©Mário Melo Costa
são luiz teatro municipal
10 a 18 out
Albertine O Continente Celeste
De Gonçalo Waddington com carla maciel tiago rodrigues
quarta A SÁBADO ÀS 21H DOMINGO ÀS 17H30 SALA PRINCIPAL; M/12 dur. aprox. 1h30
Conversa com equipa artística dia 11, sábado após o espectáculo
Albe rtine , O Contine nte Ce leste texto e encenação Gonçalo Waddington interpretação Carla Maciel Tiago Rodrigues espaço cénico e desenho de luz Thomas Walgrave vídeo Mário Melo Costa Gonçalo Waddington figurinos Carla Maciel construção de maquetas Ângela Rocha chefe de iluminação (vídeo) Pedro Paiva produção executiva Stage One
Co-produção
Apoio às residências artísticas
Espectáculo co-produzido no âmbito da rede 5 Sentidos
Apoios
Agradecimentos António Pedro Braga e Paula Fonseca; Casa Santa Maria da Câmara Municipal de Cascais; Cesário Monteiro; Fernanda Oliveira e Natividade Oliveira; Fernando Mota; Hugo Leitão; João Paulo Esteves da Silva; Mala Voadora; Maria Gonzaga Atelier; Mundo Perfeito; Prof. Dr. Pedro Gil Ferreira (University of Oxford); Prof.ª Dr.ª Ana Maria Mourão e Dr. Vincenzo Vitagliano (CENTRA – Centro Multidisciplinar de Astrofísica, Instituto Superior Técnico); Teatro Nacional D. Maria II
www.gwaddington.com
São Luiz tEatro municipal Direcção Executiva Programação Temporada 2014-2015 Aida Tavares Programação Mais Novos Susana Duarte Adjunta Direcção Executiva Margarida Pacheco Secretariado de Direcção Olga Santos Direcção de Produção Tiza Gonçalves (Directora) Susana Duarte (Adjunta) Mafalda Sebastião Margarida Sousa Dias Direcção Técnica Hernâni Saúde (Director) João Nunes (Adjunto) Iluminação Carlos Tiago Ricardo Campos Ricardo Joaquim Sérgio Joaquim Maquinistas António Palma Cláudio Ramos Paulo Mira Vasco Ferreira Som Nuno Saias Ricardo Fernandes Rui Lopes Encarregado Geral Manuel Castiço Secretariado Técnico Sónia Rosa Direcção de Cena José Calixto Maria Távora Marta Pedroso Ana Cristina Lucas (Assistente) Direcção de Comunicação Ana Pereira (Directora) Elsa Barão Nuno Santos Design Gráfico Silva Designers Bilheteira Cidalina Ramos Hugo Henriques Soraia Amarelinho Frente de Casa Letras e Partituras Assistentes de Sala Ana Rita Carvalho Carla Pignatelli (Coordenação) Carlota Macedo Carolina Serrão Cristiano Varela (Coordenação) Domingos Teixeira Filipa Matta Helena Malaquias Hernâni Baptista Inês Garcia Joana Braz João Cunha Manuel Veloso Paulo Soares Sara Fernandes Carlos Ramos (Assistente) Segurança Securitas Limpeza Astrolimpa
©Mário Melo Costa
Le ftove rs a baix a te m pe r atu r a escrever é um processo físico. escrever é um processo termodinâmico. escrever cansa. o universo expande-se com a força da energia escura. essa expansão é o próprio tempo. o texto que eu tenho na minha cabeça, a imagem das folhas a passar à medida que vou debitando as suas palavras, é um bom exemplo de energia escura e matéria escura. as letras, as palavras, as frases, os parágrafos, as estrofes são a matéria escura; os espaços vazios, ou em branco, são a energia escura, responsável pela expansão do texto. quanto maior o espaço, the bigger the timetext; le plus grand le tempstexte; più grande il tempotesto. é claro que a repercussão deste exemplo, nas vossas cabecinhas, depende de uma questão muito básica e concreta: se escrevem a preto em folha branca, ou a branco em folha preta. que é a mesma coisa, mas não é. tal como uma partícula e a sua antipartícula são a mesma coisa sem o serem. as civilizações intergalácticas tipo 3 – e não me estenderei sobre os tipos de civilizações, lamento – escrevem a preto sobre preto ou a branco sobre branco. é um facto curioso, no mínimo, se pensarem bem no seguinte: desde que começaram a ler este pequeno texto, já viajaram – moins ou plus! – vinte segundos para o futuro que é, agora!, o presente. ou melhor: viajaram vinte segundos no futuro; ao colo do futuro; empurrados pelo futuro. é mais interessante pensarmos que estamos a ser empurrados pelo futuro, que o futuro nos empurra pelas costas, e, à nossa frente, está o passado, que, mais do que nos perseguir, foge de nós.
infelizes dos que, por terem vergonha do passado, tentam, a todo o custo, deixá-lo para trás, sem nunca se aperceberem de que é o passado que tem vergonha deles – dos infelizes – e os deixa para trás, para o futuro. os antigos diziam que os nossos antepassados nos ultrapassaram e vão lá à frente, muito lá à frente, para além de qualquer esquina espácio-temporal. a nós, cabe-nos tentar apanhá-los, na medida do possível. e, por medida, entendam o que quiserem. eu estou por tudo. por agora, ouçam e não me interrompam. não é que tenham falado, mas ao mínimo indício de que estão a formular algum tipo de erudição, em forma de pergunta basilar, por exemplo, provoca um ruído de tal ordem perturbador que me poderá levar ao vómito. no mundo quântico, o espectro sonoro aumenta: ouvimos muito abaixo dos vinte hertz, os infra-sons, e muito acima dos vinte mil hertz, os ultra-sons. somos como milhões de morcegos-cão a entrar em pânico ao mínimo indício de que vocês estão a pensar em intervir. e, por intervir, entendam o que quiserem. quero lá saber. antes de dar por terminada esta entrée, a little piece of advice de quelqu’un qui vous aime beaucoup, ma non troppo: há que saber frequentar este género de salões. deveriam – todos vocês – ter chegado mais tarde, dando assim muito mais importância à vossa insignificante existência. e deverão sair muito mais cedo, ignorando todos os outros convidados e, sobretudo, sem se despedirem do anfitrião, na esperança de que ele – eu – entenda que, com essa vossa atitude de desprezo e sobranceria, todos os disparates que terei verbalizado, durante o tempo que se dignaram a ficar, não significaram absolutamente nada. agora cantem estas frases, grave e arrastadamente, nas vossas cabeças, usando as vossas melhores vozes interiores: it’s Ali versus Clay, both pummeling away, a champ always fights themself. se não sabem quem cantou estas belas palavras, problema vosso. não podemos saber tudo. mas isso não me impedirá, a mim, de falar do que bem me apetecer. e, lembrem-se, sejam amáveis. always shoot your lover in the face com uma caçadeira de canos serrados. assim, aquela doce e indescritível sensação que tanto prazer vos dá – amo-a tanto que mal me recordo das feições dela – acompanhar-vos-á pela eternidade adentro. yours sincerely, beyond a shadow of a doubt
O AN FITRIÃO
©Mário Melo Costa
Alb e rti n e reapareci da RUI CATALÃO Texto originalmente publicado no programa de sala do Teatro Nacional São João
Num artigo dedicado à influência do crítico de arte britânico John Ruskin sobre o trabalho de Marcel Proust, Guy Davenport conta uma história que mais parece uma anedota: Ruskin inicia uma conferência em Oxford sobre Miguel Ângelo, faz uma digressão sobre sapatos, entretanto desvia-se para o tema dos pés das raparigas na flor da idade e termina a discorrer sobre as próprias raparigas em flor. No prefácio à sua tradução de A Bíblia de Amiens (sobre a catedral gótica de Amiens), o próprio Marcel Proust entende que “a beleza das suas interpretações erradas é quase sempre mais interessante do que a beleza da obra de arte que ele interpreta”. No prefácio a uma segunda tradução que fez de Ruskin, Sésamo e os Lírios, escreve Proust que “o legado das nossas leituras de infância é acima de tudo o da imagem desses dias e lugares, quando a elas nos dedicámos. A importância que dou à leitura não é a dos livros que li, mas talvez a das memórias que através dela me foram devolvidas”.
Esta reflexão não seria mais do que uma flor de retórica na lapela de um escritor pomposo, não se desse o caso desse mesmo escritor ter iniciado no ano seguinte, em 1907, a redação de uma obra a que ele chamava de “a catedral”, e que haveria de deixar inacabada por altura da sua morte, em 1922. Essa reflexão encerra uma definição sobre a forma como a memória opera por associações e corresponde ao programa estético que dará corpo à estrutura de Em Busca do Tempo Perdido, cuja ação narrativa resulta dos efeitos de refração acionados pela memória. Para a nossa geração, habituada a ler hipertexto, e a fazer links uns atrás dos outros, até se aperceber, meia-hora depois, que já abriu uma vintena de páginas no seu computador, sem que haja qualquer correspondência entre o assunto a que chegou e o ponto de partida, não causa qualquer estranheza este processo imparável de associações imprevistas com os nossos motivos de interesse. Houve um tempo, no entanto, em que isso não só confundia como provocava a mesma perplexidade que enfrentaríamos ao descobrir que o nosso simpático vizinho de cima, tão extremoso a cuidar-nos das plantas quando vamos de férias, e que nos dias em que ficamos a trabalhar até tarde não hesita em dar de jantar e jogar monopólio com os nossos filhos, acabou de ser visto na televisão, a entrar na nova sede da Judiciária para prestar declarações sobre o seu envolvimento numa rede de prostituição de menores. Gonçalo Waddington provoca outra perplexidade na sua Albertine quando interrompe o monólogo inicial de Tiago Rodrigues (Marcel), transformando o enunciado de memórias da sua personagem numa conferência sobre teorias e fenómenos de física. GONÇALO: Se o Proust escrevesse Em Busca do Tempo Perdido hoje, ele teria todo um “novo mundo” sobre o que é o tempo. Não só do ponto de vista poético e filosófico. Embora ele aborde de raspão temas como o cosmos, astros, biologia do ponto de vista darwiniano, surgiu todo um espectro de temas, na astrofísica e cosmologia, e na mecânica quântica, que lidam com o tempo. Como só concebo a abordagem do tema a partir de “hoje”, estas ferramentas científicas seriam o material do Marcel que eu imagino. O autor da personagem do narrador, e da personagem Albertine, utiliza esses temas como temas de soirée, propondo uma reflexão com o público. Os temas científicos servem para caracterizar a personagem, um anfitrião aristocrata, inteligente e muito culto, interessado em ler e falar sobre tudo, e “usa” uma mulher para restabelecer uma relação que em tempos terminou abruptamente. Ele está interessado em resolver as questões e mal-entendidos que o perseguem e esquece-se que Albertine, ou a atriz que faz de Albertine, tem o mesmo interesse que ele. O método de escrita usado por Proust, por associações de memória, não foi inventado por ele. Flaubert, por exemplo, chamava a essa tendência para o desvio digressivo as “ervas daninhas” do texto, e era mais o tempo que perdia a arrancá-las do que a produzir o que pretendia. Proust chegou mesmo a admitir tratar-se de “uma doença essencial à mente humana”. Ainda hoje, há quem refira que Proust sacrificou o enredo à complexidade psicológica, mas
o que ele fez foi estabelecer o enredo numa outra dimensão. Nabokov sugeriu que Em Busca do Tempo Perdido é um romance policial em que o mistério do crime é o próprio tempo, com a memória a ocupar o lugar da dedução lógica tão cara a Sherlock Holmes. Com Marcel, tudo deixa de ser elementar. A construção circular dá lugar a espirais infindáveis, em que um quadro, a passagem de um livro, uma peça musical, ou o próprio processo de memória que as fez ganhar destaque, têm a mesma vivacidade e influência que qualquer outra personagem exerce no enredo. Gonçalo Waddington, por seu lado, opera uma revolução na sua Albertine. Ela aguarda, submissa, pelo fim da exposição de Marcel, mas no segundo ato inicia-se um debate, em que haverá de rebater as suas afirmações. GONÇALO: Interessa-me a ambiguidade da personagem Albertine na cabeça dele. Ele confronta-a algumas vezes com perguntas elaboradas e acusações veladas sobre a sua “tendência” e ela, ao defender-se, parece cair por vezes em contradição (não caímos todos em contradições, por vezes, mesmo quando dizemos a verdade?), ou parece temer dar-lhe uma resposta satisfatória. Mas essa ausência de resposta satisfatória alimenta a ambiguidade do seu carácter. Muitas das respostas que os “espiões” lhe dão são também contraditórias. Sugerem que as personagens se aproveitam da fraqueza de Marcel em relação a Albertine e o manipulam, umas por dinheiro (como o Aimé), outras por “amor”, como é o caso de Andrée, amiga de Albertine com quem Marcel chega a envolver-se, depois da morte de Albertine. Resumindo, interessa-me o que a personagem Albertine “diz” sobre Marcel. É por aqui que eu pego na relação deles os dois quando se reencontram. O que é que um “diz” sobre o outro. Ela confronta-o com alguns episódios que ele próprio quer reviver, sem nunca contar que sente que já não lhe deve a mesma subserviência, seja por saber que está morta, seja também por ser uma atriz que “faz a personagem” como quer, com um ponto de vista. É teatro, e os dois sabem-no. Em 1928, Edmund Wilson notou que a ausência de continuidade nas personagens de Proust era só aparente, e que os seus leitores “caíam num erro similar ao das pessoas que imaginam que os relógios da física moderna são acelerados e retardados e que os instrumentos de medição encolhem e aumentam. As circunstâncias em que observamos é que os fazem ter essa aparência; no caso de Proust, é o ponto de vista do observador que faz a diferença. O método de apresentação de Proust é uma das suas grandes descobertas técnicas. As personagens mais importantes passam por tantas transformações, a ponto de se tornar impossível descrever com brevidade o seu curso”. Albertine é tão rebelde aos desejos da personagem Marcel como esquiva aos caprichos do narrador Marcel. Albertine aparece (e desaparece) em quatro livros, e sempre com uma aparência diferente. Voltemos a Edmund Wilson: “O episódio com Albertine, que tanto trabalho deu a Proust, e que ele programou para tornar-se o clímax do seu livro, é sem dúvida a secção menos popular junto dos seus leitores. Creio, no entanto, que os futuros leitores de Proust lhe farão justiça […]. A tragédia de Albertine é a tragédia do quão pouco sabemos e do pouco que nos podem interessar as pessoas que melhor conhecemos e de
quem mais gostamos; e as páginas em que ficamos a saber como é que o amante de Albertine a esqueceu depois dela morrer […] dão-nos a impressão de uma maior honestidade, de uma relação mais próxima com a realidade”. Agora que a realidade é outra, como é que o “leitor do futuro” se aproximou de Albertine? GONÇALO: Em Macbain,1 havia um ascendente do feminino sobre o masculino, tanto na alusão ao Macbeth do Shakespeare como na do casal Cobain/Love. Em Albertine, O Continente Celeste, esse ascendente também existe. Acho que na obra do Proust, citando o Platão, ele é o amante e ela a amada. Marcel tem um ascendente social e económico, o que lhe permite exercer um grande domínio sobre ela, chegando a fazer dela sua prisioneira, na sua casa em Paris. Mas ao propor um reencontro entre as duas personagens, e tendo em conta que Albertine (assim como a atriz que faz de Albertine) sabe que está a reviver um momento que acabará em morte, estou a dar-lhe o “poder” todo. No caso de MacBain, as personagens apenas dependiam das suas forças e fraquezas emocionais, era um combate titânico. Na relação Marcel-Albertine, ele pensa que poderá reviver ou relembrar os momentos “que quiser” ou “como quiser”, achando que a poderá encurralar ou armadilhar como bem entender, porque, em última análise, ele é o autor da personagem. Mas ele é que é o dominado. Ele é o amante. O amante sofre mais do que o amado. Para atingir através da ficção uma “relação mais próxima com a realidade”, Proust concebeu as suas próprias técnicas de 3D: “Tal como existe a geometria no plano, bidimensional, e existem os sólidos geométricos, no espaço tridimensional, para mim não existe apenas a psicologia no plano, mas também a psicologia no tempo. É esta substância invisível do tempo que procurei isolar”. Em Busca do Tempo Perdido descreve o movimento de consciencialização da sua personagem, Marcel, em direção ao narrador do livro que haverá de ser escrito a três mãos (a do narrador em que se transformou a personagem de Marcel, cujas memórias mais não são do que o tratamento literário das memórias do próprio Marcel Proust). Também Albert Einstein, para explicar o tempo na perspetiva de quem o observa, criou uma ilustração em que participam três personagens tão distintas quanto complementares e que haverão de fundir-se numa só. Tratemos de reconstruir a ilustração de Einstein sobre os três observadores do tempo: o primeiro está num comboio em alta velocidade; o segundo encontra-se parado num apeadeiro, à espera do comboio; e o terceiro observa ambos. Em cada um destes três pontos de referência o templo flui uniformemente, mas no momento em que o comboio passa no apeadeiro… não, vamos interromper por agora esta ilustração. Antes temos de satisfazer a curiosidade: quem é o passageiro que vai no comboio? É um adolescente de dezasseis anos, Albert, a imaginar-se num comboio tão veloz a ponto de atingir a velocidade da luz e atravessar a sua vida num segundo. E o observador, num ponto privilegiado da paisagem, que vê o comboio a passar através do tempo, assim como cada uma das paragens vividas por si? É o velho sábio Einstein, a lembrar-se da sua intuição juvenil, e a chegar à conclusão que “neste paradoxo estava já contido o esboço da teoria da relatividade restrita”. E o pobre desgraçado parado no ape-
adeiro, que julgou não conseguir apanhar o comboio? Bem, continua a ser Albert Einstein, o cientista laborioso. Acabou de ver a sua vida a passar à velocidade da luz e ainda não ganhou a perspetiva a que só chegará em velho. Falta ainda saber: qual é o ponto privilegiado em que o velho Einstein se encontra, para poder observar simultaneamente o viajante que ele foi (atravessando todos os instantes da sua vida) e a figura que só pode ocupar cada momento num só lugar, e um de cada vez? Para Einstein e Proust, a experiência do tempo é o horizonte da nossa finitude, e a consciência dessa finitude apenas se atinge a partir do momento em que estamos em condições de observá-la. A ilustração do comboio à velocidade da luz vem-nos dizer que, independentemente das técnicas usadas terem sido distintas, a memória enquanto “instrumento de medição” do tempo foi comum a ambos. Tal como sugeriu Saas Ahmed, “a experiência do tempo não elimina a finitude de cada uma das perspetivas num fluxo absoluto, mas integra-as. Proust torna-se sujeito e autor da sua própria vida. […] Ele recupera o tempo, não apenas por selar a sua vida num trabalho que o imortaliza, mas porque a vida que o romance retrata revela uma vocação que muda o sentido da própria vida e possibilita a escrita do livro. O romance aponta para a possibilidade de integrar um sentimento de si que de outro modo estaria fragmentado. Uma vez integradas todas essas parcelas que constituem quer a nossa vida, quer o sentimento de finitude que delas temos, o tempo deixa de ser o inimigo à espera da nossa extinção, e passa a fazer parte do processo de observação desse mesmo tempo em que estamos contidos. A perspetiva do observador é o limite que o liga ao mundo”. No caso do teatro, há mais duas categorias de observadores e de perspetivas a tomar em linha de conta: a dos espectadores e a dos atores. Tiago Rodrigues interpreta uma personagem que se apaixonou, desapaixonou e reapaixonou, numa relação tortuosa de caprichos estéticos e dúvidas quanto a ter possuído alguma vez aquilo que amou. TIAGO: Aconteceu-me frequentemente caírem-me nas mãos personagens que amam mais do que são amadas. O Char’Bovary do espetáculo que criámos com o Mundo Perfeito em junho é o herdeiro de uma linhagem de ilustres mal-amados que já interpretei e que vão desde o Osip em Platónov ao Doutor Rank na Nora (adaptação de Casa de Bonecas), passando pelo Antíoco em Berenice. Uns são aristocratas, outros bandidos, mas todos têm um gene dramático comum: têm mais amor para dar do que para receber. E não é que alguns deles não sejam amados. O problema é que são personagens que amam a pessoa ausente ou aquilo que está ausente na pessoa presente. De algum modo, estão destinados a não ver o seu amor plenamente correspondido. Este Marcel, que o Gonçalo Waddington moldou sobre a memória de um outro Marcel, tem a característica muito particular de camuflar as suas fobias amorosas sob um grande fogo-de-artifício de erudição. O que talvez o distinga irremediavelmente de Char’Bovary é aquilo em que são opostos: um é um homem em forma de lugar-comum, ao passo que o outro, Marcel, é um excêntrico, uma exceção. Seja por timidez ou por horror à banalidade, Marcel não consegue amar como as pessoas normais. Tem uma necessidade de sofrer por ciúme, de duvidar do amor que lhe votam. Mas ama a tal ponto que ten-
ta controlar as leis da física e da cosmologia para poder voltar a estar com a pessoa amada, mesmo que isso signifique falhar de novo. Marcel é bastante incompetente no amor, mas é um génio a sofrer por amor. Com Albertine, Carla Maciel completa um ciclo de quatro personagens em que a condição “mulheres de”2 as leva a definirem a sua identidade de forma perversa, manipuladora e finalmente fatal. Sintomaticamente, foi a própria Carla Maciel que sugeriu a Rodrigues a adaptação de Bovary, da mesma maneira que propôs a Waddington que lesse Em Busca do Tempo Perdido. CARLA: Ainda hoje encontramos uma certa dificuldade em aceitar e lidar com mulheres fortes e determinadas que procuram a felicidade. Albertine não é uma personagem que fale das suas emoções, ou que diga diretamente o que sente. Fica a curiosidade de conhecê-la. Este texto permite-me mostrar a complexidade, a generosidade, a dedicação e ousadia de Albertine em confronto. Contrariamente à Emma de Bovary, onde os advogados praticamente falavam por ela, ou em que ela própria citava passagens do romance para se dar a conhecer, a prisioneira deste texto resolve tomar as rédeas e falar, mostrando que a imaginação e até mesmo a memória do autor-narrador pode ser enganosa. Segundo Marcel Proust, as nossas memórias encontram-se fora de nós, “numa brisa húmida, no cheiro a mofo de um quarto ou na atmosfera pesada dos primeiros incêndios de outono, coisas através das quais podemos afastar qualquer parte em nós que a razão tenha… desdenhado, o último vestígio do passado, o melhor dele, essa parte que, secadas todas as lágrimas, nos faz chorar outra vez. Fora de nós? As memórias estão dentro de nós, mas armazenadas noutro sítio… Foi por nos termos esquecido delas que agora podemos regressar à pessoa que já fomos, entender as coisas como essa pessoa entendeu, ficar magoado como ela, porque deixamos de ser quem somos, tornamo-nos outra pessoa, essa mesma que amou alguém por quem já não nos interessamos”. Esta visão de vários seres, desejos e vontades que se contradizem contidos num mesmo corpo, Roger Shattuck batizou-a de “visão binocular”. Não se trata de usar a memória para regressar ao passado, mas de chamar a nós tudo aquilo de que a passagem do tempo nos separou. Se na literatura as memórias são ativadas por palavras que revestem imagens, no caso da experiência teatral há sempre a opção de passar diretamente às imagens. Por outro lado, como é possível configurar no palco o curso labiríntico da memória que dá a ver essas imagens? GONÇALO: Lembro-me de visitar a exposição dos mestres flamengos Rubens, Brueghel, Lorrain: A Paisagem do Norte no Museu do Prado e, a certa altura, dar por mim a acelerar pelas salas com “pressa de ver”. Constatei que faço isso em muitos dos museus e exposições que visito. Desconfio que muita gente sofre da mesma “urgência” nestes locais que apelam à contemplação. Interessa-me con-
frontar as épocas e as obras que o Proust refere, usando o vídeo e a projeção em tela, e trabalhar os temas e motivos dessas mesmas obras. Não é misturar as épocas, é ver uma época do ponto de vista de outra época. A exposição visitada por Gonçalo faz uma curiosa rima com a exposição visitada pelo escritor Bergotte no episódio de A Prisioneira (a que a sua peça de resto alude). Depois de ler uma crítica no jornal, Bergotte come à pressa “algumas batatas” e corre para a exposição na expectativa de reencontrar a Vista de Delft, de Vermeer, mas sente-se mal disposto e fica desapontado ao aproximar-se do quadro. Na sua memória era mais brilhante, mais excecional. Por outro lado, a descrição feita no artigo ajuda-o a ver pormenores em que antes não tinha reparado, nomeadamente a “tirinha de parede amarela” que o fizera sair de casa. “Fixou o olhar na preciosa tirinha de parede como uma criança que quer apanhar uma borboleta amarela.” A indisposição volta e apercebe-se de que a sua arte estava errada. Imaginando a sua vida no prato de uma balança, tendo no outro prato aquela “tirinha de parede tão bem pintada”, conclui que “abdicou imprudentemente da primeira em nome da segunda” e receia que a sua morte possa representar para os jornais da tarde um fait divers semelhante ao da exposição em que se encontra. Esta cena encerra duas mentiras. Nem Albertine conversou com Bergotte na rua no dia da sua morte (era mais uma desculpa para justificar as suas escapadelas) nem Marcel poderia saber dos pormenores da visita à exposição (já que Bergotte morreu logo a seguir). Albertine é a personagem de uma mentirosa contada por um mentiroso. Mas ele conta tantas versões dela a ponto de revelar uma época que haveria de acabar em guerra. Já a peça de Gonçalo Waddington põe em cena dois mentirosos em confronto.
1 — Texto de Gerardjan Rijnders, encenado e interpretado pelo casal Gonçalo Waddington/Carla Maciel em 2013. Macbain é uma adaptação de Macbeth, de Shakespeare, onde são usados também textos do casal de músicos rock Courtney Love/Kurt Cobain. Gonçalo interpreta a dupla personagem rei Macbeth/Kurt Cobain e Carla interpreta a rainha Macbeth/Courtney Love. 2 — As personagens anteriores são: Rebecca West, amante de Rosmer, em Rosmersholm de Ibsen (encenação de Waddington e Maciel); Lady Macbeth, a mulher do rei, e Courtney Love, a mulher de Kurt Cobain, em Macbain de Gerardjan Rijnders (encenação de Waddington e Maciel); Emma Bovary, a mulher de Char’Bovary em Bovary, de Tiago Rodrigues (numa adaptação do romance de Flaubert e do processo movido contra o seu livro).
Texto escrito de acordo com a nova ortografia.
©Mário Melo Costa
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