O AGORA QUE DEMORA: NOSSA ODISSEIA II 2022

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14- 18 SET 2022 O AGORA QUE DEMORA NOSSA ODISSEIA II CHRISTIANE JATAHY M/16 TEATRO

CamachoPaulo©

trechos da conversa pública com Thomas Walgrave, SESC Pinheiros, 27 de março 2019

AGORA QUE DEMORA

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CHRISTIANE JATAHY

A primeira peça foi Ítaca. A dramaturgia tinha como base a fase final da história de Ulisses; ele está há dez anos a viver a sua odisseia. Precisa de voltar para casa. Ele está na ilha de Calipso a ponto de sair. É a despedida deles. Do outro lado da cena, ao mesmo tempo, está Ítaca, onde Penélope luta brava mente para evitar a tomada de poder pelos pretendentes.

O Agora Que Demora verticaliza, e também horizontaliza, a abordagem da obra original. A estrutura dramatúrgi

O primeiro documentário foi feito na criação do E se elas fossem para Mos cou? (Apresentado no Teatro São Luiz/ Alkantara Festival em 2016), chama va- se Utopia.doc. Foi uma série de en

Mas as principais linhas desta pesquisa no díptico Nossa Odisseia; os refugiados, a busca por um lar, já tinham estado presentes no seu trabalho antes, não?

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O Agora Que Demora é a segunda parte de um díptico, a partir da Odisseia de Homero, que se chama Nossa Odisseia.

Sim, algumas linhas da minha pesqui sa estão em continuidade nesse trabalho. Tanto tematicamente quanto no exercício cinematográfico e documen tal, em que venho trabalhando desde 2013. Nos últimos anos fiz uma se quência de filmes e entrevistas sobre o exílio e sobre a utopia, sobre as tra vessias, e as situações políticas, sociais e económicas em torno disso.

ca passa pelos dez anos da Odisseia. Não mostramos a ação porque, mes mo no original, a ação não acontece no momento presente, a ação é a narração de Ulisses sobre os dez anos da odisseia que ele viveu. Como no original, também nós fazemos uma espécie de flashback, em que Ulisses (homens e mulheres), artistas em situação de re fúgio, narram essa ficção como metáfo ra das suas histórias reais.

O espaço cénico era bifrontal para mostrar esses dois pontos de vista da história: uma parte do público via um lado da história, enquanto outra parte via o outro lado. Depois, o público migrava para o lado oposto, até ao final, onde o espaço se abria e tudo era Ítaca. E tudo era a guerra. Ítaca foi criado em 2017, e estavam ali todos os paralelos com o Brasil duran te o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Qual é a relação entre O Agora Que Demora e a sua criação anterior, Ítaca? (apresentado em Lisboa em junho 2018, Teatro São Luiz/ Alkantara Festival)

Depois veio a A Floresta Que Anda (apresentado no Teatro Nacional Dona Maria II em 2018). Uma parte dos filmes mostrados são sobre a situa ção de refúgio. E, também, antes de começarmos o processo de ensaio do Ítaca, fizemos um processo de criação no Theater der Welt onde entrevistámos alguns refugiados na Alemanha, para fazer o projeto Moving People (apresentado em Lisboa no âmbito do Artista na Cidade em 2018). Três desses refugiados contaram-nos todas as etapas das suas travessias para chegar até ali, essas odisseias eram lidas pelos Ulisses na peça Ítaca.

Ainda é sobre as fronteiras…

O Agora Que Demora é sobre pessoas que estão hoje, agora, numa situação em que não podem voltar atrás nem seguir adiante. Não têm mais o passa do e nem o futuro. Estão num eterno presente. Esperando ou atravessando a violência das suas odisseias. Como Ulisses, tentando voltar para casa, chegar a Ítaca. Mesmo que seja “uma Ítaca”. É um agora que demora, no duplo sentido de demorar; é uma demora para chegar e ao mesmo tempo é alar gamento de um agora interminável. O Agora Que Demora é um olhar para o mundo, para pessoas que estão viven do essa situação hoje, e também sobre o que estamos vivendo aqui, hoje, no Brasil. Presos num tempo que parece ter nascido do passado e que se esten de num presente assustador e muito perigoso....

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O trabalho é sobre essa fricção, essa tensão entre diversos territórios; o ci nema e teatro são os mais óbvios, são os mais aparentes, mas não é só, tam bém existem muitas possibilidades de pensar as camadas de como a realida de e a ficção podem interagir num tra balho Fomosartístico.aalguns lugares filmar pessoas que estão vivendo odisseias reais, não para fazer um documentário com elas, mas para levar a elas a ficção de Homero, para que através dessa ficção elas falassem sobre o que elas estão viven do na realidade. É um roteiro, que tem trechos dos versos originais, mas tam bém tem depoimentos e improvisos.

Há uma fala no início do E Se Elas Fossem Para Moscou? – “talvez não seja uma peça, nem um filme, ou talvez sejam as duas coisas…”. No O Agora Que Demora é através do cinema. Mas é um através do cinema para chegar ao teatro, é uma odisseia para chegar no teatro. Tem muitas odisseias, muitas camadas de odisseias nesse trabalho. Nós filmámos na Palestina, no Líbano, na Grécia, na África do Sul e na Ama zónia. Uma espécie de corrida de bas tão, com múltiplos Odisseus, que são homens e mulheres. Essa corrida de bastão vai indo de um lugar para outro, em continuidade com o roteiro, como se um ator fosse pegando do outro essa história num espaço virtual, porque eles não se encontram, mas a história segue sendo contada de forma contí nua, através das múltiplas faces que se multiplicam no filme e no teatro, portanto se multiplicam em nós.

contros que realizámos em França, na Alemanha e no Brasil com imigrantes, refugiados e pessoas em situação de deslocamento no mundo que dialogavam umas com as outras.

© Marcelo Lipiani

mente. Não tem como, nessa transfor mação, nesse pacto, também nós não nos implicarmos. Faz parte da ideia de não separar, de quebrar outras pare des. A nossa presença em palco, minha e a do Thomas, tem a ver com isso. As sumirmos também as nossas histórias. Sem hierarquias.

Há uma questão na peça que é sobre pensar como muitos dos nossos antepassados também tiveram que imigrar. É mesmo quebrar esse preconceito de que quando falamos de refugiados, imediatamente os colocamos dentro de um contorno, de um espaço, de um frame específico e distante de nós. É muito difícil olharmos como algo que também é nosso, ou que podia ser um de nós, ou que poderia ser alguém da nossa família. E essa proximidade dá-se nesse trabalho porque todos são atores, são atores em situação de re fúgio, trabalhamos com instituições culturais, com atores palestinos, com atores africanos, com atores sírios, exilados no Líbano; foram encontros muito fortes, artísticos e pessoais. Tudo isso nos transformou profunda

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Os atores de O Agora Que Demora assumem um palco global. O bastão é passado entre Odisseus na Palestina e seus homólogos no Líbano e na África do Sul, um refugiado curdo iraniano na Grécia e uma comunidade Kaiapó no Pará, sem mencionar os outros brasileiros, moçambicanos, congoleses etc. que encontrarão nessa viagem. Ao mesmo tempo, a odisseia delas e deles é bastante

Um agora que conjuga todo o tempo, o passado e o presente.... Eu penso isso desde A Falta Que Nos Move; como é que eu posso colocar em tempo presente alguma coisa que é um registo do passado? Desde o meu primeiro filme A Falta Que Nos Move, baseado numa peça em que tudo pare cia estar acontecendo no improviso do tempo presente, o grande desafio era: como é possível fazer isso no cinema? Se o cinema é claramente um registo de alguma coisa que já passou? Como é que eu posso provocar no espectador a dúvida sobre algo que é impossível de duvidar? E Se Elas Fossem Para Mos cou? também é construído sobre essa mesma premissa. Porque é uma peça e um filme que acontecem em dois espaços diferentes, mas um é criado a partir do outro. E em A Floresta Que Anda idem, porque estamos fazendo um filme ao vivo, com todos os ris cos que isso implica. Ao mesmo tem po, quando o filme se apresenta, para quem assiste, as pessoas estão vendo no tempo presente o passado recente delas. O espectador está a ver-se no passado de um tempo presente. E no O Agora Que Demora também, porque a gente filmou com o objetivo de trazer para aqui, para dentro do teatro. Tra zer para o teatro quem não pode estar aqui, no tempo presente daqui. O Ago ra Que Demora também é sobre isso. Como é que a gente pode acabar com essas fronteiras, entre nós e o outro? É sobre essa utopia, que talvez seja a Ítaca do projeto, a utopia de juntar lu gares e territórios que estão separados por forças bem maiores do que as da natureza.

A gente pensa a odisseia apenas sob a perspetiva do deslocamento, mas também tem uma questão fundamen tal que é a ideia “da casa”. De precisar chegar a casa. Os palestinos estão em situação de refúgio apesar de estar do lado das suas casas, na sua terra, e aí tem paralelo com a Amazónia. “A casa” que você perde está onde você está, mas você não tem mais direito a. Mesmo para os refugiados sírios no Líbano... a Síria está a menos de uma hora, mas eles não podem voltar. Onde está a sua casa? Ítaca está a dez anos de distância, ou está a dez minutos, dez segundos, ou está num agora que não chega? E é também sobre a casa que você abandona e a casa que você en contra. Sobre o não ter mais sua casa, e a sua casa também é a sua família, a sua história, as raízes que, às vezes, você é obrigado a perder. Tem a odisseia dessas pessoas. Tem a ficção do Homero, e o que surge desse encontro. Mas também tem a odisseia de ter feito esse projeto, e o que a gente conta é só um pedacinho, porque é de uma dimensão, é de uma enormidade, é de uma violência que não cabe num projeto. Ela se alastra para a conver sa que a gente está gravando, ela se alastra para o que virá, também pela responsabilidade que a gente acaba sentindo agora... tantas pessoas que a gente encontrou, e que a gente quer trazer para perto. Como a gente vai criando os laços, e tudo isso de alguma forma é um agora que demora.

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local. Sua “Ítaca”, a promessa de uma casa, um território, uma garantia de poder fomentar um futuro para as próximas gerações, na maioria das vezes está bem perto.

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O ponto em que tudo converge é o público. O ponto central. O vértice a partir de onde eu olho e crio, é sempre sob a perspetiva do espectador. Não só como alguém que olha, mas também sobre como o olhar do espectador pode modificar a cena, e como isso pode colaborar na dramaturgia. No O Agora

Que Demora, o público é parte funda mental disso, o público no seu lugar público, no sentido grego, no sentido político, e também como um coro que transforma a história. O Agora Que Demora é para fora e para dentro, é a expansão de um lugar para outro, do cinema para o teatro, do teatro para o cinema, e o público é muito importante nisso. E não vou revelar mais, o resto é surpresa.

© Patricia Cividanes

E neste embate contra as fronteiras, também as do espaço teatral, qual é o lugar do público?

Coprodução Ruhrtriennale (Alemanha), Comédie de Genève (Suíça), Odéon-Théâtre de l’Europe (França), Festival d’Avignon (França), Le Maillon-Théâtre de Strasbourg Scène Européenne (França), Riksteatern (Suécia), Temporada Alta – Festival de Tardor de Catalunya (Espanha) e São Luiz Teatro Municipal (Portugal)

Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Mediação de Públicos Téo Pitella Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Catarina Ferreira, Marta Azenha, Tiago Antunes Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Cláudio Marto, Ricardo Campos, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Miguel Rocha, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Rui Lopes Operação Vídeo João Van Zelst Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Camareira Rita Talina Bilheteira Diana Bento, João Reis, Pedro Xavier

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14 a 18 setembro 2022 teatro

CHRISTIANE JATAHY

Baseado em Odisseia, de Homero; Com: Abbas Abdulelah Al’Shukra, Abdul Lanjesi, Abed Aidy, Adnan Ibrahim Nghnghia, Ahmed Tobasi, Bepkapoy, Blessing Opoko, Corina Sabbas, Emilie Franco, Faisal Abu Alhayjaa, Fepa Teixeira, Frank Sithole, Iketi Kayapó, Irengri Kayapó, Isabel Novella, Ivan Tirtiaux, Jehad Obeid, Joseph Gaylard, Jovial Mbenga, Kroti, Laerte Késsimos, Leon David Salazar, Linda Michael Mkhwanasi, MarieAurore d’Awans, Maroine Amimi, Mbali Ncube, Melina Martin, Mustafa Sheta, Nadège Meden, Nambulelo Meolongwara, Noji Gaylard, Ojo Kayapó, Omar Al Sbaai, Phana, Pitchou Lambo, Pravinah Nehwati, Pykatire, Ramyar Hussaini, Ranin Odeh, Renata Hardy, Vitor Araújo, Yara Ktaish; Criação, Adaptação, Argumento e Direção (Filme): Christiane Jatahy; Colaborador Artístico, Luz e Cenário: Thomas Walgrave; Diretor de Fotografia: Paulo Camacho; Música original: Domenico Lancelotti e Vitor Araújo; Câmeras: Paulo Camacho, Thomas Walgrave; Designer de Som: Alex Fostier; Mistura de Som Filme: Breno Furtado e Pedro Vituri; Direção de Cena e Vídeo: Stefano Serra; Direção de Cena: Dimitri Wauters; Iluminação: Isabel Scheck, Juan Borrego; Som: David Defour, Jeison Pardo Rojas; Coordenação e Colaboração: Henrique Mariano; Montagem Filme: Paulo Camacho e Christiane Jatahy; Produção e Digressão: Juliette Thieme, Matthieu Defour; Produção: Théâtre National Wallonie-Bruxelles (Bélgica), SESC São Paulo (Brasil); Apoios: The Freedom Theatre (Palestina) e Outreach Foundation (África Do Sul); Apoio Institucional: Embaixada do Brasil na França, Embaixada da França no Brasil, Escritório de Representação do Brasil em Ramala, Embaixada do Brasil no Líbano, Embaixada do Brasil na Grécia e Embaixada da Bélgica no Líbano

Christiane Jatahy é artista associada do Odéon-Théâtre de L’Europe, do CENTQUATRE-PARIS, da Schauspielhaus Zürich, do Arts Emerson Boston e do Piccolo Teatro de Milano – Teatro d’Europa. A Cia Vertice tem o apoio da Direction régionale des affaires culturelles d’Île-de-France, Ministère de la Culture France.

teatrosaoluiz.pt

AGORA QUE DEMORA NOSSA ODISSEIA II

Sala Luis Miguel Cintra quarta a sábado, 20h; domingo, 17h30 Duração: 2h; M/16 €12 a €15 (com descontos)

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