FOLHA DE SALA AUTÓPSIA 2019

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© Paulo Pimenta

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1 A 3 N O V EM B R O 2019


Uma dança que salvará o mundo

de dores em cima, de impactos e isto tudo transforma-se em algo menos agressivo mas mais doloroso. Sou muito emocional, o meu movimento e o meu corpo na dança sempre foram muito redondos, dentro de uma concha, mas, ao mesmo tempo, em luta, a avançar. Este espetáculo faz sentido no meu percurso. O nome Autópsia tem muito a ver com o sítio onde estou. Já vejo o fim ali ao fundo, como não acontecia na juventude… mas não é que ache que vá morrer em breve. Foi por aí que tudo começou, junto com o que passei nestes últimos 4/5 anos, ter deixado de dançar devido a uma doença auto-imune. Pensei trabalhar sobre isso, chamava-se Autópsia de uma Bailarina Após a Morte. Era a minha autópsia após ter morrido como bailarina e seria um solo. Depois achei que podia fazer isto com os meus bailarinos e que eles podiam autopsiar-me. Mas o trabalho foi-se abrindo a outras coisas mais.

À conversa com Olga Roriz, a propósito de Autópsia

Este espetáculo está carregado de dor. É o que se encontra quando nos autopsiamos? Esta Autópsia começou por algo muito privado e interior. Depois passou para os meus bailarinos, para um exterior de mim. De seguida, para a essência do ser humano o que, necessariamente, me levou à origem do planeta. O espetáculo parte de um olhar para dentro, de uma visão de nós próprios e do que nos rodeia. Pode ler-se numa das paredes do estúdio, do grego: Auto – psia, visão de si mesmo. Assim como necrópsia, visão da morte.

Como é que se passa de uma coisa tão pessoal para outros bailarinos e para o planeta em que vivemos? Comecei com um trabalho muito físico, ritual. Quando penso no ser humano, na morte, na autópsia, a minha cabeça vai inevitavelmente ter ao estado do planeta e ao problema climatérico do aquecimento global, à poluição, ao consumo, etc. No meu caderno deste projeto, a primeira frase

Partiu da sua dor? Tem a ver com o meu percurso. Desde muita nova que tenho esta dor. Tenho muita tristeza, sou muito melancólica. O meu percurso começou na violência: eu era a violenta, a agressiva, a masculina… Mas já havia muita dor aí, muita raiva e força da juventude de querer mudar as coisas. Hoje a sensação que tenho é a mesma, mas com uma série 2

é da Maria Quintans, do seu último livro, Se Me Empurrares Eu Vou: “Perdemos tudo muito devagar.” Para mim, é uma frase fantástica, um ovo de Colombo. E este perdemos serve tanto para nós como para as pessoas que estão à nossa volta, como para o planeta. Passei aos bailarinos como ideia utópica que eventualmente haverá uma dança que salvará o mundo. E que nos salvará a nós. A missão da dança seria uma salvação. O que trabalhei em primeiro lugar foi a construção, de forma ritual e sistemática, de um movimento que viesse de cada um deles e que, ao ser feito, iria salvar-nos. Quando se tem isto na cabeça é possível que todo o espetáculo se encaminhe para algo muito físico. Havia algumas palavras no início e, aos poucos, fui retirando. O espetáculo tem quase um movimento contínuo, como a rotação da Terra, como a vida e a morte, como as dores, em ondas… Não queria que houvesse paragens, foi essa evolução física que me foi trazendo estas golfadas de movimento.

planeta é a nossa casa quando o vemos de longe”. Passámos metade do dia nas primeiras semanas de ensaios a ver o documentário, aos poucos. Tinha já muitas coisas apontadas no meu caderno e geralmente não leio o que escrevo, mas desta vez fiz questão de ler. E, além disso, quis escrever nas paredes da sala de ensaio, enchê-las de palavras, de poesia, de filosofia. O primeiro trabalho que lhes pedi foi para construírem alfabetos a partir de alguns conceitos, como o corpo, a dança, a morte, a velhice… Eles procuraram palavras em cada um daqueles temas. Achava que iriam existir imensas palavras no espetáculo, se não ditas, pelo menos, projetadas. E isso fez com que passasse para eles um certo ritual de escrita. Esse conceito de palavra foi a base de improvisação deles, a sustentação de improvisação diária. Este espetáculo vive da interpretação de cada um deles e do que eles entenderam daquilo que lhes fui trazendo e do que conseguiram descobrir neles próprios. Há ali uma vulnerabilidade grande, mas também imensa força.

A palavra quase não existe no espetáculo, mas esteve na base dos movimentos? A minha pesquisa passou por um documentário, que acabou por ser muito importante para nós: One Strange Rock, feito do ponto de vista de astronautas, que dizem “só temos a noção de que este

É uma dor cheia de força. Sim, uma fragilidade e, ao mesmo tempo, uma força. Existe um lado quase selvagem. Acho que a dança nos traz isso. Aqui tudo tem a ver com o movimento e com a paisagem. Na sequência dos solos, são seis pessoas que vêm de sítios distantes uns dos 3


E é quase sempre uma luta solitária, não é? Eles tinham que fazer um percurso solitário, como se cada um fosse o rasto de muitos outros, mas sempre sozinhos. Há sempre nós e os outros. Cada um deles representa um nós qualquer. Há ali alguma utopia, mas também muita esperança. Há uma luta, mas, ao mesmo tempo, há uma tentativa de resolução. Para mim, a sensação final é que dali se irá chegar a algo positivo, mesmo não sabendo o quê.

A força em palco vem, então, dessa verdade e dessa crença utópica de que dançando é possível, ainda, salvar o mundo? Sim. A dança passa por uma pesquisa e uma entrega. São intérpretes que não são meros executantes de uma coreografia. Tudo isto é feito com eles e a partir deles. Lanço os dados, mas há ali um estar e uma força criativa de cada um dos intérpretes. 4

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Acredito que os espectadores possam sentir essa verdade. Os bailarinos não estão a vestir um figurino, estão a vestir a sua própria roupa. Foi um processo de trabalho lento, de os descobrir, de descobrir com eles. Acredito que podem fazer este espetáculo hoje ou daqui a cinco anos que será igual, porque aquilo vem de dentro, aquilo entranha-se. E espero que isso passe para o público. Não é só uma dança, tem energia e depende da intenção que lhe dão para que tudo funcione, porque só pode funcionar naquele limite de energia. São importantes a qualidade do movimento, a dinâmica, o ritmo, a técnica, a energia, mas a intenção é essencial. Acredito que é daí que vem a força dirigida deste espetáculo. E aqui não há histórias, só há sensações. A relação do corpo consigo próprio e com o espaço, com o chão, com a cabeça. É quase a luta do corpo com a cabeça.

outros e cada uma delas carrega esses sítios. Trouxe lugares que me inspiraram para os ensaios e que os bailarinos foram pesquisar: a ilha Hashima, em Nagasaki, no Japão, uma ilha fantasma, comprada pela Mitsubishi e habitada de 1887 a 1974 para extração de carvão; o monte Merapi, em Java, que é o vulcão mais ativo na Indonésia e que já matou centenas de pessoas; Hang Son Doong, a maior caverna do mundo, em Quang Binh, no Vietname, que é Património Mundial da Humanidade; a Antártida, onde há uma subida da temperatura anual de 1 grau; o deserto do Saara, em Marrocos, um dos primeiros sítios onde se encontrou um meteorito; e Chernobil, na Ucrânia. São sítios extraordinários que ou foram destruídos pela mão humana ou estão a sofrer ou fizeram sofrer. Acho que foi bom para nos compreendermos, para percebermos a nossa posição no mundo.

Ou não acreditasse sempre a Olga Roriz que o negativo se pode transformar em positivo, certo? Pois é! Não se deve ter medo das vivências, mesmo que negativas. Uma das coisas que pedi aos bailarinos foi que trouxessem para os ensaios os seus mortos. E alguns eram familiares e outros eram comuns aos meus e aos dos outros.

partiram para os seus solos, foi com essa consciência de grupo, estavam todos no mesmo lugar. Aquela canção do início, que existe como chamamento dos animais, dá-nos logo a ideia de coro. Por isso, no início, quis que estivessem todos vestidos da mesma forma. A argila das roupas, ao secar, dá a todos a mesma tonalidade e faz com que o individualismo se esvaia.

E foram construindo a partir dessas realidades? Sim, foi uma construção. Com uma força telúrica e em conjunto. Precisei que trabalhassem em comunidade, apesar deles mal se tocarem durante a coreografia e de parecer que não se olham. Foi preciso começarmos com um espírito de grupo imenso. Quando

É essa argila nas roupas que se vai soltando quando dançam e que provoca o pó no ar. “Do pó viemos e ao pó voltaremos”, é isso também? Claro, vai ter aí. Mas é um trabalho intuitivo. É óbvio que já lá está, mas nem preciso de pensar nisso ou de delinear tudo antes até lá chegar. 5


Também acaba por ser um pó que torna o clima irrespirável. Sim, não é fácil o ar que se respira ali a certa altura. Espero que o público não sinta essa dificuldade, mas espero que sinta que os bailarinos têm essa dificuldade. É um pó que vem deles e que se vai acumulando e vai ficando. O palco começa por estar limpo, tal como o planeta era todo limpinho, e vêm eles, vimos nós, e deixamos tudo assim, estragamos tudo. É muito interessante, para mim, essa mutação que acontece quase sem nos apercebermos. O pó vai ficando e de repente é que percebemos que o chão já não está como estava antes.

olhar exterior, que normalmente só chamo a uns dias da estreia, esteve ali desde o primeiro dia. Este espetáculo não revela a pesquisa, essa parte está escondida, será revelada nesse documentário. No espetáculo as pessoas não veem como chegámos ali… e felizmente há o documentário! Não há muitas explicações e não há tantas palavras como imaginou no início, mas ainda ficaram algumas… Para além do verso de Maria Quintans, “perdemos tudo muito devagar”, há só um texto do Rui Costa, que está escrito. Fala de uns pássaros, uns passarões, que andam aí a fazer a guerra, que nos cagam em cima e nós temos de ter cuidado, porque aquele bocado de céu é nosso. É muito bonito, muito poético. Não é direto, mas faz-nos pensar.

O processo deste espetáculo foi filmado para fazer um documentário que estreia aqui no São Luiz em junho. Como foi trabalhar com uma câmara a registar tudo? Essa presença constante do Henrique Pina e do Lee Fuzeta fez-me querer passar tudo para fora de uma forma mais pensada. Sabendo que é uma oportunidade de mostrar ao público este processo de trabalho, tinha de ser claro. Não gosto muito de explicar as coisas, gosto que as pessoas cheguem lá sem muitas explicações, mas aqui senti essa necessidade. Neste processo de trabalho, não estava só a falar com os bailarinos, mas também com um público e isso fez alguma diferença. Aquele outro

E há umas frases no espetáculo que vão diretas ao assunto: “O pior que te podia ter acontecido, aconteceu: foste civilizado”, por exemplo… Pois é! E também gosto muito da última que diz “O que acontece no Planeta Terra fica no Planeta Terra”. E há outras: o que é feminino e o que é masculino, “tu não sabes”… São provocações e são temas recorrentes nos seus trabalhos. Não resiste, pois não? Não resisti, não. No início 6

No próximo ano, a Companhia Olga Roriz celebra 25 anos. Não é pessoa de fazer balanços, mas quer marcar esta data? Sim, o que me interessa é a continuidade: esse ir continuando e ir descobrindo. Não nos queremos esconder de maneira nenhuma, queremos expor-nos. Mas, para mim, é sempre a olhar para a frente, nunca para trás.

pensei que ia ter muitas palavras escritas e isso foi caindo, mas estas ficaram. No final, que objeto é aquele, um espelho que nos reflete? Não é bem um espelho, é uma chapa de inox. Estava na minha cabeça desde o início. Os ingleses chamam a algumas paisagens “áreas de deslumbrante beleza natural”, que são resguardadas e protegidas. Um dos primeiros exercícios que pedi aos bailarinos foi que apresentassem imagens com os seus corpos como “áreas de deslumbrante beleza natural”. O corpo como beleza natural. Passei daí para uma imagem de conjunto e trouxe-lhes a roupa de argila, aqueles adornos que usam e também esta chapa. Eu via este objeto como um local de reflexão, um local cibernético do futuro. Mas afastei-o e só mais à frente, quando já tínhamos o nosso fim, comecei a reduzir as minhas possibilidades àquele objeto que estava ali desde o início a querer entrar e ser protagonista. E aquilo começou a parecer-me um alter-ego do planeta. Alguma coisa que nos leva para outra dimensão, que não se sabe bem o que é, mas que apetece que exista.

É bom ver que acredita que pode voltar a dançar e que ainda tem um solo para fazer. Sim, quando penso na tal Autópsia de uma Bailarina Após a Morte, acho “eu ainda vou fazer este solo”. E acredito que sim, que ainda o vou fazer. Na verdade, neste Autópsia que agora estreamos está lá tudo. É inesgotável, o olharmos para nós próprios. Por isso acredito que voltarei a dançar. Ou criar um espetáculo sobre a impossibilidade de uma bailarina se mexer… Para mim será ótimo… e doloroso q.b., como eu gosto! Entrevista realizada em outubro de 2019, por Gabriela Lourenço / Teatro São Luiz

É uma ideia de possibilidade. Exatamente. É uma outra dimensão, que ainda não entendemos, uma outra energia.

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© Paulo Pimenta

1 a 3 novembro dança

AUTÓPSIA

COMPANHIA OLGA RORIZ estreia Sexta e sábado, 21h; domingo, 17h30 Sala Luis Miguel Cintra; m/14 €12 a €15 com descontos Duração: 1h20

2 novembro, sábado Direção: Olga Roriz; Intérpretes: André de Campos, Beatriz Dias, Bruno Alves, Catarina Câmara, Marta Lobato Faria e Yonel Serrano; Conceção da banda sonora: João Rapozo; Seleção musical: Olga Roriz, João Rapozo e Bruno Alexandre; Música de: Acid Arabe, Christian Feenesz, Dirty beaches, Jóhann Jóhannsson,

Kangding Ray, Ernst Reijseger, Ben Frost, Sunn O))), Colin Stetson e Sarah Neufeld; Cenografia e Figurinos: Olga Roriz e Ana Vaz; Desenho de luz: Cristina Piedade; Equipa de captação de vídeo: Henrique Pina e Lee Fuzeta; Pós-produção vídeo: João Rapozo; Assistência à criação: Bruno Alexandre; Assistência de cenografia: Miguel Justino; Estagiárias assistentes aos ensaios: Andreia Serrada, Catarina Camacho e Marta Jardim; Montagem e operação de luz e vídeo: João Chicó / Contrapeso; Montagem e operação de som: Pontozurca Companhia Olga Roriz – Direção: Olga Roriz; Produção e Digressões: António Quadros Ferro; Gestão: Magda Bull; FOR Dance Theatre e Residências: Lina Duarte; Estagiário de produção: Sérgio Brito Moreira Agradecimentos: Maria Quintans, David Meireles e Américo Castanheira (Faço tudo – Construções Cenográficas) Coprodução: Companhia Olga Roriz, Município de Viana do Castelo e São Luiz Teatro Municipal

A Companhia Olga Roriz é uma estrutura financiada por

Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Programação Mais Novos Susana Duarte Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Andreia Luís, Catarina Ferreira, Mónica Talina, Tiago Antunes Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Ricardo Campos, Tiago Pedro, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Filipa Pinheiro, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Ricardo Fernandes, Rui Lopes Operação Vídeo João Van Zelst Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Bilheteira Cristina Santos, Diana Bento, Renato Botão

TEATROSAOLUIZ.PT


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