculada! à! Secretaria! da! Agricultura,! Comércio! e! Obras! Públia cas,!em!seguida!ao!Departamento!de!Terras,!Colonização!e!Imigraa ção!dirige!o!local,!uma!iniciativa!da!elite!cafeeira!de!São!Paulo.! Ao! longo! de! sua! história! a! Hospedaria! já! possuiu! diversas! funções,!inclusive!prisão.!Em!1932,!na!revolução!constitucionalista,!o! prédio!aprisionava!os!partidários!de!Getúlio!Vargas.!Desde!a!década! de!trinta!a!Hospedaria!passara!por!diversas!reformas,!adquirindo!as! características!arquitetônicas!que!tem!hoje.!O!ano!de!1978!marca!o! fim! das! atividades! imigratórias! no! local.! Em! 1993,! uma! década! dea pois!de!ser!tombado!como!patrimônio,!o!prédio!se!torna!o!Museu!da! Imigração.! No!pátio,!crianças!corriam!e!os!pais!tentavam,!em!vão,!cona troláalas.! Gritos! ecoavam.! Línguas! misturavamase.! No! saguão,! uma! fila! de! famílias! se! cadastrava.! Famílias! de! vários! lugares,! a! maioria! muito!pobre.!Mulheres!com!lenços!na!cabeça,!homens!com!chapéus! precários,!a!maioria!deles!de!pé!no!chão.!Bebês!choravam,!e!os!vea lhos!tinham!olhares!vazios.!Fugiam!da!guerra,!fugiam!da!fome,!fugia am! da! morte.! Aos! poucos,! a! família! Encinas! começara! a! perceber! que! nem! tudo! eram! flores.! O! ambiente! era! hostil! e! desesperado.! Após! o! cadastro,! subiam! para! os! “dormitórios”.! As! camas,! todas! muito!juntas,!e!esteiras!no!chão.!Alas!separadas!para!homens!e!para! mulheres! e! crianças.! A! Hospedaria! parecia! um! hospital! de! refugiaa dos.! Cada! pessoa! adulta! recebia! duas! “rações”! por! dia,! as! crianças,! apenas! uma.! Eram! suas! refeições.! Comiam! todos! juntos! em! um! imenso!refeitório.!Logo!de!início,!uma!lista!de!exames!médicos.!Mea dicina! muito! diversa! do! que! a! maioria! estava! acostumada.! Pessoas! abrindo! suas! bocas! e! olhando! seus! dentes.! Injeções,! remédios,! baa nhos!e!prescrições,!fila!para!tudo.!Não!havia!intimidade!para!aquea les!imigrantes.!Os!Barões!do!café!eram!muito!exigentes,!a!saúde!dea veria!ser!impecável.!Das!crianças,!também.!Todos!os!meninos!devea !85!


riam!trabalhar!nas!lavouras!de!café.!A!saúde!deveria!ser!impecável.! Do! mundo,! traziam! suas! pestes,! suas! pragas,! muitos! convalesciam! no! navio,! outros,! ao! chegar.! A! Espanha! trazia! com! ela! a! Malária,! a! Varíola,! a! Gripe.! Logo! de! início,! assustados! e! adentrando! um! país! completamente! diferente,! os! estrangeiros! percebiam! que! o! grão! tia nha! dois! lados,! um! bom,! e! outro! muito! difícil.! Os! imigrantes! ficaa vam! em! média! uma! semana! na! Hospedaria,! de! onde! seguiam! para! as!fazendas!de!café!nas!diversas!regiões!do!interior!de!São!Paulo.! Francisco,! Adelaide! e! sua! família! deixaram! a! pensão! com! destino!a!Cravinhos,!interior!de!São!Paulo.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 86!

!


Catanduva, final do século XIX ! ! ! ! !

E

ra!uma!terra!muito!diferente.!Benito!abria!os!olhos!na!fazena da,! às! vezes! parecia! que! ia! cegar! de! tanta! luz.! Sem! montaa nhas,! sem! secura.! Catanduva! e! Tabapuã! eram! terras! que! se!

aproximavam! do! córrego! Limeira,! na! época! em! que! nem! possuíam! comarca,!eram!apenas!primitivos!vilarejos.!Os!primeiros!moradores! do!local!iniciaram!as!lavouras!de!café,!onde!trabalharam!muitos!itaa lianos,! portugueses,! espanhóis,! japoneses! e! árabes.! Foi! para! essas! terras!que!Rosalia!e!as!crianças!se!dirigiram,!com!o!dinheiro!da!vena da!da!bodega.! Benito!olhava!e!por!toda!parte!era!verde,!verde!claro,!cor!de! natureza!que!vive.!Nunca!tinha!visto!tanta!água.!Estava!encantado.! Quando!chegaram!a!Santos!naquele!ano,!assustaraase!muito.!Ainda! estava! muito! rente! na! memória! tudo! que! passaram! em! Cepeda.! A! morte!do!pai,!a!tristeza!da!mãe,!o!desespero!dos!irmãos.!E!Luciano?! Imaginava!como!ele!estaria.!Será!que!chorava?!Será!que!sentia!a!fala ta!da!mãe,!dos!irmãos?!Não!sabia!quando!iriam!buscáalo.!Já!basta!o! que! passaram! no! navio.! Nunca! tinha! visto! nada! parecido.! Nunca! imaginara! ser! a! fome! tal! desespero.! Famílias! inteiras,! sujas,! descala çadas,! pedindo! pão.! E! todos! ali,! junto! com! eles.! Muitos! agora! na! mesma!terra,!trabalhando!com!o!mesmo!grão.!Talvez!teriam!deixaa do!seus!bebês!também.!Em!sua!cabeça!de!criança,!10!anos,!não!imaa ginara!que!tantos!deixavam!a!Espanha!assim.!Era!assustador.!Benito! não!conhecia!nada!da!Espanha!além!do!lugar!onde!vivera,!e!do!pora !87!


to!de!onde!saíram.!Tinha!a!impressão!de!que!a!Espanha!estaria!esa vaziando.!Tantos!vieram!com!ele,!da!mesma!região.!Outros!de!regia ões!que!só!ouvira!falar.!Ouvia!sons!estranhos,!línguas!muito!diferena tes! do! que! estava! acostumado.! A! Espanha,! que! era! vasta! e! diversa,! começava!a!diferir!pelo!som!da!própria!língua.! O! espaço! era! vasto,! gigante.! Nunca! vira! uma! propriedade! tão!grande.!Milhares!de!pés!de!café,!todos!juntos.!Milhares!de!pesa soas!de!muitos!lugares!do!mundo,!trabalhando!ali.!Todos!pareciam! seguir!uma!ordem!silenciosa.!Parecia!uma!dança.!Plantavam,!carpia am,! colhiam,! secavam.! E! começava! sempre! tudo! outra! vez.! Muitas! mulheres!ficavam!em!casa,!mas!sua!mãe!ia!pra!roça.!A!maioria!delas! ficava!na!tulha,!enorme!construção!de!concreto!onde!depositavam!o! mar! de! grãos.! Lá! elas! sentavam! e! “catavam”,! escolhiam,! selecionaa vam! o! grão,! que! depois! ia! para! o! beneficiamento.! Benito! era! ainda! muito! pequeno,! mas! nunca! imaginara! aprender! tanto! sobre! aquele! grão!que!desconhecia.! Eles! cantavam,! principalmente! os! italianos.! Era! lindo.! Não! havia,! na! Espanha,! essa! extensa! máquina! de! produção,! pois! era! o! termo!apropriado.!Uma!verdadeira!máquina.!Para!aguentar!o!trabaa lho!diário,!eles!cantavam,!cantavam!e!cantavam,!embalando!a!próa pria! sorte,! mantendoase! em! consonância.! Conhecer! a! fazenda! mua dara!a!vida!de!Ramón.!Lá,!ele!era!um!líder.!Guiava!os!irmãos.!Muitas! vezes,!guiava!a!mãe!também.!Fazia!todos!os!serviços!de!homem!feia to,!não!havia!descanso.!Era!muito!trabalho.!Acordavam!às!cinco!da! manhã,!encontravamase!todos!no!“ponto”,!e!seguiam!com!marmitas! a!tiraacolo,!para!as!lavouras.!Só!voltavam!à!noite,!numa!jornada!que! podia!ser!de!dez!a!quatorze!horas!diárias.!Os!irmãos!menores!trabaa lhavam,!também.!Só!que!ainda!podiam!ser!crianças,!eraalhes!permia tido.!Eram!muitos!meninos!na!colônia.!Muitos!meninos!que!deixaa ram! as! brincadeiras! para! trás! e! substituíram! pela! enxada,! meninos! que!deixaram!de!ser!meninos!e!tornaramase!homens.!Meninos!que! 88!

!


suavam! a! infância! afora! nas! lavouras.! Meninos! sem! pai,! meninos! que!se!tornaram!os!pais!da!família.!Meninos!que!iam!com!as!mães.! Meninos! que! iam! com! os! tios,! avôs.! Meninos! que! aprendiam! palaa vras!de!adultos,!maneiras!de!adultos.!E!Ramón!ainda!estava!chocado! com!a!imensidão!do!campo,!as!muitas!famílias!e!a!cantoria.!! A!cantoria.!Antes!de!aqueles!estrangeiros!cantarem!suas!lea tras!estranhas!aos!pés!de!café,!outras!pessoas,!estrangeiros!também,! cantavam! para! não! morrer.! Milhões.! Milhões! de! negros! escravos.! Milhões!de!pessoas!arrancadas!à!força!de!sua!terra.!Milhões!de!pesa soas!cujo!destino!fora!selado!por!aqueles!mesmos!barões!que!agora! “pagavam”!os!estrangeiros.!Muitos!os!quais!resistiram!ao!fim!da!esa cravidão.!Calculaase!que!40%!dos!negros!trazidos!da!África,!desde!a! colonização,!tinham!como!destino!o!Brasil.!E!eles!cantavam.!Cantaa vam!por!motivos!diferentes!dos!colonos.!Cantavam!para!espantar!o! banzo.!O!banzo.!A!tristeza.!Depressiva!e!profunda.!Nunca!comprea endida! pelos! donos! das! fazendas.! O! vazio! de! deixar! sua! terra,! sua! cultura,!sua!família.!O!vazio!de!ver!seus!filhos,!sua!mãe,!seus!irmãos,! vendidos! como! peixe! nos! portos.! E! cantavam.! Cantavam! porque! cantando!a!cultura!vivia,!cantando!a!língua!vivia.!Cantando!estavam! unidos.! Cantavam! porque,! de! algum! modo,! tentavam! esquecer! aquela!que!tinha!sido!uma!das!maiores!e!mais!violentas!diásporas!de! nossa! história.! Cantando! fizeram! o! samba! e! muitos! outros! ritmos! que! conhecemos.! Cantando! diziam,! sem! dizer,! que! tinham! voz.! Cantando! foram! “libertados”.! Libertados! e! jogados! ao! léu.! Ao! vão! destino!que!os!tratou!como!bem!quis.!Que!os!esqueceu!e!que!os!iga norou.!Que!tentou!fazer!com!que!sua!cor!escura!se!tornasse!transa parente,! fazendo! de! conta! que! não! estavam! ali.! Ainda! assim,! mais! da! metade! da! população! brasileira! é! negra.! A! escravidão! é! a! maior! vergonha!do!Brasil.!! Assim! chegaram! esses! imigrantes,! sem! saber! da! dimensão! social!que!ocupavam,!sem!saber!da!herança!pesada!que!ganhavam.! !89!


Os!imigrantes,!muitas!vezes,!mal!viam!a!cor!do!dinheiro,!que!era!dia vidido! entre! a! ordem! de! compra! e! as! terras! que! “ganhavam”! para! cultivo! próprio.! Muitas! vezes! o! pagamento! tornavaase! a! dívida! do! colono.!Faziam!compras!por!“ordem!de!pagamento”!em!estabelecia mentos! que! em! alguns! casos! eram! dos! próprios! fazendeiros! nas! propriedades! de! terra.! Ainda! assim,! ganhavam! um! pedaço! de! terra! para!plantar.!Tinham,!em!sua!maioria,!um!contrato!de!quatro!anos,! e!a!muitos!deles!construíram!caminhos!prósperos!após!as!lavouras.!! E!Ramón!ouvia!a!cantoria,!e!suava,!e!no!final!do!dia,!estava! exausto.! As!propriedades!de!café!tinham!dupla!dimensão.!A!Terra!era! vasta!e!os!olhos!de!Benito!brilhavam,!hipnotizados.!Ao!mesmo!tema po,!era!apertada.!As!colônias,!que!eram!várias!dependendo!da!proa priedade,! chegavam! a! aglomerar! duzentas! famílias! ou! mais.! Casia nhas!“pegadas”,!diria!Zinho!alfaiate.!Alguns!imigrantes,!no!início!da! imigração,! foram! submetidos! às! mesmas! condições! dos! escravos.! Trabalhando!junto!com!os!mesmos.!Mas!a!resistência!desses!povos!a! essas! condições! fez! com! que! os! donos! de! fazenda! mudassem! a! esa trutura!das!moradias.!! Moravam! colados! uns! nos! outros.! Não! havia! intimidade.! Ouviamase! e! conviviam! uns! com! os! outros.! Tornaramase! grandes! famílias.!Benito!ainda!não!se!acostumara!com!aquilo,!era!muito!esa tranho.! Ouvia! os! risos,! os! choros! e! outros! sons! nas! casas! ao! lado.! Casas! que! eram! muito! pequenas.! Dormiam! todos! juntos,! também.! As!casinhas!das!colônias!tinham,!geralmente,!um!quarto,!uma!cozia nha!e!sala.!O!“banheiro”!ficava!fora.!As!casas,!no!início,!eram!muito! simplórias.!Feitas!de!taipa!ou!de!pauaaapique.!A!estrutura!fundiária! no!Brasil!era!extremamente!arcaica.! Benito! ficava! para! trás! com! a! irmã! enquanto! os! outros! iam! para!a!roça,!muito!cedo.!Ficava!para!preparar!o!almoço!da!família.!O! começo!de!sua!vida!fora!muito!difícil.!Mal!sabia!preparar!o!básico.!A! 90!

!


mãe!lhe!ensinara,!mas!demorara!a!aprender.!Acordava!junto!com!os! irmãos!e!já!ia!pra!cozinha.!A!roça!era!difícil.!Cansados!da!lida!com!o! café,!a!família!tinha!fome!cedo.!Às!dez!da!manhã!Benito!já!levava!a! comida.!Todos!os!filhos!de!imigrantes!aprenderam!desde!cedo!a!lua tar!pela!sobrevivência.!Cada!um!de!um!modo,!todos!com!a!mesma! finalidade:!uma!vida!melhor.!Não!tinham!o!que!hoje!conhecemos!e! protegemos:!a!infância.!! Benito,!pela!manhã,!dividiaase!entre!cuidar!da!irmã!e!prepaa rar!o!almoço.!No!começo!queimaraase!muito!no!fogão!à!lenha.!Não! estava! acostumado! e! o! fogo! é! coisa! perigosa! para! uma! criança.! Às! vezes!chorava!escondido!da!irmã,!para!que!ninguém!soubesse,!pois! sentia!saudade!do!pai.!Saudade!de!Cepeda,!saudade!da!vida!que!tia nham!lá.!Mas!lembrava!de!tudo.!Sabia!o!que!a!mãe!dissera.!Vira!com! os!próprios!olhos!no!porto,!na!Espanha,!nos!navios!e!no!Brasil.!Pesa soas!muito!pobres,!pés!no!chão.!Não!havia!solução,!tinham!mesmo! que! sair! de! lá.! Era! muito! apegado! à! irmã.! Cuidava! e! zelava! como! podia.! Do! jeito! que! conseguia.! Ancelma! e! Prudêncio! eram! pequea nos,! mas! também! ajudavam.! Ajudavam! no! beneficiamento,! na! faa zenda.!Aquela!família!aprendeu!desde!muito!cedo!o!preço!do!grão.! Todos! desempenharam! uma! função.! Benito! terminava! o! almoço! e! ia,!com!a!enxada!e!os!pequenos!caldeirões,!rumo!à!lavoura.!! Lá! comiam! e! em! seguida! já! começava! de! novo.! Plantavam,! carpiam,! colhiam.! Não! havia! descanso,! e! não! havia! como! parar.! O! fiscal!de!turma,!montado!ao!cavalo,!corria!toda!a!plantação!de!café,! e! olhava! atentamente! o! serviço! de! todos! eles.! A! mãe! os! orientava! muito! bem,! sabiam! o! que! fazer.! Rosalia,! como! muitas! espanholas,! era!uma!matriarca.!Centralizadora!e!muito!forte.!Diziaalhes!que!não! temessem!e!fossem!fortes,!pois!logo!sairiam!de!lá,!e!tudo!melhoraa ria.!O!fiscal!contava!ao!administrador!da!fazenda!como!estava!o!traa balho!na!lavoura,!não!tinha!escapatória.! ! 91!


A!noite!instalavaase!uma!atmosfera!de!cansaço.!Chegavam!a! casa,!e!em!seguida!Rosalia!já!ia!para!a!cozinha!preparar!a!ceia.!Estaa vam! famintos.! No! começo! as! crianças! choravam! muito! pela! rotina! pesada.!Depois!se!acostumaram,!mais!por!cansaço.!Chegavam!a!casa! e! ficavam! juntos,! mais! quietos,! brincavam! menos.! Dormiam! cedo,! exaustos!que!ficavam.!Rosalia!sufocava!a!tristeza!de!ver!as!crianças! passarem!por!isso,!a!casa!era!pequena,!não!havia!como!chorar!sem! que!a!vissem!chorando.!E!tinha!que!ser!a!mais!forte!ali,!precisavam! dela.!Às!vezes,!quando!via!um!trabalhador!chegar!para!ficar!com!a! esposa! e! os! filhos,! lembrava! de! Sebástian.! Como! seria! se! estivesse! ali,!com!eles?!Talvez!o!serviço!fosse!menos!pesado,!talvez!o!serviço! pesado!se!amenizasse!um!pouco!com!a!sua!presença.! As! crianças! comiam,! e! em! algumas! noites,! nos! finais! de! sea mana,! havia! baile! na! fazenda.! Ficavam! ali,! quietos,! admirando.! Às! vezes! soltavam! uns! risinhos! pelas! músicas! das! sanfonas! e! violões.! Mulheres! e! homens! dançando! e! bebendo,! pareciam! felizes.! E! estaa vam.!Aquele!momento!era!só!deles,!quando!todas!as!preocupações! iam!embora,!e!comemoravam!o!fato!de!estarem!vivos.!De!sobrevivea rem!às!adversidades!diariamente.!De!terem!uns!aos!outros.!De!proa jetarem!um!futuro!mais!bonito!e!menos!árduo!que!aquele!presente! que!tinham.!Dançavam,!cantavam!e!bebiam!em!uma!ode!à!Terra,!ao! grão!e!à!memória.!A!Terra!fértil!e!vasta!do!Brasil.!Ao!grão.!!À!faca!de! dois! gumes! que! lhes! dava! o! sustento! e! a! vida! difícil.! E! à! memória.! Instância!que!mantinha!viva,!e!mantêm!até!hoje,!as!lembranças!da! terra!que!ficara!em!um!lugar!do!passado.! Rosalia!fechava!a!porta!e!as!crianças!espreitavam!pelo!último! rasgo!aberto.!! ! ! ! 92!

!


1915, entre Jaú e terras não nomeadas ! ! ! ! !

A

!família! Garcia! chegou! da! Espanha! em! meados! de! 1915.! Afonso! Garcia! Vilar! chegou! às! terras! paulistas! com! dezesa seis! anos,! acompanhado! dos! pais! e! dos! seis! irmãos.! Na!

mesma!época,!vindos!de!Múrcia,!a!família!de!Encarnação!Ilessas,!fua tura!Encarnação!Ilessas!Garcia,!também!chegava!ao!Brasil.! Afonso!e!Francisco!contam!que!as!duas!famílias!se!dirigiram! para! as! terras! de! Jaú,! quando! seus! caminhos! ainda! não! tinham! se! cruzado.!Lá!trabalharam!por!um!tempo,!e!depois!se!encontraram!no! que!eles!chamam!de!Patrimônio!da!Rosa.!No!início!do!século!XX,!as! terras!entre!Reginópolis!e!Avaí,!noroeste!do!interior!de!São!Paulo,!se! misturavam!em!povoados!e!fazendas.!A!urbanização!e!a!delimitação! das! terras! aconteciam! conforme! os! desenvolvimentos! desses! locais! se!desenrolavam.!Pela!organização!de!seus!moradores,!pelas!fazena das!de!café,!e!muitas!vezes!pela!chegada!das!ferrovias.!O!que!Afonso! e!Francisco!Garcia!chamam!de!Patrimônio!da!Rosa!era!na!verdade!o! antigo! Patrimônio! da! Rainha! dos! Anjos! da! Batalha.! O! vilarejo,! fora mado!em!1922,!foi!ocupado!por!uma!missão!católica,!pelo!padre!Jea remias!e!seu!sobrinho,!José!do!Pinho!Nogueira.!Lá!catequizavam!os! índios,! em! terras! recém! desbravadas,! e! se! fixavam! nas! margens! do! rio!Batalha.!!Mais!um!dos!episódios!de!conflito!entre!índios!e!coloa

!93!


nizadores!na!ocupação!do!interior!paulista.!Donde!hay!una!fuente,! hay!un!pueblo.! Em!Jaú,!a!família!de!Encarnação!trabalhava!incessantemena te.! Como! todos! os! imigrantes,! cumpriam! seu! contrato.! Lavravam! a! terra!e!lavravam!a!vida.!Encarnação!era!mais!uma!das!mulheres!esa panholas! que! constituíram! o! interior! paulista,! rígida! e! forte.! Jaú! é! conhecida! pela! Mandaguahy,! típica! fazenda! colonial,! onde! muitos! imigrantes! trabalharam.! Latifúndio! que! está! na! quarta! geração! da! família! Almeida! Prado.! A! terra! hoje! é! turística.! Sua! história! é! a! mesma!dos!grandes!latifúndios!e!suas!famílias!proprietárias!no!intea rior!de!São!Paulo.!O!casal!Antonia!de!Almeida!Prado!e!Joaquim!Pia res!de!Campos!construiu!as!primeiras!benfeitorias!e!plantaram!o!caa fé!antes!do!final!da!escravidão.!A!atual!sede!foi!construída!por!volta! do!final!da!década!de!1880!e!início!da!década!de!1890.!A!partir!daí!a! propriedade!tomou!a!forma!do!grande!sistema!colonial!cafeeiro.!Seu! pomar!foi!planejado!com!curvas!de!nível!e!terraços!feitos!de!rochas! de! basalto.! Possuía! venda,! moinho! de! fubá! movido! à! roda! d´água,! tulha,!casa!de!máquinas!de!benefício!de!café!e!dezenas!de!casas!de! colono.!Todas!as!características!da!indústria!cafeeira.! De!Jaú,!as!duas!famílias!seguiram!para!o!“Patrimônio!da!Roa sa”,!onde!Afonso!e!Encarnação!viriam!a!se!conhecer.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 94!

!


Cravinhos, 1923 ! ! “Afagar a terra Conhecer os desejos da terra Cio da terra, propícia estação E fecundar o chão”. (O Cio da Terra, Milton Nascimento) !

C

ravinhos!era!um!vilarejo!de!Café.!Na!segunda!metade!do!séa culo! XIX! a! produção! cafeeira! do! Rio! de! Janeiro! declinava! e! uma!antiga!família!de!produtores!do!grão!saiu!em!uma!avena tura!desbravadora!pelo!interior!de!São!Paulo.!Família!Pereira!

Barreto.!Foi!então!que!se!maravilharam!com!a!terra!roxa!e!descobria ram!um!Brasil,!tão!perto!e!tão!longe,!onde!a!região!de!Ribeirão!Preto! já!produzia!muitos!cafezais.!O!café!é!um!grão!feiticeiro!que!embala! e!enreda!aqueles!que!decidem!se!amarrar!a!seus!pés.!O!grão,!a!flor!e! a!bebida!são!parte!do!feitiço.!Lá!a!família!comprou!a!fazenda!Cravia nhos,! com! mais! de! oitocentos! alqueires.! Terra! boa! e! fértil.! A! terra,! cheia!de!plantações!de!cravinas,!deu!o!nome!a!propriedade,!e!anos! depois,!à!própria!cidade.! A!família!foi!uma!das!várias!que!já!possuiu!aquela!terra,!que! existia!desde!1856.!Desejando!dar!continuidade!ao!processo!de!civia lização,!encomendaram!um!artigo!ao!jornal!A!Província!de!S.!Paulo! (hoje,!O!Estado!de!S.!Paulo).!Nesse!artigo!pediam!a!divulgação!das! terras! da! região.! O! efeito! foi! imediato,! e! logo! muitos! fazendeiros! surgiram!e!iniciaram!suas!produções.! A!Terra!fértil,!a!propriedade!da!elite!fundiária!e!o!braço!que! veio!do!mar.!A!ferrovia!mogiana!foi!estendida,!construída!a!primeira! !95!


estação,! a! primeira! casa! da! cidade! e! também! a! primeira! olaria.! Em! 1883! foi! inaugurada! a! Companhia! Mogiana! de! Estradas! de! Ferro.! Cravinhos!se!emancipou!politicamente!em!22!de!julho!de!1897.! Adelaide!se!dera!conta!de!que!já!fazia!dois!anos!que!a!família! Encinas!deixava!seu!suor!na!terra,!em!Cravinhos.!Era!junho!de!1921! quando! chegaram.! O! choque! já! passara,! mas! fora! um! início! difícil.! Seis!filhos!e!um!casal,!vivendo!em!uma!casinha!pequena!de!colonos.! Francisco! desdobravaase! o! dia! todo,! chegava! em! casa! muito! cansaa do.! A! verdade! é! que! não! tinham! tempo! pra! nada.! Todos! os! filhos! trabalhavam!na!lavoura!com!o!marido.!As!filhas!e!ela!ajudavam!no! beneficiamento,! escolhendo! o! café.! Trabalhavam! muito,! estavam! acostumados! a! lidar! com! a! terra.! Mas! ali! era! diferente.! Ali! a! terra! não! era! deles.! Gigante! produção.! Às! vezes! olhava! a! imensidão! daa queles!pés!de!café,!não!acreditava.!Eram!muitos,!era!muito!dinheiro,! muito!trabalho!e!muitas!cobranças.!Não!há!descanso!para!um!imia grante.! A! Terra! pertence,! verdadeiramente,! àquele! que! derruba! toa dos!os!dias!suas!forças!e!a!fecunda.!! Mas!ainda!tinham!muitos!sonhos.!Sonhos!de!prosperar.!Mal! haviam!começado.!Antonio,!o!mais!velho,!dava!gosto!de!ver.!Saíaase! muito! bem! em! tudo! que! fazia,! também! pudera,! já! era! um! homem.! Começara!na!lavoura,!mas!depois!de!um!tempo!fora!para!as!máquia nas! de! benefício,! ouvia! elogios! dos! outros.! Tinha! futuro,! era! certo.! Tinha! futuro.! Pensar! nisso! preenchiaaa.! Então,! fechava! e! abria! os! olhos.!Revivia!novamente!e!tudo!era!ainda!muito!novo,!com!a!chana ce!de!dar!certo.! Francisco! apoiou! um! instante! a! enxada.! Olhou! aqueles! hoa mens,!aquelas!crianças.!Olhou!a!lavoura!até!perdêala!de!vista.!Quana tos.!Quantos!pés,!quantos!homens,!quanto!trabalho.!Nunca!vira!naa da! igual.! A! pequena! produção! de! uvas! que! tinha! em! Lucar! não! se! comparava.!Aquilo!era!outro!material,!outro!labor.!A!Terra!brasileia ra!era!vertiginosa.!Escura,!boa,!aquele!mar!verde.!Parecia!uma!miraa 96!

!


gem.! Apoiou! um! instante! a! enxada.! Bebeu! água.! Por! um! lampejo,! viu! multiplicaremase! ali! cópias! idênticas! de! si! mesmo.! Todos! eram! iguais!a!ele.!Todos!com!o!mesmo!sonho.!Todos!com!a!mesma!ambia ção.!Todos!deixaram!a!terra!em!busca!da!terra.!Tinham!uma!esposa! em! casa,! filhos! para! alimentar.! Todos! acordariam! de! manhã! no! mesmo!horário!e!fariam!de!novo!as!mesmas!coisas.!Derrubariam!na! terra!o!mesmo!suor.!Fariam!nas!mãos!as!mesmas!bolhas.!Sentiriam! a!garganta!apertar!de!sede!e!o!estômago!doer!de!fome.!E!beberiam!e! comeriam!rápido,!pois!o!trabalho!continuava.!E!seguiriam.! Antônio! ensacava! o! café! selecionado! pelas! mulheres! na! tua lha.! Olhava! a! pilha,! não! acaba! mais.! E! ainda! assim,! quanto! faltava! para!acabar.!Não!sentia!falta!de!casa,!sabia!que!lá!pouco!futuro!teria,! sabia! disso.! Veio! animado! para! o! Brasil.! Continuara! animado,! mas! chocaraase! com! a! realidade.! Na! Hospedaria,! nunca! iria! esquecer,! quantos!europeus!famintos,!perdidos,!pés!no!chão.!Quase!sem!voz,! sem! caminho,! com! medo.! Muitos! espanhóis,! muitos.! Fugindo! das! condições! horríveis! da! terra,! da! fome,! da! destruição! da! guerra,! das! pragas,!das!doenças.!Para!ele,!a!Europa!estava!cansada,!não!era!para! jovens!de!vinte!anos.!A!América,!o!Brasil,!isso!era!pra!ele.!Nunca!via ra! nada! como! São! Paulo,! a! cidade! fervilhava,! pessoas! chegavam! de! todos!os!lugares,!construções,!aberturas!de!rua.!Um!movimento!noa vo.! Mas! o! Brasil! também! tinha! as! suas! feridas.! Na! hospedaria,! vira! os!brasileiros,!também.!Nortistas,!era!como!os!chamavam.!Homens,! mulheres! e! crianças! magras,! tão! ou! mais! desesperadas! que! muitos! estrangeiros! que! vira! ali.! E! pareciam! ser! hostilizados,! parecia! que! eram! tratados! de! forma! diferente! do! que! os! estrangeiros.! Fora! ali! que!percebera.!O!Brasil!não!era!o!sonho!dourado!que!diziam!na!Esa panha.!E!na!lavoura!percebera!ainda!mais.!Mas!tinha!planos,!tinha! sonhos.!Não!ficaria!trabalhando!pra!sempre!em!lavouras,!máquinas! de! benefício,! era! ambicioso.! Tinha! vontade! de! vencer.! Percebera! como!as!pessoas!compravam!artigos!nos!armazéns,!ou!dos!mascates! !97!


que!vendiam!nas!fazendas.!Ambulantes!sem!rumo.!Naquelas!terras! faltavam! coisas.! Naquelas! terras! faltavam! homens! e! coisas.! Era! seu! grande!plano.!Deixaria!a!lavoura,!deixaria!o!benefício.!Iria!se!arriscar! vendendo!artigos!em!terras!vizinhas,!coisas!que!não!tinham,!buscaa ria!em!lugares!distantes.!Seria!um!mascate,!e!aquilo!era!só!o!comea ço.! Francisco!estava!carpindo!um!pé!de!café!quando!uma!das!fia lhas!veio!correndo.!! a!Está!nascendo.! Pediu! ao! fiscal,! que! já! sabia! do! futuro! nascimento! e! correu! com! a! filha! para! casa.! A! parteira! já! estava! lá.! Os! lençóis,! água! fera vendo,!os!utensílios!do!parto.!A!atmosfera!da!casa!era!de!novidade.!! Francisco!estava!angustiado.!Adelaide!já!lhe!dera!seis!filhos,! sabia!do!perigo!que!era!para!as!mulheres!o!nascimento!de!uma!cria ança.!Ninguém!estava!a!salvo!de!uma!tragédia.!Andou!a!casa!toda.! Saiu,!entrou.!Fumou!todo!o!fumo!que!conseguiu!e!depois!do!que!lhe! pareceu!uma!eternidade,!finalmente!ouviu.! A!criança!chorara.!Sentiu!os!olhos!encheremase!de!lágrimas,! que! segurou.! A! filha! sorria! e! o! abraçou.! A! parteira! saiu.! As! mãos! ainda!sujas!de!sangue.! a!É!uma!menina.! Francisco! entrou! no! quarto! e! Adelaide! segurava! nos! braços! um! embrulho! muito! pequeno,! um! ser! frágil,! contorcendoase! pelos! primeiros!contatos!com!a!vida.!Era!sua!sétima!criança,!mas!a!sensaa ção!não!mudava.!Olhou!a!menininha!e!Adelaide!sorriu.! A!primeira!brasileira,!natural!da! terra.! Fecundada! na! Terra.! A!primeira!brasileira.!A!terceira!leva!de!povoamento!desde!a!colonia zação! dava! seus! primeiros! frutos.! O! Brasil! coloriaase! outra! vez.! A! terra!boa!de!Cravinhos,!a!terra!roxa,!dava!à!família!Encinas!mais!um! grão!fértil!e!rico.!A!família!fincava!os!pés!na!terra!brasileira!germia nandoase.! 98!

!


! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !99!


Val de Palmas ! ! ! ! !

A

ssim! como! Cravinhos,! a! cidade! de! Bauru! foi! ocupada! e! ura banizada!a!partir!da!força!do!grão,!dos!proprietários!de!tera ras! recém! aventurados! no! noroeste! paulista! e! das! estradas!

de!ferro.!Mas!a!região!se!diferia!de!Cravinhos!por!uma!propriedade,! fundada!por!um!carioca!em!1890.!Uma!propriedade!que!era!um!vera dadeiro! monstro! do! café.! Uma! propriedade! que! em! dois! séculos! configurou! histórias! e! odisséias! de! milhares! de! pessoas! que! trabaa lharam! em! suas! terras.! Que! deixaram! suas! vidas! naquelas! terras.! Que! começaram! suas! vidas! naquelas! terras.! O! povoado! de! Val! de! Palmas,! antes! mesmo! do! tímido! povoado! de! Bauru,! que! daria! oria gem!à!cidade!que!hoje!conhecemos,!era!um!núcleo!que!concentrava! e! amarrava! a! vida! social! de! todos! os! seus! trabalhadores.! Mais! que! uma! fazenda,! era! uma! organização.! Assim! como! a! Santa! Rosália,! comprada! por! Benito! Sanchez! em! 1922,! Val! de! Palmas! concentrava! seus!moradores!nas!próprias!terras.!Armazéns,!farmácias,!sala!de!cia nema,!açougue,!oficina!mecânica,!consultório!médico!e!os!bailes!dos! colonos.! Tudo! acontecia! ali,! tudo! se! produzia! e! tudo! se! comprava! ali.! A! estrada! de! ferro! cortava! a! fazenda,! e! Val! de! Palmas! teve! sua! própria!estação!de!trem.! Um!imenso!latifúndio.!Tão!grande!que!não!há!um!consenso! sobre! o! tamanho! da! propriedade! no! auge! da! produção! cafeeira.! O! número!é!uma!variação!entre!onze!e!treze!mil!alqueires.!A!mãe!dos! grãos.! Segundo! o! Conselho! de! Defesa! do! Patrimônio! Cultural! de! 100!

!


Bauru,! a! Val! de! Palmas! foi! a! maior! produtora! de! café! do! mundo,! tendo!um!grão!tão!numeroso!que!contava!três!milhões!de!pés!de!caa fé.!No!início!do!século!XX,!duas!famílias!se!encontrariam!em!Val!de! Palmas.!Uma!vinda!de!Múrcia,!cidade!no!sudeste!da!Espanha!onde! deixaram!uma!quinta!com!produção!de!azeitonas!e!dois!filhos!para! trás.!A!outra,!imigrantes!experientes.!Imigrantes!que!já!haviam!deia xado!Sicília,!na!Itália!com!destino!à!Argentina.!Acabaram!por!chegar! ao!Brasil,!à!maior!fazenda!de!café!do!mundo.!Duas!histórias!que!iria am!misturarase!através!da!dor!e!do!amor!que!aquelas!terras!trouxea ram.! André!Asnar!olhava!a!produção!e!não!conseguia!dizer!palaa vra.!Nunca!vira!nada!parecido!na!vida.!Era!um!oceano!de!café!a!se! perder!de!vista.!Era!um!continente!com!pessoas!de!vários!lugares!do! mundo.! Era! uma! cidade! com! armazéns! e! consultório! médico,! sala! de! cinema! e! baile.! André! sabia! que! o! trabalho! era! exaustivo,! mas! não! imaginava! a! imensidão! e! amplitude! do! cansaço! nas! lavouras.! Acordava!todos!os!dias!antes!de!o!próprio!sol!nascer,!levava!o!almoa ço,!comia!na!lavoura.!Na!hora!da!“bóia”!as!lavouras!eram!um!enora me!refeitório!a!céu!aberto.!Milhares!comendo!ali,!com!a!mesma!prea cariedade!que!ele.!Voltava!para!a!casa!já!era!noite.!Era!o!tempo!de! fumar!um!pouco!com!o!pai,!comer!e!dormir.!O!corpo!ficava!moído! depois!do!trabalho.!E!no!dia!seguinte,!tudo!de!novo.!Ele,!o!pai!e!os! irmãos,! todos! nadando! no! mar! de! pés! de! café.! E! ainda! assim,! não! conhecia! nada! na! fazenda.! Havia! a! divisão! do! café,! e! muitas! mais.! Tinha!algodão!e!outros!produtos,!havia!outras!vivências,!outras!pesa soas,! era! uma! Terra! vasta! e! ele! a! desconhecia.! Um! latifúndio! que! dava!muito!pouco!aos!muitos!que!ali!deixavam!sua!labuta!diária.! ! “Não, não... Não era uma coisa... porque eles não viam o dinheiro. Tanto é que na ordem (de pagamento), tinha pessoas que fazia compra, às vezes superava o valor da ordem, !101!


do patrão, superava a ordem, então o coitado do trabalhador que tava na lavoura assim, tinha que tirar certas coisas da compra entendeu? Às vezes eles comprava... naquela época era muito corda de fumo... aquelas corda de fumo, que eles fumavam... então eles tiravam era fumo, era coisa assim de menos valor pra cozinha, entendeu? Então eles tiravam certas coisas... Então, quer dizer, com isso a lavoura não era uma coisa assim lucrativa”. (Entrevista com André Asnar filho) ! Essa!foi!uma!lição!passada!de!pai!para!filho.!A!ordem!da!Tera ra!e!da!propriedade!era!uma!coisa!imperativa.!Trabalhavaase!muito,! e!para!André!Asnar,!naquele!começo!de!século!o!trabalho!mostrava! como! se! dava! a! organização! das! grandes! fazendas! de! café.! Não! há! piedade!para!os!pequenos.!Deveriam!carpir!até!o!último!pé!de!café! pra! comer.! E! muitas! vezes,! o! dinheiro! saía! do! bolso! do! patrão! soa mente! para! retornar! às! mãos! do! mesmo.! Gastavam! na! própria! Val! de!Palmas,!compravam!na!própria!Val!de!Palmas.!E!foi!Val!de!Pala mas!que!apresentou!à!mulher!que!viria!a!desenvolver!um!papel!cena tral!na!vida!dele!e!da!futura!família.!! Era!uma!noite!muito!bonita.!Calma,!clara.!A!Lua!resplandea cia!no!céu.!André!não!acreditava!que!estava!deixando,!nem!que!fosa se! por! um! pouco,! Val! de! Palmas.! Era! noite! de! sábado! em! Pirajuí.! André!apeou!o!cavalo!e!foi!encontrar!os!amigos!em!um!baile.!Toda!a! gente!da!terra!estava!lá.!Pessoas!de!fazendas!diversas.!De!terras!dia versas.! Pessoas! diversas.! Os! lampiões! brilhavam! mais! aquela! noite.! Era!jovem,!em!terra!nova,!e!lá!estava.!Dançava,!bebia,!e!nunca!vira! gente! tão! animada.! E! moças! tão! belas! também.! Ficava! tempo! dea mais!nas!fazendas,!perdia!de!ver!o!mundo!naquela!terra!que,!ambia ciosa,!queria!abraçáalos,!ele!e!o!mundo.!Ria!de!uma!anedota!que!um! amigo! contara.! Engolira! um! gole! de! vinho.! Então! a! viu.! Usava! um! 102!

!


vestido! de! algodão! amarelo! claro! e! era! encantadora.! Conversava! com!todos,!muito!educada.!Parecia!estabelecer!uma!atmosfera!hipa notizada!e!calma!ao!seu!redor.!De!repente!a!música!cessara.!Todos!à! sua!volta!tinham!os!rostos!borrados.!Só!ela!resplandecia,!num!moa vimento!cadente,!os!olhos!brilhando!num!rosto!de!luz.! a!Quem!é!ela?! a!A!filha!de!um!italiano,!parece!que!nasceu!na!Argentina.!Os! pais! tentaram! por! lá! primeiro,! depois! vieram! ao! Brasil.! Achei! que! conhecesse,!moram!em!Val!de!Palmas!também.! Não! acreditava! no! que! ouvia.! A! sorte! lhe! sorria,! iria! falar! com!ela.!Estava!ali,!o!tempo!todo!debaixo!de!seu!nariz!e!não!sabia.! Aquela! noite! acabara! de! tornarase! especial.! A! música! mais! agradáa vel,!o!vinho!mais!doce.!Aproximouase,!conversou!com!os!irmãos!dea la,!com!as!amigas.!Os!pais!não!estavam.!Deveria!ser!muito!cauteloso! e!educado,!qualquer!passo!em!falso!e!jamais!poderia!conhecêala.!Era! diferente,!sabia!no!momento!que!a!vira.!Não!sabia!como!explicar.!! Enfim! conseguira! um! olhar,! um! sorriso.! Poucas! palavras,! mas!já!era!tudo.!Cecília.!Ela!não!sabia,!mas!se!casaria!com!ela.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 1! 03!


Gripe Espanhola ! ! “Evitar aglomerações, principalmente à noite. Não fazer visitas. Tomar cuidados higiênicos com o nariz e a garganta: inalações de vaselina mentolada, gargarejos com água e sal, com água iodada, com ácido cítrico, tanino e infusões contendo tanino, como folhas de goiabeira e outras. Tomar, como preventivo, internamente, qualquer sal de quinino nas doses de 25 a 50 centigramas por dia, e de preferência no momento das refeições. Evitar toda a fadiga ou excessos físicos. O doente, aos primeiros sintomas, deve ir para a cama, pois o repouso auxilia a cura e afasta as complicações e contágio. Não devendo receber absolutamente nenhuma visita. Evitar as causas de resfriamento, é necessário tanto para os sãos, como para os doentes e os convalescentes. Às pessoas idosas devem aplicarse com mais rigor ainda todos esses cuidados” (Diário do Povo, 19 out. 1918) ! !

104!

!


A

!família! Martinez! chegara! a! Cafelândia! depois! de! cumpria rem!o!contrato!de!trabalho!nas!lavouras!de!Rincão,!interior! de! São! Paulo.! Falavaase! muito! de! Cafelândia,! uma! terra!

promissora.!Muitos!fazendeiros,!mas!também!muitos!espanhóis!traa balhadores!de!lavouras!tentando!uma!vida!mais!próspera,!tornandoa se!mais!unidos.!Muitos!comércios.!Muitos!Armazéns!de!Secos!e!Moa lhados.! Terra! calma,! terra! boa.! Mas! a! família! não! chegara! sozinha.! Junto!dela,!como!um!péssimo!agouro,!uma!doença!perigosa,!que!de! tempos! em! tempos! retornava,! sempre! com! um! nome! diferente.! A! praga!era!a!gripe!espanhola,!doença!que!a!família!Sanchez!conhecia! muito!bem!com!o!nome!de!Influenza.!! Naquelas!terras,!ainda!não!tinham!onde!dormir.!Muitos!que! ali! chegavam! também! não.! Diogo! pretendia! comprar! um! pequeno! sítio,!agora!teria!a!própria!terra,!deixaria!de!trabalhar!para!os!outros.! Plantaria!um!pouco!de!café!e!um!pouco!mais!do!que!desse!naquele! chão.!Mas!ainda!não!tinham!nada.!Estavam!dormindo!em!barracas! nas!terras!de!Cafelândia,!começariam!a!construir!a!casinha.!O!filho! mais!velho,!José,!tinha!se!casado!com!Encarnación!Inhesta!e!tinham! um! bebezinho,! Diogo.! As! famílias! Inhesta! e! Martinez! se! entrelaçaa ram! de! uma! forma! curiosa.! Pedro! Martinez,! o! pai! de! Josefa! Martia nez,!era!o!irmão!mais!novo!de!José,!e!iria!conhecer!a!esposa!Inês!por! influência!do!irmão,!pois!Inês!era!sobrinha!de!Encarnación.!! Há!dias!que!estavam!nas!barracas!quando!os!rumores!comea çaram.! Pessoas! doentes,! que! não! sabiam! o! que! fazer.! Alastravaase! pelo!estado!de!São!Paulo!muito!rápido.!Notícias!de!que!expedições! vindas!da!guerra!trouxeram!a!doença.!Chamavam!de!gripe!espanhoa la.!Era!triste!para!aqueles!povos!sofridos,!que!fugiram!da!fome,!sea rem!estigmatizados!daquele!jeito.!A!praga!que!trazia!o!nome!da!Esa panha.! Em! São! Paulo! e! em! Campinas! as! notícias! eram! horríveis.! Muitos! estavam! morrendo.! A! doença,! então,! conseguira! chegar! àquelas! terras! de! recomeço.! Diogo! e! a! família! assistiram! muitos! 1!05!


adoecerem,!e!viram,!um!a!um,!muitos!conhecidos!morrerem.!Estaa vam! desanimados! e! assustados.! Chegaram! para! construir! um! novo! futuro,!e!eram!ameaçados!de!acabar!sem!futuro!nenhum.!O!pânico! instalaraase.!Temiam!uns!pelos!outros,!e!de!fato,!não!havia!garantia! de!que!estariam!de!alguma!forma,!a!salvo.!! José! decidiu! voltar! para! Rincão.! Pedira! que! a! família! fosse! com! ele,! mas! não! quiseram.! Mas! não! podia! arriscar.! Lá! tinha! uma! pequena! casa.! Não! tinha! trabalho,! e! passariam! dificuldades.! Mas! não!poderia!arriscar!perder!o!pequeno!Diogo.!Um!bebê!naquele!caa os!era!uma!presa!fácil!à!gripe.!Adiaria!os!sonhos!até!que!o!surto!pasa sasse.! Arrumaria! qualquer! trabalho! temporário,! qualquer! emprego.! Iria!ficar!longe!dali!até!que!tudo!voltasse!ao!normal.!Despediuase!do! pai,! da! mãe,! dos! irmãos.! Sabia! que! havia! uma! grande! chance! de! perdêalos.!Sabia!que!talvez!nunca!mais!visse!a!família.!Na!Espanha,! aprendera!que!não!há!escolhidos.!Há!sobreviventes.!E!ele!sobrevivea ria,!precisava.! !José,!Encarnación!e!Diogo!voltaram!a!Rincão.! ! !! ! Em! Val! de! Palmas! o! clima! era! tenso.! Como! sacos! pesados! demais,!um!a!um,!eles!caíam.!A!praga!perseguiaaos!no!Brasil.!A!ina fluenza.!Toda!a!colônia!temia!a!doença,!temia!morrer.!André!sentiaa se!desolado.!Nunca!mais!vira!Cecília!desde!o!dia!do!baile!em!Pirajuí.! E! justo! quando! planejara! pedir! permissão! ao! pai! da! moça! para! coa meçar!a!cortejáala,!a!gripe!chegara!a!Val!de!Palmas.!Trabalhava!coa mo! um! cão.! Muitos! caíram! doentes,! alguns! morreram.! Mas! o! grão! não!podia!parar.!Trabalhavam!por!dois!homens,!por!três.!Mesmo!asa sim,! a! produção! na! fazenda! diminuía.! Vira! muitos! amigos! caírem! doentes,!vira!muitas!pessoas!queridas!morrerem.!Temia!todos!os!dia 106!

!


as! pela! própria! morte,! pela! morte! dos! seus.! E! pensava! em! Cecília.! Como!estaria?!Sofria?!Perdera!alguém?!! Mas! a! gripe! trouxe! duas! faces! diferentes.! Levava! muitos! e! deixava! os! que! ficavam! para! trás,! unidos.! Formaraase! em! Val! de! Palmas! uma! grande! forçaatarefa.! As! colônias! juntavamase! e! cuidaa vam!uns!dos!outros.!As!casas!estavam!abertas,!pois!diariamente,!dia ferente! do! que! se! aconselhava! para! fazerem,! eles! ficavam! com! os! doentes,!tratavam!uns!aos!outros.!André!e!Cecília!tornaramase!mais! conhecidos!naquelas!terras.!Bem!quistos,!como!disse!Zinho.!Seus!esa forços!incansáveis!para!tratar!os!colonos!se!espalharam!pela!fazena da.!O!pior!momento!de!suas!vidas!acabou!por!unialos.!! André!a!vira,!naquela!manhã!e!não!acreditava.!Ali!estava!ela,! alimentando!um!homem!à!boca.!Nunca!vira!uma!cena!que!o!emocia onara! daquele! jeito.! Cecília! era! uma! espécie! de! enfermeira! para! aqueles! pobres! coitados,! era! muito! querida! nas! colônias! de! Val! de! Palmas.! E! André! a! encontrara! de! novo.! Naqueles! tempos! de! gripe! espanhola,! tempos! os! quais! muitos! não! sabiam! se! sobreviveriam,! nascia!um!amor.!André!espantavaase!com!a!força!dela.!Cuidava!dos! doentes!incansavelmente.!Vulnerável!à!doença!a!cada!minuto.! A! fundação! Oswaldo! Cruz! estima! que! entre! outubro! e! dea zembro!de!1918,!meses!de!maior!concentração!da!gripe,!65%!da!poa pulação! brasileira! adoeceu.! No! Rio! de! Janeiro! foram! registradas,! aproximadamente,! 14! mil! mortes.! ! Em! São! Paulo! duas! mil! pessoas! morreram.!A!doença!foi!embora!daquelas!terras!depois!de!semanas! de! medo! e! muitas! perdas.! Dos! tempos! difíceis,! restara! uma! união.! Famílias!que!aprenderam!o!valor!de!nunca!abandonar!um!amigo,!de! cuidarem!uns!dos!outros.!União!que!carregariam!para!muitos!lugaa res!que!foram!depois.!União!que!ensinaram!aos!filhos,!aos!netos,!aos! bisnetos.! André!e!Cecília!apaixonaramase!em!Val!de!Palmas.!Ali!se!caa saram!e!nunca!mais!se!separaram.!Mas!deixaram!a!fazenda.!!Saíam! 1!07!


em!busca!de!uma!terra!que!ficara!muito!famosa!entre!os!espanhóis! do! noroeste! paulista.! Cafelândia.! Muitos! chegavam! àquele! lugar.! Famílias!com!ganas!de!recomeçar.!Pessoas!já!acostumadas!a!migrar,! sempre! perseguindo! tempos! melhores.! Assim! também! o! fizeram! Cecília!e!André.!! Mal!sabiam!que!a!gripe!espanhola!seria!a!primeira!de!muitas! dificuldades!que!ainda!enfrentariam!juntos.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 108!

!


Café em flor ! “Hoje me sinto mais forte Mais feliz, quem sabe Eu só levo a certeza De que muito pouco eu sei Ou nada sei”. (Tocando em Frente, Almir Sater e Renato Teixeira)

O

!cheiro!do!café!fervendo!invadiu!a!casa,!Rosalia!tinha!acabaa do! de! passar.! Os! meninos! tinham! acabado! de! voltar! das! plantações.! Meninos,! ora.! Deveria! acostumarase! com! isso,!

supunha.!Eram!quase!homens.!Ramón!e!Benito!lideravam!a!produa ção!da!terra.!O!cheiro!do!café!fervendo!invadiu!a!casa.!Rosalia!aspia rou,!fechou!os!olhos!e!as!lembranças!a!invadiram.!Misturadas!e!ina cessantes,! as! imagens! vieram.! Seria! o! café,! talvez.! Lembrou! de! seu! casamento,! da! noção! de! eternidade! que! advinha! disso.! Dos! planos! conjuntos.! Da! bodega! e! da! casa,! erguida! com! esforço! e! sonhos.! Os! filhos,!vidas!geradas,!uma!por!uma,!sempre!uma!surpresa!e!um!cona junto!de!sensações!particulares.!O!nascimento!de!Ramón,!o!primeia ro!filho.!A!alegria!de!Sebastián!ao!ver!o!rosto!do!primeiro!menino.!A! terra! pobre,! o! povoado! pequeno,! os! tantos! que! ali! se! criaram! e! se! ajudavam.! A! luta! para! sobreviver.! As! mulheres,! lenços! na! cabeça! e! crianças!a!tiracolo.!A!luta!pelo!pão.!A!dor!daqueles!que!perdiam!os! seus!para!a!fome,!para!a!guerra.!A!igreja,!as!reuniões.!A!união.!Lema brara!das!festas,!da!música,!das!comidas,!de!tudo!que!era!de!seu!poa vo,!e!por!alguns!dias,!deixavam!o!ambiente!melhor,!menos!pesado.! 109! !


A! realidade! menos! crua.! Lembrara! de! todas! as! vezes! que! o! marido! partia.!Montanhas!e!vales!adentro,!e!do!medo!de!que!não!retornasa se.!A!felicidade!e!o!alívio!quando!despontava!ao!longe,!sobrevivera! mais!uma!vez.!A!correria!dos!meninos!avisando!que!o!pai!voltara.!E! lembrouase!da!última!vez!que!voltara!pálido!e!tremendo.!Saber!que! quase!morrera!no!caminho.!E!então!tudo!estrada!abaixo,!uma!ladeia ra.! Fulminante! e! impiedosa,! a! gripe! o! levara.! Deixaraaos! sozinhos,! sem! rumo,! sem! chão.! E! quando! decidira! deixar! a! Espanha.! Vender! tudo!e!deixar!a!Espanha.!Ouvira!o!choro!de!Luciano!e!chorara!tama bém,! sabia! que! não! podia! leváalo.! E! sabia! que! deveria! deixáalo.! Aquela!terra!não!tinha!futuro,!sustento!ou!saída.!O!adeus!no!porto,! o! último! aperto! no! bebê,! a! dor! de! deixáalo! com! a! cunhada.! A! viaa gem,!os!que!pediam!pão,!os!que!morreram!no!caminho.!O!cansaço! do!navio,!a!instabilidade!e!então,!o!porto.!Cidade!estranha,!gente!esa tranha,!gente!diversa.!A!fazenda,!os!anos!de!lavoura,!o!aperto!na!coa lônia,!a!saudade!do!filho.!E!então,!depois!de!tudo!isso,!o!retorno.!Fea liz!e!muito!deprimente,!as!pessoas!e!a!mesma!dificuldade.!Luciano! já! não! era! mais! um! bebê.! Como! os! outros,! aprendera! as! primeiras! palavras.!Andava,!corria.!Não!a!reconhecia.!Voltar!à!Espanha!era!dia fícil.! Aquelas! terras! lhe! traziam! muitas! memórias.! Memórias! que! agora!queria!deixar!para!trás.!E!deixou.!Dessa!vez!com!Luciano!nos! braços.! Tomou!um!gole!da!xícara!e!logo!ouviu!os!meninos!chegana do.!Ramón!e!Benito!discutiam!animados!sobre!a!safra.!Rosalia!coma prara! uma! propriedade! e! construíra! uma! casa! para! ela! e! a! família,! onde!agora!plantava!café!e!outros!grãos,!café!que!iria!para!o!benefía cio!de!Catanduva!e!depois!para!a!exportação.!Propriedade!que!seria! o!começo!de!tudo,!de!todo!o!resto!que!Ramón!e!Benito!construíram! juntos!e!cujos!frutos!a!família!colhe!até!os!dias!de!hoje.! Ramón! olhou! Benito! e! riu,! abraçaramase.! A! safra! seria! boa,! conseguiriam! um! bom! dinheiro.! Todo! o! resto! que! se! plantara! ali! 110!

!


também!dava!muito!bem,!terra!boa.!Aos!poucos!tudo!iria!melhorar.! As!notícias!da!boa!sorte!da!família!chegavam!à!família!na!Espanha.! Assim!que!pudesse,!Benito!os!visitaria.!Sentia!muita!falta!dos!que!fia caram.!Da!tia,!das!primas,!dos!tios.!Olhou!o!cafezal,!longa!e!pausaa damente.!Fechou!os!olhos!e!respirou.!Café!em!flor,!nada!mais!belo.! E!o!aroma...!Um!cheiro!muito!particular.!Benito!era!ainda!um!jovem! que!não!contava!vinte!anos.!E!já!aprendera!muito!sobre!o!grão.!Esa tudava! sempre! novos! tipos,! novos! processos! de! torração,! entendia! tudo! sobre! o! benefício.! Incentivava! os! irmãos,! havia! um! futuro! próspero!ali.!Café!em!flor.!! ! “- Mas a experiência de um cafezal em flor quem sentiu o cheiro é um negócio impressionante! - Maravilha! - Não tem palavra, adjetivo, que descreva a sensação. - Quando tivemos o Armazém em Garça, eu vinha na Santa Rosália. Tinha café no caminho pra Garça, porque Garça tem muito café ainda... Ah, na florada eu saia... Abria o carro no acostamento e saía... Eu ficava...”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez) ! Café!em!flor.!Atmosfera!que!atravessou!gerações.!A!terra,! o! grão!e!a!memória.!O!Café!em!flor!é!hoje!uma!lembrança!cheia!de!sia nestesia!que!Rosalinda,!a!neta!de!Benito,!compartilha!com!os!filhos.! Os!últimos!a!verem!o!café!florir!e!dar!seus!grãos.!Benito!na!propriea dade!da!mãe,!entre!Tabapuã!e!Catanduva,!ainda!era!somente!um!joa vem!sonhador!e!ambicioso.!! O! cafezal! que! ali! se! desenvolvia! seria! apenas! o! começo! dos! inúmeros! pés! de! café! que! seriam! plantados! nas! diversas! fazendas! que!compraria!junto!à!Ramon,!o!irmão!mais!velho.! ! !111!


Zé Saqueiro ! ! “Cafelândia cidade progresso de beleza que encanta e seduz desde há muito que a deus sempre peço que ilumine o Brasil tua luz. A riqueza da terra fecunda faz de ti o soberbo torrão o café, aos milhões te circunda és esteio da nossa nação! (Hino de Cafelândia) ! !

A

!sombra!da!gripe!espanhola!deixara!Cafelândia,!e!agora!o!sol! abriaase! para! mostrar! um! céu! límpido.! Uma! chance! para! aqueles! que! buscavam,! sobretudo,! um! recomeço.! Cafelâna

dia!abriaase!em!flor!para!os!espanhóis!que!buscavam!melhores!cona dições.!A!cidade!nasceu!de!uma!divisão.!Divisão!que!é!marcada!pelo! córrego!Saltinho.!Acima!do!córrego!estão!as!terras!que!foram!da!faa mília!Zucchi,!e!abaixo!dele,!muitas!propriedades!que!foram!de!Beia raldo!Arruda.!! A! estação! de! trem! Presidente! Afonso! Pena! foi! inaugurada! em!1906!nas!terras!da!família!Zucchi.!Colonos!de!diversas!etnias,!em! sua!maioria!espanhola,!pediam!à!família!que!permitisse!a!urbanizaa ção!dessas!terras.!Mas!encontraram!resistência.!Foi!desse!modo!que! os!primeiros!símbolos!da!urbanização!da!cidade!foram!construídos! abaixo! do! córrego.! Correios,! cinema! e! muitas! casas! de! imigrantes! que! deixaram! as! lavouras! e! se! espalhavam! abaixo! do! Saltinho.! A! 112!

!


enorme!quantidade!de!terras!e!milhões!de!pés!de!café!dessa!região! deu! origem! o! nome! da! cidade.! Cafelândia,! terra! do! café.! A! família! Zucchi,! vendo! o! progresso! da! urbanização,! iniciou! a! construção! de! casas! de! colonos! em! suas! terras,! para! que! o! nome! da! família! fosse! lembrado!como!pioneiro!do!processo.!! ! “Se você observar ali, tudo em volta da prefeitura são todas umas casinhas mais o menos do mesmo estilo, elas eram quadradinhas, tinham uma sala, um quarto, uma cozinha e um banheirinho. Elas eram amarelinhas com as portas e as janelas pintadas de verde, sabe é... colônia? Então ele dizia que era pros empregados dele, mas não era não, ele começou... Eu falo que o primeiro BNH do país foi do Zucchi (risos), ele fez tudo aquelas entradas, aqueles quarteirões e quarteirões tudo com aquelas casinhas, então ele começou a abrir do lado de lá. Você vê que quase todos os prédios públicos foram feitos do lado de cá: cinema, essa Nossa Senhora do Carmo foi feito antes, correio, um mundo de coisas...”. (Entrevista com Josefa Martinez) ! Em!1926!as!terras!passaram!à!categoria!de!município.!“Pena”! é!hoje!um!bairro!com!o!nome!que!sobrou!da!antiga!estação!Afonso! Pena!nas!terras!da!família!Zucchi.!!A!rivalidade!entre!os!dois!lados! ainda!perdura.! No! sítio! da! família! Martinez,! a! casa! já! estava! construída! há! muito! tempo.! Pequena! e! singela,! lá! moraram! durante! alguns! anos! Diogo,! Maria! e! os! dez! filhos.! O! casal! saíra! da! Espanha! com! doze.! Dois!dos!filhos!morreram!no!caminho!e!foram!jogados!ao!mar.!Mas! aqueles!eram!outros!tempos.!As!mortes,!o!trabalho!exaustivo!na!laa voura,! a! gripe! espanhola...! Todos! estes! episódios! densos! tinham! fia !113!


cado! para! trás.! Diogo! e! a! família! produziam! na! própria! terra.! Ali! plantavam! um! pouco! de! café! e! outros! grãos.! Produções! que! enviaa vam! às! máquinas! de! beneficiamento! da! cidade,! e! que! depois! iriam! para!Santos,!talvez!para!a!empresa!de!importação!e!exportação!Raa món! e! Benito! Sanchez,! que! já! funcionava! nessa! época.! A! vida! era! tranquila,! o! que! ganhavam! não! era! muito,! mas! a! terra! era! própria.! Para!aquela!família,!os!dias!de!suor!deixados!nas!terras!dos!grandes! fazendeiros!haviam!ficado!para!trás.!Pedro!havia!se!casado!com!Inês! e! estavam! começando! na! vida.! Como! muitos! trabalhadores! das! laa vouras,!pretendiam!seguir!caminho!no!comércio.!Na!cidade!que!se! abria!cada!vez!mais!a!essas!tentativas.! Diferente!da!família!Martinez,!André!Asnar!e!a!esposa!Cecía lia!continuariam!a!trabalhar!em!grandes!lavouras!por!mais!um!tema po.! Iniciavam! um! dos! muitos! ciclos! que! fariam! nas! terras! de! Cafea lândia.!André!trouxera!a!esposa!e!os!pais!com!ele,!e!a!família!decidia ra!tentar!a!sorte!novamente!em!grandes!propriedades.!Trabalhavam! na!fazenda!Monte!Azul.!Perto!de!Cafelândia,!na!cidade!de!Guarantã,! a!família!Encinas!também!migrara!de!propriedade.!Francisco!e!Adea laide!tinham,!agora,!sete!filhos.!Precisavam!de!muito!trabalho!para! sustentar! a! família.! Os! Encinas! chegariam! às! terras! de! Cafelândia! somente! no! ano! de! 1930.! Próximo! a! Cafelândia,! outra! família! se! constituíra!nas!terras!de!cafezais.!Famílias!próximas!em!identidade! e!terra,!mas!que!nunca!se!conheceram.!Afonso!Garcia!se!casara!com! Encarnación!Ilessas!e!trabalhava!nas!terras!do!Patrimônio!da!Rainha! dos! Anjos! da! Batalha.! A! família! ficou! no! local! até! mudarase! para! Avaí.! José!havia!voltado!de!Rincão,!o!medo,!a!angústia!e!as!perdas! da! gripe! espanhola! estavam! enterrados! naquele! chão.! Não! perdera! mais!ninguém!de!sua!família!e!o!filho,!Diogo,!crescia!forte!e!saudáa vel.! A! casa! que! abrigava! a! família,! no! entanto,! era! muito! pequena! para!todos!os!filhos,!e!José!decidira!tentar!a!vida!na!cidade.!Começaa 114!

!


ra! um! negócio! curioso.! Comprava! sacas! estragadas! ou! rasgadas! de! café,!materiais!que!outros!produtores!não!viam!uso.!José!e!a!esposa! Encarnación! costuravam! e! remendavam! os! sacos,! que! depois! eram! vendidos!a!outros!proprietários!e!máquinas!de!beneficiamento.!Gaa nhara! até! um! apelido:! Zé! Saqueiro.! Achavam! curioso! que! alguém! ganhasse! sustento! remendando! sacos! estragados.! Mas! José! não! via! mal!no!trabalho.!Trabalho!é!trabalho.!E!aquilo!seria!apenas!o!comea ço.! Como! muitos! imigrante! fizeram,! como! a! família! Sanchez! tama bém! fez,! José! iria! começar! do! chão! mais! baixo! das! terras! do! café.! Ambicioso!e!persistente,!ele!alçaria!vôos!altos.!Queria!ter!mais,!muia to! mais.! José! começara! a! notar! uma! coisa! curiosa.! A! cidade! estava! sendo!povoada!por!muitos!espanhóis.!Pessoas!que!vinham!de!divera sos!lugares!e!regiões!do!estado!de!São!Paulo.!Vinham!para!uma!terra! que!era!nova,!que!se!abria!para!novas!tentativas.!Mas!desde!a!gripe! notara! como! estavam! desamparados.! Eram! muitos! e! ainda! assim,! desamparados.!Muitas!vezes!se!agrupavam!nos!mesmos!lugares.!Laa goa! Seca,! Botafogo,! Tibagi.! Mas! precisavam! de! uma! linha! que! os! guiasse,!algo!que!atendesse!às!suas!necessidades.!Ali!havia!fazendeia ros!grandes,!que!não!pensavam!nos!interesses!dos!pequenos.!Trabaa lhadores,! proprietários! de! pequenos! sítios! e! comerciantes.! Precisaa vam!de!alguém!com!pulso!firme!e!iniciativa.!Alguém!que!não!temesa se! dizer! o! que! precisava! ser! dito.! Famílias! muito! pobres! aglomeraa vamase!na!cidade,!precisavam!de!auxílio.!Desse!modo,!José!Martinez! começou!a!tomar!iniciativas!e!formar!uma!comunidade!de!seguidoa res!da!colônia!espanhola.!Zé!Saqueiro!tornouase!um!líder!e!ajudara!a! fundar!o!Centro!Espanhol,!lugar!que!foi!responsável!pelo!auxílio!de! diversos!imigrantes!e!famílias!necessitadas!em!Cafelândia.! Os!descendentes!que!estão!vivos!são!as!últimas!testemunhas! desses!tempos.!Tempos!em!que!o!grão!de!café!era!o!centro!do!poder! local.!Tempos!em!que!o!grão!nomeara!a!terra!recém!povoada.!Tema pos! em! que! o! grão! dividia! os! grandes! e! os! pequenos.! Tempos! em! !115!


que! esse! povo! se! uniu! para! cuidar! uns! dos! outros,! para! sobreviver.! Hoje!a!união!é!uma!memória!que!tenta!preencher!um!vazio!existena cial.!! ! “Cafelândia era exclusivamente agrícola, porque era tudo sitiante, tudo sitiante pequeno, mas tinha de monte, então não era só como diziam os outros, os tubarões... Naquela época o seu tataravô era Tubarão né, ele era grande... É, tinham que se juntar. Aí o que eles fizeram? Eles pegaram meu tio como um líder. E ele foi ajudando eles...”. (Entrevista com Josefa Martinez) ! “Fazia, juntava a espanholada, se ajuntava tudo e se ajudava, nossa senhora. Esse dono mesmo do hotel Bion, do prédio do hotel Bion, ajudava muito, ele era sozinho aqui, ele morava no hotel Bion, mas ajudava muito. Todos eles ajudava, quer dizer, um pouco daqui, outro pouco de lá, se ajuntava muito e fazia aquela alimentação, comprava remédio, pagava médico, pagava médico pra o que precisava, que foi a finalidade do centro Espanhor. O centro Espanhor hoje ta como se fosse dar festa, né? E não era isso não”. (Entrevista com Zinho Alfaiate). ! ! ! ! ! ! ! 116!

!


Isabel ! ! ! ! !

A

!estrada! ainda! estava! escura.! A! natureza! mostrava! sua! cor! devagar,!como!quem!não!quisesse.!Como!quem!pedisse!paa ra! dormir! um! pouco! mais.! O! sol! despontava! ao! longe,! um!

pouco!tímido.!Ramón!e!Benito!já!estavam!de!pé,!e!Rosalia!fazia!o!caa fé.! Os! outros! ainda! dormiam,! não! havia! necessidade! de! acordarem! tão!cedo.! Ramón! bebeu! seu! café! com! pressa! e! saiu.! Ficara! Benito! e! a! mãe.!Benito!era!às!vezes!assaltado!com!a!percepção!de!quão!calada! era!a!mãe.!Ali,!do!seu!lado,!bebericando!o!café,!e!ainda!assim,!não! pronunciava!palavra.!Olhara!o!filho!ir!embora,!não!o!abraçara.!Rosaa lia! era,! na! verdade,! mais! uma! das! muitas! personificações! da! velha! mãe!Espanha.!Sempre!ali,!como!um!bloco!de!concreto.!Persistente,! constante,! imóvel.! A! mãe! seria! sempre! essa! entidade.! Distante! e! presente.!Tomava!seu!café!e!olhavaaa.! a!A!que!horas!voltas?! a!No!meio!da!tarde.!Vou!conferir!os!grãos!selecionados!e!os! novos!pés.! a!Certo.!Não!te!esqueces!do!noivado!de!Ramón.! a!Claro.! Terminou!seu!café!e!deixou!a!casa.!Os!primeiros!raios!do!dia! invadiram!seu!rosto.!Um!pássaro!cantou.!Uma!carroça!passou!carrea gando!restos!e!entulhos.!O!dia!começara!cheio.!Passou!na!venda!paa ra! despedirase! de! Ramón.! A! família! agora! tinha! se! mudado! para! a! !117!


cidade.!Ao!menos,!no!meio!da!cidade.!A!casa!ficava!na!estrada!entre! Tabapuã!e!Catanduva!e!do!lado,!a!“venda”.!Ramón!e!Benito!abriram! um!pequeno!comércio,!empreendimento!somente!dos!dois.!Um!pea queno!armazém.!Ainda!continuavam!produzindo!nas!terras!da!mãe.! Nessa!venda!foi!que,!ademais!do!café!produzido,!ganharam!dinheiro! e!expandiram!os!negócios.!Benito!estava!a!caminho!da!fazenda.!Ia!a! cavalo,!e!não!se!demoraria.!Gostava!do!contato!com!as!pessoas.!Na! fazenda!e!na!venda.!Gostava!de!ouviralhes!os!problemas,!gostava!da! prosa!do!povo!acostumado!aos!problemas!comuns!da!vida,!da!gente! boa.!Ramón!iria!se!casar.!Josefa!era!a!noiva.!Sairia!de!casa.!A!casa!de! Ramón!estava!quase!terminada.!Sentiraase!um!pouco!sozinho.!Cona tinuariam! juntos! nos! negócios,! mas! o! irmão! mais! próximo,! o! mais! velho,!sairia!de!casa.!Teria!mais!responsabilidade!juntos!aos!outros.! Pensava! sobre! o! curso! da! vida.! A! infância,! a! família,! o! casamento.! Pensara! se! Ramón! seria! feliz,! quantos! filhos! teria?! Ramón! tinha! a! saúde! frágil,! sofrera! com! isso! nos! últimos! anos.! Benito! temia! pela! vida!dele.!E!quanto!a!ele?!Quando!se!casaria?!E!como!seria!sua!famía lia?! Não! podia! abandonar! sua! mãe,! nem! os! irmãos,! isso! era! certo.! Iriam!com!ele.!Rira.!Projeções!imateriais,!tão!longe!quanto!o!fio!da! estrada,!quanto!mais!perto,!mais!longe.! Rosalia!chamara!os!outros.!Havia!serviço!na!casa!e!precisava! da!ajuda!de!Ancelma.!Já!não!era!mais!uma!menina.!Crescera!e!cresa cera!bem.!Logo!estaria!na!idade!de!casarase.!Prudêncio!também.!Só! Luciano! lhe! restara.! O! mais! novo.! Ainda! um! rapazola.! Ia! a! escola! todos! os! dias! e! era! um! menino! tranquilo.! De! fato! todos! os! filhos! cresceram!sem!daralhe!trabalho.!Muito!pelo!contrário.!Todos!ajudaa ram!o!máximo!que!puderam.!Perderam!parte!da!infância,!nas!lavoua ras,! quando! ainda! não! tinham! a! própria! terra.! Aprenderam! o! valor! do!trabalho,!isso!era!certo.!E!hoje!Ramón!se!casaria.!Quando!foi!que! a!vida!atropelaraaa!assim?!Quando!foi!que!o!menino!que!perdera!o! pai!e!segurara!o!choro!na!frente!dos!irmãos,!crescera?!O!tempo!era! 118!

!


silencioso!e!avassalador.!Estava!ficando!velha.!As!crianças!escondea ramase!nos!cantos!da!casa!de!Cepeda,!depois!na!colônia,!e!sumiram.! Surgiram! homens! e! uma! mulher,! seus! próprios! caminhos! a! seguir.! Ramón!iria!se!casar.!Esperava!que!Josefa!fosse!boa!esposa,!que!tivesa sem! filhos,! que! vivessem! bem.! Ramón! e! Benito! começando! o! próa prio! negócio,! ganhando! dinheiro.! Tinha! motivos! para! estar! feliz.! Mas! a! verdade! é! que! estava! exausta.! Sentia! o! trabalho! cumprido! e! ainda! assim,! tanto! por! fazer.! Muitas! vezes! desejara! estar! sozinha! e! quieta!por!um!longo!tempo.!Rir,!chorar,!falar,!sem!que!ninguém!oua visse.!Erguerase!mulher!e!mãe!todos!os!dias!era!um!feito!exaustivo.! Naquele!dia,!Benito!almoçava!com!os!empregados!na!fazena da.!Comia!na!casa!de!um!dos!colonos!que!trabalhavam!lá.!Gostava! de!acompanháalos,!de!saber!do!diaaaadia.!Não!ia!à!fazenda!somente! conferir! a! produção.! Gostava! de! vêalos! trabalhar,! perguntava! sobre! suas!famílias.!Gostava!de!ajudáalos.!A!verdade!é!que!gostava!de!gena te.!Na!fazenda,!na!venda,!onde!quer!que!estivesse.!Gostava!de!gente.! Falar!com!elas,!trocar!impressões,!estar!em!contato.!Desde!que!saíra! de! Cepeda! vira! que! o! mundo! é! grande.! Saíra! de! um! povoado! com! pouco! mais! de! 800! habitantes.! O! mundo! era! grande.! O! navio! era! grande.!O!porto!era!grande.!A!cidade!era!grande.!A!terra,!grande.!E! gente,!muita!gente.!O!mundo!tinha!grande!diversidade!de!pessoas.! Todos!em!busca!de!um!espaço.!Ele!estava!em!busca!de!um!espaço.! O! almoço! era! simples,! singelo.! Mas! era! bom,! honesto.! Feito! por! mãos!incansáveis!do!trabalho!diário.!Sempre!se!lembraria!da!época! em!que!ele!mesmo!cozinhava.!Contavamalhe!que!iam!ter!um!bebê,! mais!um!filho.!Felicidade!pura!e!genuína!daquela!gente.!Mais!um!fia lho.! De!volta!à!cidade,!Benito!passou!em!casa,!viu!a!mãe!e!os!ira mãos!e!foi!substituir!Ramón!na!venda.!Não!podia!fecháala.!Mas!era!o! noivado! do! irmão,! que! precisava! se! arrumar.! Jantariam! a! noite.! As! pessoas! gostavam! de! comprar! quando! Benito! era! quem! vendia.! E! !119!


vendia! até! mais! caro.! Ainda! assim,! preferiam! comprar! com! ele.! Vendia!mais!que!o!irmão.!! Estava!entardecendo.!Os!raios!de!sol!variavam!as!cores!e!dea vagar! atingiam! os! degraus! da! venda.! Pouco! a! pouco,! iam! subindo.! Famílias!passavam,!indo!para!a!igreja,!voltando!com!as!compras!do! dia.!Hoje!beberiam!um!pouco!melhor,!fumariam!seu!fumo!de!corda.! Hoje! seriam! mais! felizes.! Benito! pensava! no! movimento! humano! naquelas!terras!ainda!em!formação,!pensava!no!futuro,!na!fazenda,! em! seus! sonhos.! Pensava! na! simplicidade! de! voltar! com! uma! coma pra!um!pouco!melhor!e!assim,!ser!um!pouco!mais!feliz.!Um!momena to!fugaz.!Foi!quando!ela!entrou.!Tinha!e!tez!clara,!tinha!a!pele!mais! bonita!que!já!vira.!Os!olhos!delineados.!A!boca!acompanhava!a!delia cadeza!dos!outros!traços.!Nunca!vira!tamanha!harmonia!em!um!rosa to.! De! repente,! esqueceraase! de! tudo! o! que! pensara! antes.! Apenas! esquecera.! Estava!acompanhada!dos!pais!e!dos!irmãos.!Era!leve!e!ainda! assim,! firme.! Passaram! as! compras! e! Benito! tentou! iniciar! alguma! conversa.! Perguntara! sobre! a! família! e! onde! viviam.! Espanhóis,! também.!Vindos!de!Berja,!Almería.!Isabel!era!o!nome!dela.!Isabel.! Ele!fechara!as!portas!da!venda!mais!cedo,!fora!pra!casa,!ara rumaraase!e,!junto!à!família,!foi!ao!noivado!do!irmão!na!casa!da!noia va.! Durante! todo! o! jantar,! ele! que! adorava! conversar,! ficara! muito! quieto.!Os!irmãos!cochichavam!entre!si,!perguntandoase!porque!esa taria!tão!calado.!Isabel.!Isabel!era!o!nome!dela.! ! ! ! ! ! ! ! 120!

!


! !

! Navio de imigrantes chega ao porto de Santos. (Acervo do Museu da Imigração, São Paulo)

!

! Na sala de espera da Hospedaria de imigrantes. (Acervo do Museu da Imigração, São Paulo)

!121!


! !

! Cadastro de Virgínia Encinas. (Documento cedido por Otília Encinas)

! Cadastro de imigrantes na Hospedaria. (Acervo do Museu da Imigração, São Paulo)

122!

!


! ! !

! A hospedaria dos imigrantes. (Acervo do Museu da imigração, São Paulo)

! ! !123!


!

Imigrante em exame médico da hospedaria. (Acervo do Museu da Imigração, São Paulo)

! !

! Refeitório da hospedaria dos imigrantes. (Acervo do Museu da Imigração, São Paulo)

! 124!

!


! Dormitório masculino na hospedaria. (Acervo do Museu da Imigração, São Paulo)

' ' !125!


' '

! Dormitório de mulheres e crianças na hospedaria. (Acervo do Museu da Imigração, São Paulo)

' Máquina de beneficiamento de grãos em Cafelândia. (Acervo do Centro Espanhol, Cafelândia)

126!

!


' ' '

! Carregamento de café, Santos. (Acervo do Museu da Imigração, São Paulo)

' ' ' ' !127!


' ' ' ' ' ' ' '

' A casa de Diogo Martinez construída em seu sítio em 1919, Cafelândia. (Foto: Izabela Sanchez)

' ' ' ' ' ' ' ' 128!

!


' ' ' '

! Isabel Carmona. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

! ! 1!29!


! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 130!

!


P A R T E

3

Os Frutos do Grão ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !131!


! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 132!

!


Ramón Sanchez & Cia ! ! ! ! !

A

!s! cercanias! estavam! lotadas.! Todos! os! amigos,! imigrantes! vindos!da!Espanha,!amigos!de!lavoura,!de!trabalho!da!terra,! os! fregueses! da! venda,! a! família.! Todos! vieram.! Ramón! e!

Benito! estavam! radiantes,! estava! acontecendo.! Estavam! inaugurana do!o!Empório,!o!primeiro!empreendimento!com!firma!reconhecida.! Ramón!Sanchez!&!Cia.!Seu!futuro!estava!materializandoase,!sorrina do!ali,!nos!amigos!e!na!família,!nas!terras!que!se!abriam!vastas,!para! aqueles! que! desejavam! e! podiam! domáalas.! Era! apenas! o! começo! e! ainda!assim,!era!tanto.!Rosalia!estava!com!os!filhos,!Ancelma!estava! noiva!de!um!rapaz!de!São!José!do!Rio!Preto,!se!casaria!logo.!O!coa nhecera!por!conta!dos!negócios!que!os!irmãos!fizeram.!A!produção! expandiaase.!Começavam!a!comprar!terras!da!empresa.!Santa!Maria,! em!Rio!Preto,!era!uma!grande!produtora!de!café,!junto!com!as!terras! da!mãe.!Abriram!um!barracão!no!fim!da!estrada!que!encontra!o!córa rego!grande,!onde!guardavam!o!café.!Ramón!estava!ao!lado!de!Josea fa,!a!doença!avançara,!já!havia!amputado!uma!das!pernas.!Estavam! ao!lado!de!Benito,!na!porta!do!Empório.!Logo!pretendia!fazer!a!pria meira!viagem.!Pretendia!trazer!ao!comércio!artigos!inexistentes!no! Brasil.! Rendas,! roupas! femininas,! vinhos! diversos.! Iria! à! Espanha! novamente.! Dessa! vez! conheceria! a! capital,! as! grandes! cidades.! Quando! pensava,! sentiaase! o! mesmo! menino! cheio! de! sonhos! noa vamente.!Isabel!permanecia!ao!lado!dos!pais,!sorriaalhe.!Em!breve!se! casariam.!Sua!própria!família,!quantos!filhos!teriam?!Viveriam!bem.! !133!


Iria! proporcionar! a! família! tudo! que! não! tivera,! viveriam! com! cona forto.! Todas! aquelas! pessoas! olhavamano,! encorajandoao.! Sentiaase! em! casa,! em! meio! a! um! universo! que! reconhecia.! Trabalhava! com! aquilo!que!conhecia,!e!prosperava.!! Olhou!aquelas!pessoas,!e!percebeu!o!quanto!eram!parecidas,! mas! o! desconheciam.! Quantos! ali! não! sofreram! tanto! ou! mais! nas! terras!espanholas,!juntando!o!que!lhes!restara!de!força!e!coragem,!e! vindo!ao!Brasil?!Quantos!ali!sonharam!e,!no!entanto,!não!prosperaa ram?!Sentiuase!pequeno,!pequeno!e!comum.!Mas!não!o!conheciam.! Muitos! ali! não! viram! a! mãe! erguerase! uma! criatura! que! ele! descoa nhecia,! para! suprir! o! que! nunca! mais! teriam:! um! pai.! Não! viram! a! luta!de!Ramón!ao!assumir!o!papel.!Não!viram!a!tristeza!nos!olhos!do! irmão,!que!via!a!vida!fugiralhe,!de!saber!que!não!teria!muito!tempo.! Olhou!o!irmão,!e!sorriu.!Chegara!até!ali,!presenciara!o!que!já!haviam! alcançado.!Sentiuase!genuinamente!feliz.! ! !! ! Dias! depois! da! inauguração,! Benito! cavalgava! devagar.! A! tarde!caía.!Fora!um!dia!quente!em!Catanduva.!Como!fazia!várias!vea zes! na! semana,! ele! visitava! a! noiva! na! fazenda! dos! pais! de! Isabel.! Cavalgava!devagar,!e!pensara!que!tivera!muita!sorte.!Vira!uma!moça! bonita!e!encantadora!aquele!dia,!na!venda,!e!descobrira!que!era!esa pecial.!Leal,!decidida,!corajosa.!Era!de!família!espanhola!também,!e! muito! unida! à! família.! Seus! pais! e! irmãos! eram! pessoas! honestas! e! trabalhadoras.!Ouvira!o!que!diziam!as!pessoas.!Os!patrões!da!famía lia! Carmona! na! colônia! os! consideravam! muito.! Implementaram! cultivos!na!terra,!abóbora!e!outros!vegetais.!Isabel!ensinara!as!filhas! dos! patrões! a! fazer! crochê! e! outras! habilidades,! e! eramalhe! muito! gratos.! 134!

!


Chegara! à! porteira! que! dava! acesso! à! fazenda! dos! pais! de! Isabel.! Quando! tentou! avançar,! o! cavalo! recusouase.! Tentara! mais! uma! vez! e! o! cavalo! pareceu! angustiado! e! quase! o! jogou! de! cima.! Coisa! estranha.! Fizera! aquele! trajeto! tantas! vezes! e! nunca! tivera! problema.! Resolveu! não! contrariáalo.! Fez! o! caminho! de! volta! e! pea gou! um! atalho.! Anos! depois,! esse! episódio! seria! interpretado! pela! família!através!de!uma!perspectiva!diferente.! No!dia!seguinte,!Benito!acordou!e!procurou!esquecer!aquele! episódio! insólito.! Era! um! dia! especial.! Iria! olhar! uma! fazenda,! a! primeira!que!pretendia!comprar!e!chamar!de!sua.!Fora!das!divisões! da! empresa.! Pegou! o! cavalo,! já! mais! calmo! da! noite! anterior,! e! sea guiu!caminho.!Chegou!à!propriedade!e!logo!na!entrada!os!raios!do! sol! claro! brilhavam! forte! na! grama! verde! que! crescia! ali.! Uma! casa! de! paredes! brancas! despontava.! Grande! e! espaçosa.! Muitas! melhoa ras! poderiam! ser! feitas.! Um! córrego! passava! por! ali! também,! terra! boa,! poderia! cultivar! muitas! coisas,! ter! animais.! A! fazenda! era! exa tensa,! teria! espaço! suficiente! para! as! colônias! e! numerosos! pés! de! café.!Naquele!dia!Benito!voltou!para!a!casa!da!mãe!depois!de!haver! resolvido!negócios!no!Empório.!Depois!do!jantar,!fumou!um!cigarro! e!as!imagens!de!um!futuro!vinham!à!mente.!Isabel,!filhos,!uma!vida! construída!ali.!E!ali!seria!aquela!terra,!era!perfeita!para!a!família.!No! dia!seguinte!fecharia!o!negócio.!São!Bento!seria!sua!primeira!fazena da.! ! ! ! ! ! ! ! ! !135!


1909, Sanchez de Carmona ! ! ! ! ! !

B

enito!acordara!naquela!manhã!como!se!fosse!qualquer!outra.! Pegara!o!cavalo,!fora!ao!Empório.!Fora!à!fazenda!da!mãe!e!via sitara!alguns!amigos!lá.!Fora!à!São!Bento!para!olháala!pela!úla

tima!vez.!Última!vez!despovoada.!Hoje!uma!nova!fase!começaria!em! sua! vida.! Arrumouase! e! em! seguida! fumara! vários! cigarros,! estava! um!tanto!nervoso.!Começava!a!vida!cedo.!Mas!por!que!esperar?!Tua do!acontecia,!a!terra,!a!empresa,!a!produção!de!vento!em!popa,!por! que!esperar?!A!vida!passara!muito!rápido.!Do!menino!que!carregara! os! caldeirões! com! o! almoço! da! família! na! roça! para! o! empresário.! Havia!inaugurado!um!escritório!da!empresa!em!Santos!e!muito!em! breve!inauguraria!o!de!São!Paulo.!Exportava!o!próprio!café,!e!impora tava!artigos!diversos,!que!vendia!no!Empório.!Encomendas!surgiam,! outros! lugares! interessavamase! em! comprar! de! sua! empresa! para! vender.!O!irmão,!apesar!da!diabetes!avançada,!estava!bem.!Estabea lecido,!com!filhos.!Miguel!era!o!primeiro,!e!todos!os!outros!tinham! nome!de!santo.!O!que!o!calendário!indicasse.!O!santo!do!dia,!brina cavam!eles.!O!menino!era!muito!interessado!nos!negócios!e!logo!sea guiria!o!pai.!Os!irmãos!também!se!casaram.!Ancelma!já!era!mãe.!A! menina!que!chorara!na!porta!do!quarto!do!pai,!despedindoase,!boa neca!à!mão,!já!era!mãe.!Ajudara!a!cuidar!do!pequeno!junto!com!Roa salia.!Era!muito!próximo!de!Ancelma.!E!adorava!crianças.!Muito!em!

136!

!


breve! a! família! estaria! preenchida! com! novos! rostos.! Dando! proa messa!ao!futuro!que!construía!junto!ao!irmão.!! Benito!esperava!na!igreja!ao!lado!da!mãe.!Os!irmãos!sentaa vamase! na! primeira! fileira! com! a! família.! Muitas! pessoas! de! Catana duva! e! Tabapuã! compareceram,! muitos! amigos! acompanhavam! o! desenvolvimento!daquela!família!que!já!passara!por!tantas!mudana ças!em!tão!pouco!tempo.!Depois!de!alguns!momentos,!que!para!Bea nito!pareceram!uma!eternidade,!Isabel!entrou!na!igreja!com!o!pai!ao! lado.! Estava! belíssima.! Após! a! cerimônia! foram! a! São! Bento,! onde! passariam!a!primeira!noite!de!núpcias.!Viajariam!juntos!à!Espanha,! pela!primeira!vez,!viagem!repetida!por!Benito!diversas!vezes!em!sua! vida,!a!maioria!delas,!a!negócios.!O!primeiro!dia!do!resto!de!suas!via das.!O!futuro!agora!seria!chamado!de!Sanchez!de!Carmona.! ! “- A senhora lembra do seu avô, do jeito dele com a esposa, com os filhos ? - Muito carinhoso, muito bom. A vovó era mais... ‘Desce daí menina! Não é pra subir em árvore’! A tia Encarna falava: ‘Deixa mãe’! - A vovó Isabel então era mais durona? - Era mais firmona. Pra cá da mureta, tinha uma touceira de bambu. Eu e a conchita subíamos pela árvore, que tinha uma árvore aqui perto, pegava o galho, pegava um bambu e descíamos (risos)... - E ela ficava brava? - A vovó ficava brava. Teu pai, uma vez, eles eram arteiros e as meninas da Maria Isabel eram arteiras, a Adriana comandava o teu pai e a Andreia, que eram mais novos. A vovó tinha um galinheiro assim pra trás, pra trás da casa da Neide, não tem uma escadinha que sobe? Ali era um pomar. Aí, a direita entrava, era um galinheiro da minha !137!


avó, que tinha peru, pato, ganso, e eles fizeram uma fuá! Depenaram ganso, pintaram e bordaram. Aquele dia a vovó ficou louca da vida! A guia... A Andreia que fala, a guia era a Adriana. Outro dia, o que eles cortaram de folha de bananeira! No pomar, os três... Cresceram juntos os três.” (Entrevista com Rosalinda Sanchez) ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 138!

!


São Bento ! ! ! ! ! ncarnación!apoiavaase!em!um!dos!pilares!da!varanda.!Fim!de!

E

tarde!na!fazenda!São!Bento.!Os!irmãos,!Martin,!Ramón!e!Bea nito,! estavam! espalhados! pela! terra,! conferindo! a! produção,!

vendo! o! café.! O! ciclo! de! sempre.! Rosália! e! Carlota! estavam! com! a! mãe,!Isabel,!na!cozinha.!Os!afazeres!diários.!Chovia!muito.!Daquele! tipo!de!chuva!que!é!pesada!e!ainda!assim,!silenciosa.!Encarna!ainda! uma!menina,!fechou!os!olhos!um!instante!e!deixouase!sentir!a!chua va.!Gotas!respingaram!em!sua!pele.!O!cheiro!da!terra!molhada!juna tavaase!a!cantoria!dos!passarinhos.!Uma!roda!de!carro!de!boi!rangia! ao!longe.!O!cheiro!de!café!passado!e!pão!saindo!do!forno.!Abriu!os! olhos! e! sorriu.! Amava! a! fazenda,! amava! a! natureza,! amava! aquela! roda!de!carro!de!boi!que!todos!os!dias!rangia.!Amava!o!trabalhador! que!passava!e!tirava!o!chapéu.!São!Bento!tinha!paz!e!harmonia.!Ao! lado! dela,! um! romance! francês! da! coleção! de! moças! recebera! uns! respingos.! Encarna!pegou!o!livro!e!sentouase!um!pouco,!longe!daquela! chuva.!Ouvia!os!risos!da!cozinha.!Rosália!era!a!mais!“arteira”!de!toa das!as!crianças.!Ria!de!tudo,!divertira!a!irmã,!ouvira!os!risos!de!Cara lota,!também.!Logo!levariam!uma!bronca!de!Isabel.!A!mãe!era!cena trada,! poucas! vezes! a! vira! sorrir.! Enquanto! escutava! o! movimento! no!interior!da!casa,!Encarna!deixava!a!mente!vagar.!Mesmo!criança,! já!era!a!mais!inteligente!da!família.!Benito!sempre!perguntava!a!ela! sobre!assuntos!diversos.!Sempre!com!um!livro!na!mão,!essa!era!a!fia 1! 39!


lha!mais!velha!de!Benito!Sanchez!e!Isabel!Carmona.!Não!era!como! as!irmãs.!Não!pensava!em!bonecas!ou!casarase.!Tinham!dinheiro,!e! cada! vez! mais! a! fortuna! do! pai! crescia,! era! ciente! da! boa! posição.! Não!desejava!estar!longe!dos!seus.!Era!muito!próxima!a!família,!ao! pai,! à! mãe,! aos! irmãos.! Gostava! da! vida! que! tinha.! Dos! livros! que! comprava,!de!estudar,!dos!amigos.!Casar,!em!sua!cabeça!de!menina,! poderia!significar!perder!tudo!isso,!e!não!estava!disposta.!Sabia!que! esse! plano! era! incomum.! Sempre! conversava! com! Rosália.! Eram! muito!próximas,!a!irmã!mais!nova!tinha!muita!ligação!com!ela.!Mas! eram!completamente!diferentes.!Encarna!sonhava!com!histórias!do! mundo,!arte,!viagens.!! A! chuva! diminuía! e! aumentava! o! canto! dos! pássaros.! A! luz! do!crepúsculo!pouco!a!pouco!invadia!a!varanda.!Era!o!último!dia!da! família!na!São!Bento.!No!dia!seguinte!se!mudariam!para!São!Paulo.! Rua! 13! de! maio.! Ramón! e! Benito! haviam! inaugurado! um! escritório! da!empresa!na!cidade.!O!de!Catanduva!e!o!de!Santos!juntavamase!a! este.!Ela!animavaase!com!a!mudança.!São!Paulo,!o!grande!centro!do! Brasil.!Estudaria!línguas!estrangeiras,!aprimoraria!a!pintura,!o!desea nho,!compraria!sempre!os!melhores!livros.!Mas!neste!momento,!ena chiaase! de! nostalgia.! A! tarde! caía! devagar! na! fazenda.! Encarna! lara gou! o! livro! e! foi! olhar! o! horizonte.! Lembraraase! de! todos! os! ciclos! do!café!que!vira,!da!chegada!de!imigrantes,!da!pobreza.!Lembraraase! dos! bailes,! e! da! vida! animada! que! os! trabalhadores! levavam.! Lema brouase!do!nascimento!de!cada!irmão!que!ela!vira!ali,!naquela!casa.! Das!brincadeiras,!de!andar!de!automóvel!pelas!estradas.!Sentiria!fala ta!de!tudo!isso,!mas!um!novo!ciclo!surgia!e!deveria!abraçáalo.! ! “- Quantos filhos eram? - Seis. Três homens e três mulheres. - Quem era o mais velho? 140!

!


- Tio Martin. Tio Martin, daí vem a tia Encarna... Minha mãe, tio Benito, Tia Carlota... E tio Valdemar, o caçula, que já nasceu em São Paulo. E na casa do vovô em São Paulo, na 13 de maio, o povaréu ia muito né... Nasceu a Dora e nasceu a Maria lá. Tiveram lá na casa, não sei se de férias ou foram pra isso... Tia Carlota já casou na Alameda Franca, pertinho... Um quarteirão do hospital das clínicas. Vovô alugava um sobrado”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez) ! Benito!voltava!de!automóvel!pela!velha!estrada!entre!Catana duva!e!Tabapuã.!Ficara!o!dia!todo!em!Catanduva!resolvendo!negóa cios.!Um!fio!de!sol!esvanecia!ao!longe.!O!último!dia!que!morariam! naquelas! terras.! Conforme! o! veículo! cortava! a! estrada,! ele! pensava! em!tudo!que!vivera!até!ali.!O!começo!difícil,!a!luta!da!mãe,!a!primeia ra! terra! da! família.! Os! empreendimentos! com! o! irmão,! a! venda,! o! Empório,!os!escritórios.!A!vida!com!Isabel,!São!Bento,!o!café,!os!fia lhos.! Lembrouase! de! todas! as! vezes! que! foi! respeitado! e! agraciado! naquele!chão.!Dos!amigos,!das!comemorações,!dos!momentos!difía ceis.!São!Paulo!era!um!contexto!diverso.!Lá!teria!que!conquistar!seu! lugar,!seu!espaço.!Mas!os!filhos!teriam!em!mãos!tudo!que!chegava! de!novidade!ao!Brasil.!As!melhores!escolas,!os!cursos,!a!cultura.!Ena carna! com! certeza! aproveitaria! muito,! sempre! percebera! o! talento! na!filha,!interessavaase!por!assuntos!que!nenhum!outro!filho!se!intea ressava.!São!Paulo.!Recomeçar.!A!sede!da!fazenda!despontou!na!esa trada.!A!noite!caía.! ! ! ! ! ! !141!


1922, Corumbá e Pantano ! ! ! ! !

A

quele!era!um!ano!promissor.!São!Paulo!proporcionara!a!Bea nito!tudo!que!esperava.!A!firma!ia!muito!bem!e!alçara!uma! boa!posição!na!sociedade!espanhola.!!Em!especial,!no!Cena

tro!Espanhol.!No!ano!que!passara!fora!nomeado!viceatesoureiro!do! centro!e!agora!se!iniciavam!as!obras!para!inaugurar!a!casa!bancária! espanhola.!Suas!viagens!também!lhe!rendiam!muitos!negócios.!Fora! nomeado!um!dos!delegados!para!o!Congresso!Espanhol!Ultramaria no.! A! Ramón! Sanchez! &! Cia! trazia! novos! artigos! ao! Brasil! e! as! sea mentes! para! as! plantações! eram! muito! elogiadas.! Vira! no! jornal! o! anúncio! que! pedira! para! a! venda! da! marca! de! cebola! Germinal! e! a! busca!havia!sido!grande!no!escritório!em!São!Paulo.!! Aumentavam! também! o! número! de! terras.! A! empresa! já! contava! com! as! fazendas! de! Catanduva,! Rio! Preto! e! Mirasol,! do! ira mão! Ramón.! Benito! viajava! para! o! noroeste! paulista! naquele! ano.! Atraído! pelo! preço! barato! da! terra,! foram! conferir! uma! fazenda! na! região! de! Bauru,! grande! produtora! de! café,! pretendia! integráala! à! empresa! que! dividia! com! o! irmão! mais! velho.! Viajava! de! trem.! No! caminho!que!leva!São!Paulo!a!Estação!de!trem!de!Bauru,!ele!refletia! na! rapidez.! A! rapidez! com! que! se! adaptaram! a! nova! vida! em! São! Paulo.!A!rapidez!com!que!os!negócios!evoluíam.!A!rapidez!com!que! enriqueciam.!Era!uma!família!privilegiada.!Quando!chegara,!se!hosa pedara!no!Hotel!Central!e!partira!com!seu!corretor!para!ver!a!terra!a! cavalo.! Corumbá! era! o! nome! da! fazenda.! Terra! extensa,! solo! que! 142!

!


produzia!muito!café.!Antes!de!viajar,!acertara!alguns!detalhes!sobre! a!compra.!Viera!para!conferir!de!perto!e!acertara!na!escolha.!Aquela! seria! uma! aquisição! certeira! para! a! empresa.! Naquela! noite,! Benito! jantava! no! Hotel! quando! foi! surpreendido! por! um! bilhete! de! seu! corretor.! “Sr.! Benito,! há! uma! fazenda! que! o! senhor! precisa! ver.! Sei! que!vai!querer!compráala!assim!que!botar!seus!olhos!nos!pés!de!caa fé.!Aguardo!resposta”.!Naquela!noite,!foi!dormir!intrigado.!Corumbá! já!era!grande!o!suficiente;!e!também!produzia!muito!café.!Será!posa sível!que!encontrara!outra!melhor?!Iria!até!a!terra!no!dia!seguinte.! Acordou!cedo.!Apeou!o!cavalo!e!seguiu!para!a!estrada.!Pana tano,! o! nome! original! daquelas! terras,! ficava! pouco! depois! da! Coa rumbá,!no!limite!dos!municípios!Bauru!e!Avaí.!Aquele!fora!um!dia! que!Benito!nunca!esqueceria.!Passou!toda!a!tarde!andando!pela!faa zenda.!Correu!a!cavalo,!conferiu!a!produção,!chegou!a!todas!as!frona teiras.!Pantano!enchia!os!olhos.!Mais!de!mil!alqueires!de!terra.!Mais! de! trezentos! mil! pés! de! café.! Talvez! fora! enfeitiçado! pela! florada.! Enquanto!caminhava!pelas!ruas,!os!pés!de!café,!branquinhos,!mosa travam! uma! terra! que! produzia! um! grão! de! ouro.! Famosa! entre! os! moradores! muito! antigos! do! local,! a! Pantano! deixaria! o! nome! na! memória! de! muitos! trabalhadores! que! acompanharam! as! diversas! mudanças! que! aconteceram! ali.! Benito! voltara! ao! hotel.! Estava! dea terminado!a!fechar!negócio.! a!Compro!a!Pantano!se!conseguir!pagáala!com!a!própria!safra! da!terra.! a!Pois!então!o!negócio!está!fechado.! ! “- Fechou negócio com a Corumbá. Aí o corretor procurou ele no dia seguinte e falou assim: “Seu Benito, tem uma fazenda vendendo pro senhor ver, o senhor precisa ir ver”. Ele falou: “Eu já comprei a fazenda que eu vim ver”, “Não, mas vai só ver. Eu não falo nada, quero só que o senhor vá 1! 43!


ver, que eu sei que o senhor vai comprar”. Então ele foi pra Santa Rosália. Ia a cavalo. Corre a fazenda. Ele falou assim: “Eu fico com ela se eu pagar com a safra”. De café. Ele viu que a safra era imensa. - Com a safra da própria Santa Rosália? - É. Pagou com a safra e ainda sobrou dinheiro! - Nossa... - Tanto café que deu aquele ano. Chamava Pantano a Santa Rosália. Tanto é que o povo falava: “Olha a Pantano”. Eu adorava ouvir Pantano. Seu Ângelo... Por isso que eu te falei ontem, passamos o rio Pantano. Um rio que você passa indo... Antes do Batalha, tem um riosinho que atravessa, chama Rio Pantano, por causa da fazenda. É o rio que enchia, vinha lá de cima do café, enchia o açude, a lagoona, que o tio Benito aumentou”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez) ! Em!1925,!a!Ramón!Sanchez!e!Cia!chegara!à!Cafelândia,!a!tera ra!dos!pés!de!café.!Outro!negócio!que!os!irmãos!Ramón!e!Benito!fea chariam,!dessa!vez!com!um!personagem!do!interior!de!São!Paulo.!A! Leolpoldina,! hoje! conhecida! como! “fazendinha”,! era! uma! propriea dade!de!Luis!Souza!Leão,!que!veio!de!Pernambuco!para!se!aventurar! no! interior! de! paulista.! O! interior! que! começava! a! ser! ocupado.! Souza!Leão!era!filho!de!uma!antiga!e!influente!família!em!Pernama buco,!Antônio!de!Souza!Leão!e!Leopoldina!Mesquita!de!Souza!Leão,! neto!dos!Barões!de!Morenos,!e!do!Comendador!Permínio!de!Paula! Mesquita! e! Elvira! Moraes! de! Paula! Mesquita.! ! Em! Agosto! de! 1919,! comprou! um! sítio! de! café,! em! Cafelândia.! As! terras! aumentaram! e! foi!fundada!a!Fazenda!Leopoldina,!próxima!à!cidade,!onde!ficou!até! 1925,!ano!em!que!a!propriedade!foi!vendida!para!Ramón!Sanchez.! ! 144!

!


!! ! André! Asnar! chegara! à! porteira! da! Leopoldina.! Era! fim! de! tarde! e! estava! muito! cansado.! A! carroça! levava! entulhos! da! cidade! toda!e!finalmente!chegara!ao!último!local.!Largara!a!lavoura.!Ele,!a! mulher,!os!pais!e!os!filhos!viviam!em!Cafelândia,!e!André!trabalhava! como!carroceiro.!Não!era!uma!vida!fácil,!na!verdade,!nada!até!ali!foa ra!fácil,!estava!cansado.!Às!vezes!sentiaase!solitário!em!seus!pensaa mentos,! pois! tinha! coragem! de! dizer! a! verdade:! a! lavoura! era! uma! espécie! de! inferno.! O! trabalho! era! infindável,! exploratório! e! pouco! remunerado.! O! trabalho! de! carroceiro! era! difícil,! sem! dúvida.! Mas! possuía!mais!autonomia,!além!do!mais,!via!a!cor!do!dinheiro.!Cona seguira!juntar!o!suficiente,!e!logo!começaria!um!novo!negócio.!! Entrara!na!propriedade.!Uma!grande!extensão!de!terras,!ina findável.!Entrava!ali!como!um!estrangeiro,!era!o!que!sentia.!Um!esa tranho,!observando!tudo!de!fora.!Estava!curioso!quanto!ao!destino! da!Leopoldina.!Diziam!que!havia!um!grande!produtor!de!café!intea ressado,!e!Souza!Leão!desejava!ir!embora!da!cidade.!Muitos!discutia am!em!Cafelândia.!André!recolheu!o!lixo!e!os!entulhos!da!Leopoldia na!e!rumou!para!casa,!o!dia!fora!cheio.! ! “No começo... que meu pai trabalharam também aí, como carroceiro, aí na fazendinha, mas era do Luís Souza Leão. O Luís Souza Leão brigou com o Pedro Teodoro, desentenderam com o Pedro Teodoro, e ele foi embora pra Tupã, que não era Tupã, não existia, que ele foi o fundador de Tupã”. (Entrevista com André Asnar filho)

1! 45!


São Paulo: Greta Garbo e Miss Espanha ! ! ! '“Alguma'coisa'acontece'no'meu'coração' Que'só'quando'cruza'a'Ipiranga'e'Avenida'São'João' É'que'quando'eu'cheguei'por'aqui'eu'nada'entendi' Da'dura'poesia'concreta'de'tuas'esquinas' Da'deselegância'discreta'de'tuas'meninas' (...)' E'quem'vem'de'outro'sonho'feliz'de'cidade' Aprende'depressa'a'chamarNte'de'realidade' Porque'és'o'avesso'do'avesso'do'avesso'do'avesso”' (Sampa,'Caetano'Veloso)' ! !

E

ncarna!levava!Rosália!à!tiracolo!e!saíam!pela!cidade.!Já!se!sena tia!parte!da!paisagem!paulistana.!Tudo!ali!pulsava.!As!mulhea res,!elegantes,!seus!chapéus,!os!homens!apressados,!cigarros!e!

jornais.!As!ruas!fervilhavam.!Nunca!vira!nada!assim.!Empórios!abria am!em!todo!lugar,!lojas!diversas!e!imigrantes,!muitos!imigrantes.!A! indústria! cafeeira! não! cessava.! Aprendera! diversas! coisas! novas.! O! desenho!aprimoravaase!cada!vez!mais,!assim!como!a!pintura,!parte! do!tempo!que!gastava!diariamente.!Fizera!diversos!amigos,!e!comea çara! a! aprender! francês! com! Madame! Prietto,! e! tornaraase! muito! amiga!de!Pepita,!a!filha!da!Madame.!Rosália!e!Encarna!andavam!pea las! ruas! com! o! encantamento! de! tudo! que! encontravam.! Quem! as! visse! ali,! não! duvidava! de! que! eram! como! qualquer! outra! jovem! 146!

!


paulista!com!privilégios.!Sempre!elegantes,!as!duas!irmãs!eram!muia to! admiradas! na! sociedade,! em! especial,! na! sociedade! espanhola.! Quantas!oportunidades!morar!naquela!cidade!oferecia.!E!1922!era!o! ano! em! que! tudo! acontecia.! Artistas! e! vanguardistas! anunciavam! suas!ideias,!rumo!à!modernidade.!A!semana!de!arte!moderna!estava! para! acontecer! e! Encarna! se! encantava! com! a! ideia.! Nos! últimos! tempos! lera! livros! deveras! diferentes! de! tudo! que! lera.! A! produção! cultural! de! São! Paulo! era! intensa.! Poesia,! música,! artes! plásticas.! E! ainda! o! teatro,! que! tanto! adorava.! No! dia! anterior! tinha! visto! uma! peça! muito! ousada! no! teatro.! Coisas! que! não! existiam! no! interior.! São!Paulo!era!seu!lugar.!! As!duas!preparavamase!para!um!baile!na!sociedade!espanhoa la.!A!festa!era!realizada!pelo!Centro!Espanhol,!organização!em!que!a! família!Sanchez!era!muito!bem!quista.!Era!uma!festa!para!a!Miss!Esa panha.! Estavam! a! caminho! da! modista,! pegariam! os! vestidos! que! encomendaram!para!a!ocasião.!No!caminho,!Encarna!viu!Rosália!coa rar.!Olhou!em!frente!e!notou!o!rapaz!sírio!que!a!irmã!estava!de!naa morico! vir! cumprimentáalas.! Ela! então,! após! saudáalo,! caminhou! uns! passos! à! frente! para! daralhes! alguma! privacidade.! Sabia! que! o! namoro!não!teria!futuro.!O!pai!não!aprovava.!O!rapaz!era!muito!ria co.!Ainda!assim,!não!sabia!o!motivo,!mas!o!pai!não!aprovava.!Depois! de!uns!instantes!Rosália!alcançou!a!irmã.! a!Você!sabe!que!papai!não!aprova.! a!Eu!sei...! Não! gostava! de! censurar! a! irmã,! mas! não! gostaria! de! vêala! sofrer.!E!sofreria.!O!melhor!era!remediar!no!início,!para!que!não!soa fresse!mais.!Rosália!olhou!para!a!irmã!consentindo.!Sabia!que!o!pai! era!contra!e,!cedo!ou!tarde,!teria!que!por!um!fim.!Não!o!culpava!por! isso.! Lembrara! de! todos! os! momentos! em! que! o! pai! fora! tão! caria nhoso! e! bom.! De! tudo! que! tinham,! e! de! tudo! que! podiam! fazer.! E! 1!47!


Encarna!era,!além!de!sua!irmã,!sua!melhor!amiga.!Nunca!haviam!se! separado.!Viajavam!juntas,!passeavam!juntas!e!não!tinham!segredos.!! Uma!memória!distante!invadiuaa.!Era!uma!menina!pequena,! de!seis!ou!sete!anos!e!a!irmã!estava!saindo!de!casa.!Encarna!iria!para! Santana,!estudar!no!colégio!interno!das!freiras.!Receberia!uma!boa! educação.!Ainda!assim,!não!entendia!porque!uma!criança!tão!nova! deveria! sair! de! casa.! Sentira! muito,! não! queria! separarase! dela.! Ena carna!dissera!que!iria!para!casa!sempre!que!pudesse!e!que!seria!por! pouco! tempo,! que! não! ficasse! triste.! Os! dias! passaramase! e! Rosália! mal!comia.!Chorava!o!dia!todo,!queria!estar!com!a!irmã.!Convenceu! os!pais!e!iria!para!o!mesmo!internato.!Uma!criança!de!seis!anos,!moa rando! em! um! lugar! estranho,! longe! de! casa.! Tudo! pela! irmã.! E! foi! feliz!em!Santana,!por!um!tempo.!Um!dia!a!menina!Rosália!estava!no! pátio!e!sentira!muito,!muito!frio.!Afastouase!das!outras!crianças!e!foi! se!sentar!em!uma!gruta,!um!local!que!recebia!raios!de!sol.!Ali,!quiea tinha,!nem!percebeu!quando!a!freira!chamou.! a!Rosália,!o!que!faz!sentada!aí!sozinha?! a!Estou!com!muito!frio.! A!aventura!de!Rosália!acabaraase.!Estava!muito!doente.!A!dia reção!do!colégio!telefonou!para!a!casa!de!Benito!e!levaram!a!menia na.! Não! podia! contrariáalos,! nem! ao! pai,! nem! a! irmã.! Uma! família! unida,!assim!deveria!permanecer.!Sempre!juntos.! Mais!tarde!naquele!dia,!as!duas!irmãs!faziam!os!últimos!prea parativos!para!o!baile!do!Centro!Espanhol.!A!família!entrara!unida.! Benito,!Isabel,!Encarnación,!Rosália!e!os!irmãos!mais!velhos.!De!rea pente,!todos!começaram!a!aplaudir.!Depois!de!um!momento,!riram,! percebendo! que! todos! olhavam! Rosália.! Confundiramana! com! a! Miss! Espanha.! Benito! riu! e! comentou! com! a! filha.! De! fato,! Rosália! era!muito!bonita.!Sua!esposa!e!suas!filhas,!mulheres!muito!bonitas.! ! 148!

!


“- Em São Paulo, tio Ramón era diretor do centro. O povo ia tudo, de fraque e tal. Quando a mamãe chegou com o vovô e a Tia Encarna, ela era tão linda que pensaram que ela era a Miss Espanha, foi uma confusão. A tia era bonita também. Eu chamava a tia de Greta Garbo... Era uma artista de Hollywood... É a cara da Tia Encarna! Tia Encarna foi muito bonita também. - E quando que ela começou a pintar? Desde novinha? - No colégio ela começou a aprender. Com sete anos, oito anos, sei lá. Ela falou pra freira que ela queria aprender pintura. E eu tinha esses quadros dela, os primeiros quadros que ela fez, eu tinha num quartinho de passar lá no quintal. Foram tirados de lá, foram roubados, eu morava na fazenda. Eram os primeiros. Então, nossa, pra mim os primeiros teriam um valor. Eram dois. Tinha um que ela deu pro Tio Luis. Tinha uma cabra amarrada em uma... Acho que eles queriam matar uma onça. Tinha um homem com uma espingarda. A cabra amarrada numa corda num pau, pra atrair a onça, que tava comendo bezerro de certo, né. E ela fez um quadro desse e deu pro Tio Luis. Falei: “tanto quadro na sala dele”. Lembro mais desse do que dos outros que eu quase não vi. Antigos, os primeiros”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez)! ! ! ! ! ! ! ! ! 149! !


Amores de juventude e Conquistas econômicas ! ! "Mas eu só quero saber neste mundo misturado quem concorda consigo mesmo! Somos misturas incompletas, assustadoras incoerências, metades, três quartos e quando muito nove décimos. Até afirmo não existir uma só pessoa perfeita, de São Paulo a São Paulo, a gente fazendo toda a volta deste globo, com expressiva justeza adjetivadora, chamado de terráqueo.” (Amar, verbo intransitivo, Mário de Andrade) ! !

B

enito! levava! Encarnación! de! carro! para! o! centro! da! cidade.! Ele!se!dirigia!a!bolsa!de!mercadorias,!ela!para!as!lojas!em!gea ral.! Precisava! de! uma! tinta! para! um! quadro! novo! que! estava!

pintando.!Iam!em!silêncio,!olhavam!a!cidade.!Ela!pensava!no!movia mento!das!ruas.!O!ar!da!cidade!ficara!diferente!após!a!semana!de!ara te! moderna.! As! pessoas! chocavamase! com! a! audácia! daqueles! intea lectuais.! Poemas! obscenos! e! uma! arte! que! ninguém! entendia.! Os! mais!conservadores...!Lembravaase!do!último!baile...!As!discussões.! Diziam! que! aquilo! eram! palavras! cuspidas! e! tinta! jogada.! Não! ena tendiam.! Na! verdade,! nunca! entenderiam.! Ela! mesma! fazia! um! esa forço!enorme!para!compreender!a!mensagem!daquelas!pinturas!de! pessoas!como!Tarsila!do!Amaral!e!Anita!Malfatti.!Seus!quadros!eram! simples.! Paisagens,! pedidos! ao! agrado! da! família,! dos! amigos.! Não! conseguia,! e! nem! queria,! pintar! como! aquela! gente.! Mas! os! livros,! 150!

!


ah,!os!livros!ela!os!amava.!Lera!coisas!tão!diversas!nos!últimos!tema pos! que! não! tinha! as! mesmas! ideias! de! outrora.! Poesia,! romance,! metafísica!e!assuntos!exotéricos.!Imagine!que!agora!dera!para!a!vida! fora!da!terra!!Lia!incessantemente!sobre!esse!assunto.!Seres!diferena tes,! outra! dimensão! fora! do! espaço! e! do! tempo! presentes.! E! havia! essa!nova!religião,!espiritismo,!que!caíra!como!um!pano!assentado.! Sentiaase! confortável! em! acreditar.! Vidas! após! esta! que! vivemos.! Reações!proporcionais!às!nossas!ações.!Lei!do!amor!e!da!caridade.!E! interessavaase! cada! vez! mais! pelo! assunto.! Lia! muito! à! noite,! ena quanto!todos!dormiam.!Transportavaase.!! A!família,!católica,!não!entendia!muito.!Especialmente!a!avó! Rosalia,! fervorosa! que! era.! Mas! desejava! introduziralhes! a! nova! crença,!mostrar!que!tudo!era!maior,!muito!maior.!Mas!sabia!que!sea ria,! sobretudo,! uma! jornada! solitária.! A! família! frequentava! um! meio!extremamente!arraigado!ao!catolicismo.!Todas!aquelas!mulhea res!e!suas!ideias.!E!os!terços!infindáveis!que!as!velhas!beatas!faziam! com!a!avó,!na!casa!da!família!na!Rua!13!de!maio.!Às!vezes!sair!de!caa sa!era!libertador,!andar!pelas!ruas,!ver!novas!coisas,!ver!os!rostos!esa tranhos!das!pessoas.!Liberdade.!Lembrara!o!último!baile,!dançara!a! noite!toda.!As!valsas!vienenses...!como!gostava.!Se!ao!menos!pudesa se! dançar! sempre,! toda! semana,! deixar! o! corpo! fluir,! sem! voz,! sem! nada,! só! o! movimento! movido! por! ritmo! natural.! Conhecera! um! grupo!diferente!naquela!noite.!Estava!com!Pepita!e!Rosália!quando! seu!pai!os!apresentara.!Americanos,!o!pai!e!dois!filhos,!das!fábricas! de! borracha! dos! Estados! Unidos.! Alugavam! uma! chácara! em! São! Paulo.!Granja!do!Mandi,!como!falavam.!Conversara!toda!noite!com! o! filho! mais! velho.! Era! alto! e! muito! claro! e! ela! sempre! se! alegrava! com!uma!oportunidade!de!treinar!o!inglês.!Ele!falava!de!lugares!que! nunca! tinha! ido! e! era! muito! mais! aberto! do! que! os! rapazes! com! quem! conversava! normalmente.! Conversara! com! ele! sobre! a! literaa tura! americana! e! sobre! os! costumes! do! país.! O! que! esperava! da! !151!


Amazônia?!Teria!medo!da!vida!primitiva!do!lugar?!Fora!uma!noite! maravilhosa!aquela,!se!ao!menos!pudesse!ter!outras.! De!repente,!vira!o!sírio!que!a!irmã!namorara!passar!pela!rua.! Andava!cabisbaixo.!Viuaa!e!acenou.!O!pai!não!o!vira,!pediu!que!paa rasse!o!carro!ali.!Vira!uma!vitrine!que!a!interessava.!Despediuase!de! seu!pai,!desceu!do!carro.!Correu,!o!trânsito!estava!impossível.!Quase! trombou!um!homem!apressado.!Enfim,!alcançouao.!Cumprimentoua a! com! um! olhar! triste,! um! pouco! envergonhado.! Perguntou! a! ele! como!andava...!o!que!tinha!feito.!Disse!que!estava!imerso!nos!negóa cios,! tentava! tocar! a! vida.! Estava! melhor,! mas! ainda! sofria.! Ao! mea nos! não! a! vira! mais,! era! um! alívio.! Encarna! tentou! dizeralhe! que! a! irmã!também!sofrera!com!o!rompimento,!mas!que!os!dois!seguiriam! a!vida.!“Nos!esquecemos!das!pessoas”.!Ele!olhou!para!baixo,!e!depois! de!um!momento!indicou!um!anel!em!sua!mão.!Então!abriu!a!tampia nha!prateada,!e!dentro,!uma!foto!da!irmã.! Despediuase!dele!e!seguiu!caminhando,!vagando!pelas!lojas! e! seus! clientes! aturdidos.! Coisa! estranha! é! apaixonarase,! pensou.! A! perda!é!um!vazio!que!com!tudo!se!tenta!preencher,!e!com!nada!se! preenche.!Entrou!na!loja!de!tintas.! ! !! ! Benito! deixara! Encarna! no! centro! e! seguira! para! a! Bolsa! de! Mercadorias.!Havia!uma!reunião!marcada!com!os!principais!produa tores.! Não! ficava! muito! longe,! então! se! permitia! dirigir! devagar,! acenava!a!alguns!amigos!na!rua.!Sentiaase!como!um!membro!natua ral!da!cidade.!Tudo!acontecera!ali.!A!expansão!rápida!dos!negócios,! a!família!em!paz,!a!vida!que!levavam!ali,!tudo!ia!bem.!Às!vezes!tea mia!desejar!por!mais,!querer!mais.!Já!ganhara!tanto.!Mais!um!filho.! Valdemar!era!o!único!paulistano!de!nascença!nascido!ali,!fruto!das! novas! conquistas! que! a! cidade! trouxera! à! família.! Respeitados! no! 152!

!


Centro!Espanhol,!na!Bolsa!de!Mercadorias,!nos!Bancos.!Intensa!proa cura! de! outros! produtores,! de! outras! empresas.! Pediam! contatos,! conselhos,! outras! formas! de! comercializar! o! café! no! estrangeiro.! A! reforma!da!casa!estava!quase!terminada,!a!planta!fora!aprovada!há! dois! anos.! Pensava! nos! empreendimentos! que! ajudara! a! criar.! O! banco!de!crédito!estava!para!ser!inaugurado!e!os!planos!para!a!criaa ção! do! banco! espanhol! também! se! consolidavam.! O! centenário! do! café! passara! e! Benito! e! a! empresa! deixavam! seus! nomes! marcados! na!história.!A!era!de!ouro!para!a!família,!como!nunca!mais!seria.!A! imprensa! acompanhava! cada! passo! dos! grandes! feitos! dos! “barões”! do! café.! Anos! em! que! os!nomes!relacionados!à! família! Sanchez! esa tampavam!feitos!positivos!e!aclamados.! ! “(...) Plantas aprovadas: (...) Benito Sanchez, para reformar prédio à rua 13 de maio 213”. (Correio Paulistano, Junho de 1926) ! !! ! “Criação da Casa Bancária Espanhola: Importante plano de trabalhos aprovado pela Assembléia (...). Plano do Sr. Ares para a criação da Casa Bancária (...) 1º: Que a comissão Executiva, com o voto seus atuais membros e de todos os membros da colônia ali presentes, fosse aumentada em número, incorporando-se a sua lista, os nomes dos Srs. Arturo Arinas Cenoz, Antonio Nieto Cortés... (residentes na cidade de São Paulo) e dos Srs. Manuel Reverendo Vidal, Ramón Sanchez... (do interior). (...) Aprovação parcial do projeto (...). Os membros da subcomissão que foram designados por aclamação serão os Srs. Valentín Guerra... Benito Sanchez (...)”. !153!


(Diario Espanhol, Novembro de 22) ! !! “Bolsa de Mercadorias de São Paulo: Realizou-se ontem mais uma reunião da directoria desta instituição, a qual estiveram presentes os seus membros... Benito Sanchez (...) Agradecer ao Consul Geral da Hespanha Sr. J. Moraes Barros, a carta endereçada da Bolsa exaltando a obra de patriotismo a que naquele país vem procedendo os Srs. Ramon Sanchez & Cia, no sentido de divulgar os productos brasileiros, principalmente o café em toda a península, enviando-se cópia desta carta à firma referida”. (Diário Nacional, São Paulo, 05 de Janeiro de 1928) ! !! “Na Bolsa de Mercadorias foi eleita e tomou ontem posse nova diretoria. Diretores: Israel de Arruda, Guilherme Machado Kawall, Arthur Alves Martins, Algusto Marques Guerra, Benito Sanchez, Annibal Ferreira Jorge”. (Diario Nacional, São Paulo, 11 de fevereiro de 1925) “De Santos – da nossa Sucursal - 2º Centenário do Café. Santos, 23 – Na lista que corre a nossa praça, destinada à coleta dos fundos que cubram das despesas do comparecimento da Associação Commercial ao grande certamen commemorativo do 2º Centenário da Introdução do Cafeeiro no Brasil, lançaram suas assinaturas as seguintes firmas pertencentes ao alto commercio de Santos: Banco do Estado de São Paulo, Banco do Commercio e Industria de S. Paulo, Toledo, Assumpção & Cia... 1:000$000 cada uma; Ramón 154!

!


Sanchez & Cia, Pedro de Mello & Cia... 500$000 cada uma”. (Diario Nacional, 24 de Setembro de 1927) ! Encarna!combinara!de!encontrar!Pepita!na!casa!de!Madame! Prietto,!levara!Rosália!com!ela.!A!irmã!precisava!sair.!Além!de!busa carem!uns!vestidos!que!Pepita,!excelente!costureira,!ficara!de!aprona tar,! colocavam! os! assuntos! em! dia.! Falavam! sobre! o! último! baile.! Rosália! parecia! um! pouco! quieta.! A! irmã! não! havia! comentado! soa bre!o!encontro!com!o!Sírio.!Peppita!então!veio!com!uma!novidade! que!agradara!a!todas.!Encontrara!o!“Americano”,!aquele,!o!mais!vea lho.!Convidavaaas!para!uma!tarde!na!Chácara!do!Mandi,!onde!estaa vam! residindo.! Disse! para! telefonarem! confirmando,! passaria! para! buscáalas.!Encarna!era!muito!discreta!quanto!aos!seus!sentimentos.! Nem!a!irmã!sabia!se!sentira!algo!por!ele.!Na!verdade,!nem!ela!o!saa bia!direito.!Seus!pensamentos!vagaram!enquanto!as!duas!conversaa vam!sobre!o!dia!e!faziam!planos.! Chegara! o! dia! em! que! iriam! conhecer! a! tão! falada! Chácara! do!Mandi.!Conversaram!muito!sobre!o!passeio!nos!últimos!dias.!Pea pita!esperava!na!casa!das!irmãs!na!Rua!13!de!Maio.!Os!dois!irmãos! chegaram! de! automóvel! para! buscáalas.! Fora! um! dos! dias! mais! aproveitados!pelas!irmãs.!Conheceram!a!família!e!exploraram!todos! os!lugares!da!Chácara.!Pescaram!num!riacho!que!cortava!as!terras!e! gastaram! longas! horas! de! boas! risadas.! Encarna! aproveitara,! tama bém,!para!entender!o!que!sentia.!Ele!lhe!contara!todos!os!planos!na! Amazônia,!e!o!que!pretendiam!fazer.!O!local!tinha!grande!potencial! de!produção!econômica.!Muita!borracha!seria!fabricada!ali.!Era!todo! um!mundo!que!ela!desconhecia.!Os!homens!foram!caçar!enquanto! elas! esperavam! e! depois! assistiam! a! volta,! os! braços! segurando! váa rios!pássaros.!Fizera!diversas!fotografias!dele!e!de!todos!juntos.! !155!


O!grupo!voltara!a!se!encontrar!outras!vezes!antes!da!partida! da!família!“americana”!para!a!Amazônia.!Encarna!e!o!filho!mais!vea lho!ficaram!muito!próximos.!Uma!história!que!poderia!ter!um!final! diferente,!mas!que!não!teve.!A!borracha!declinou!no!Brasil!e!a!famía lia!se!foi.!Ainda!assim,!Encarna!e!o!“Americano”!se!corresponderam! por!muito!tempo.!Páginas!que!foram!queimadas.!Pessoas!e!histórias! quase!esquecidas.!Vivos!somente!por!um!fio.!Um!fio!que!conduz!a! realidade!rumo!a!outras!realidades!que!muitas!vezes!parecem!ficção.! A!memória!é!o!único!motor!que!mantêm!vivas!essas!pessoas.!Amoa res!passados.!O!“sírio”!e!o!retrato!de!Rosália,!o!“americano”!e!a!Cháa cara!do!Mandi.!Pessoas!que!hoje!não!possuem!nem!mais!nome!próa prio.! ! Personagens! que! complementam! os! detalhes! de! um! tempo! que!se!foi.!Uma!vida!em!que!quase!tudo!era!possível.!Duas!mulhea res.! Reflexos! de! seus! tempos.! Rosália,! a! mulher! que! teve! um! amor! proibido! pela! discriminação! do! pai,! Benito.! Encarnación,! a! artista! libertária!que!nunca!se!casou.!A!mulher!que!tanta!vezes!suscitou!cua riosidade!por!simplesmente!não!haver!se!casado.!A!jovem!que!decia dira! seguir! um! caminho! diverso! da! agenda! do! gênero! feminino! de! sua! época.! Que! teve! uma! vida! amorosa! abafada,! por! ser! solteira.! Duas!mulheres!ricas,!reflexos!de!sua!família!tradicional,!reflexos!de! suas!escolhas.!! ! “- E a tia Encarna, a tia teve namorados? - Teve... A Tia namorou... Acho que a tia namorou um porque ela só dançava com ele... Ela não falou pra mim que namorou aquele cara... Que namorou nenhum ela falou pra mim. Mas ela só dançava com ele, nos bailes era valsa vienense... O Tico... O Dico, e depois soube... Mas ela não queria casar, acho que não foi namorado, não sei... Depois soube pela tia Adair, a tia Adair trazia notícia de Catanduva porque ia ver a mãe e as irmãs, que ele tinha sofrido um 156!

!


acidente, cortou as pernas. A tia falou: ‘Meu deus, ele era o melhor dançarino de Catanduva’”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez) ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !157!


A família Sanchez antes da Crise de 1929 ! ! ! !

A

!cidade!se!dava!aos!olhos!em!seu!esplendor.!São!Paulo,!em! toda!sua!pujança,!era!o!símbolo!do!estado!mais!rico!do!Braa sil!à!época.!Em!1928!a!capital!paulista!passou!de!centro!rea

gional!a!metrópole!nacional.!Havia!a!chegada!da!industrialização,!e! São! Paulo! contava! seu! primeiro! milhão! de! habitantes.! A! prefeitura! da!cidade!afirma!que!o!estado!produziu!mais!de!26!milhões!de!sacas! de!café!no!final!da!década!de!vinte.!! Benito,! Martin! e! Encarna! estavam! em! casa! arrumando! as! malas.! Para! Benito,! aquilo! já! se! tornara! uma! rotina.! As! camisas,! os! ternos,!os!chapéus,!tudo!embalado,!e!então!mais!de!dois!meses!no! navio.!Tantas!vezes!voltara!à!Espanha!desde!que!deixara!Cepeda!pea la!primeira!vez,!com!cinco!anos.!Da!primeira!vez!que!voltara!já!era! um! homem.! Mais! de! vinte! anos,! com! terra! e! negócios! indo! bem.! Desde! então,! muito! acontecera.! Conhecera! Isabel,! casara,! tivera! os! primeiros!filhos.!Comprara!terras,!aumentara!os!escritórios.!Mudara! para!São!Paulo,!nascera!o!último!filho,!comprou!mais!terras,!expana diu!os!fluxos!da!Companhia.!Tornaraase!um!barão!do!café.!Tinha!ina fluência! no! Centro! Espanhol,! na! Bolsa! e! nos! Bancos.! A! família! ia! bem,!o!momento!de!maior!prosperidade!que!viveram.!! Chegaram! a! Santos.! Embarcariam! para! a! Espanha.! Encarna! adorava!as!viagens!que!fazia!com!o!pai.!Era!muito!próxima!à!família! da! Espanha,! e! a! Europa! tinha! atrações! que! se! relacionavam! ao! seu! 158!

!


gosto.! Acompanhar! o! pai.! Vêalo! nos! negócios.! Sentiaase! orgulhosa! da!família.!Martin!iria!também,!seria!a!melhor!viagem!com!toda!cera teza.! Quando!Benito!e!os!filhos!deixaram!o!Brasil,!a!família!fazia! planos!diferentes!do!que!lhes!seria!reservado.!Naquele!ano,!Ramón! Sanchez!era!Presidente!do!Centro!Espanhol.!A!Empresa!possuía!esa critórios!nas!cidades!de!Catanduva,!Santos,!São!Paulo,!Mirasol,!Maa drid!e!Barcelona,!além!das!propriedades!que!produziam!café,!como! as!fazendas!Santa!Maria!de!Rio!Preto,!São!Bento!de!Catanduva,!Coa rumbá!e!Santa!Rosália!na!região!de!Bauru!e!Leopoldina!em!Cafelâna dia.!Benito!residia!com!a!família!à!Rua!13!de!Maio!e!possuía!chácaa ras,!barracões!e!casas!alugadas!na!cidade!de!São!Paulo.!A!última!viaa gem! antes! da! crise! de! 1929! era! motivada! pela! escolha! de! uma! resia dência!na!Espanha.!Mudança!que!nunca!aconteceria.! Encarnación!olhou!o!último!céu!iluminado!pelo!sol!no!porto! de!Santos!antes!do!navio!partir.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 1!59!


Patrimônio da Rainha dos Anjos do Batalha ! ! ! “Já não somos como na chegada Calados e magros, esperando o jantar Na borda do prato se limita a janta As espinhas do peixe de volta pro mar Miserere-re nobis Ora, ora pro nobis É no sempre será, ô, iaiá É no sempre, sempre serão Tomara que um dia de um dia seja Para todos e sempre a mesma cerveja Tomara que um dia de um dia não Para todos e sempre metade do pão” (Miserere Nóbis, Gilberto Gil) ! !

O

!povo!trabalhador!é!o!povo!que!sente!a!terra.!Afonso!Garcia! Villar! e! Encarnación! Ilessas! ainda! não! haviam! se! casado.! Mas!compartilhavam!as!mesmas!angústias!sem!que!soubesa

sem.! Como! a! grande! maioria! dos! imigrantes,! vinham! pobres,! com! um! fio! de! sonho! de! prosperar! na! América,! a! América! de! ouro,! a! América!do!grão.!Suavam!suas!vidas!naquelas!terras,!recém!povoaa das,!ainda!com!o!sangue!dos!índios!guardado!debaixo!da!terra.!O!ina terior! paulista! nasceu! regado! a! suor! e! sangue.! Trabalhavam! incesa santemente,!dia!após!dia,!do!nascer!do!sol!até!a!noite.!Nessas!terras,! 160!

!


nessas!grandes!lavouras,!ia!embora!a!juventude,!mas!não!a!força,!a! vontade! de! prosperar.! A! grande! máquina! da! terra! não! poupa! nina guém.! Eram! crianças,! velhos,! mulheres,! homens! fracos! ou! homens! fortes.!Todos!se!doavam!a!produção!do!ouro!paulista.! ! “Sempre falava que lavoura de café é aquela coisa de sempre... Colheita, colher, carpir... Plantava arroz, feijão, plantava os cereais... Plantava os subsídios ali no meio... Os subsídios de manutenção e vivia ali... Vivia tudo lá dentro da lavoura. - E eram só os homens? - Mulher também... Ô, todo mundo trabalhava. Levava os filhos, punha na sombra do café e trabalhava... Todo mundo. - E pra ensacar? - Ensacava, punha na carroça e trazia pro Benefício, pro terreiro, do terreiro ia pro benefício”. (Entrevista com Afonso e Francisco Garcia) ! O!dia!fora!muito!quente.!Afonso!chegara!a!casa!carregando! o! próprio! corpo,! cansado,! exausto,! sugado! pela! terra.! A! primeira! coisa!que!vira!fora!um!pão!com!café!fresco,!a!mãe!acabara!de!passar,! em! cima! da! mesa.! O! homem! trabalhador! é! um! pouco! bicho,! um! pouco!instinto,!se!toma!do!corpo,!o!corpo!pede.!Foi!direto!à!mesa,! devorou!o!pedaço!de!pão,!engoliu!o!café!num!gole.!Queimaraalhe!a! garganta.!Comeu!quase!sem!sentir!o!gosto.!Gosto.!O!que!é!o!gosto! para!aquele!que!tem!fome?!No!momento!em!que!Afonso!tomava!seu! café,! devorava! seu! pão,! muitos! patrões! em! várias! fazendas! de! café,! em!vários!dos!latifúndios,!tomavam!o!chá!da!tarde.!Comiam!um!pea daço!de!bolo,!talheres!de!prata.!! !161!


Dirigiuase!a!um!pequeno!espelho!no!canto!da!sala,!uma!baa cia!com!água.!Lavou!o!rosto,!árido!e!olhouase.!Vira!o!menino!sonhaa dor! de! dezesseis,! que! deixara! uma! terra! na! qual! passava! fome,! em! busca!de!uma!terra!em!que!o!que!se!planta,!dá.!A!“América”,!no!ena tanto,! era! bem! real.! Seu! rosto,! vermelho,! cheio! da! poeira! da! roça.! Uma!terra!que!não!era!dele.!O!sonho!de!um!dia!possuir!um!pouco! daquele!ouro.!Olhara!a!despensa,!a!repartição!vazia!mostrava!que!a! compra!era!necessária.! Pai,!mãe!e!irmãos!num!carro!de!boi.!O!dia!da!compra!era!um! comboio! de! carros! de! boi! que! saía! do! patrimônio.! Devagar! e! consa tante,!as!rodas!do!veículo!giravam!conforme!a!vontade!do!boi.!Iam! quietos,! acompanhando! o! ritmo,! vendo! a! paisagem.! A! sensação! de! deixar!as!propriedades!por!um!tempo.!A!família!ia!para!Avaí,!povoa ado!que!na!época!áurea!do!café,!chegara!a!ter!mais!de!vinte!mil!haa bitantes,!cinema,!serrarias,!fundições!e!que!hoje!não!chega!aos!dez! mil.!É!o!interior!paulista!que!tenta!sobreviver!ao!vazio!deixado!pela! economia!cafeeira,!pela!mudança!da!estrutura!econômica.!Todos!se! encontravam! ali.! Era! certo! tipo! de! lazer,! para! aquelas! pessoas,! ir! comprar! mantimentos.! O! dinheiro! era! um! papel,! uma! ordem,! um! signo!sem!muito!valor.!Para!os!colonos,!era!tudo.!Apresentavam!ao! dono!do!Armazém.!Ali!tinha!um!número.!Número!que!muitos,!que! não! sabiam! ler,! não! entendiam.! Número! que! às! vezes! era! inferior! aos!produtos!comprados.!Retiravam!o!“menos!necessário”.! Afonso!e!a!família!voltaram!para!a!casa.!Naquele!dia,!o!jana tar! seria! um! pouco! melhor.! Teriam! carne,! e! um! pouco! de! fumo! de! corda!para!relaxar!o!dia.! ! “- Eles contavam como era a cidade, ou as fazendas quando eles chegaram? - Ah... Não tinha... Tudo mato... Só tinha um trilho de carretela... De carro de boi, da Rosa até aqui em Avaí pra fazer 162!

!


compra. Sete, oito carretas de boi, trazia porco, trazia feijão, trazia... Tudo que eles traziam era pra vender na cidade aqui... - Mas era o que... Uma vilinha então? - É... Era uma vilinha... Um patrimônio...”. (Entrevista com Afonso e Francisco Garcia). ! A!realidade!das!colônias!e!do!trabalho!na!lavoura!se!estendia! pelo! interior! paulista.! Assim! como! os! Garcia,! a! família! Encinas! cumprira!o!contrato!nas!terras!de!Cravinhos.!De!lá,!dirigiramase!paa ra! Guarantã,! onde! continuaram! o! trabalho! em! fazendas! de! café.! A! crise!foi!uma!realidade!em!ondas.!Ondas!que!produziram!impactos! que! se! estenderam! com! diferentes! forças.! Com! diferentes! consea quências.!O!final!da!década!de!vinte!e!começo!da!década!de!trinta! foram!os!períodos!em!que!essas!quatro!famílias!mudariam!seu!susa tento,!sua!rotina.!Foram!pessoas!que!saíram!das!fazendas,!com!uma! quantia! de! dinheiro! guardada! a! muito! custo.! Abriram! comércios,! compraram!pequenos!sítios,!recomeçaram!suas!vidas.!Os!imigrantes! empreendedores!de!Cafelândia!sentiriam!o!impacto!da!crise!com!o! passar!dos!anos,!de!modo!mais!lento.! Para! Benito! Sanchez! e! sua! família,! no! entanto,! as! consea quências!seriam!diferentes.! ! ! ! ! ! ! ! ! !

1! 63!


!

Isabel e Benito. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

Isabel, Benito e os filhos. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

164!

!


Certidão de casamento de Benito Sanchez e Isabel Carmona. (Documento cedido por Rosalinda Sanchez)

1!65!


Benito Sanchez. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

166!

!


Encarnación Sanchez de Carmona. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

1!67!


Rosalia Sanchez de Carmona. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

168!

!


Os filhos de Benito e Isabel em Catanduva, São Paulo. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

169! !


O “Americano”. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

170!

!


Encarnación no centro, Madame Prietto à esquerda e Pepita à direita, São Paulo. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

!171!


Encarnación na viagem para a Espanha. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

172!

!


Encarnación com a família na Espanha. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

!173!


Isabel Carmona na Espanha. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

174!

!


Da esquerda para a direita: Lourdes, Encarnación e Benito na Espanha. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

Benito Sanchez, sentado à esquerda, e a família na Espanha. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

!175!


Certificado de Benito Sanchez no II Congresso Nacional del Comercio Español em Ultramar, Sevilla, Espanha, 1929. (Documento cedido por Rosalinda Sanchez)

176!

!


P A R T E

4

A Crise ! ! ! ! ! ! ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' '

!177!


! ! ! 178!

!


1929, o Crack da Bolsa ! ! ! ! ! ! ncarna!distanciouase!do!grupo!por!uns!instantes.!Pediu!o!bia

E

nóculo! ao! pai! e! foi! olhar! a! vista.! Terra! brasileira! à! vista.! Foa

ram!meses!na!Espanha,!um!tempo!longo!no!percurso!do!naa

vio.!Santos!apontava!ali,!como!sempre.!Um!burburinho!de!imagens! e!sons,!cada!vez!mais!perto.!Tão!perto!e!tão!longe.!Se!mudassem,!a! terra! brasileira! seria! a! Espanha,! distante! fisicamente,! e! de! alguma! forma,! próxima.! Olhou! para! trás! disfarçadamente,! Benito! estava! longe,!muito!longe.!Estavam!na!Espanha!quando!acontecera.!O!pai! tentara! manter! a! calma,! mas! sabia! que! fora! um! baque.! A! instabilia dade,! os! preços! oscilando,! a! falta! de! notícias.! Que! maçada.! Justo! agora!que!a!propaganda!do!café,!que!o!Café!Guarani,!estabelecimena to!do!pai!em!Barcelona,!iam!tão!bem.!E!o!que!seria!agora?!Venderia am! coisas?! Sua! vida! mudaria?! Como! fariam?! Não! sabia! responder.! Não!queria!responder.!Santos!se!aproximava!cada!vez!mais.! O! porto! estava! um! caos.! Homens! elegantes! e! carroceiros! maltrapilhos.!Imigrantes,!crianças!e!velhos,!a!ebulição!do!café.!Mas! a!crise!era!latente.!Homens!e!seus!cigarros,!apressados,!angustiados,! gritavam!uns!aos!outros!pedindo!explicações.!Era!tudo,!ainda,!uma! grande! e! desastrosa! novidade.! Não! havia! nada! concreto! que! acala masse!aquelas!pessoas.!Benito!seguiu!na!frente,!indicando,!sem!dia zer,!que!Martin!e!Encarna!deveriam!seguialo.!Sem!perguntas.!Direto!

1!79!


a!estação.!Não!havia!nada!de!útil!que!pudesse!discutir!com!aqueles! homens,!a!não!ser!mais!dúvidas,!mais!confusão.! Fizeram! uma! viagem! solene! e! silenciosa.! Martin! ia! ao! lado! do!pai,!como!um!esteio.!O!filho!mais!velho,!a!velha!responsabilidaa de.! Observavam! as! paisagens! com! certa! nostalgia.! Como! se! as! visa sem!pela!primeira!vez,!como!se!as!vissem!pela!última!vez.!Fora!tão! pouco,!desde!o!começo.!Fora!tanta!luta.!O!mesmo!navio,!o!mesmo! trem.!A!velha!terra!de!São!Paulo,!oxigenada!pela!grama!que!ali!cresa cia,!iluminada!pelo!sol!que!ali,!brilhava.!A!mesma!paisagem.!No!ena tanto,!a!paisagem!era!outra.!Chegando!a!São!Paulo,!a!família!tomou! um!auto!até!a!casa,!à!Rua!13!de!Maio.!Benito!foi!sucinto!e!breve.!Que! tranquilizassem!a!família,!que!tranquilizassem!Isabel.!Iria!para!o!esa critório.!Esperassem!por!ele,!ficassem!calmos.! Benito! ligara! o! carro.! Os! pés! aceleravam! com! uma! pressa! que! nunca! tivera,! com! uma! vontade! de! fazer! o! caminho! de! volta.! Rebobinar,!voltar!a!um!ponto!em!que!o!medo!não!estivesse!presena te.!Desacelerar.!Ainda!assim,!um!golpe!certeiro!e!de!uma!só!vez,!era! melhor!que!as!delongas!intermináveis!sem!resposta.!Acelerava.!Pea las!ruas!de!São!Paulo,!a!mesma!confusão.!Homens!às!ruas,!vagavam,! gritavam,!papéis.!A!Bolsa!em!polvorosa.!Ele!via!tudo!em!câmera!lena ta.!Benito,!o!grão!de!ouro!e!um!mundo!vertiginoso,!irreconhecível.! Descera!do!carro,!e!dessa!vez,!andara!devagar.!Se!deveria!rea ceber! uma! notícia! ruim,! não! correria! tanto.! Olhou! o! comércio! em! volta.! Vira! ali,! o! pequeno! estabelecimento.! O! símbolo! concreto! de! uma!era!de!plenitude.!Riqueza,!trabalho,!felicidade.!São!Paulo!fora!a! última! das! grandes! conquistas! da! Ramón! Sanchez! &! Cia.! O! último! pote!de!ouro!por!detrás!do!arcoaíris.!Década!de!vinte.!O!último!ano,! o! último! sino! estridente,! a! última! badalada! daquela! década! que! apresentara! à! Encarnación! a! Arte! Moderna.! Que! levara! Ramón! e! Benito! ao! estrelato! das! instituições! da! elite! cafeeira.! Uma! década! que!se!fechava!pretendendo!levar!muito!com!ela.!Entrara,!Miguel,!o! 180!

!


filho! mais! velho! de! Ramón,! o! esperava.! Há! algum! tempo! Ramón! passara!o!comando!da!empresa!para!o!filho,!sua!saúde!deterioravaa se.!Ocupavaase!de!outros!encargos.!O!Centro!Espanhol,!o!qual!prea sidia;!suas!propriedades!em!Mirasol.!Benito!sentaraase,!ficaria!ali!ala gum!tempo.!Miguel,!então,!iniciou!uma!narrativa!que!marcaria!uma! mudança!na!estrutura!da!família!Sanchez!por!muito!tempo.!As!notía cias!eram!péssimas.!O!café!caíra,!despencara.!Quase!não!valia.!Prea cisava!pagar!os!bancos,!as!fazendas.!O!governo!não!cobriria!as!dívia das.! Iniciaraase! uma! política! austera,! rígida.! Ali,! naquela! sala,! sima bolizavaase!a!revolta!da!elite!cafeeira!paulista!com!as!futuras!polítia cas!de!Getúlio!Vargas!com!o!café.!A!incineração!do!grão,!expressão! que!deixara!ressonância!no!tempo,!na!vida!de!muitas!famílias.!Proa pusera! ao! banco! hipotecar! propriedades.! Na! verdade,! Miguel! já! hia potecara!boa!parte!das!propriedades!da!empresa!e!da!família.!As!faa zendas!nada!valiam.!Deveriam!esperar!a!poeira!assentarase,!as!solua ções!surgirem,!as!respostas!clarearem.!No!momento,!nada!podia!ser! feito.!A!Ramón!Sanchez!&!Cia!hipotecara!as!chácaras,!as!casas!alua gadas,! os! barracões.! Hipotecara! a! casa! de! Benito.! Quando! Miguel! pronunciara!essas!palavras,!uma!raiva!possessa!tomara!conta!de!Bea nito! Sanchez.! Raiva! e! desentendimento! que! se! repercutiria! ainda! por!muitos!anos!entre!tio!e!sobrinho.!Naquele!momento,!sem!casa.! Aquele! momento,! uma! cobra! que! mordia! o! próprio! rabo! e! encerra! um! círculo! que! não! permitira! ver! horizontes.! Naquele! momento,! sem! nada.! Mais! de! dez! propriedades! produtoras! de! café,! naquele! momento,! sem! nada.! Cinco! escritórios! da! Ramón! Sanchez! &! Cia,! naquele!momento,!sem!nada.! Benito!voltara!para!casa!como!o!menino!Benito,!cinco!anos,! sem!pai.!O!motor!do!automóvel,!o!dia!morrendo,!as!ruas!aceitando! o!silêncio.!Tudo!até!ali...!“Papai!está!morrendo...!! ...Vamos!para!a!América...!! ...!Caldeirões,!almoço!da!família...!! !181!


...!A!terra...!A!venda...!Isabel...!O!Empório...!! ...! Isabel...! São! Bento...! Os! filhos...! As! terras...! Os! filhos...! O! grão,!a!exportação,!a!Espanha...!O!prestígio...!Os!filhos...!Os!filhos”.! Benito! chegara! a! casa,! arrastando! o! próprio! corpo,! exausto,! sem!respostas.! a! As! propriedades! de! São! Paulo! são! hipotecas! dos! bancos.! Nossa!casa!está!hipotecada.!Vamos!para!São!Bento.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 182!

!


Avaí e Cafelândia: Início da década de 1930 ! ! "Todas as famílias felizes se parecem; cada família infeliz é infeliz à sua maneira." (Anna Karenina, Liev Tolstói) ! !

C

afelândia!centralizava!um!movimento!grandioso!para!a!época.! Uma!das!cidades!paulistas!com!maior!extensão!de!terra,!com! mais! habitantes.! As! pessoas! que! vivenciaram! essa! época! disa

cutem!entre!40!mil!e!50!mil!habitantes.!De!acordo!com!a!prefeitura! da! cidade,! Cafelândia! é! o! maior! município! da! região,! em! extensão! territorial,! com! 982! quilômetros! quadrados.! Hoje! a! população! é! de! 17! mil! habitantes,! aproximadamente,! a! maioria! da! zona! urbana.! O! vazio! urbano! caracteriza! o! fim! da! era! cafeeira.! Houve! nessa! terra,! também,! uma! concentração! expressiva! de! descendentes! de! Espaa nhóis!que!se!estabeleceram!nas!regiões!do!Tibagi,!Botafogo!e!Lagoa! Seca.! Diogo! Martinez! saíra! da! casa! dos! pais,! o! sítio! no! Tibagi,! e! morava! na! cidade! com! sua! esposa.! Apesar! do! turbulento! ano! de! 1929,!as!coisas!caminhavam!bem.!Abrira!um!Armazém!na!cidade,!e! o! sítio! produzia! um! pouco! de! café,! arroz! e! outros! artigos.! Assim! também,!o!sítio!dos!pais!de!sua!esposa,!Inês.!Tinha!duas!filhas,!Josea fa!e!Maria,!duas!meninas!saudáveis,!cujas!vidas!era!capaz!de!prover! 1! 83!


com! relativo! conforto.! Orgulhavaase! da! família.! De! como! haviam! conseguido,!passaram!por!muitas!provações.!A!saída!da!Espanha,!a! morte!dos!irmãos!no!navio,!a!gripe.!E!lá!estava!seu!pai,!ainda!trabaa lhando!no!sítio,!todos!continuavam.!José!havia!encontrado!o!camia nho!da!sorte.!Como!um!verdadeiro!líder,!personificava!a!fila!daquela! gente! estrangeira! que! desejava! mais! na! vida.! De! Zé! Saqueiro! para! um!grande!fazendeiro.!Grande!produtor!de!café,!máquina!de!benea fício!na!própria!fazenda.! André! Asnar! finalmente! conseguira.! Às! vezes! lhe! custava! acreditar.!A!exploração!nas!terras,!a!vida!de!carroceiro.!Finalmente! conseguira.! Juntara! dinheiro! suficiente! e! abrira! um! Armazém.! Naa quele! começo! de! década,! muitos! empreendimentos,! e! uma! quantia dade!considerável!de!armazéns,!surgiram!em!Cafelândia.!A!vida!era! outra,!mais!liberdade!e!mais!fraternidade.!A!comunidade!espanhola! era! muito! unida.! Todos! os! amigos! compravam! com! André! Asnar.! Muito! carismático,! possuía! muitos! amigos.! O! Armazém! da! família! ficava! na! travessa! Saltinho,! o! mesmo! nome! do! córrego! que! corta! Pena!e!Cafelândia.!Na!travessa!Saltinho!também!nascera!André!Asa nar!filho,!o!alfaiate!mais!famoso!da!cidade.!A!percepção!da!dificula dade!dos!trabalhadores!de!lavouras,!no!entanto,!seguiria!André,!seu! pai,!até!o!fim!da!vida.!Observava!quando!compravam!no!Armazém.! Lembrava! de! seus! próprios! dias! de! assalariado.! Humildes,! as! famía lias!chegavam,!todas!do!mesmo!jeito:!esperando!que!a!ordem!de!paa gamento! fosse! suficiente! para! o! que! precisavam.! Apresentavam! o! papel,! faziam! as! compras.! Xícaras! importadas,! livros:! eram! artigos! que!não!podiam!comprar.!Muitas!vezes,!um!simples!fumo!de!corda! era!retirado,!ultrapassara!o!valor.! ! !

184!

!!

!


Antônio!Encinas!acordara!cedo!naquele!dia.!Outro!sol!raiava! e!muitos!lugares!deveriam!ser!visitados.!Seus!planos!iam!bem,!deia xara!as!máquinas!de!benefício,!e!muito!em!breve,!tiraria!sua!família! das!lavouras!de!Cafelândia.!Agora!era!mascate,!e!pretendia!ampliar! os!negócios!de!comércio.!A!lavoura!ficara!para!trás,!era!pra!isso!que! tinha!jeito:!vender,!apresentar!coisas!novas,!lidar!com!pessoas.!Ana tônio!casara!com!Elvira!e!sua!família!crescia,!precisava!progredir.!A! responsabilidade!caíra!sobre!suas!costas.! ! “No sítio da minha avó que é ali no Tibaji, que também tinha muito Espanhol a gente já ia mais porque a gente ia e ficava lá nas férias, que era longe, então a gente ia e ficava lá nas férias. Eu me lembro que as mulheres, elas eram em quatro mulheres, elas não iam pra roça, só os homens que iam pra Roça. Levantavam cedo, casa de... O piso de tijolo, limpo que você podia tomar água no chão, de tão limpinho que era. Elas faziam pão, elas matavam porco, faziam lingüiça, fazia chouriço, tudo lá. E era aquela vida dura delas né? Levantar de madrugada e aquela vida de roça. Se juntavam em fim de semana aqueles bailinhos de roça, de sanfona, aquela coisa né? Era muito bom ir no sítio...era assim, aquela vida dura né? Não tinham luz, naquela época eles não tinham luz, era na lamparina, água de poço... Mas conforme eles foram vendendo café, adquirindo mais posses, eles também foram se modernizando, já tinham água encanada... Então a vida deles foi mudando conforme eles foram adquirindo né, vendendo o café, progredindo... E a maioria progrediu... A maioria... Você não vê um espanhol, quase, pedindo esmola, nenhum deles, é muito difícil”. (Entrevista com Josefa Martinez) ! 1! 85!


“Ah, era um movimento aqui Cafelândia. Aqui, nós tivemos como mais de 40 mil habitantes, ce vê, hoje em dia tem dezoito, dezenove mil. Nós aqui, ele conta era mais de 40 mil habitantes, um movimento colosso, nós tínhamos aqui em Cafelândia. Era... O movimento era... Ce vê, Armazéns de Japoneses, de... Aqui também tinha muito Japonês, a migração. E de Espanhol era colosso”. (Entrevista com André Asnar filho) ! Cinco! famílias,! cinco! tipos! de! dificuldades! e! superações.! Cinco! famílias! que! se! encontravam! enredadas! pelo! fio! da! história,! do!grão!e!do!tempo!de!um!modo!muito!particular.!Muito!próximo,! também.! Cinco! famílias! que! hoje! se! encontram! enredadas! pelo! mesmo!fio:!a!memória.! O! começo! daquela! década! seria! especialmente! difícil! para! duas! crianças,! duas! menininhas.! Josefa! Martinez! e! Otília! Encinas.! Otília,!filha!de!Antônio,!tinha!mais!três!irmãs.!Maria!Antônia,!Alice! e! Erotides.! Josefa,! mais! uma! irmã,! Maria.! Fora! no! ano! de! 1936,! quando!Otília!era!apenas!uma!meninha.!Também!no!ano!seguinte,! 1937,!quando!Josefa!tinha!apenas!cinco!anos.!As!duas!meninas!pera deram! as! mães.! O! tempo! costurava! e! manipulava! seus! fios,! duas! meninas,! duas! filhas! de! espanhóis,! duas! histórias,! e! ainda! assim,! uma!só!história.! ! !! ! Afonso!Garcia!terminava!o!último!sapato,!fecharia!as!portas! para!o!almoço.!Enquanto!costurava!o!couro!e!sentia!a!barriga!roncar! de!fome,!ele!lembrava.!O!ano!de!1929!tinha!sido!decisivo!na!vida!da! família! Garcia.! A! crise! veio! avassaladora! sobre! o! proprietário! das! terras!onde!trabalhavam.!Como!um!tsunami,!arrastou!diversas!famía 186!

!


lias! com! ela.! Pais,! mães,! velhos! e! filhos,! grande! parte! da! mãoadea obra!fora!despedida!da!fazenda!no!Patrimônio!da!Rainha!dos!Anjos! do! Batalha.! Fora! uma! liberdade! com! seu! preço! exigido.! O! último! adeus! ao! braço! da! lavoura.! Como! muitas! famílias,! no! entanto,! os! pais! de! Afonso! compraram! uma! terra.! Afonso! desejava! viver! na! cia dade.!Avaí!crescia!e!muitas!famílias!de!imigrantes!escolheram!o!pea queno!município!como!destino.!Afonso!abrira!uma!sapataria!e!tinha! muitos!clientes.!Todo!comércio!ali!prosperava.!Armazéns,!serrarias,! fábricas,! o! grão! levava! consigo! possibilidades! para! aqueles! que! abandonaram!a!terra.!! Afonso! terminara! o! calçado,! saíra! da! sapataria,! e! fechara! as! portas.! Olhou! a! igreja.! O! nome! Garcia! ficaria! marcado! na! história,! uma!das!famílias!que!ocuparam!a!cidade,!que!abriram!a!pequena!cia vilização! impulsionada! pelo! café! e! pelas! estradas! de! ferro.! Olhou! a! igreja.!Altiva!e!central,!a!vista!de!todos,!lá!estava!o!empreendimento! que!ajudara!a!construir.!Colocou!o!chapéu!e!seguiu!para!a!casa!em! paz.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 1!87!


Catanduva: Início da década de 1930 ! ! ! ! !

O

s! dias! passavam! devagar! na! fazenda! São! Bento.! Como! um! relógio!anacrônico,!os!ponteiros!que!coordenavam!a!vida!da! família! Sanchez! de! Carmona! voltaramase! para! trás,! deixana

do!os!dias!da!turbulenta!São!Paulo!distantes.!Encarna!voltava!da!coa lônia,!passara!uma!tarde!com!alguns!velhos!amigos.!Poucos!que!ali! ficaram,! depois! da! despedida! em! massa! que! ocorrera! após! a! crise.! Ela! andava! devagar,! olhava! cada! pedaço! daquela! terra! atingida! dea vagar!pelos!raios!de!sol!que!em!breve!se!poria.!Ouvia!os!risos!de!ala gumas!crianças!brincando!no!riacho!que!cortava!a!fazenda.!Naquele! ano!de!vinte!e!nove,!algum!poder!maior,!de!modo!escuso,!virara!sua! vida!de!cabeça!para!baixo.!Preparavaase!para!mudar!para!a!Espanha,! fazia! planos! diversos,! não! via! a! hora! de! contar! a! novidade! para! os! amigos.! Então! Benito! entrara! pela! porta,! saudosa! 13! de! maio,! e! coa municaraalhes!a!decisão.!! Antigas! famílias,! antigos! blocos! unificados.! Antigos! chefes! de! família! cuja! decisão! valia! para! todos.! Não! dissera! uma! palavra! contestadora!ao!pai,!jamais!faria!isso.!Respeitava!e!amava!demais!o! pai!para!ousar!tamanha!impertinência.!Ainda!assim,!ficara!paralisaa da.!Como!um!relógio!que!volta!os!ponteiros!da!civilização!para!trás,! deixaram! a! São! Paulo! moderna! das! elites! cafeeiras! para! a! terra! de! Catanduva,!para!a!São!Bento!que!não!tinha!luz!elétrica.!Dos!lustres! 188!

!


para!os!lampiões.!Dos!teatros!para!as!festas!da!fechada!sociedade!de! Catanduva.!O!tio,!Ramón,!cumpria!o!último!ano!como!vereador!em! 1928,! ainda! eram! conhecidos! e! respeitados,! ainda! freqüentavam! os! mesmos! lugares.! Mas! Encarna! sentia! falta! das! conversas! sobre! Gea orge!Sand!com!as!amigas!do!francês,!das!viagens.!Era!como!provar! um!sabor!ideal!e!depois!voltar!a!sentir!os!velhos!gostos,!a!velha!terra! que!já!se!conhecia.! ! “Então o vovô chegado em São Paulo, o sobrinho fez uma moratória de um particular, e emprestou o dinheiro, o que eles tinham não valia nada que era terra e café, entregou todos os imóveis pro cara. Devolveu pro cara tudo. Ficou só a mãezinha dele morando em São Paulo com todos os filhos todos casados, porque era uma casa enorme, um sobrado enorme. Só sobrou as fazendas que ninguém queria. E ele sem vergonha. Tinha uma chácara no altos da Mooca, que hoje valeria uma grana preta! Com caseiro lá morando; barracões pra guardar café, na Mooca; quarteirões de barracões; casas alugadas e pôs também a casa que o vovô morava, penhorou também. E pegou um dinheirão, pegou um dinheirão, pra fazer pagamentos. Com o dinheirão todo, e o vovô chega da Europa, ta sem casa. Então a sorte é que a sede de São Bento era maior que a de Cafelândia... Ele não vendeu um palmo de terra, ele tocou todas as fazendas sem vender. O povo vendeu, o povo deu tiro no ouvido... Muita gente se matou naquela época, ficou sem nada. Acontece que eles ficaram porque tinham muita coisa em São Paulo. Ele tinha feito muita coisa em São Paulo que foi vendido e fizeram dinheiro, o sobrinho, pra poder fazer pagamento de fazenda e tal e coisa. Aí o vovô chegou da Espanha e assumiu alguma coisa, mas falou: ‘Vamos embora, estamos sem 189! !


a casa aqui’, foram pra São Bento que não tinha energia elétrica ainda. Tinham um moinho de vento que tirava água do poço”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez) ! Benito!estava!cansado.!Eram!inúmeras!as!viagens!que!fazia!a! São!Paulo.!As!mesmas!viagens!de!antes,!os!motivos,!diferentes.!Ana tes!da!crise,!as!viagens!simbolizavam!conquistas,!obstáculos!a!serem! ultrapassados.!Era!como!partir!com!um!pote!vazio!e!saber!que!voltaa ria! cheio! de! ouro.! Tudo! mudara.! As! viagens,! incessantes! e! quase! nunca! promissoras,! eram! necessidades! econômicas! e! políticas.! A! sorte!reverteraase!de!uma!forma!irônica.!Os!bancos,!instituições!sora ridentes!e!sempre!dispostas!a!“servialo!da!melhor!maneira!possível”! tornaramase! inimigos.! Eram! juros! exorbitantes! e! empréstimos! sem! fim.!Aquele!início!de!década!fora!o!período!em!que!Benito!aprendea ra!a!nunca!confiar!em!bancos.!Lição!que!passaria!a!seus!filhos,!e!que! ainda! assim,! não! aprenderiam! muito! bem.! Os! jornais! acompanhaa vam!como!abutres.!Os!mesmos!veículos,!que!noticiavam!cada!passo! da! indústria! cafeeira! da! Ramón! Sanchez! &! Cia,! jorravam! notícias! dos!processos!que!se!sucediam!um!após!o!outro,!sobre!as!dívidas!e! as!falências.!Benito!chegara!à!Catanduva!depois!de!mais!uma!audia ência!cansativa.! ! !! ! Rosalia! lia! um! jornal! e! lá! estava! mais! uma! notícia! negativa! sobre! a! empresa! da! família.! Sentiaase! distante,! como! se! visse! algo! que! aos! poucos! afetavaaa! diretamente,! mas! algo! que! deixara! para! trás.!A!família!voltara!para!a!fazenda!São!Bento,!mas!não!ela.!O!desa tino! das! mulheres! nesses! tempos! eram! escolhas! cruciais,! difíceis! e! definidoras.!Rosália!tomou!um!gole!de!café!e!virou!a!página.! 190!

!


Era!um!dia!como!qualquer!outro!em!São!Paulo,!o!tempo!sea guia! a! natureza,! os! homens! seguiam! os! passos! de! outros! homens,! jornais!e!xícaras!de!café,!e!as!mulheres!que!desejavam!seguir!a!moda! olhavam! com! cobiça! as! vitrines! e! os! chapéus! da! estação.! Rosalia! e! Encarna!iam!visitar!Valdemar,!o!irmão!mais!novo,!no!colégio!paulisa ta.! Todos! os! adereços! das! lojas! a! faziam! lembrar! das! coisas! novas! que!Benito!sempre!trazia!das!viagens.!Lenços,!chapéus,!lindos!adea reços.!Uma!mostra!do!que!trazia!para!vender!no!empório!da!família! em!Catanduva,!ou!a!pedido!de!amigos!em!São!Paulo.!Pararam!para! comer!uma!massa!folhada!em!uma!doceria!no!caminho!do!colégio.! Ela!percebera!que!Encarna!estava!muito!agitada.!Só!podia!ser!a!viaa gem! para! a! Espanha.! A! irmã! não! costumava! apresentar! esse! coma portamento.!Sentia!falta!da!infância,!também.!Martin,!o!irmão!mais! velho,! sempre! fora! seu! companheiro,! os! dois! arteiros! da! família.! Lembrava!de!quando!o!pai!descuidava!a!atenção!no!Empório,!e!ela! vigiava! para! o! irmão,! que! abria! a! torneirinha! do! barril! de! vinho! e! bebia! com! gosto.! Riam! muito.! Outros! tempos,! diversões! que! não! voltariam!mais.! Chegaram! ao! colégio,! atravessaram! o! pátio! e! encontraram! Valdemar! esperando! no! corredor.! Conversava! com! um! rapaz! apaa rentemente!mais!velho,!muito!alto,!olhos!claros.!Cumprimentarama se,!Valdemar!apresentouaos.!Eduardo!de!Carvalho,!agrônomo!e!proa fessor!no!colégio!Paulista.!Eduardo!era!criatura!doce!e!serena,!dera! muita!atenção!às!duas!irmãs,!em!especial!à!Rosalia.!Depois!daquele! dia,! Eduardo! e! Rosalia! se! corresponderam! constantemente,! e! se! apaixonaram.!Rosalia!Sanchez!e!Eduardo!de!Carvalho!casaramase!no! começo!da!década!de!30.! Ela! terminara! o! jornal,! e! as! lembranças! doces! daquela! maa nhã.!Naquele!dia,!no!colégio!paulista!selara!seu!destino,!destino!esse! que!lhe!custaria!muito,!poucos!anos!depois.!A!família!voltara!à!Caa tanduva!e!ela!ficara!em!São!Paulo.!Mudaria!de!vida,!abdicara!de!cera !191!


tos!confortos.!Morava!na!pensão!de!uma!Alemã,!o!máximo!que!o!saa lário!de!professor!de!Eduardo!conseguia!sustentar.!! ! “- Ela teve muitos namorados? - A mamãe? Acho que não, porque casou cedo, né? Aí então conheceu meu pai e se apaixonou... Apaixonaram-se. - Pelo professor (risos). - Ele era onze anos mais velho que minha mãe. Minha mãe era muito linda!”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez) ! Encarna! chegara! a! casa! cansada,! andara! em! boa! parte! das! terras!da!São!Bento,!e!ansiava!pelo!silêncio!e!conforto!de!seus!livros.! Jantaram! em! família,! em! silêncio,! todos! sentiam! o! peso! daqueles! tempos.!E!todos!sentiam!o!peso!nas!costas!de!Benito.!Além!do!mais,! a!irmã!mais!querida!estava!em!São!Paulo,!casada.!“Espero!que!esteja! feliz”,!pensou!Encarna.! Naquela! noite! o! sono! veio! pesado! e! ela! dormiu! lendo! O! morro!dos!ventos!Uivantes.! ! “- De certo foram pra São Bento e passavam com o que plantavam: arroz, feijão... matavam gado... que tinha vaca de leite, minha avó sabia fazer queijo... - Recolheram gastos? - Diminuíram gastos... - Era uma casa... Um espetáculo! Quase o dobro da de Cafelândia... Tinha piscina. Na entrada, isso é coisa da tia Encarna, tinha uma porteira com dois portões assim, você entrava, dos dois lados pessegueiro plantado até chegar num escadaria que subia, tinha alguns degraus que subia pra varanda, pegava a frente da casa e essa lateral. A gente entra192!

!


va por essa lateral e entrava na sala de jantar enorme! A cozinha era um salão de baile... Tinha fogão de lenha, não tinha gás naquele tempo, nem luz, a tia lia com lamparina, mas ela lia”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez) ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 1! 93!


1935, Casa Chic ! ! ! ! ! !

A

ntonio!Encinas!reunira!a!família.!Pela!primeira!vez!tinham! algo!substancial!para!comemorar.!O!tempo,!na!vida!entrea laçada! pelo! café,! trabalhava! para! os! que! tinham! persevea

rança!em!não!desistir.!Antônio!e!a!família!trabalharam!muitos!anos! nas!lavouras,!em!Cravinhos,!Guarantã!e!Cafelândia.!Antônio,!muito! tempo!nas!máquinas!de!benefício.!Então!decidira!tornarase!mascate,! viajava!a!favor!das!intempéries,!e!levava!o!novo!para!os!lugares!mais! desconexos!do!interior!de!São!Paulo.!Com!a!crise,!diferente!de!muia tos!grandes!fazendeiros!e!comerciantes,!ele!conseguira!o!que!sonhaa ra!há!tempos.!Juntara!dinheiro!e!economizara!nas!coisas!mais!sima ples,!pensando!cauteloso,!em!algo!maior.!Devagar,!erguera!as!parea des,!colocara!os!móveis.!Fizera!viagens!a!São!Bernardo,!trouxera!os! artigos! para! a! loja.! Antonio! Encinas! abria! a! Casa! Chic,! empreendia mento!que!é!da!família!até!hoje.! Tirara! seus! pais! da! lavoura,! agora! moravam! em! Cafelândia,! não!precisariam!mais!do!serviço!pesado!da!roça,!podiam!descansar.! Ali!ele!construíra!e!definira!o!futuro!das!filhas.!Antônio!e!Elvira!tivea ram!quatro!filhas.!Otília!sempre!fora!muito!próxima!ao!pai,!e!se!tora naria! ainda! mais! próxima! com! a! morte! da! mãe,! um! ano! depois.! A! Casa!Chic!fora!um!grande!comércio!em!Cafelândia,!ocupando!vários! imóveis!ao!longo!da!rua.!Local!que!fornecia!boa!parte!do!que!as!pesa

194!

!


soas!da!cidade!precisavam:!móveis,!eletrodomésticos,!tecidos!e!artia gos!importados.! ! “- Como era Cafelândia nessa época? Como eram as vendas? - Olha, acho que eram boas, tinha muita gente. Tinha muita gente, as fazendas eram bem movimentadas... A gente atendia muito... Eles vinham com ordem da fazenda pra fornecer, por exemplo, duzentos... Naquele tempo era outro dinheiro né... Fornecer tanto para tal pessoa, pra tal pessoa, então tinha um movimento bom”. (Entrevista com Otília Encinas) ! 1935!também!foi!o!ano!em!que!nasceu!Dora,!a!primeira!filha! de!Rosalia!Sanchez!e!Eduardo!de!Carvalho.!Dora!fora!uma!moça!loia ra! e! alta.! Diferente! de! Rosalinda,! era! uma! pessoa! que! escapava! do! seio! da! família! muitas! vezes.! Gostava! de! ter! o! controle! da! própria! vida.! Tinha! personalidade! forte! e! os! que! conviveram! com! ela! cona tam!que!era!muito!decidida.!Fora!uma!mulher!que!escolhera!o!próa prio! destino! sem! permitir! intromissões,! em! uma! época! em! que! as! mulheres!começavam!a!ter!coragem!de!arriscar.!! ! “- Eu era muito amiga da sua tia, da Dora. A Dora ela era uma... Ela era bonita, simpática, e a gente se dava muito bem. Porque nós tínhamos... Eu tinha um namorico de um sobrinho do prefeito e ela namorava também um sobrinho do prefeito, só que o namoro dela já era mais... Mais sério do que o meu...Era namorico. Eu adorava a Dora. Eu ia muito lá e me lembro muito do seu avô também e da sua avó. O seu avô era uma pessoa educadíssima, educadíssima, ele era um encanto, me lembro da Rosalinda... Eram só as 1!95!


duas né? E a gente tava sempre juntas, Gostava muito da Dora”. (Entrevista com Josefa Martinez) ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 196!

!


A tourada de Josefa ! ! ! ! !

A

s!férias!chegaram,!finalmente.!Tudo!que!Josefa!desejava,!era! ir! para! o! sítio! dos! avós,! no! Tibagi,! em! Cafelândia.! É! difícil,! muitas!vezes,!que!um!adulto!compreenda!o!que!se!passa!na!

cabeça!de!uma!criança!quando!a!realidade!que!se!conhece!muda!tão! rápido.!Josefa!perdera!a!mãe!com!apenas!cinco!anos.!O!pai!se!casara! novamente!e!tivera!mais!dois!filhos:!Pedro!Sérgio!e!Maria!Catarina.! Uma! nova! família! que! adentrava! devagar! o! espaço! da! casa,! espaço! que!aprendia!a!dividir.! Diogo! acordava! cedo,! dividiaase! entre! o! Armazém! e! o! sítio,! na! Lagoa! Seca.! Toda! a! família! era! assim,! seus! avós! paternos! e! seus! avós!maternos.!Ainda!assim,!gostava!mais!de!estar!com!a!família!da! mãe,!o!que!restara!de!lembrança!dela.!O!sítio!do!avô,!na!Lagoa!Seca,! era!perto!da!casa!onde!moravam,!em!Cafelândia,!e!não!ficava!muito! tempo!lá,!eram!visitas!rápidas.!O!avô!paterno!também!era!carinhoa so,!mas!não!a!avó.!Maria!endureceraase!com!tudo!que!passara.!Coa mo!muitas!mulheres!de!sua!época!e!condição,!tinha!dificuldades!de! demonstrar! carinho.! Perdera! dois! filhos! no! navio,! passara! fome,! dormira!no!chão.!Vira!demais!do!mundo.! Uma!criança!sem!mãe,!todavia,!não!conseguia!compreender! tal! realidade.! Josefa! sentiaase! sozinha! e! desejava! o! ambiente! próxia mo!que!tinha!com!os!avós.!O!sítio!no!Tibagi!era!longe,!e!geralmente! passava! as! férias! todas! lá.! Diferente! de! Maria,! que! nunca! lhe! coma prara!um!doce!na!padaria,!os!avós!lhe!davam!tudo!que!tinham.!Lá,! 1!97!


sentiaase!acolhida,!querida.!Lá,!podia!ser!quem!era,!podia!ser!criana ça.!Josefa!sofrera!com!a!madrasta,!que!a!vigiava!e!controlava!muito.! Sentiaase! pequena,! diminuída.! Corrigia! seus! hábitos,! o! jeito! como! andava,!sua!liberdade.!E!era,!afinal,!só!uma!criança.!As!férias,!então,! significavam!liberdade.! ! “- Os outros, como meu pai casou de novo, a família não aceita muito, principalmente a família do lado da mãe né... Não aceita muito o viúvo casar. A minha avó que morava aqui, ela vinha... Era aquelas ‘espanholona’ mesmo, aquelas espanholas bem antigas, a gente ria dela, que ela andava sempre, ela falava sempre que ‘tinha una dolor en los rinhones’, mas tava sempre tomando um vinho. A gente ria, falava com ela e ela tomava vinho... O meu avô paterno morreu muito cedo. Ele era um encanto, você ia ao sítio, ele tava sempre alegre, sempre tinha uma fruta pra gente... Já minha avó paterna não... Ela era uma ’espanholona’. Eu, quando era mocinha, eu não... Sei lá eu... A minha vida foi um pouquinho mais dura, eu não tinha aquela coisa, eu tinha madrasta, então, era uma vida assim, eu tinha que... Era contida, Era muito... A minha irmã mais velha não, mas eu fui muito reprimida pela minha madrasta, porque todo mundo achava eu muito parecida com a minha mãe. E não sei se ela tinha ciúme, então eu sempre fui assim meio retraída. Eu nunca pude fazer aquilo assim que eu queria, tinha medo...”. (Entrevista com Josefa Martinez). ! Josefa! chegara! à! casa! dos! avós! maternos! e! o! cheiro! de! pão! fresquinho! já! invadia! todo! o! espaço.! Na! cozinha,! de! chão! muito! limpo,!as!mulheres!se!ocupavam!dos!afazeres.!Lá!faziam!pão,!bolos!e! 198!

!


lingüiça!caseira.!Lá!Josefa!ria,!corria!e!se!expressava!como!quisesse.! Sentouase! e! comeu! até! a! barriga! doer.! O! avô,! muito! brincalhão,! chamou!as!crianças!para!a!mangueira!dos!bodes.! a!Agora!vocês!vão!ver!uma!verdadeira!tourada.! Ele!atraía!os!bichos,!corria!e!desviava.!E!Josefa!ria!para!valer!! Quando!escurecia!entravam!em!casa,!atraídos!pelo!cheiro!do!jantar,! fogão!de!lenha!aceso,!o!céu!limpo!e!estrelado.!O!sono!chegava!dea pois! de! ouvir! as! histórias! contadas! pelos! avós.! Dormia! sentindo! a! verdadeira!felicidade!de!ser!criança.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 199! !


A década de 1930 e a Família ! ! ! ! !

A

!década!de!trinta!foi!um!período!de!reviravoltas!para!a!famía lia.!Reviravoltas!essas!que!aconteceram!em!três!âmbitos!da! unidade! familiar:! econômico,! político! e! íntimo.! As! famílias!

de!Rosalinda!Sanchez,!do!lado!de!seu!pai!e!do!lado!de!sua!mãe,!só! podem!ser!compreendidas!se!analisadas!dentro!das!esferas!de!poder! da!época.!Por!parte!da!mãe,!Rosalinda!Sanchez!de!Carvalho,!viria!a! ser!a!neta!de!um!dos!“barões”!do!café!da!elite!cafeeira!paulista.!A!elia te! cafeeira! configurouase,! principalmente,! pelo! caráter! arcaico! do! sistema! econômico! o! qual! sustentava! e! sobrevivia.! Seu! tio,! Ramón! Sanchez,! fora! vereador! durante! oito! anos! na! cidade! de! Catanduva! pelo! PRP,! Partido! Republicano! Paulista.! Do! lado! de! seu! pai,! Rosaa linda!é!neta!de!um!coronel!do!exército.!O!coronel!Raimundo!Afonso! de!Carvalho!nasceu!no!Ceará!e!foi!governador!de!Manaus!nos!anos! de!1907!e!1908.!Foi!fundador!da!Banda!da!polícia!militar!de!Manaus,! com! participação! militar! na! guerra! de! Canudos.! Raimundo! morreu! no!Rio!de!Janeiro.!História!que!ficará!para,!talvez,!outro!livro.!! Nesse! começo! de! década! em! São! Paulo,! a! elite! cafeeira! se! enervava! com! as! medidas! empregadas! pelo! governo! para! conter! a! crise! e! mudar! a! estrutura! econômica! brasileira.! Essa! estrutura! era,! então,!uma!relação!lucrativa!entre!bancos!privados,!na!maioria!das! vezes,!estrangeiros,!e!os!donos!das!commodities,!em!especial!o!café.! O!governo!Getulista,!opositor!a!este!modelo,!implementou!medidas! radicais!que!conflitavam!com!os!interesses!dessas!famílias.!Mandara! 200!

!


incinerar!ou!jogar!ao!mar!parte!do!estoque!de!café!brasileiro.!Instia tuiu!o!confisco!cambial,!medida!econômica!que!retirava!parte!do!lua cro!das!exportações!para!aplicar!no!início!da!indústria!brasileira.!Esa ta! e! outras! medidas! consideradas! “radicais”! pela! elite! cafeeira! ima pulsionaram!a!Revolução!Constitucionalista!de!1932.!Martin,!o!filho! mais! velho! de! Benito,! casaraase! neste! ano,! no! cerne! dos! conflitos.! Eduardo! lutara! na! revolução,! iria! se! casar! com! Rosalia! um! ano! dea pois.!! Em! Cafelândia,! ao! longe,! Rosalia! observava! um! clarão! vera melho.! Era! a! queima! do! café.! O! clima! era! incerto! e! desesperador.! Via! a! tristeza! nos! olhos! do! pai! e! dos! irmãos.! Temia! pela! incerteza! política,! temia! por! Eduardo.! Ouvira! histórias.! Grandes! fazendeiros,! amigos!do!pai,!inclusive,!que!haviam!chegado!ao!último!ato!de!tirar! a!própria!vida.!Sabia!que!o!pai!jamais!faria!isso.!No!entanto,!não!saa bia! o! que! lhe! passava! pela! cabeça.! Os! irmãos! juntaramase! a! outros! fazendeiros!e!partiram!para!Lins,!num!ato!de!protesto!contra!o!cona fisco!cambial!do!café.!! O!governo!organizara!uma!frente!militar,!a!tentativa!termia nara!em!vão.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 2! 01!


1938, Rosalinda e Ramón Sanchez ! ! “São só dois lados da mesma viagem. O trem que chega. É o mesmo trem da partida. A hora do encontro é também despedida. A plataforma dessa estação. É a vida desse meu lugar.” (Encontros e Despedidas, Milton Nascimento) ! ! aquele!ano,!no!dia!24!de!Janeiro,!na!Rua!Batista!de!Carvalho,!

N

nascia! uma! menininha! loira! de! olhos! muito! azuis.! Um! casal! jovem!e!apaixonado!mudaraase!recentemente!para!Bauru,!ina

terior!de!São!Paulo.!!A!vida!que!começara!ali!era!nova,!com!desejo! de! prosperidade.! Uma! criança! acentuava! essa! realidade.! Eduardo! e! Rosália! deixaram! São! Paulo,! buscando! melhores! oportunidades! no! interior.!Dora!já!estava!com!três!anos,!Eduardo!conseguira!um!ema prego!da!Casa!de!Agricultura!de!Bauru,!como!agrônomo.!A!mãe!exia bia!a!menininha!da!janela!da!casa,!e!todos!passavam!encantandoase! com!o!que!viam.!A!casa!em!que!nascera!Rosalinda,!hoje!abriga!a!sea de!de!uma!rede!de!lojas!de!tecido,!e!a!casa!não!existe!mais.! Rosalinda!nascera!uma!criança!privilegiada.!Cresceu!no!seio! de! uma! família! muito! unida,! de! pais! que! se! amavam,! de! família! abastada.! Era! amada! e! cuidada! por! todos! à! sua! volta.! A! família! do! pai,!família!de!classe!média!alta,!morava!no!Rio!de!Janeiro,!a!tia,!Lili,! e!as!primas,!Hebe!e!Íris,!pessoas!que!Rosalinda!seria!próxima!durana te! toda! sua! vida.! Ainda! assim,! era! a! família! da! mãe! que! definiria! a! 202!

!


vida! da! menina.! Rosalinda! era! a! neta! mais! próxima! de! Benito! Sana chez,!a!figura!mais!imponente!da!família!Sanchez.!Foi!no!seio!dessa! família!que!ela!recebeu!as!noções!de!estrutura!familiar,!propriedade! e!terras.!Foi!também!essa!família!que!garantira!um!futuro!confortáa vel!à!criança!de!olhos!azuis!até!a!velhice.! ! “- A tia Ancelma que casou com um Mano lá em Rio Preto, aí ficou a família Mano Sanchez, que é enorme. O vovô gostava muito dela, porque o vovô era mais novo e quando ela ia ganhar nenê, a vovó Rosalia falava assim pra ele: ‘Vai pra lá pra ajudar a irmã a tomar conta das crianças’, todos os filhos que ela teve, teve bastante, o vovô ia pra lá. Então os sobrinhos adoravam meu avô. Tanto é que quando tinha casamento ou enterro nós íamos e o Newton ia guiando, ia eu e a tia Encarna, nossa, chegava o vovô, parecia que tava chegando um Imperador! Você precisava ver o tratamento dos sobrinhos, como eles gostavam do vovô... É... tanta coisa que eu gostava de escutar... Gostava mesmo. Eu fazia o mesmo no Rio. Quando a tia Lili tava viva, e eu não sabia nada da família do meu pai, nada... Onde nascia, onde deixou de nascer, como que tinha sido, porque que vieram pro Rio, não sabia nada. Aí comentei com a Íris. Aí um dia: ‘Ó, a velhinha ta aí’, ela falou pra tia Lili... ‘Ela gosta de falar e você gosta de ouvir, mas foi a Íris que me passou as coisas todas, aquele dia nós conversamos, alguma coisa a tia Lili comentou”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez) ! .Outra!pessoa!estabeleceria!uma!presença!definitiva!na!vida! da! menina.! Encarnación! Sanchez! foi! uma! tia! e! uma! segunda! mãe! para!Rosalinda.!A!“tia!Encarna”!guiavaaa!e!olhava!seus!passos!desde! 203! !


muito!criança.!Ensinouaa!tudo!que!sabia.!Deualhe!livros,!a!influena ciou! na! pintura! e! na! música.! Rosalinda! foi! a! herdeira! de! Encarnaa ción,foi!a!filha!que!ela!não!teve.! ! “- Fui criada com muito carinho... O carinho da Tia Encarna era maior que o da Mamãe, porque mamãe tinha mais filha, então a tia Encarna era a minha mãezona. Um dia, no dia das mães, eu dava presente pras duas, um dia eu dei um cartão pra tia do dia das mães, ela leu, chorou e falou: ‘É, você foi minha filha’. Falei: ‘Tia, acho que na Provence nós vivemos’ porque ela adorava a França, ‘e ta lá pela França agora’, eu falava, ‘Ta lá, aproveita!’. Ela falava o nome de uma planta que parece a esporinha... ‘Aproveita, tia’. E ela falava também, lido nos livros de André Luis, que as flores lá no plano espiritual, não no umbral, elas não exalam só perfume, elas exalam sons musicais, olha que espetáculo! Eu fiz um canteiro em homenagem a ela, de petúnia e de esporinha na fazenda, logo depois da morte dela, falava: ‘Tia, esse canteiro é pra você’, aí eu falava: ‘ixe, você tem aí canteiro muito melhor’”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez) ! O!tempo!se!torna!signo!repetido!em!todas!as!marcas!que!rea aliza! na! vida.! Em! todas! as! tentativas! que! fazemos! de! compreender! as!marcas.!Como!na!música,!a!vida!é!uma!estação:!há!os!que!chegam! e!os!que!partem.!O!ano!de!1938!foi!também!o!ano!da!morte!de!Raa món!Sanchez,!o!irmão!mais!velho!e!sócio!de!Benito!na!Ramón!Sana chez!&!Cia.! ! ! ! 204!

!


“Fallecimentos: Dr. Ramón Sanchez – Falleceu, nesta capital, com 61 anos de edade, o Dr. Ramón Sanchez, antigo fazendeiro neste estado e chefe da firma Ramón Sanchez e Cia. O extinto veio para o Brasil há 47 anos, aqui se estabelecendo com fazendas em Mirasol e Bauru, tendo dirigido mais tarde sua casa Commissaria em Catanduva, São Paulo e Santos. O Dr Ramón Sanchez foi vereador pelo antigo Partido Republicano Paulista, na camara de Catanduva, em vários períodos legislativos e figura muito acatada pelas características que o destinguiam. O extinto era casado com a sra. d. Josepha Sanchez. Deixa os seguintes filhos: Wencesláuda, casada com o sr. José Rodrigues Martins; Miguel, casado com a sra. dona Cecília Teixeira; Fernando, casado com sra. d. Aurora de La Pena; Ivo, casado com a sra. Ophelia Libonati; Oswaldo; Eloy, Severina e Felix. O enterro, realizou-se, hontem, às 17 horas, saindo da rua dos Francezes, 301, para o cemitério São Paulo”. (Correio Paulistano, Abril de 1938) ! !! ! “A família de RAMON SANCHEZ agradece as manifestações de pesar e convida os parentes e amigos para assistirem á missa de 7º dia, que manda rezar terça-feira, dia 19, na Egreja da Immaculada Conceição (Avenida Brigadeiro Luiz Antônio), às 9 horas. Por mais este acto de religião se cofessa grata. Pede-se não apresentar pesames na Egreja”. (Correio Paulistano, 17 de Abril de 1938) 205! !


Rosalia!assistia!enquanto!o!caixão!era!enterrado.!Ali!ficaria!o! corpo!de!seu!filho!mais!velho.!Era!estranho!pensáalo.!O!menino!de! quatorze! anos,! o! homem! da! família,! o! chefe! da! empresa! que! consa truiu!com!Benito!e!que!os!trouxe!tantas!riquezas.!O!filho!ia!embora! antes!dela,!não!deveria!ser!permitido.!Não!sabia!por!quais!desígnios! agia!Deus,!mas!não!era!natural.!Enquanto!o!corpo!repousava!dentro! da!terra!e!ouvia!os!últimos!suspiros!dos!presentes,!ela!se!dera!conta! de!que!deixara!um!corpo!na!Espanha!e!agora!tinha!outro!no!Brasil.!! Estranho!destino!o!de!Rosalia!Sanchez.!Uma!mulher!que!via vera!para!ver!todos!os!seus!irem!antes!dela.!Com!exceção!de!Benito,! Rosalia!enterrara!o!marido!e!depois!todos!os!filhos.! ! “Eu quase não convivi com ela. Eu sei coisas dela que a tia Encarna falava, não lembro. Uma mulher muito forte. Que veio só com os filhos pro Brasil, atravessou um mar. Teve a coragem, eu não teria feito isso, teve a coragem de deixar o caçula na mão da cunhada, já pensou que dor pra ela separar do nenê? Porque se trouxesse morria... Depois ela foi buscar o tio Luciano. E todos morreram... o tio Luciano morreu... naquele tempo não tinha carro, não tinha... nesse tempo... ahn, eu não sei como que eles foram pegar o trem em Taquaritinga, o vovô levando o irmão, tio Luciano, mais novo que ele, apendicite supurada, morreu. Chegou no hospital, não teve tempo. Pegaram o trem em Taquaritinga. Foram morrendo. Tio Luciano apendicite supurada, morreu novinho, mas era casado e deixou filho. Já pensou como ela sofreu? Ela enterrou todos os filhos, todos morreram antes dela. Só o vovô que ficou vivo, que ela morreu na casa do vovô, ela morava com o vovô”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez). 206!

!


Alameda Franca: final da década de 1930 ! ! ! ! ! !

O

!sobrado!a!Rua!Alameda!Franca!estava!cheio.!Quase!todos!da! família!estavam!presentes,!especialmente!os!mais!próximos.! As! mulheres! tomavam! champanhe! e! os! homens! fumavam!

charutos.! Falavam! da! guerra,! do! governo! e! das! intrigas! de! família.! As!crianças!corriam!pela!casa.!Dora,!Rosalinda,!Maria!e!Roberto,!as! duas!primeiras,!filhas!de!Rosalia!e!Eduardo!e!os!dois!últimos,!filhos! de! Martin! e! América.! Rosalinda,! como! sempre,! estava! usando! um! vestidinho! rodado! de! renda! branco! e! mariaachiquinhas! no! cabelo! amarrado! com! fita! de! cetim.! Era! o! casamento! de! Carlota,! a! filha! mais!nova!de!Benito.!Carlota!casouase!com!o!corretor!da!empresa!de! Benito!e!Ramón!em!Santos,!Fernando.!Família!de!chilenos.! Aqueles!eram!tempos!de!restabelecimento!econômico.!Benia to!levantara!as!fazendas!com!os!empréstimos!dos!bancos!e!alugara! um! sobrado! para! a! família.! Novamente! deixaram! a! paz! interiorana! de!Catanduva!para!viver!na!São!Paulo!da!ebulição!socioeconômica.! Ele! olhava! a! família! e! de! novo! sentia! paz,! respirava.! Sabia! que! a! condição!mudara,!o!governo!sempre!representaria!um!entrave.!Mas! estava!em!território!seguro,!podia!dedicarase!à!família!em!momena tos!como!aquele.!A!revolução!passara.!Certas!coisas,!todavia,!ainda!o! preocupavam.!Ramón!se!fora,!e!Miguel,!por!mais!que!o!amasse,!não! era! confiável.! Os! números! não! negavam.! Eram! contas! que! não! se! 207! !


encaixavam!e!pagamentos!que!não!vinham.!Além!do!mais,!a!hipotea ca!de!sua!casa!à!Rua!13!de!Maio!era!algo!que!dificilmente!esqueceria.! Sentia!que!ainda!teria!muitos!problemas.!Aquela!família!divertiaase! e! tocava! a! vida! na! tranquilidade! de! um! grupo! que! não! podia! ser! atingido!por!nada.!Esqueciamase!que!Benito!era!mortal!como!quala quer!outro!ser!humano,!e!não!viveria!para!sempre.!Os!filhos,!muito! mimados,! gastavam! quantias! exorbitantes! e! não! tomavam! muito! a! frente!do!trabalho.!Benito!sabia!que!um!encargo!gigante!decaía!soa bre!ele.!Tinha!medo!do!que!seria!quando!não!tivesse!mais!forças!paa ra!comandar!tudo!sozinho.!Eduardo,!o!genro,!era!um!homem!íntea gro,! de! caráter,! mas! tinha! uma! saúde! muito! frágil.! A! família! vivia! passando!temporadas!em!Santos,!para!que!a!pressão!de!Eduardo!caa ísse.! Isso! também! o! preocupava.! Rosalia! nova,! duas! meninas! para! cuidar.!Se!Eduardo!tivesse!saúde!seria!indispensável.! Olhava!o!movimento!e!fumava!um!charuto.!Carlota!parecia! feliz! ao! lado! de! Fernando.! Ao! menos! podia! contar! com! este,! excea lente! amigo! e! negociante.! Sabia! que! nunca! estaria! em! apuros! cona quanto!Fernando!analisasse!as!contas.!Encarna!não!largava!Rosalina da,!eram!muito!próximas!aquelas!duas.!Era!clara!a!preferência!da!fia lha! mais! velha! pela! sobrinha! mais! nova.! Amparandoaa! e,! também,! mimandoaa.! Todos! se! encantavam! com! ela.! De! repente! Rosalinda! começou! a! correr,! fugindo! dos! pais! que! lhe! forçavam! a! tomar! um! remédio.!Para!atraíala,!chamavam!Roberto:! a!Roberto,!mostra!para!ela!como!se!toma.! E! o! menino! inocente! ingeria! as! cápsulas! que! depois! deixaa vam!um!gosto!forte!de!erva!de!Santa!Maria!na!boca.!E!Rosalinda!não! se!enganava,!continuava!correndo.! Um! boato! em! especial! circulava! pela! cerimônia:! a! indiscria ção! de! Miguel.! Estava! na! festa! acompanhado! de! Josefa,! sua! mãe,! e! da! família,! Cecília! e! os! filhos.! “Vergonhoso,! diziam! uns”.! “Não! tem! 208!

!


decência”,!diziam!outros.!“Como!Josefa!consentiu”?!Achavam!Cecía lia!um!tanto!triste.!Por!uma!obvia!explicação.! Rosalinda! fora! visitar! o! local! que! impulsionara! tantos! coa mentários!difamatórios!na!família.!Miguel!montara!um!palacete!paa ra!a!amante.!A!casa,!de!estilo!requintado,!não!economizava!nos!dea talhes! mais! elegantes.! Os! olhos! de! criança! da! menina! se! arregalaa vam! perante! aquela! situação! tão! diversa! do! que! entendia! como! faa mília.!Nos!cômodos,!enfeites!e!abajures!finos.!Na!sala,!tapetes!persas! e!piano!de!cauda.!Josefa!acobertara!e!mantinha!com!o!filho!a!exisa tência!paralela!da!casa,!e!da!amante.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 209! !


A Gafieira ! ! ! ! !

O

s!anos!difíceis!do!fim!da!década!de!vinte!e!da!década!de!trina ta!tinham!ficado!para!trás.!Cafelândia!se!abria!para!a!década! de! quarenta! em! sua! época! de! ouro.! Época! a! qual! viveram!

André,!Otília,!Josefa!e!Rosalinda,!a!mais!nova!do!grupo.!A!crise!do! café,! no! entanto,! havia! alcançado! Cafelândia! e! alguns! estabelecia mentos! começavam! a! fechar.! Mas! a! cidade! mostrava! todo! seu! esa plendor!na!vida!social!dessas!pessoas.!Rosalia,!a!corajosa!espanhola,! viúva!e!mãe!de!cinco!filhos,!faleceu!quando!a!família!ainda!morava! em!São!Paulo,!na!casa!da!Alameda!Franca.!Descansara.!Benito!havia! se! estabelecido! em! Cafelândia! permanentemente,! e! comprara! mais! quatro!fazendas,!três!em!Cafelândia:!Águas!de!Jandira,!Lagoa!Seca!e! Dourado,!e!uma!na!cidade!Garça,!interior!de!São!Paulo.!Os!filhos!e! parentes! administravam! os! negócios! e! Benito! ainda! administrava! a! empresa,!junto!com!Miguel,!e!os!negócios!particulares!pessoalmena te.! ! “- A minha bisavó era muito Católica, fazia parte de um grupo de mulheres do Sagrado Coração de Jesus, e ela morreu aí na Alameda Franca. Ela vivia com o vovô. Ela tinha um quarto embaixo e tinha escadaria, os quartos eram todos lá pra cima, do sobrado. E Santo Antônio, eu tinha um medo, morria de medo, e a Dora me punha medo aquela sem vergonha... Um dia ela me pôs eu tava lá em cima, eu desci 210!

!


acho que de quatro em quatro degraus, ela me pôs medo. E no Velório dela, aquela mulherada do Sagrado Coração de Jesus vieram todas e rezando aquele terço que não acaba mais... Tio Valdemar era administrador da Leopoldina, ele resolveu fazer a casa dele em Cafelândia. Ele ficou um ano morando na Santa Rosália, enquanto construía a casa. - Tio Valdemar? - Tio Benito morava na Santa Rosália, e o tio Valdemar lidando com pedreiro lá. Fez a casa do tio Valdemar que não existia porque a sede é que era a casa de frente, lá era a sede do Souza Leão. Vovô fez o escritório ao lado, que hoje é uma casinha que aluga também e fez o barracão que ele guardava a ração pras vacas de leite que tavam com bezerro novo. Quando o bezerro desmamava, as vacas iam pro Dourado, que ele tinha comprado Dourado, tinha comprado a Lagoa Seca e tinha comprado a Águas de Jandira. - As fazendas? - Eram quatro fazendas em Cafelândia. - Quatro em Cafelândia? - Leopoldina, Águas da Jandira, Lagoa Seca e O Dourado. - Quantas fazendas eram ao todo? - Acho que eram oito”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez) ! Josefa,! apesar! das! dificuldades,! fora! uma! moça! alegre! e! dia vertida.!Gostava!de!estar!com!as!amigas,!de!dançar,!e!com!a!juvena tude!vinha!um!pouco!mais!de!independência!e!autonomia.!Josefa!e! Dora!conversavam!na!casa!de!Dora,!em!Cafelândia.!Estavam!animaa das,!pois!a!noite!era!uma!das!mais!esperadas!do!ano:!O!baile!do!Caa fé.! Falavam! sobre! os! vestidos! que! usariam,! os! detalhes! que! haviam! feito! na! costura! e! se! perguntavam! quem! estaria! lá.! Além! disso,! tia !211!


nham!muito!para!conversar,!já!que!ambas!namoravam!os!sobrinhos! do!então!prefeito!de!Cafelândia.!! Josefa! admirava! Dora.! Achava! a! amiga! aberta,! sorridente! e! sempre! dava! atenção! a! todos.! Possuía! o! talento! de! cuidar.! Talento! que! depois! desabrocharia! na! profissão! de! enfermeira.! Dora,! além! dos! mais,! tinha! a! coragem! que! outras! moças! de! seu! tempo! não! tia nham,!que!a!própria!Josefa!não!tinha.!Essa!coragem!se!traduzia!na! ânsia!de!liberdade!em!sua!vida!pessoal,!em!seus!relacionamentos!e! em!suas!escolhas.! Chegara!a!noite!e!toda!a!cidade!vibrava!junto!com!a!festa.!Os! homens!vestiam!smokings,!e!as!mulheres!longos!vestidos!de!tecidos! elegantes.!Cafelândia!era,!também,!um!reflexo!da!economia!cafeeira! no! estado! de! São! Paulo:! intensa! divisão! social.! Haviam! os! grandes! fazendeiros! e! suas! famílias,! no! clube,! nos! grandes! bailes,! e! haviam! os! trabalhadores! das! lavouras,! os! pequenos! empreendedores,! que! preferiam! mesmo! a! Gafieira.! Naquele! dia,! Josefa! olhava,! hipnotizaa da,! o! vestido! usado! por! uma! moça! no! baile.! Quase! todos,! aliás,! só! tinham!olhos!para!ela.!A!moça,!de!sobrenome!Zacarelli,!foi!eleita!raa inha!do!café!naquele!ano.! ! “- Como era na época de ouro do café, a vida social, tinha muita gente? - Tinha, tinha bem mais gente. Nós tínhamos aqui, por exemplo, o clube, que é aquele que ta lá, que era uma gracinha, acabaram com ele, ficou aquela coisa lá. Mas aqueles que tinham mais poder aquisitivo... Assim... tinha que pagar uma mensalidade, alguma coisa, então frequentava o clube. Aqui nós tínhamos o que a gente chamava de gafieira (risos)... Sabe ali, descendo o bar Cristal ali? Tinha logo depois daquela casa que tem ali, aquela autoescola, aquelas coisas, ali era um barracão enorme, ali era a gafieira... 212!

!


- O que era? - A gafieira era um clube mais simples que não tinha associados, mas na época do carnaval eles faziam os “bailão popular”. Era tudo lá na gafieira, sabe? De vez em quando a turma daqui se desentendia com a diretoria do clube então fazia os bailão na gafieira mesmo. Era divertido...”. (Entrevista com Josefa Martinez) ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !213!


Zinho Alfaiate ! ! ! ! ! ! !

A

ndré! Asnar! Filho! é! o! tipo! de! rapaz! que! já! nasce! com! uma! espécie! de! sorte! sorridente.! Muito! simpático,! ele! conquisa tou,! desse! modo,! não! só! seu! emprego! e! sua! esposa,! mas!

também! toda! cidade! de! Cafelândia.! Não! há! quem! não! conheça! o! “Zinho! Alfaiate”! em! Cafelândia.! Todos! os! filhos! de! Rosalinda! tivea ram!suas!roupas!feitas!com!esse!habilidoso!homem!que!ainda!possui! uma!das!poucas!profissões!que!são!ofícios.! Francisco! Tápia! era! um! alfaiate! de! prestígio,! toda! a! cidade! lhe!procurava.!Não!só!para!encomendas,!mas!também!para!dicas!de! costura! e! opiniões! de! estilo.! Ainda! assim,! o! velho! alfaiate! sentia! a! idade!bateralhe!nos!ossos.!Precisava!de!alguém!que!lhe!ajudasse;!que! continuasse!seu!trabalho.!Havia!em!Cafelândia!uma!família!de!pesa soas!muito!queridas!e!consideradas!na!comunidade!espanhola.!Essa! família,! de! pessoas! muito! trabalhadoras! e! altruístas,! era! a! família! Asnar.! A!atuação!do!casal!André!e!Cecília!na!gripe!espanhola,!e!dea pois!nas!lavouras!de!Cafelândia,!unindo!e!construindo!cada!pilar!da! comunidade,!tornouase!muito!famosa.!O!casal!teve!sete!filhos.!Frana cisco!Tápia,!que!conhecia!o!jovem!André,!convidouao!para!o!ofício.! a!Te!ensino!tudo!que!sei,!e!em!troca!você!me!ajuda!com!os! serviços,!já!não!aguento!tanta!demanda.! Como! uma! luva,! o! trabalho! caiu! nas! mãos! de! André! e! aos! 214!

!


poucos!o!jovem!Asnar!foi!se!tornando!habilidoso.!Em!pouco!tempo! já!se!tornara!Zinho,!o!Alfaiate!de!Cafelândia.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !215!


A União da Colônia Espanhola ! ! ! ! ! !

O

!movimento! de! imigrantes! espanhóis! era! muito! intenso! em! Cafelândia,! motivo! pelo! qual! surgiu,! na! cidade,! um! Centro! Espanhol!consolidado!e!com!objetivos!comunitários.!Faziam!

quermesses,! arrecadavam! dinheiro! para! famílias! necessitadas,! e! era gueram!o!próprio!prédio,!que!existe!até!hoje,!por!iniciativa!da!colôa nia.!Parte!do!que!possibilitava!essa!união,!era!o!caráter!matriarcal!e! unitário!das!famílias.!Cinco!famílias,!as!mesmas!características:!hoa

mens!provedores!e!avós!e!mães!centralizadoras!e!austeras.!! ! “- E as famílias espanholas, elas eram mais unidas aqui? - Ah sim... Elas se juntavam muito no Centro Espanhol né. Todas frequentavam o clube. Nós tínhamos assim, nós ficamos... Durante cinco anos fizeram ali onde era a rodoviária velha, foi montada barracas, de madeira, de telhado mesmo, durante cinco anos era a Espanhola, Italiana, Japonesa, Portuguesa, sabe? Cada sábado era uma... - E isso era em que época mais o menos? - Eu tinha cinco anos... Mais ou menos em 1940 por aí. Então era assim, as barracas todas vestidas a caráter sabe? Durante cinco anos nós ficamos lá pra arrecadar dinheiro pra construir a Santa Casa, então tinha isso, tinha mais união, tinha mais... As pessoas... Não sei, não visava assim... Posição social, nem política. A gente era o que a gen216!

!


te era. (risos)... Pra mim eu acho... Outro dia riram de mim que eu falei que eu gostava tanto quando andava, enfiava o pé na lama viu (risos)”. (Entrevista com Josefa Martinez) “- Tinha alguma coisa que a sua família fazia que fosse de tradição espanhola? - Tinha, tinha, tinha, nós fazíamos muito. A família fazia quando tinha, do Centro Espanhol, a gente fazia muito. O centro espanhol foi feito, o Centro Espanhor... Pra ajuda os espanhor, que eles citava assim, mais assim pobres. Então assim, com remédio, com alimentação se reunia espanhor e fazia aquela... Arrecadavam e davam... Faziam aquela... Hoje em dia a gente chama cesta, né? Mas não era... - O que o senhor se lembra do seu avô e da sua avó, como eles eram? - Minha vó era muito fechada. Minha vó era muito assim, fechadona né. Ela não era dessas pessoas que falavam muito assim não. Meu avô não. Dessas espanholas assim fechadona mesmo. E quando falava não precisava escrever não viu, era certo. Não precisava documento não, aquilo lá que falava... “Hoje eu pago isto”, e pagava mesmo viu... Daquelas de cumprir a palavra, minha avó, é coisa de, de... Espanhol era antigo né. Matriarca mesmo viu. Então, os negócios, que meu avô, os meus tios, meu pai iam fazer... Primeiro se comunicava com ela, ela dava o sim ou dava o não... Controlava quase a família inteira né? Tomava conta da família inteira viu”. (Entrevista com André Asnar Filho) “- Olha, eu tenho muita saudades do meu avô, porque ele era muito amoroso com a gente. E ele tinha tempo pra dedi!217!


car com a gente... Não que meu pai não ligasse, ele se importava, mas meu avô era uma pessoa maravilhosa. Aquele tempo era difícil, não tinha televisão como tem agora. A gente lia mais né. Lia... contava história... Minha avó... ela ficava mais preocupada com os serviços de casa. Mas assim mesmo, ela gostava de fazer rosquinha de pinga, fazer essas coisas (risos)”. (Entrevista com Otília Encinas) ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 218!

!


Mauro Cornélio, O Domador de Cavalos ! ! ! “Tem um ditado dito como certo Que o cavalo esperto não espanta a boiada E quem refuga o mundo resmungando Passará berrando essa vida marvada Cumpadi meu que inveieceu cantando Diz que ruminando dá pra ser feliz Por isso eu vagueio ponteando E assim procurando minha flor-de-lis” (Vide, vida marvada, Rolando Boldrim) !

M

auro!tinha!sete!anos.!Um!menino,!que!como!qualquer!oua tro,!desejava!saber!mais!de!brincadeiras!do!que!da!enxada.! Mas!agora,!tudo!dependia!dele.!O!pai!morrera,!e!deixara!a!

mãe!e!duas!irmãs,!ainda!pequenas!e!solteiras.!Não!havia!tempo!para! infância.! O! pai,! figura! violenta,! deixou! a! marca! que! hoje! impera! quando! se! fala! no! nome! de! Maurinho! Cornélio.! Violência! que! aprendera! desde! jovem.! Violência! que! era,! também,! a! violência! do! trabalho!árduo!da!terra,!da!lida!no!sol!o!dia!todo,!da!vida!espremida! entre!o!trabalho!e!a!diversão!simples!dos!bailes!da!roça.!De!uma!via da! que! se! organizava! toda! em! volta! do! latifúndio! da! elite! cafeeira.! Mas!ele,!assim!como!muitos!dos!homens!que!construíram!a!cultura! caipira!do!interior!de!São!Paulo,!é!uma!criatura!de!sabedoria.!Aquea la,! que! se! aprende! na! experiência,! nos! tombos! da! vida,! na! falta! de! 2! 19!


educação!formal.!Mauro!é!um!dos!muitos!homens!que!são!os!verdaa deiros!donos!da!terra,!pois!a!conhecem!como!ninguém.!Aprenderam! na!prática,!sem!ensino,!sem!finuras.! ! “- O senhor começou a trabalhar em fazendas com que idade? - Ah, eu cumecei com dez ano. Com dez, porque eu fui criado sem pai. Minha mãe não trabaiava. Só eu que trabaiava. Tinha eu e duas irmã mais nova. Eu que trabaiava pra sustentá elas... Toda a vida eu fui um homem de pensamento, homem da vida. Nunca fui bebedor de cachaça... Meu pai também era muito enérgico... Meu pai era brabo memo viu... Diz ele que eu puxei pro lado dele. Eu também sou meio besta pra fio viu...”. (Entrevista com Mauro Cornélio) ! Mauro! e! a! família! chegaram! a! Santa! Rosália! na! década! de! quarenta.!Ele!tinha!apenas!dezessete!anos,!mas!possuía!uma!experia ência! de! mais! de! sete! anos! de! trabalho! em! lavouras! e! na! lida! com! animais.!Mauro!era!um!menino!que!se!fez.!A!Santa!Rosália!se!dava!a! perder! de! vista.! Não! há! um! consenso! sobre! o! seu! tamanho! nesta! época,!um!valor!que!varia!entre!oitocentos!alqueires!e!mil!alqueires.! Acostumado! com! o! trabalho! na! fazenda! Cachoeirinha! e! em! Val! de! Palmas,!não!se!surpreendia!mais!com!a!extensão!das!terras.!Mas!não! deixava!de!se!surpreender!com!a!estrutura!da!Santa!Rosália.!! A! fazenda! era! um! sistema! social,! tudo! se! produzia! e! quase! tudo! se! consumia! ali.! Havia! farmácias,! armazéns,! açougue,! estrada! de! ferro! e! até! sala! de! cinema.! Esse! período! ainda! possuía! muita! mãoadeaobra,!especialmente!dos!“nortistas”,!os!povos!que!migravam! das!regiões!do!Nordeste!e!do!Norte!fugindo!da!seca!ou!em!busca!de! melhores! condições! nas! lavouras! do! interior! de! São! Paulo.! Povos! 220!

!


que!sofriam!discriminação!dos!próprios!companheiros!de!trabalho,! apesar!da!vida!difícil!de!luta,!de!diáspora,!de!mescla!de!identidade.! São!Paulo,!em!boa!parte,!foi!erguida!pelos!povos!dos!diversos!lugaa res!do!Nordeste!e!do!Norte,!mas!a!alienação!corria!colônia!adentro,! e!aqueles!que!sofriam!das!mesmas!dificuldades!queriam!ser!diferena ciados!dos!“nortistas”.! ! “-Ihh, lá eu lembro de muita coisa. Eu morei onze mês na fazenda. Morei naquela colônia de lá. Lá tinha três colônia. - E quantas famílias? - A casa que eu morava era três família. Mas vinha muito nortista de fora. Foi isso aí que acabou com o Seu Benito... - Por quê? - Porque eles não sabe trabaiá. - E tinha imigrante estrangeiro lá? - Tinha. Tinha de toda raça”. (Entrevista com Mauro Cornélio) ! Os! meninos! da! lavoura,! sem! pai.! Sem! escola.! Mauro,! com! dezessete!anos,!era!o!chefe!da!família.!Uma!das!irmãs!ia!para!a!escoa la!da!Santa!Rosália.!Todos!os!dias,!os!dois!aprendiam!coisas!novas.! Ele!aprendia!a!lida!no!café,!os!fiscais!de!turma!a!vigiarem!seu!trabaa lho.! Ela! aprendia! a! escrever! o! próprio! nome.! Ele! aprendia! a! lidar! com!bichos:!vacas,!cavalos,!matar!porcos!e!galinhas.!Elas!aprendiam! a!contar.!! ! “- Lá na Santa Rosália que eu ponhei uma irmã minha na escola. Que as minha irmã nunca teve escola. E eu também nunca tive. - O senhor nunca estudou? !221!


- Não, não. E lá minha irmã ficou onze mês na escola e lá ela aprendeu tudo que precisou. Ficou onze mês. As minhas irmã estudou porque eu ponhei na escola, na Santa Rosália. A escola ali dentro da fazenda memo. Tinha duas escola. Mas tinha gente viu. Ali tinha gente. - E o senhor não sabe ler nem escrever? - Não sei... Muito malemá o nome. Só que sei fazê conta. Sei contá, conheço dinheiro bastante”. (Entrevista com Mauro Cornélio) ! O!tempo!passava!e!Mauro!passara!a!amar!aquele!lugar.!Coa nhecia! cada! ponto! da! fazenda,! andava! por! todos! os! lugares,! ficara! conhecido!pelos!fiscais,!pelo!gerente!e!pelos!Benitos,!o!pai!e!o!filho.! Acostumaraase,! como! muitos! ali,! a! acordar! as! cinco! da! manhã.! De! marmita!à!tiracolo,!aparecia!no!ponto!onde!todos!deveriam!marcar! presença.!O!sino!da!Santa!Rosália,!embaixo!da!sede.!Apareciam!no! sino,! eram! seguidos! pelos! fiscais,! trabalhavam! o! dia! todo.! Quando! chegava!em!casa,!o!dia!todo!se!fora,!mas!não!poderia!perder!a!noite.! Dormia!pouco,!dormia!às!onze!horas!da!noite,!às!vezes!mais!tarde.! Conversando! com! amigos,! procurando! esquecer! o! dia! de! trabalho.! Mauro!estabeleceu!uma!devoção!com!seus!patrões.! ! “- A fazenda lá... Essa colônia que eu morava era a colônia de lá, e travessava um corguinho assim, tinha outra colônia que morava uma gente mais veia do que eu. Na outra colônia de cá tinha três turma de empreiteiro. E tinha sino na fazenda. Sino, baile, tinha cinema. Tudo dentro da fazenda. Ali ninguém precisava ir na cidade fazer compra. E o povo que morava na fazenda, tinha oitenta alqueires de terra. Seu Benito deu pra eles ter criação. Ali tinha nego que vendia até leite da colônia, vaca de leite. Trabaiava e tinha o 222!

!


fiscal...o administrador geral era o tal do João Vermeio. O administrador geral era o André Ducati. Tudo gente véia da fazenda. E o fiscal de turma era o Du Baiano. Tinha, tinha serraria e tinha lá beira do asfarto, não tinha o asfarto, era terra de chão. Lá tinha uma...duas fábrica de fazê teia, tijolo. Aquela lagoa na beira do asfarto foi feita de tirar barro ali pra fazer tijolo e teia. Eu memo trabaiei com carroça lá, puxano barro. - E o senhor tem lembranças boas de lá? - Tenho lembrança boa porque lá ninguém passava fome. Bom, o Seu Benito bom, o véio Benito bom também. Ali a casa do Benito, ali perto da porteira. Tinha uma área grande assim. E desse lado assim tinha um açude. Beirando o açude assim saia lá outra colônia, uma colônia de assim. E pra lá, pra baixo assim, tinha mais duas colonia, de sapé. Plantei muito café de caroço. Aqui na beira do asfarto, sabe a entrada das parmeira? ali daquela água da parmeira pra lá, beirando a pista pro lado de lá, ali tudo era Benito Sanchez. Derrubamo aquilo lá, aquele mato, de machado”. (Entrevista com Mauro Cornélio) Tinha!lembranças!boas!porque!ninguém!passava!fome.!A!fea licidade! para! o! povo! das! lavouras! era,! em! boa! parte,! sobreviver.! À! época! de! Mauro,! quem! administrava! a! Santa! Rosália! era! seu! filho! Benito,!que!morava!na!fazenda!com!a!esposa!Áurea.!Os!colonos!tia nham!terras!para!plantarem!arroz!e!outros!alimentos,!e!também!tia nham! animais,! mas! o! tempo! para! cuidarem! dos! próprios! afazeres! era!reduzido.! Aos!poucos!Mauro!foi!ganhando!a!confiança!dos!moradores! da!Santa!Rosália,!confiança!essa,!que!na!esperteza!de!quem!precisaa va!sobreviver,!se!transformava!em!ganho.!Mauro!tinha!um!talento:! domar! cavalos.! Todos! ali! o! procuravam.! Deixava! homens! mais! vea 223! !


lhos! no! chinelo! com! suas! habilidades.! Desse! modo,! aos! finais! de! semana!ele!tinha!um!acordo!com!os!patrões!para!não!trabalhar!nas! lavouras.!Aos!finais!de!semana!ele!ganhava!um!dinheiro!extra.! Era! um! cavalo! da! raça! árabe,! crina! longa! e! brilhante,! mara rom!cor!de!mogno.!Alto!e!musculoso,!o!cavalo!olhava!Mauro!como! quem! diz:! “não! posso! ser! domado,! se! tentar! vai! aprender”.! Claraa mente!nervoso,!o!bicho!jogava!terra!para!trás!com!as!patas!dianteia ras!e!emitia!um!silvo!baixo!e!constante.!Mas!o!menino!não!se!intia midava.!Depois!de!uma!tarde!inteira,!o!cavalo!estava!pronto!para!ser! montado.! À! noite! Mauro! chegara! a! casa! com! dores! em! todo! o! corpo,! exausto! da! lida! com! os! bichos.! Cheirava! a! pelos,! suor! e! terra;! os! tombos! que! levara.! Mas! sábado! era! dia! de! baile! na! Santa! Rosália.! Colocaria!sua!melhor!camisa,!pentearia!os!cabelos!e!iria!dançar!até! raiar! o! dia,! junto! aos! outros! colonos.! Chegando! ao! baile,! já! via! ala guns!amigos!com!olhar!de!duas!ou!três!doses!de!cachaça.!As!preoa cupações,! a! lavoura,! os! cavalos...! Tudo! ficava! esquecido,! enterrado! embaixo!dos!pés!de!café.!Era!dia!de!festa.!Até!Benito,!o!filho,!aparea cia!nos!bailes.!Rumores!dizem!que!não!dispensava!uma!boa!farra.! Quando!o!dia!raiava,!e!anunciava!um!domingo!de!despedia da,!Mauro!ia!dormir.!Os!raios!de!sol!entrando!pela!janela.!Como!era! bom!viver!na!Santa!Rosália.! ! “- Lá era muito movimentado. Tinha jogo de bola também... - Jogo de bola, o senhor jogava? - Bola naquele tempo eu não jogava não. Não, porque de sábado e domingo naquele tempo a minha vida era mexer com animar. Eu tinha um companheiro próprio pra isso aí. Eu “desbarbejava” e ele acertava o de freio. Cem mil réis cada cavalo pra domar... - Cem mil réis... Era bastante? 224!

!


- Naquele tempo cem mil réis era dinheeeeeiro. Dentro da Santa Rosália ainda tem um terreno que não é da fazenda, lá no pacífico, aonde passava a linha véia, a linha véia passava assim e a outra cortou assim. Esse terreno quando eu morei lá não era da Santa Rosália, e a Santa Rosália desfrutava dele, desfrutava dele porque o dono sumiu. Oito arqueire de terra. Ihh, faz muitos anos que eu não passo por lá. Aqui tinha um caminho que entrava aqui ó, saía na Santa Rosália e ia bater nos patos. Fecharam muito as estradas, só não fecho aquela dos pato. O seu Benito novo ele tinha uma parte que era dele aqui da serrinha, aonde é o sítio dos português. Ali na serrinha se entra assim ó e aí já é lá na água dos patos. Aqueles tempo ali não era dos portugueis, era Santa Rosália. Tudo dele, fazenda era grande, grande. E tinha gente aquela fazenda viu, tinha gente, o movimento era medonho... - Era uma época boa? - Ihh... O baile lá amanhecia, e se abusasse ia até o dia inteiro. - E o Benito, chegava a ir ao baile? - Ia, ia os dois. O Benito véio e o Benito filho. Que tem o Benito véio e o Benitinho que é fio do véio, né?’. (Entrevista com Mauro Cornélio). ! Era!um!dia!como!qualquer!outro.!Mauro!acordou!às!cinco!da! manhã,!como!fazia!todos!os!dias.!Engoliu!rapidamente!um!café,!pea gou! a! marmita! e! foi! para! o! “sino”.! Quando! chegou,! os! semblantes! indicavam! preocupação.! Uns! olhavam! para! baixo,! acanhados.! Oua tros!olhavam!para!frente,!como!quem!vê!um!horizonte!que!ninguém! mais! percebe.! Benito,! o! velho,! olhava! de! certa! maneira,! acanhado,! também.!Mauro!não!entendia!nada.! 225! !


a!Não!tenho!uma!notícia!boa!para!a!maioria!de!vocês.!A!Sana ta!Rosália!está!abrindo!falência!e,!infelizmente,!muitos!de!vocês!tea rão!que!ir!embora.! Era! o! começo! do! fim! do! café.! Ali,! naquele! raiar! de! dia,! naa quele! ar! úmido! e! fresco! da! manhã! da! fazenda,! se! iniciava! o! fim! de! uma! grande! era:! a! era! cafeeira! da! Santa! Rosália.! As! colônias! foram! esvaziadas.!A!velha!Pantano!salvou!somente!seus!velhos!moradores,! muito!deles,!amigos!da!família.! Mauro! pegou! as! irmãs,! a! mãe! e! foi! para! Nogueira,! uma! pea quena!vila!rural!em!Avaí.!Lá!começou!outra!era!de!sua!vida,!não!lia daria!mais!com!roças.!Seu!futuro!estava!na!lida!com!os!animais.!Caa sou!com!dezoito!anos,!com!uma!menina!de!quatorze,!que!teve!sua! idade! “aumentada”! em! três! anos! para! poder! casarase.! Hoje,! aos! oia tenta!e!um!anos,!Mauro!vive!em!uma!casinha!de!madeira,!chão!baa tido,!na!mesma!cidade!de!Avaí,!interior!de!São!Paulo.!Mas!a!Santa! Rosália,! ele! não! esquece.! A! verdade! é! que! a! Santa! Rosália! também! guarda!em!seu!chão!antigo!todos!esses!personagens.! ! “- E como era a lavoura? Como era na época da colheita? - O café, quando ia colher café, tinha eu, Dito cândido, Leriano, Neguito, o Antônio do André, nós era abanador. Cada abanador tomava conta de três rastelador, pra abanar o café. E o café puxava tudo com carroça, não tinha trator na fazenda, tudo com carroça com burro. Ihh, aquela fazenda ali foi muito famosa... - Famosa? - Ihh... - O que falavam dela? - Todo mundo falava bem daquela fazenda. Já morei na Cachoerinha doze anos, de lá eu morei na santa Rosália. E naquele tempo não tinha caderneta de trabaio não, não tinha, 226!

!


hoje que ta tendo caderneta de trabaio, naquele tempo não tinha. E a gente, pra puxar mudança assim vinha um caminhão de Tibiriçá que fazia o transporte da mudança, caminhão do Guilherme Tele, ali aonde era a fazenda do... Da onde tem o posto Garcia, ali tudo era Santa Rosália. Eu saí de lá por causa desse... Ele não tinha dinheiro pra pagar o pessoar, então ele parou, ficou só com uns pessoal mais véio, e os pessoal mais véio, depois que nois saimo, foram tudo embora pra Bauru, aí foi quando a fazenda... Repartiro... - E o senhor ficou triste de ter que ir embora? - É... Fazer o que? Eu gostava de lá”. (Entrevista com Mauro Cornélio)! ! Em!1949,!Rosalinda!Sanchez!inaugurava!a!casa!da!antiga!Lea opoldina! junto! com! os! avós.! O! casal! Benito! Sanchez! e! Isabel! Cara mona! viveram! na! casa! até! o! último! dia! de! suas! vidas.! Mas,! nesse! mesmo!ano,!a!casa!da!Leopoldina!ficara!triste.!Triste!como!um!lugar! em!que!um!sonho!tentou!muitas!vezes!se!manter!de!pé!e!não!consea guiu.! Triste! como! sentir! fome! e! não! achar! comida! que! alimente.! Triste!como!sentir!aquele!vazio!que!se!tenta!preencher!com!a!ideia! metafísica!das!coisas,!e!que!só!se!preenche!com!a!materialidade.!! A! casa! estava! de! luto.! Uma! luta! perpetrada! por! anos,! fora! perdida.! Foram! cidades! e! cidades! visitadas! em! busca! de! condições! melhores.! Santos,! Bauru,! Cafelândia,! São! Paulo.! A! pressão! alta! de! Eduardo! de! Carvalho! o! levara.! Rosalinda! não! saía! de! perto! de! Ena carna,! que! também! não! deixava! a! menina.! Onze! anos! e! a! primeira! perda.!Lembrara!os!sorrisos!do!pai,!as!brincadeiras,!seus!abraços!caa rinhosos.!Lembrava!as!corridas!na!praia!de!Santos!e!quando!a!levava! no!colo!para!ver!as!plantações.!Nunca!mais!sentiria!a!presença!caloa rosa!de!seu!pai!exemplo,!e!herói.!! 227! !


Rosalia! ainda! não! processava! as! informações! com! clareza.! Era!o!começo!de!sua!vida,!ainda!o!amava!como!se!fosse!uma!jovem,! uma!adolescente.!As!filhas,!ainda!pequenas,!precisavam!tanto!dele,! ela! precisava! dele.! Eduardo! de! Carvalho! era! uma! pessoa! que! todos! admiravam.!Faleceu!com!apenas!quarenta!e!nove!anos.!É!nesse!pea ríodo!que!começa!a!se!concretizar!o!acalento!e!o!apego!que!os!avós! maternos!e!a!tia,!Encarna,!tinham!com!Rosalinda.!Benito,!como!ela! gosta!de!dizer,!foi!seu!“paizão”!e!Encarna,!sua!“mãezona”.!Rosalinda! crescia!uma!criança!privilegiada.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 228!

!


! ! ! !

! Eduardo de Carvalho. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez) ! ! !

229! !


! ! ! !

! Rosalia, Eduardo e as filhas Dora e Rosalinda. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez) ! !

! Rosalinda e Dora. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

230!

!


! ! ! !

! Rosalia e Rosalinda na fazenda Santa Rosália. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez) ! !

! Encarnación e Rosalinda nas colônias da Santa Rosália. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez) !

!231!


! ! ! ! ! ! ! ! !

! O casal Isabel e Benito, no centro, e os filhos. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez) ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !

232!

!


! ! ! !

! Rosalinda Sanchez em Cafelândia. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez) !

233! !


! ! ! !

! Otília Encinas em Cafelândia. (Foto cedida por Otília Encinas). ! !

234!

!


! ! ! !

! Otília, terceira da esquerda para a direita, e as irmãs em Cafelândia. (Foto cedida por Otília Encinas) !

! Otília Encinas e o pai, Antônio Encinas, na Casa Chic. (Foto cedida por Otília Encinas)

235! !


! ! ! !

! Nota de falecimento de Ramón Sanchez, jornal Correio Paulistano, 1938. (Acervo da Hemeroteca Nacional) !

! Nota da missa de sétimo dia de Ramón Sanchez, jornal Correio Paulistano, 1938. (Acervo da Hemeroteca Nacional)

236!

!


! ! ! !

! Nota sobre a falência da empresa Ramon Sanchez & Cia, jornal Correio de S. Paulo, 1933). (Acervo da Hemeroteca Nacional)

237! !


238!

!


P A R T E

5

O Grão começa a morrer

!

! ! ! ! ! ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' 239! !


' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' 240!

!


A Crise encontra Cafelândia ! ! ! ! ! !

H

avia! começado.! Cafelândia! recebia! os! primeiros! respingos! da!onda.!A!onda!que!começara!em!1929!e!então!chegara!até! a!década!de!cinquenta.!Cafelândia,!que!era!a!cidadealuz!do!

café,!tornouase!a!cidade!que!devia!seus!problemas!financeiros!a!uma! economia! que! se! baseava! tão! estruturadamente! no! grão! cafeeiro.! Quanto!maior!o!salto,!maior!o!tombo.!Como!um!dominó,!as!propria edades!ligadas!ao!café!foram!caindo,!uma!a!uma.!A!cidade,!aos!poua cos,!se!esvaziou.! Josefa!dava!aulas!no!Tibagi,!em!uma!colônia!japonesa.!Todos! os!dias!ela!se!dirigia!a!imensa!colônia!e!era!obrigada!pela!direção!do! colégio!a!ensinaralhes!o!hino.!Josefa!tentava,!em!vão,!que!o!grupo!se! integrasse! ao! sentimento! de! “nação! brasileira”.! A! cobrança! era! imensa.!Todos!os!dias!as!crianças!chegavam!da!escola!e!iam!para!a! escola!“japonesa”!onde!aprendiam,!com!mais!gosto!e!mais!incentivo,! sobre!a!cultura!japonesa.! Quando! voltou! pra! casa,! seu! pai! estava! pensativo! e! quieto.! Ela!já!sabia!que!o!tinha!ocorrido.! a!Vou!fechar!o!Armazém.! Cafelândia! esvaziavaase.! Os! Armazéns,! as! fábricas! e! muitas! lojas,!desapareciam!como!fumaça.!A!tristeza!do!pai!era!quieta,!solia tária.! Diferente! do! desespero! de! outras! pessoas.! Tinha! a! aposentaa doria,!e!os!filhos!trabalhavam.!Não!passaria!necessidade.!Mas!o!fim!

2! 41!


do! Armazém,! era! o! fim! de! uma! época! que! lhe! fora! muito! querida.! Diogo!Martinez!manteve!o!sítio!enquanto!viveu.! ! “- Como foi com a crise? - Na verdade, pro meu pai não teve muito a crise porque dele era pequena, entende? Era uma coisa pequena, ele não teve o impacto que esses fazendeiros tiveram, porque esses fazendeiros tinham milhares de pés de café. Meu pai não. Era um sítio pequenininho, de cinco ou seis mil pés de café, pequenininho. Mas ele tinha o Armazém, né. Mas ele não teve impacto. Impacto foi desses fazendeiros porque além de tudo teve que arrancar né, aquele café. - E o comércio do seu pai no Armazém, não diminuiu? - Diminuiu... Tanto que acabou fechando né... Quantas famílias. Tinha os Molinas que fecharam, fábrica de mala fechou, fábrica de guarda-chuva, fábrica de molho... - Mas o que o seu pai fez depois que fechou? - Ah, mas meu pai já tinha a aposentadoria dele... Continuou com o sitinho, aquele pingadinho, mas pra ele tava bom, porque ele não tinha mais filho pra criar. Os filhos já tavam bem, todo mundo ajudava né. Então pra ele não... Não teve aquele impacto que esses fazendeiros grandes tiveram, porque a maioria que tinha ficado rico com o café, em vez de aplicarem na própria cidade, foram comprar apartamento no Guarujá, casa em São Paulo e foi quando veio a erradicação do café, ficaram perdidos, a maioria vendeu... Começou a vender né, vender apartamento, vender tudo, porque o café já não rendia. Aí que começaram depois com a cana”. (Entrevista com Josefa Martinez) Canaadeaaçúcar.! A! substituição! do! café! pela! cana,! feita! em! toda!a!região.!Hoje,!dificilmente!se!encontra!plantações!de!cafés!nas! 242!

!


fazendas!ao!redor!da!cidade.!Substituição!que!ocorreu!em!algumas! das!fazendas!de!Benito!Sanchez,!como!a!Leopoldina.!A!família!Encia nas,!também!não!colheu!os!problemas!da!crise.!Otília!era!professora! na! colônia! da! fazenda! Figueirinho,! e! a! essa! época,! acompanhava,! junto!ao!pai,!o!crescimento!econômico!da!família.!Antonio!adquiriu! seis!fazendas!ao!longo!dos!anos.!Fazendas!que!antes!tinham!café!e! gado.!Café!que!também!foi!substituído!pela!cana!de!açúcar.! ! “Então, tinha aquelas colônias enormes, morava muita gente. Eram várias casas tudo juntas as casas, mudava bastante mesmo. Eu dei aula numa fazenda, chamava fazenda Figueirinho, que eu passava toda colônia, depois a última casa era a escolinha. - Os negócios do seu pai continuaram bem? - Continuou... Meu pai com o dinheiro que ele ia conseguindo ele começou a comprar propriedades agrícolas... - Ah, comprou propriedades também... Mas e a loja, o consumidor não estava com o poder aquisitivo mais baixo? - Não... Está com o poder aquisitivo mais baixo agora. Agora... Diminuiu muito o pessoal de fazenda”. (Entrevista com Otília Encinas) ! André! Asnar! acompanhou! todas! as! dificuldades! que! envola veram!os!trabalhadores!das!lavouras!de!café.!E!agora!acompanhava! com! uma! perspectiva! diferente.! Cada! vez! mais,! via! o! movimento! diminuir.! Muitas! vezes,! trabalhadores! sem! dinheiro! chegavam,! pea dindo! que! ele! vendesse! fiado.! Os! salários! atrasavamase.! Os! trabaa lhadores!das!lavouras!estavam!sendo!demitidos,!o!Armazém!estava! às!moscas.!Em!1950,!André!Asnar!abriu!falência.!

243! !


Naquela! noite,! chegara! em! casa! mais! quieto! do! que! já! era,! cabisbaixo.! Uma! linha! de! preocupação! atravessava! seu! rosto.! No! jantar,!contou!à!família.! a!Abrirei!falência!para!o!Armazém.! Não! era! nenhuma! novidade,! era! o! que! a! família! esperava.! André!estava!sem!chão,!sem!rumo.!Como!sustentaria!a!esposa,!não! eram!mais!jovens,!o!que!faria,!de!onde!tiraria!o!sustento?! a!Não!voltarei!para!as!lavouras,!me!recuso.! Essa!decisão!era!firme.!André!nunca!esqueceria!a!dificuldade! daquele!trabalho,!inóspito!e!pesado.!Uma!ideia,!no!entanto,!comea çara!a!maquinar!em!sua!cabeça.!Era!muito!amigo!de!um!senhor,!doa no!de!uma!barbearia.!Pediria!que!lhe!ajudasse.!Que!lhe!ensinasse!o! ofício.!O!emprego!era!pequeno,!mas!ele!nunca!tivera!medo!ou!vera gonha!de!trabalhar.! a!O!senhor!pode!me!ensinar!o!ofício?! Estas! foram! as! palavras! humildes! de! André! Asnar,! e! mais! uma! vez,! a! união! da! comunidade! espanhola! falava! mais! alto.! Ele! aprendera!a!profissão!e,!após!um!tempo,!conseguira!abrir!a!sua!próa pria!barbearia.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 244!

!


Viagens, footing e casamentos ! ! ! ! ! !

O

!aniversário!de!Encarna!estava!próximo.!E,!infelizmente,!não! era! a! alegria! que! tomava! conta! da! casa! da! família! Sanchez! em!Cafelândia.!A!morte!de!Eduardo!ainda!era!sentida!e!Roa

salia!e!as!filhas!tentavam!superáala.!Benito!sentiaase!impotente.!Pela! primeira!vez,!não!tinha!o!poder!de!prover!a!felicidade!à!filha.!O!que! podia!fazer!era!ser!o!pai!que!as!netas!não!teriam!mais.!E!não!media! esforços!para!isso.!Fazia!o!gosto!das!netas,!levavaaas!a!passeios,!daa vaalhes!presentes.!Mas!Rosalia!fecharaase!em!um!luto!resistente,!não! sabia!como!alcançáala.!O!aniversário!de!Encarna!lhe!deu!a!ideia.!A! viagem! que! tanto! queriam,! há! tempos.! Encarna! desde! que! fora,! há! muitos! anos,! não! falava! em! outra! coisa.! O! aniversário! da! filha! lhe! dava! a! oportunidade! perfeita.! Benito! foi! a! uma! loja! e! comprou! a! echarpe!mais!bonita!que!viu.!Pediu!a!Rosalia!que!entregasse.! a!É!pra!você,!pra!usar!na!Europa,!na!viagem!que!vamos!fazer.! A!notícia!encheu!a!casa!de!um!clima!radiante,!e!naquele!dia! não!se!falava!em!outra!coisa.! ! “Veneza, 4 de julho de 1952 Esta fotografia foi tirada na praça S. Marcos em Veneza, a cidade mais romântica de toda Italia, e a que mais nós gostamos, não estamos grande coisa, mas é que a cara também não ajuda, as pombas em vez de fazerem pose, trataram de 245! !


comer o milho que lhe dávamos, e o resultado da colaboração é este que estão vendo”. Rosalia ! “- E as viagens pra fora do Brasil? - Ah... A tia foi cinco vezes porque foi uma com o vovô. A Mamãe foi quatro. Depois aí demorou uns anos, aí elas começaram... Lá já tava em Cafelândia na casa, vovô já tava muitíssimo bem... Então pediram... O vovô... Ela sabia... Eles conversavam né. Ele sabia que elas tavam doidinhas pra ir pra Europa, minha mãe nunca tinha ido. Chegou o aniversário da Tia (olha o vovô como era), entregou pra Mamãe, ‘dá essa echarpe pra Encarna, pra usar na Espanha’... Ah, pularam! - E a tia tava indo pela segunda vez então? - É. Talvez até pela viuvez da mamãe, uma alegria e tal. Aí depois foram quatro vezes. Aí foram em diversos países. Foram por excursão, foram por conta própria, pra ficar aonde elas queriam, elas queriam ficar mais na Espanha, queriam ir visitar os parentes e foram... - Foram visitar? - Foram visitar o Davi que era um sobrinho do vovô, primo, um sobrinho que o vovô deixou ele morando na casa do vovô. E ele falava: ‘leva esse São Brás’, era um São Brás de madeira, esse São Brás é de vocês, ficou aqui na casa. Não trouxeram, falei: ‘Por que vocês não trouxeram o São Brás?!’ De madeira, antigo. ‘Ah, porque nós íamos voltar de avião’. E esse sobrinho já deve ter morrido a muito tem-

246!

!


po, porque regula de idade com a mamãe e a tia Encarna, e terá filho dele morando na casa”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez) ! Era!um!sábado.!André!Asnar!saiu!da!alfaiataria!e!foi!para!caa sa.!Tomou!banho!e!arrumouase.!Colocou!seu!terno!elegante,!um!dos! ternos!finos!que!fazia!para!vender.!Junto!com!os!amigos,!iria!para!o! footing.! Essa! expressão! em! inglês! é! o! significado! para! o! flerte! dos! rapazes!e!das!moças!nessa!época!em!que!vivia!André!Asnar.!É!uma! espécie!de!passeio!informal,!caminhada,!onde!muitos!romances!coa meçaram.! André! foi! com! os! amigos! para! o! footing.! Era! uma! noite! de! verão,!as!moças!usavam!vestidos!de!cores!claras!e!leves.!Famílias!lea vavam!seus!filhos!à!praça,!e!uma!banda!tocava!no!coreto.!Perto!do! cinema,! o! velho! ritual,! os! rapazes! ficavam! perto! do! antigo! Banco! Noroeste.!O!cinema!era!ao!lado.!Rapazes!mais!rebeldes!já!ouviam!o! rock’n!roll!em!frente!ao!cine.!Então!passavam!as!moças,!andando!de! uma! esquina! a! outra,! trocando! olhares! com! os! rapazes.! André! não! revelara! aos! amigos,! mas! naquela! noite! fora! ao! footing! esperando! encontrar!uma!moça!especial!que!captara!seu!olhar.! Depois! de! muitos! footings! e! noivado,! casaramase! em! 1958.! Tiveram!três!filhos,!duas!mulheres!e!um!homem.! ! !! ! Rosalinda!estava!incomodada.!Fora!convidada!para!ser!prina cesa!em!um!baile,!por!uma!de!suas!amigas,!que!seria!rainha!dos!esa tudantes.!Estava!incomodada!porque!não!tinha!nenhum!par!para!o! baile.!Foi!então!que!Dora!teve!uma!ideia.!A!irmã!mais!velha!de!Roa salinda! era! amiga! da! família! Nanni.! Família! Nanni! que! na! verdade! era,!também,!Sanchez.!! 247! !


A! ideia! de! Dora! fora! ligar! para! o! amigo,! Newton! Nanni.! Newton!era!filho!de!Laura,!que!por!sua!vez!era!sobrinha!de!Josefa,!a! viúva! de! Ramón! Sanchez.! Viúva! que! na! verdade,! era! prima! de! Raa món! Sanchez.! Laura! casouase! com! José! Nanni,! de! família! italiana.! Assim,!Rosalia!e!Dora!conheciam!a!família.!Newton!acabara!de!vola tar!da!NCPOR,!o!Núcleo!de!Preparação!de!Oficiais!da!Reserva,!estaa va!estudando!em!Lins!para!tornarase!2º!tenente.! A!irmã,!sem!que!Rosalinda!soubesse,!telefonou!para!Newton! e!lhe!contou!sobre!o!baile.!O!plano!estava!feito.!Newton!convidouaa! para!ser!seu!par.!Depois!de!muitos!ensaios!e!jogos!de!pingapong!no! clube,!começaram!a!namorar.!Rosalina!tinha,!nessa!época,!dezesseis! anos.!! Noivaram!durante!três!anos!e!casaramase!em!1957,!Rosalinda! tinha!dezenove!anos.! Um!ano!depois,!nascia!Eduardo,!o!primeiro!dos!quatro!filhos! de!Rosalinda.!Tivera!quatro!filhos!homens.!Eduardo,!Flávio,!Ricardo! e!Maurício.!! Otília!Encinas!se!casou!com!Irineu!Menegassi,!da!família!de! sua!madrasta,!em!1956.!!Na!mesma!época,!Josefa!Martinez!casouase! com!Valquírio,!um!funcionário!do!Banco!do!Brasil.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 248!

!


O fim da Ramón Sanchez & Cia ! ! ! ! ! !

E

ra!um!dia!animado!na!Santa!Rosália,!década!de!sessenta.!Era! dia!de!festa,!festa!com!motivo!que!toda!a!família!comemoraa va.!Há!muito!tempo!atrás,!Isabel,!esposa!de!Benito,!havia!feia

to!uma!promessa:!“o!dia!em!que!a!sociedade!for!desfeita!dedico!uma! festa!para!Santo!Antônio”.!A!sociedade!a!que!ela!se!referia!era!a!Raa món!Sanchez!&!Cia,!cujos!sócios!eram!Miguel,!o!filho!mais!velho!de! Ramón,! e! Benito.! Infelizmente! para! Isabel,! a! festa! só! aconteceria! muitos!anos!depois,!e!Benito!tivera!muitos!problemas!com!o!sobria nho!enquanto!durara!a!Ramón!Sanchez!&!Cia.! Mas!era!o!fim!de!uma!era,!o!fim!dos!negócios!entre!Benito!e! a! família! do! irmão.! Na! divisão,! que! envolvia! somente! as! fazendas! que!eram!da!sociedade,!Benito!ficou!com!a!Santa!Rosáia,!em!Bauru,! e! Miguel! com! Santa! Maria,! em! São! José! do! Rio! Preto,! e! Corumbá,! em!Bauru.!Benito!então!ficara!com!sete!fazendas!próprias.! Toda!a!colônia!viera!e!um!grande!churrasco!foi!realizado!em! todo!o!sábado.!Ao!lado!da!festança,!imperando!como!o!grande!realia zador! da! promessa,! estava! Santo! Antônio,! erguido! em! um! altar.! Quem!dera!a!festa,!ao!invés!de!Isabel,!fora!sua!neta!Rosalinda.! ! “- Ah o sobrinho. Meu avô que punha dinheiro, chegava na fazenda de Garça: ‘O pagamento não veio’, da parte do sobrinho. O vovô tinha que por. O vovô sofreu muito, a vovó sofreu tanto que por isso que ela fez a promessa pra Santo 249! !


Antônio que o dia que desmanchasse essa sociedade dava uma festa pra Santo Antônio, que era o protetor da família. Quem deu a festa fui eu, na Santa Rosália... - Como foi essa festa? -Churrasco pro pessoal da colônia. Eu convidei minhas amigas de Bauru, foi gente de Cafelândia e fizemos uma capelinha assim, só que era tudo de madeira lá, o tronco. Depois que a tia fez a capelinha igual em Cafelândia com tijolo e tal. Lá na fazenda foi tudo de madeira e o Milton Jorge que a Dora já era casada com ele, ele era de Lins, e o protetor de Lins é Santo Antônio, ele falou: ‘A imagem eu te dou, já vai benta’, e me deu o Santo Antônio que é aquele que ta na sala lá em Cafelândia porque ficou no tempo né, uma capelinha assim, um telhadinho dessa largura. Ficou e eu levei pra Cafelândia que era pra tia Encarna pintar, ele ta descascadinho. Então foi desfeita a sociedade, foi cumprida a promessa da minha avó, uma festa pra Santo Antônio. Aí foi dividida algumas fazendas que era da sociedade”. (Entrevista com Rosalinda Sanchez). ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 250!

!


“Rato branco igual eu” ! ! ! ! ! !

E

ra! 1966,! um! ano! que! a! família! nunca! esquecerá.! Rosalinda! morava!em!Cafelândia,!com!o!marido!e!os!dois!filhos,!Eduara do!e!Flávio.!Era!o!ano!de!1966,!no!dia!3!de!maio.!Nascia!mais!

um!dos!meninos!de!Rosalinda.!Um!bebê!tão!loiro!e!claro,!que!a!mãe! se!surpreendeu.!Ricardo!nasceu!o!mais!claro!de!todos,!os!olhos!muia tos!azuis,!como!os!da!mãe.!Mas!o!cabelo,!loiro!transparente,!não!saa biam!de!onde!vinha.!Todos!se!apaixonaram!pelo!bebezinho.!! Benito! Sanchez! estava! muito! doente.! Contava,! então! 80! anos.! Naqueles! dias! não! saía! da! cama.! Ainda! assim,! preocupavaase! com!Rosalinda.!Estaria!se!resguardando?!Como!estaria!cuidando!da! criança?!Então!ela!levou!o!bebê!para!que!o!avô!o!visse.! É! difícil! imaginar! o! que! Rosalinda! sentira.! Era! a! vida,! mais! uma!vez,!transformandoase!em!estação.!Um!bebê!ali,!forte!e!saudáa vel,!começava!seu!primeiro!contato!com!o!mundo.!Um!homem!que! construíra!um!Império,!terminava!seu!último!contato!com!a!Terra,! aquela!que!lhe!dera!tudo.! Benito!foi!o!menino.!O!menino!que!veio!criança!pequena!e! órfã!de!pai!para!o!Brasil!em!1891.!Foi!o!menino!que!cozinhava!o!ala moço!em!pequenos!caldeirões!para!os!irmãos.!Benito!foi!o!jovem.!O! jovem!que!cuidara!dos!filhos!da!irmã,!o!jovem!amoroso!com!a!famía lia,!o!jovem!sonhador.!E!Benito!fora!o!homem.!O!homem!que!desa frutou!e!proporcionou!todos!os!privilégios!que!o!dinheiro!pode!proa porcionar.!O!homem!que!construiu!tudo!para!que!os!filhos!não!pasa !251!


sassem! necessidades.! O! homem! que! era! a! figura! mais! importante! daquela!família.! Benito!olhou!Ricardo!e!encantado,!disse!à!neta:! a!Rato!branco!igual!eu.! O!homem!que!se!tornara,!naqueles!últimos!dias,!a!memória! de!sua!longa!e!próspera!vida.!A!Terra,!o!grão!e!a!memória.!Era!a!via da,!mais!uma!vez,!transformandoase!em!estação.!Um!bebê!chegava! ao!mundo,!para!ocupar!a!tristeza!de!verase!partir!a!figura!que!estrua turou!a!união!da!família!Sanchez!de!Carmona.!Benito!Sanchez!falea ceu!no!dia!24!de!junho!de!1966.! !! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 252!

!


O Último Grão da Santa Rosália ! ! ! ! ! !

R

osalinda!e!Newton!se!mudaram!para!a!Santa!Rosália!em!1967,! um!ano!após!a!morte!do!avô.!As!terras!e!propriedades!de!Bea nito!foram!divididas!entre!os!filhos,!e!o!casal!administrava!a!

parte! da! propriedade! que! era! de! Rosalia,! mãe! de! Rosalinda.! Esta! época! representou! a! última! gestão! do! café! na! Santa! Rosália.! Foi,! também,! a! última! vez! que! trabalharam! os! colonos! das! lavouras! de! café.!! Era!o!ano!de!1973.!Cícero!tinha!dez!anos.!Morava!com!mais! onze!irmãos!e!com!os!pais!na!fazenda!Taquaral,!perto!de!Guarantã,! interior! de! São! Paulo.! Um! dia! seu! pai! chegou! a! casa! e! avisou! que! mudariam!para!outra!fazenda.! a!Eu!arrumei!uma!fazenda!de!café!e!nois!vamos!mudá!pra!lá! que!eu!peguei!café!de!ameia!pra!tocar.! Vieram!pelas!estradas,!trazendo!cavalos!e!toda!a!mudança.! A! família! de! Cícero! pediu! aos! patrões,! como! sempre! fizera,! que!lhes!deixassem!plantar!arroz!em!um!pedaço!de!terra.!Iniciavaase! o!último!ciclo!cafeeiro!naquelas!terras.!Moravam!cerca!de!dez!famía lias!nas!colônias!da!Santa!Rosália.! ! “-Tinha café, tinha café. Aí nois trabalhamo lá no café, o pai sempre gostou. Além do café, gostava de plantar outra coisa, aí o pai plantava arroz num brejo lá também... A gente

253! !


ia pro café depois que chegava da escola, depois da uma hora. - E como era o trabalho na lavoura? - Ah, era normal. Era carpir, ruar café, colher café... - Mas era muito pé de café? - O pai ali, só nós mesmo assim, acho que devia tocar uns 5 mil pés mais o menos. - E a colônia era grande, tinha mais empregados? - Tinha bastante. Na época lá, que eu lembro mais o meno de família lá, acho que tinha umas dez famílias. - E como era a relação patrão e empregado? - Ah, aquela época era muito boa né... Patrão sempre gostava dos empregados, empregado gostava do patrão, e havia um respeito né, entre empregado e patrão, sempre... Aquela época. Hoje ninguém respeita ninguém mais. Naquela época era sempre de respeito né”. (Entrevista com Cícero da Silva). ! Nessa!época,!a!velha!Pantano!já!estava!muito!mudada.!Não! havia! mais! a! estrada! de! ferro,! a! serraria,! os! armazéns,! as! olarias! e! toda!a!velha!estrutura!colonial.!Mas!ainda!preservava!muitos!de!seus! velhos! trabalhadores.! Como! o! famoso! “Baneis”.! O! famoso! Baneis! era,!também,!descendente!de!espanhóis.!E!muito!amigo!da!família.! Os! meninos! de! Rosalinda! cresceram! ouvindo! suas! histórias! e! seus! ensinamentos.!Ricardo!aprendera!a!construir!cercas!paraguaias!com! ele.!Até!hoje!Baneis!é!lembrado!por!seu!famoso!jargão:!“O!seguinte!é! esse”.! O! domingo! representava! a! diversão! dos! pequenos! moradoa res!da!fazenda.!No!domingo!podiam!ser!apenas!crianças.!Cícero!e!as! irmãs! pescavam! na! represa,! local! onde! sempre! encontravam! os! vea lhos!moradores,!testemunhas!da!história!da!Santa!Rosália.!Iam!à!caa 254!

!


sa!do!Seu!Lau,!lembrado!por!ser!o!único!a!ter!uma!televisão.!Pessoas! que! contavam! as! histórias! mágicas! que! percorreram! mais! de! cina quenta! anos! do! grão! cafeeiro! e! da! vida! nas! colônias.! Os! meninos! despediamase!tarde!da!noite,!aguardavam!a!manhã!que!raiaria!cedo,! o!trabalho!que!recomeçaria.! ! “- E as casas eram próximas uma da outra? - Não, essa uma não era. Tinha umas ali perto de onde o Seu Pedro morava, Seu Pedro, o Jacó... Tinha umas quatro casas que era junto da outra, depois já retiraram um pouquinho uns... Devia dar uns trezentos metros era a nossa, depois a do Seu Lau ficava lá do outro lado do açude. Já dava uns quinhentos metros... E depois um outro lá na saída lá em cima, quase perto da porteira lá em cima tinha uma outra casa. O Baneis eu conheci. Então, o Baneis ele foi... Ele mexia mais com o gado la né... Falava o Capataz da fazenda né... Tem a Santina que morou lá, o irmão dela o Luis, aí depois do seu Lau tinha o João, o Zé... O Zé ta em Bauru, o João acho que ta em Tibiriça ainda, o Luis, a Ana...”. (Entrevista com Cícero da Silva). ! Mais! uma! vez,! a! terra! não! esquece! os! homens,! os! homens! não!esquecem!a!terra,!e!também!uns!aos!outros.!Mas!o!que!Cícero! jamais!esqueceria!é!de!sua!professora.! Nívea!Nanni,!irmã!de!Newton,!dava!aula!na!escola!da!Santa! Rosália.!Foi!ali!que!Cícero!aprendeu!as!primeiras!noções!da!educaa ção! formal.! Na! escola! da! Santa! Rosália! ganhavam! mais! que! conhea cimento,! ganhavam! algo! mais! urgente:! roupas! e! sapatos.! Cícero! chegava!galopando,!três!montados!em!um!Cavalo.!A!professora!traa zia!sacolas!de!roupa!e!não!podiam!perder!a!chance!de!pegar!sua!para 255! !


te.!O!menino!andava!de!chinelos,!não!tinha!calçado!nenhum.!A!proa fessora! mediu! o! pé! de! Cícero! com! a! régua! e! lhe! presenteou! com! o! primeiro! sapato! de! sua! vida:! um! Conga! marrom.! Foi! com! aquele! Conga! que! Cícero! conheceu! a! cidade! de! Bauru! pela! primeira! vez.! Novamente!a!professora!Nívea!deixava!sua!marca!na!vida!do!menia no.!A!professora!levou!toda!a!criançada!de!ônibus.!Um!dia!para!que! esquecessem! o! trabalho! das! lavouras,! a! dureza! da! vida.! Cícero! da! Silva! estreava! seu! Conga! marrom! pela! primeira! vez.! Conheceu! a! Praça! Rui! Barbosa,! o! que! ele! chama! de! “jardim! dos! bichos”,! já! que! macacos,! cobras! e! outros! animais! eram! encontrados! ali.! Para! coma pletar!o!passeio,!as!crianças!foram!almoçar!na!casa!da!professora,!e! ali!Cícero!comeu!gelatina!de!sobremesa!pela!primeira!vez.! ! “- Então, a professora lá, queria rever ela, queria sentar e conversar com ela... - Se você quiser posso te passar o endereço... - É a sua tia ela? - A tia Nívea, irmã do meu avô Newton. - Então, eu lembro de uma vez... Uma vez ela catou todos os alunos da escola, pegamo o ônibus ali. A passagem quem pagou foi ela, porque nós não tínhamos dinheiro.... Eu ia na escola o chinelo um pé num um pé noutro, aí ela pegou, mediu meu pé com a régua da escola e trouxe um conga marrom pra mim e eu fiquei todo contente com aquele conga no pé. E ela trazia saco de roupas para nós... Então menina, vou dizer procê, ela dava aula pro primeiro, pro segundo, pro terceiro e quarto e a gente aprendia hein, eu aprendia. E hoje você vê, um professor pro primeiro, um professor pro segundo, um pro terceiro... E não aprende”. (Entrevista com Cícero da Silva). ! 256!

!


O!final!da!década!de!setenta!levou!os!últimos!grãos!da!Santa! Rosália.! E! em! boa! parte,! a! própria! fazenda! também! se! acabava.! A! maioria!das!terras!foram!vendidas.!! Hoje!Cícero!da!Silva!é!vereador!em!Avaí.!Nesta!mesma!cidaa de!e!nas!mesmas!terras!compradas!pelos!avós!paternos,!trabalham!e! se!sustentam!Afonso!e!Francisco!Garcia,!uma!das!primeiras!famílias! a! ocuparem! o! pequeno! município.! Para! esses! imigrantes,! a! Terra! ainda!é!viva!e!o!Grão!é!o!que!fez!nascer!na!terra!a!Memória.! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! ! 257! !


Cafelândia ! ! ! ! ! !

J

osefa! Martinez! e! Otília! Encinas! vivem! com! seus! maridos! em! Cafelândia!até!hoje.!As!propriedades!de!seus!pais!foram!dividia das! entre! a! família.! Josefa! mora! na! mesma! casa! há! quarenta!

anos!e!viu!toda!a!mudança!que!ocorreu!em!Cafelândia.! ! “Cafelândia era mais rica assim em dinheiro, o povo tinha mais dinheiro. Mas levava uma vida diferente, porque os estrangeiros vieram, lutaram com muito sacrifício e trabalharam muito pra conseguir aquilo que eles tinham. Então eles não eram de gastar, de esnobar. Eles tinham o poder aquisitivo melhor, tudo... Mandavam os filhos estudar fora, os filhos saíam... Só que os filhos também estudavam e iam embora, que não tinha campo de trabalho. Eu digo assim... Ela melhorou no aspecto... físico. Casas mais bonitas, o asfalto, né? Aí ela melhorou. Mas eu, pra falar a verdade, eu sinto saudade de como ela era antes...”. (Depoimento de Josefa Martinez) ! Depois!da!barbearia,!os!pais!de!Zinho!abriram!um!Hotel!na! cidade! e! viveram! até! os! seus! últimos! dias! em! prosperidade.! Zinho! criou!todos!os!seus!filhos!em!Cafelândia.!Até!hoje,!ele!continua!sua! rotina!como!se!pouca!coisa!houvesse!mudado.!Acorda!cedo!e!trabaa lha! na! alfaiataria! improvisada,! uma! oficina! no! quintal! da! casa! em! 258!

!


que! sempre! morou.! Todos! os! dias,! ao! fim! do! trabalho,! sentaase! na! área.! A! aliança! continua! no! dedo...! Sua! esposa! faleceu! há! alguns! anos.! Sentado! ali,! o! alfaiate! estava! apenas! esperando! que! alguém! despertasse!as!memórias!que!ele!revive!todos!os!dias.! ! “- A vida social era diferente? - Era diferente, era diferente, era vida assim... Não é como... Mais gostosa né. Que se trabalhava, os rapazes sábado e domingo iam no footing, o clube era aquele clube antigo, que era uma casa bem dizer. Era antigo e era assim, não tinha assim baile essas coisa, era mais jogatina, era mais pra jogo naquela época”. (Entrevista com André Asnar Filho).! ! Hoje!Zinho!vive!a!época!em!que!os!ofícios!como!o!de!alfaiate! desaparecem,!as!grandes!confecções!produzem!a!preços!mais!baraa tos!e!as!profissões!artesanais!são!desvalorizadas.!Hoje!resta!a!memóa ria.!! ! ! ! Todas! essas! pessoas! retratadas! nesta! história! se! distinguem! umas!das!outras.!E!todas!se!parecem.!São!diferentes!porque!ocupaa ram!diferentes!posições!sociais,!diferentes!esferas!de!poder.!Alguns! mais! privilegiados,! outros! menos! e! alguns,! extremamente! oprimia dos.! Suas! famílias,! ainda! assim,! estão! cheias! de! histórias! de! união,! de!mães!e!avós!matriarcas,!de!pais!e!avós!carinhosos.!Suas!famílias! refletem!até!hoje!a!construção!do!morador!do!interior!de!São!Paulo.! Está!no!jeito!de!falar,!no!vocabulário!e!nas!coisas!das!quais!sentem! falta.! O! idioma! espanhol! também! moldou! o! jeito! de! falar! dessas! pessoas,! especialmente! daqueles! que! viveram,! mais! do! que! tudo,! a! 259! !


experiência! da! terra.! Os! braços! da! lavoura,! os! colonos,! os! imigrana tes,!os!“trabaiadores”.!O!famoso!“Teléfono”,!expressão!que!Encarnaa ción! Sanchez! utilizava! quando! algum! telefone! tocava.! Ou! das! “coa sas”!que!Rosalia!sempre!contava.! Com! todas! as! semelhanças! e! diferenças,! essas! pessoas! têm! um!ponto!que!costura!todas!as!suas!características!em!uma!espiral! comum:!a!memória!e!o!amor!a!terra.!A!memória!que!é!uma!entidaa de!sagrada!e!que!guarda!seus!segredos.!A!memória!que!quase!nunca! é!ativada,!e!perdura!em!uma!existência!marginal.!A!memória!dessas! pessoasamemória! a! qual! devo! a! existência! dessa! história! que! aqui! lhes!contei.!! O!grão!que!fecundou!a!terra.!A!terra!que!fecundou!a!vida!de! tantos!imigrantes!que!deixaram!seus!sofrimentos!e!alegrias!no!chão! que!constituiu!o!interior!paulista.!O!grão!e!a!terra!fecundaram!a!ina fância! dessas! pessoas! que! acompanharam! as! lutas,! as! glórias! e! as! mudanças!no!seio!de!suas!famílias,!vivendo!uma!estrutura!econômia ca!que!não!existe!mais!no!Brasil.!Hoje!o!grão!é!só!mais!um!dos!muia tos! grãos! que! fecundam! as! terras! brasileiras.! Mas! não! para! essas! pessoas.!Para!elas!o!grão!sempre!foi!e!sempre!será!único.! O!Grão!fecundado!na!Terra,!que!ao!morrer,!se!fez!existir!paa ra!sempre!na!Memória.!“Pois,!em!verdade,!em!verdade!vos!digo!que,! se!o!grão!que!cai!na!terra!não!morrer,!fica!infecundo.!Mas,!se!mora rer,!produz!muito!fruto.”! ! ! ! ! ! ! ! ! 260!

!


! ! ! !

! Casa de Benito Sanchez na fazenda Leopoldina. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez) ! !

! Casamento de Rosalinda Sanchez e Newton Nanni. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez)

2! 61!


! Rosalia e Encarnación na Praça São Marcos, Veneza, Itália, 1952. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez) !

! Veneza, Itália, 1952. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez) !

262!

!


! ! !

! Benito Sanchez na fazenda Leopoldina (Foto cedida por Rosalinda Sanchez) ! !

! Os filhos de Rosalinda na lagoa da fazenda Santa Rosália. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez) ! !

263! !


! ! ! !

! Rosalinda Sanchez e a capela do Santo Antônio na Santa Rosália. (Foto cedida por Rosalinda Sanchez) ! !

264!

!


! !

! Bodas de ouro de Isabel e Benito, Jornal de Cafelândia. (Documento cedido por Rosalinda Sanchez) ! !

! Lembrança de falecimento de Benito Sanchez, 1966. (Cedida por Rosalinda Sanchez) ! !

265! !


! ! ! !

! Cartão postal enviado para Rosalinda, de sua mãe, em Portugal, 1968. (Cedido por Rosalinda Sanchez) ! ! !

266!

!


! ! ! !

! Cartão da Serraria Santa Rosália, de Benito Sanchez. (Cedido por Rosalinda Sanchez) ! !

! Antiga máquina de beneficiamento em Cafelândia. (Foto: Izabela Sanchez) ! ! ! !

267! !


268!

!


E P Í L O G O

O último adeus à Santa Rosália ! ! ! ! ! ! ! ra!julho!de!2008!e!os!pinheiros!balançavam!solitários.!As!coa

E

res! escuras! da! natureza! que! se! retraía!com! a! chegada! do! ina

verno!se!mostravam!exuberantes.!Naquele!dia,!a!fazenda!e!a!

natureza! pulsavam! como! uma! só,! a! força! humana! esvaziaraase.! Meus!tios!haviam!se!mudado!há!alguns!anos,!e!também!meus!pais!já! não!habitavam!as!terras.!As!casas!estavam!vazias,!não!havia!animais,! não!havia!gente.!Ainda!assim,!em!todo!lugar!que!meu!olhar!se!diria gia,!eu!via!a!marca!que!nossa!família!impusera!àquela!terra.!Os!bosa ques!plantados,!os!jardins!espalhados,!o!pomar,!as!reformas!nas!caa sas.!Era!o!último!dia!que!chamávamos!aquela!terra!de!nossa.!Santa! Rosália!fora!vendida,!e!levávamos!aquilo!que!podia!ser!carregado.!A! interrogação!principal,!no!entanto,!era:!como!podíamos!levar!aquilo! que! não! podia! ser! carregado?! Quando! me! perguntei! isso,! naquele! dia! de! inverno,! deixei! por! um! momento! o! caos! da! mudança,! e! fui! me!despedir.! Sentei!no!chão!da!fazenda,!em!uma!parte!elevada,!perto!do! velho!pé!de!jabuticaba,!um!pouco!acima!da!sede,!próximo!de!onde! 269! !


ficavam!as!casas!dos!cachorros.!Ali,!em!meu!pequeno!pedestal,!eu!vi! Santa!Rosália!pela!última!vez.!Olhando!ao!redor,!o!filme!de!minha! vida,! anacrônico! e! muito! veloz,! se! passou! enquanto! eu! fechava! os! olhos! e! deixava! o! som! dos! pinheiros! balançando! preencher! minha! mente.!No!portão!da!casa!onde!morei!vi!a!faixa!escrita!“Bem!vinda! mamãe! e! bebê”,! quando! minha! prima! nasceu,! e! esperávamos! sua! chegada!da!maternidade.!Eu!tinha,!então,!seis!anos.! Acima! dos! pinheiros,! eu! via! os! caminhos! que! levavam! às! inúmeras! plantações! que! aquele! chão! recebera! e! da! aventura! de! percorrêalos!diariamente.!Eu!via!os!caminhos!que!percorri!com!meu! irmão,! contando! histórias! de! faroeste! e! de! animais! místicos! da! floa resta.!Olhando!bem!abaixo,!eu!me!vi!pequena,!correndo!junto!com! nossa! cachorra,! Flica,! até! um! dos! açudes! construídos,! com! minha! mãe!ao!lado!e!meu!irmão!bem!à!frente.!Na!continuação!da!estrada,! eu!vi!a!casa!dos!meus!tios,!e!todo!o!caminho!feito!diariamente!para! chegar!até!lá.!Olhando!em!todo!o!redor,!eu!vi!a!mim,!e!vi!a!todos!os! meus,!povoando!aquela!terra!que!nunca!mais!chamaríamos!de!nosa sa.! Vi! minha! avó,! eu! e! meu! irmão! fazendo! piqueniques! e! ouvindo! histórias.!Vi!a!casinha!na!árvore,!nunca!acabada,!em!cima!do!velho! jatobá.!Vi!as!trilhas!e!ouvi!as!histórias!contadas!pelo!meu!tio!Flávio! e!vi!as!fogueiras!e!as!crianças!dançando!na!festa!junina!e!celebrando! seus! nomes! indígenas.! Vi! o! grande! terraço! da! sede! e! as! cadeiras! ocupadas!por!todos,!vi!meu!pai!assobiando!e!todo!gado!aproximana doase!ao!som!do!assobio.!Vi!a!todos!nós!olhando!o!céu!estrelado.!Vi! o!jardim!e!as!páscoas,!e!todos!os!ovos!escondidos!e!procurados!nos! domingos!de!manhã,!e!toda!a!magia.!Vi!os!natais,!e!a!impressão!de! ouvir! o! Papai! Noel! chegando! de! madrugada! e! deixando! os! presena tes.!Vi!as!noites!de!histórias!lidas!pela!minha!mãe!para!que!eu!dora misse:!Reinações!de!Narizinho!e!toda!a!coleção!de!Monteiro!Lobato.! Vi! as! despedidas,! tantas! vezes! sofridas! por! todos! nós,! quando! meu! tio!Eduardo!ia!embora,!depois!de!meses!de!férias!com!todo!tipo!de! 270!

!


aventuras!de!uma!pessoa!que!amava!a!terra,!a!família!e!as!crianças.! Ainda!ouvia!o!seu!“tiúú,!tiúú”,!despedindoase!na!porteira,!ao!longe.! Quando! abri! os! olhos,! percebi! que! levaríamos! muito! mais! do! que! podíamos!carregar,!e!ainda!assim,!deixaríamos!tudo!lá.! Em!câmera!lenta,!os!caminhões!foram!carregados!com!todas! as!coisas!da!casa!e!da!fazenda!que!podiam!e!deviam!ser!levadas,!na! opinião!dos!adultos.!Estranhamente,!três!pessoas!despediamase:!Roa salinda,!minha!avó;!Ricardo,!meu!pai;!e!eu.!Depois!do!momento!em! que!me!despedi!de!uma!vida!plena!que!aquela!terra!me!dera,!pensei! como!nunca!seria!capaz!de!projetar!a!tristeza!que!a!venda!proporcia onava!aqueles!dois.!Minha!avó!acompanhara!a!Santa!Rosália!em!toa dos!os!renascimentos!que!o!chão!tivera,!ao!tentar!sempre!mais!uma! vez.!Ela!vira!todas!as!suas!pessoas!queridas!habitarem!Santa!Rosália,! e!depois,!uma!a!uma,!irem!embora.!Ela!criou!seus!filhos!e!seus!netos! ali.!Foi!ali,!ali!mesmo!onde!se!encerra!essa!história,!que!essa!história! também!começou,!com!tudo!que!ouvi!minha!avó!contar,!desde!cria ança.! Meu! pai! foi! um! guardador! fiel.! Viao! passar! boa! parte! de! sua! vida!cuidando!e!tentando!fazer!aquela!terra!produzir!e!equilibrar!a! vida! de! todos.! Vi! todas! as! cercas! que! construiu,! todos! os! animais! que!tratou,!todas!as!árvores!que!plantou,!cuidou!e!regou,!e!o!afinco! e!detalhe!em!cada!fruta!que!foi!produzida!nas!lavouras.!Meu!pai!foi! o! legítimo! neto! de! Benito,! derrubando! o! próprio! suor! no! próprio! chão.! Não! me! lembro! de! termos! falado! muita! coisa,! era! um! moa mento!de!profunda!depuração.!O!sentimento!de!despedida!nos!ena laçava!ali,!como!uma!corda!invisível!que!talvez!fosse!a!que!sempre! nos!manteria!unidos.!Deixamos!a!Santa!Rosália.! Até! hoje,! não! há! um! membro! fiel! de! nossa! família,! que! ao! passar!pela!estrada,!não!olhe!o!horizonte!que!mostra!os!pinheiros,!a! velha!sede!e!toda!a!fazenda.!À!Santa!Rosália,!meu!carinho!saudoso.! ! !271!


! ! ! ! ! ! ! ! !

!!!

!

O

grão não ! morre

! ! ! ! ! ! ! ! ! ! !

272!

!



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.