C., CELESTE E A PRIMEIRA VIRTUDE 2023

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C., CELESTE E A PRIMEIRA VIRTUDE

© Beatriz Batarda BEATRIZ BATARDA
11- 22 ABR
vídeo-instalação CORPOS CELESTES

SOBRE C., CELESTE E A PRIMEIRA VIRTUDE

O que motiva o artista a escavar o imaginário, só ao próprio diz respeito. Uns procuram fugir da realidade que lhes é mais próxima, outros procuram compreender realidades mais distantes, outros procuram fantasiar sobre realidades alternativas, outrosà semelhança de Proust - procurarão o tempo perdido, e os restantes? Procuram o quê? A certa altura entendeu-se que representar seria trazer para o presente um acontecimento que ficou perdido no tempo. O herói trágico era aquele que caía, porque afinal de contas era só humano, mesmo que vivesse nas nuvens e fosse imortal. Durante muito tempo, parecia fazer sentido que fôssemos retratados quer na literatura, quer na pintura, quer naquilo que talvez seja uma espécie de combinação destas duas, o cinema e o teatro, enquanto seres em estado de conflito, torturados por verdades que suscitam emoções extremas e opostas. Acrescentavam-se a estes retratos apontamentos de hábitos de cedência ao prazer, como por exemplo beber muito vinho ou fumar até queimar os dedos. Esta descrição parece agora datada, porque sabemos que nos movimentamos noutra direção, ainda por definir. No entanto, à medida que se instala a cultura da idealização do indivíduo, e se normalizam correções puritanas em retroativo sobre as escolhas dos artistas, pergunto-me qual será a razão que nos leva a querer continuar a contar histórias.

C., Celeste e a Primeira Virtude foi a melhor maneira que encontrei para me debater esta pergunta – também ela demasiado existencialista para os nossos tempos. O tema da educação nas artes, onde a peça se enquadra, é-me familiar, faz parte da minha vida quotidiana há já alguns anos, e serve o propósito de devolver aos mais novos a força da voz da vulnerabilidade, tantas vezes vampirizada pelos serviços gerados pela revolução tecnológica, assim como pela economia pós-industrial. Por considerar que, apesar de tentar acompanhar as mudanças, faço parte do mundo antigo, fantasiei dentro dos moldes de escrita clássica as possíveis ascensão e queda de um herói contemporâneo movido pela sede de fazer justiça, e desejo de recuperar a verdade sobre os acontecimentos traumáticos do passado colonialista que continuam a fazer-se sentir nos hábitos normalizados pela prática capitalista. É claro que, nesta história o herói é uma mulher, porque é para mim importante ver refletida no meu trabalho, a resistência ao poder patriarcal. Como em tudo o que fiz até hoje, seja enquanto atriz ou criadora, ou professora, fui beber à minha vida, aos afetos e aos encontros mais importantes que tudo, para chegar a uma verdade que seja “mais que nada”. Dedico este espetáculo à minha mãe e à Celeste, nascidas no mesmo ano e no mesmo mês. Nesta nota, convido-vos a fazer uma leitura da nossa heroína chamada Justiça.

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© Caio Silva
© Estelle Valente

COLISÃO

What power art thou, who from below

Hast made me rise unwillingly and slow

From beds of everlasting snow?

See’st thou not how stiff and wondrous old

Far unfit to bear the bitter cold, I can scarcely move or draw my breath?

Let me, let me freeze again to death.

in King Arthur: or The British Worthy, John Dryden (1631-1700)

Podia ouvir-se num dos ensaios de C., Celeste e a Primeira Virtude (eco também numa das janelas de vídeo da instalação Corpos Celestes) o excerto acima da ópera de Henry Purcell (1659-1695), em que o Espírito do Frio já há muito morto, foi chamado de volta à vida por Cupido, e em sofrimento pede, deseja, regressar de novo à morte. Pedido intangível este que ressoa enigmático como o título C., Celeste e a Primeira Virtude, de Beatriz Batarda. Algures irá esclarecer-nos que “C.” poderá ser de “Coro, Crime, Cronos, Criação, Caos, Cosmos ou Corpo” ou de tudo isso ao mesmo tempo, mas não deixará de nos manter no enigma, pois há toda uma proposta de tese da autora em C.,…, aliada à exposição íntima, pessoal e profunda de si própria.

Para este que vos escreve, C. é de Colisão ou, da única constante do Universo, a velocidade da luz, como se pode ouvir de uma das personagens, Humil-

dade, filha de luz e de som, que quando era muito pequenina a mãe decidiu tratá-la por C. porque “c é a letra que representa a velocidade da luz no vácuo”. Porque é de Virtudes que se trata e de Corpos e de Celeste. Não falarei, evitando revelar demasiado, da estória dentro da história, de Celeste, a quem esta peça é metade dedicada. Falarei do Espanto, essa Primeira Virtude enunciada neste C., Celeste e a Primeira Virtude. O Espanto é o da Aprendizagem e é o Motor, com a Curiosidade e a Imaginação, da Criatividade, da Criação, da Invenção, “esse lugar feliz em que a alma humana liga verticalmente a Terra ao abismo celestial.”, nova pista que nos deixa o enunciado do espetáculo.

A Mestra – personagem alter ego da autora, professora, atriz, encenadora –apresenta-nos as outras Personagens, Virtudes, evocando um sentido clássico, coincidentemente feminino – e curiosamente não como Valores, masculino,

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Nuno M Cardoso

associados ao Materialismo e ao Capitalismo – com as suas singularidades, contradições e idiossincrasias e não apenas figuras de qualidades morais particulares, exclusivamente humanas, com predisposição para perceber, sentir, escolher, agir e reagir de maneira admirável. As Personagens presentes e em Presença na peça dentro da peça são as Virtudes: Excelência, Honestidade, Respeito, Fé, Sensibilidade, Verdade e Justiça e, as em imagem e discurso, ausentes de corpo, a já referida Humildade, Generosidade, Empatia, Coragem, Desapego, Pureza e Esperança (ausente não ingenuamente, para permitir a Tragédia).

As Personagens irão apresentar-se, ou ensaiar apresentar-se, na realidade descobrirem-se e representarem-se. No desejo da Mestra “serão virtudes sem silêncio, sem aborrecimento, sem sacrifício, sem sofrimento, sem melancolia, sem imperfeições, sem desordem”, no entanto é um desejo que não será satisfeito. Porque é de uma Tragédia que trata …A Primeira Virtude, com heroína e vítima. A Morte da Justiça e o Sacrifício da Mestra, do Passado em prol de quê? Para que haja Futuro? Para que ressurja uma nova Esperança, último valor radical, impossível de ser extinguido enquanto houver Humanidade?

E qual o orgulho excessivo, a húbris da heroína para que haja sentido para o castigo e o Destino se concretize? Há uma Ambição desmedida da Mestra, na Missão de mudar o Mundo, pela Educação, de o idealizar pelos Valores Clássicos e o tornar Mais Belo, Mais Verdadeiro, Melhor. Esta Mestra tem conhecimento para partilhar, autoridade artística e Pedagógica, e não se assume ignorante, mas confiante de uma

metodologia, de uma pedagogia em que acredita e experimenta, que lhe foi transmitida e desenvolveu por instinto e prática, e tenta perpetuar por amor e crença. Mas estará surda à realidade, à contemporaneidade? Ou estará certa? A veleidade, a ambição de mudar o outro através do processo que é a experiência no ensino e na aprendizagem, parece que escutou: “deve-se focar no processo e não em metas estreitamente definidas, e o processo deve se referir ao conhecimento adquirido sobre estar preparado para se tropeçar no escuro, duvidar e não saber, bem como continuar a ouvir a teoria e olhar para a prática para ajudar na reflexão.” (cf. Allen)

O seu esforço e o seu sacrifício não nos darão respostas, apenas a vitimizarão no processo triturador da realidade, da ignorância, da violência – Ignorância, mãe de todos os ismos aflorados nesta … Primeira Virtude. Algures pergunta-se: “Há algo na tua vida e no teu trabalho que reconheças como significativo para ‘passar’ aos outros?” A pergunta que se faria à Mestra como justificativo da sua continuidade, talvez como alento para lhe dar resposta às suas dúvidas e ao seu cansaço e ainda manter a Paixão pela Educação, dar sentido e confiança, criar o Respeito.

Mas a Mestra não é a protagonista, não é a verdadeira heroína, é uma vítima sacrificial, para que se possa experimentar e viver o trauma, para o resolver e avançar, um animal morto junto à berma da estrada, que será esquecido.

E neste crime são todas culpadas. Todas têm o seu trauma, há fragilidades, feridas, fissuras que têm de ser tratadas para que se tornem antifrágeis, e possam resolver, criar a sua resolução,

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contar a sua estória para a conhecer e a sublimar. Para não haver recalcamento, mas sim resolução, consciência e transcendência.

Durante este processo lembrei muitas vezes Peter Brook (1925-2022) (não o Mestre da Mestra, esse outro reconhecível e identificável), mas o Encenador Mestre que insistia que não era suficiente apresentar à audiência contradições para as pôr a pensar, e, tal como nos oferece Batarda, da necessidade vital de nos contar uma história com clareza e desapego. E a encenação de ….A Primeira Virtude propõe contar uma história, a morte da Justiça. E nós somos cúmplices desse crime, observando-o de fora, testemunhando-o de longe, através de uma janela do outro lado da rua do acidente, perdão, do crime.

Para nos dar mais pontos de acesso a esta tragédia é-nos descrita uma autópsia, que serve como dispositivo para descobrir a Verdade, mas para isso é necessário atravessar, trespassar o corpo, e tal como os antigos egípcios, tentar não o desfigurar, para que possa encontrar a transcendência. No entanto este corpo ainda está quente, e é um corpo que se quer transcender, não celestialmente, mas metafisicamente. E não que ser Lázaro ou Dafne ou Eurídice, mas como o Espírito do Frio, vítima circunstancial de uma outra história maior, e dar-nos Conhecimento.

No entanto, esse Conhecimento, esses vários pontos de acesso – chaves de leitura, apenas nos darão essa impressão de Conhecimento, pois são cada vez mais intrincadas, preocupantes e sem resposta as questões levantadas.

Algures a Justiça, Personagem Virtude, clama durante o Conflito com a Mes-

tra, a meio da Rota de Colisão: “Evoluir, aceitando a fragilidade, e sujeitando-nos a escutá-la.” E a Mestra responde “Prefiro existir no meu corpo, a transcender.” Este é o passo para o Fim! E a Justiça continua com a lista de acusações: “as ideias deviam nascer da necessidade e não da forma, para que sejam verdadeiramente transformadoras elas deveriam nascer na iminência do perigo, da ameaça à nossa identidade, como forma de combate ao temor, para acabar com o controlo, para que o controlo caia das mãos de quem o aperta: o poder. (…) O vosso ensino foi engenhosamente tecido de forma a matar a fragilidade, aliviando a teia do peso dos frágeis. A integração é falsa, é codificada, e só serve para aliviar a consciência da burguesia.

O processo educativo é um ato totalmente político e preocupa-se em estabelecer valores e parâmetros de comportamento e o seu critério de sucesso é maioritariamente orientado para as aspirações do mercado de trabalho. (cf. Lange) O ethos atual da Educação que mudou de liberdade, descoberta, experimentação para financiamento, resultados, números e dados estatísticos tão caros ao neoliberalismo em que os estudantes são consumidores e futura mão de obra num mercado de trabalho distorcido e rebentado. (cf. Bishop) Esperava-se que o modelo académico, que ensinava o respeito às regras, realizasse a formação de um indivíduo que gradualmente adquirisse a autonomia pela qual se reconhece um artista. Com base nas lições da arte moderna, o novo modelo instruiu esse indivíduo nessa descoberta de regras. A criatividade como fonte encontraria o meio como alvo e o confrontaria. Da luta contra as

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restrições, esperava-se que se adquirisse uma linguagem. (cf. Duve)

A relação com a informação é diferente do conhecimento, o talento e a criatividade e a atitude, a aprendizagem e a experiência para aprender através de uma Prática, situações pedagógicas marcadas por graus diferentes de evasão, fuga, opacidade ou mutismo. É preciso atenção, cuidado, paixão e experiência por parte dos adultos e confiança, disposição e comprometimento dos alunos. E lembrar sempre que são pessoas, seres humanos singulares que têm de desenvolver a curiosidade, a criatividade, a capacidade crítica e a comunicação, trabalhar colaborativamente e com empatia, conscientes de si com sentido de equilíbrio, harmonia e de cidadania. (cf. Robinson)

A Virtude da nossa inteligência é menos em saber do que em fazer. Saber é nada, Fazer é tudo. Sabemos que a improvisação é um dos exercícios canónicos do ensino universal. Mas é antes de tudo o exercício da maior virtude da nossa inteligência: a virtude poética. (cf. Rancière)

E talvez seja essa a verdadeira pista que nos é lançada que atravessa toda

… A Primeira Virtude, um excerto do poema The Voice of The Rain de Walt Whitman (1819-1892), do seu Leaves of Grass

I am the Poem of Earth, said the voice of the rain,

Eternal I rise impalpable out of the land and the bottomless sea, Upward to heaven, whence, vaguely form’d, altogether changed, and yet the same, I descend to lave the drouths, atomies, dust-layers of the globe,

And all that in them without me were seeds only, latent, unborn; And forever, by day and night, I give back life to my own origin, and make pure and beautify it;

(For song, issuing from its birth-place, after fulfilment, wandering, Reck’d or unreck’d, duly with love returns.)

E talvez seja essa a proposta, “A vida como uma demanda da verdade, do amor, da beleza, do bem, e da liberdade; a vida como a arte de nos tornarmos humanos através do culto da alma humana. Tudo isso se exprime em «nobreza de espírito»: a encarnação da dignidade humana. (…) Para Whitman o objetivo da democracia é que a mais profunda liberdade se torne lei, e depois seguir-se-ão o bem e a virtude. O verdadeiro poeta ensina a verdadeira liberdade.

A verdadeira educação liberal não é senão educação na essência da nobreza de espírito.” (cf. Riemen)

Em verdade, neste processo a aprendizagem faz-se a Ver Por Si Próprio. Aqui são procuradas várias verdades e é questionada continuamente a Beleza (qual Beleza?) e a Ética do que se faz e do que é feito e do que é necessário ainda fazer, resolver.

Aos ausentes…

Non c’e altra poesia

Che l’azione reale, Pier Paolo

Pasolini (1922-1975)

ver as referências bibliográficas aqui_

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C., CELESTE E A PRIMEIRA VIRTUDE

BEATRIZ BATARDA

Sala Mário Viegas

11 a 15 abril, terça a sábado, 19h30; 21 e 22 abril, sexta e sábado, 19h30

Duração: 1h55; M/12; Público-alvo: M/16; €12 (com descontos)

22 abril, sábado às 19h30

escolas

18 a 20 abril, terça a quinta, 14h30; Público-alvo: ensino secundário

Texto e Encenação: Beatriz Batarda; Apoio à Dramaturgia: Nuno M Cardoso; Interpretação: Beatriz Batarda, Binete Undonque, Guilherme Félix, Hugo Narciso, Íris Runa, Joana Pialgata, Pedro Russo, Rita Cabaço; Desenho de Luz: Nuno Meira; Cenografia: Fernando Ribeiro; Pintura de mural: Constança Villaverde Rosado; Figurinos: José António Tenente; Sonoplastia: Sérgio Milhano (PontoZurca); Vídeo e Assistência à Criação: Rita Quelhas; Apoio ao Movimento: Íris Runa; Assistência de Encenação: Mariana Lobo Vaz; Direção de Produção: Rita Faustino; Produção Executiva: Mariana Dixe; Participação especial em Vídeo: André Marques, Bruna Lima, Catarina Campos Costa, Constança Villaverde Rosado, Djucu Dabó, Laura Mendonça, Leandro Paulin, Leonor Alecrim, Maria Ribeiro Torres, Maria Romana, Mariana Lobo Vaz, Guilherme Pelote, Gonçalo Ribeiro, João Pires, João Raposo Nunes, Joana Bernardo, Susana Luz; Apoio: Officina Mundi, Câmara Municipal de Avis, O Espaço do Tempo, Cineteatro Louletano, Câmara Municipal de Lisboa / Polo Cultural Gaivotas | Boavista e Restaurante O Fatica

Coprodução: Causas Comuns, Centro Cultural Vila Flor, Cineteatro Louletano, Offkey Produções Artísticas, Teatro Viriato e São Luiz Teatro Municipal

Integrado na Bienal Cultura e Educação, 2023 RETROVISOR: Uma História do Futuro, Plano Nacional das Artes

Causas Comuns é uma estrutura financiada pelo Governo de Portugal - Ministério da Cultura / Direção-Geral das Artes e é membro da Performart - Associação para as Artes Performativas em Portugal

instalação

CORPOS CELESTES

BEATRIZ BATARDA

Sala Bernardo Sassetti 11 a 15, 21 e 22 abril, terça a sábado, 17h30 às 22h30

Entrada livre sujeita à lotação da sala

Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Mediação de Públicos Téo Pitella Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Catarina Ferreira, João Romãozinho, Marta Azenha Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Cláudio Marto, Ricardo Campos, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Miguel Rocha, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Rui Lopes Operação Vídeo Filipe Silva Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Camareira Rita Talina Bilheteira Diana Bento, João Reis, Pedro Xavier

11 a 22 abril 2023 teatro / estreia
teatrosaoluiz.pt

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