ESTRADA DE TERRA 2022

Page 1

teatrosaoluiz.pt ESTRADADETERRA A TURMA TEXTO E ENCENAÇÃO TIAGO CORREIA 21 set - 2 out 2022 LoboFrancisco©

VOZES NO CAMINHO

por Jorge Louraço Figueira

De onde vem a singularidade dessa voz? Ironicamente, do contexto de criação artística do Porto, em particular da corrente de escritas céni cas gerada pelo Dramat, o centro de dramaturgia do Teatro Nacional de São João, desde o final da década de 1990, que atingiu indiretamente o jovem Tiago Correia, ainda estudante, então na ESMAE, e que o levou a fundar, com outros camaradas, o grupo de teatro A Turma. Não é demais sublinhar que, entre as aulas com Antonio Mercado, que passou como um relâmpago com duração de um semestre pela ESMAE, já depois da Oficina de Escrita Teatral que ministrou no Dramat; e as leituras das peças de teatro do ator, dramaturgo e argumentista Sam Shepard; Tia go Correia filiou-se na tradição da literatura dramática que vê o autor como um artesão que domina as técnicas de palco e como um pensador que reflete o seu tempo e as estéticas teatrais, vertendo em textos que podem ou não vir a ser encenados a sua visão de mundo. Convenhamos que não era o mais comum nem o mais seguido dos trajetos possíveis para um jovem artista. E no entanto, foi por essa estrada, de terra ba tida, gravilha, asfalto, macadame, paralelos, e o que seja, que seguiu o aprendiz de dramaturgia.

Tenho uma relação muito íntima com a Estrada de Terra projetada e construída pelo Tiago Correia porque, entre muitas outras coisas, li al gumas vezes em voz alta o texto de algumas das personagens da peça, em especial desse Luís que vocifera contra tudo e contra todos e sobre tudo contra si mesmo. Como o texto foi escrito ao longo do primeiro ano da primeira edição da Pós-Graduação em Dramaturgia e Argumento da ESMAE (Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo), no Porto, foram muitas as vozes que deram corpo à figura, em sucessivas leituras das diferentes versões que o autor foi fazendo. Cada um se apropriou da personagem à sua maneira, e pudemos imaginar diferentes entoa ções, ritmos, ações. Como o texto estreou depois na RTP 2 com Pedro Almendra no papel de Luís, e realização de Nuno M Cardoso; e foi ainda levado à cena pelo próprio Tiago, com este mesmo Pedro Lamares que será visto e ouvido no palco do São Luiz a encarnar o protagonista, não posso dizer que não vi já um número suficiente de Estradas de Terra para reconhecer o caminho para casa. O que sobrevem dessas inúmeras vozes é, claro, a voz singular do dramaturgo, que compôs e orquestrou este texto como uma peça de câmara.

3

É do contexto artístico, da origem na província e viagem para a urbe, e da perceção de um certo ar de fim de festa que se instalou na cidade que saem as peças de Tiago Correia. A forma que assumem é de uma discur sividade extensa, com as personagens falando mais do que certamente lhes seria permitido no dia-a-dia, em situações concretas (o que revela como o aparente realismo é uma escolha para dar lugar à elocução). Es

4

A origem e originalidade do Tiago Correia como autor não vem apenas do meio artístico. É a urgência de ver em palco e pôr em cena a expe riência biográfica e quotidiana dos seus amigos e companheiros de estrada que determina o conteúdo das peças que escreveu e montou: Pela Água, Turismo, Alma e Estrada de Terra põem em movimento, com a forma aparente do dia-a-dia, os destinos de quem fará 35 anos, ou coisa que o valha, em 2022. Não se tratando de um jovem agricultor, como poderia ter sido, dadas as origens numa aldeia do Ribatejo onde, por ve zes, ainda vai fazer as vindimas, não de vinhas plantadas em terrenos a perder de vista, mas de meia-dúzia de uvas; trata-se ainda de um jovem dramaturgo, que se deslocou para o Porto, para estudar interpretação, e cuja deslocação origina uma sensibilidade especial para os casos dos artistas citadinos que ficam entre o rural e o urbano, entre a curiosidade e descobertas da adolescência tardia, irresponsável, e da idade adulta prematura, precária. E o que escreverá ele ainda, pós-pandemia, pós -guerra, se ambas acabarem ou, pelo menos, tiverem intervalo? Aposto que enveredará por projetos de cada vez maior fôlego, percorrendo o caminho necessário para dar conta do nosso tempo, ao ponto de completar um painel social do país e da Europa nos alvores do século XXI.

Talvez a grande fonte de inspiração para esta dramaturgia seja não o novo século, não a nova Europa, mas o fim dos tempos, e o tempo do fim do mundo, como se lhe refere o filósofo Paulo Arantes. Pois não estamos todos dentro de um fluxo temporal determinado a acabar, desde que as explosões das bombas nucleares demonstraram que era possível a hu manidade suicidar-se em massa, ainda que alguns involuntariamente? É ou não similar a angústia das figuras imaginadas por Tiago Correia, nas suas vidinhas, traições, facadinhas nas costas, deceções, truques de má gica e atos prestidigitação, e a angústia de quem enfrenta a crise climáti ca, a crise económica, a crise epidémica, e a guerra, olhando com atenção o avançar dos ponteiros do relógio do dia do fim do mundo? É claro que as figuras são pessoas doentes, ou viciadas, ou gananciosas, ou doces demais, boas demais, tristes demais, que conhecemos de outras andanças, e não propriamente de cenários pós-apocalípticos ou de fábulas de ficção científica, mas a experiência pessoal dessas personagens é um efeito da estrutura maior que a perceção do autor verte em formas familiares.

sas falas longas assentam num enredo dramático, o que talvez surpreen da os mais distraídos. Apesar de estafada, a metáfora que melhor explica isto é a do icebergue: os discursos das personagens são só a ponta de uma imensidão que a sustenta. Ou talvez se possa usar a metáfora do vulcão: jorram como lava incandescente as palavras das personagens, sem nada que as detenha no caminho, e com a destruição de quem tenta.

As perguntas que o texto de Estrada de Terra vai plantando sistematicamente na mente dos espectadores, e nos corpos do público que assiste aos corpos em palco, são transmitidas pelos rins, pulmões e coração dos atores, em particular de Pedro Lamares, o Luís desta versão, que assume as despesas da casa, tal é a exigência do papel a um só ator. André Júlio Teixeira (Paulo) e Inês Curado (Leonor) rodeiam o ator com fulgurância e tensão precisas. A viagem de Lamares aos calabouços da memória da personagem, convocada por um telefonema que parece vir do além, se imaginarmos que é feito por uma figura que é, na prática, um fantasma de natais passados, é uma descida aos infernos que põe à prova as emoções e sentimentos de intérprete e espectadores. O trajeto infernal é feito com

As massas de gelo e fogo que alimentam os pensamentos, palavras, atos e omissões das personagens são compostas de antecedentes, pecados sem remissão, autorias morais de crimes e, em especial, aquele tipo de amor a que Gil Vicente chamou louco: «eu por mim e tu por outro». Esse é talvez o ponto em que o autor, famoso na invicta pelo sentimentalismo com que olha os becos e vielas, e frequenta os bares e botequins da cidade, sempre janota, sentimentalismo esse a que alguns chamariam dandismo, à falta de melhor palavra, e que em todo o caso não se deve confundir nem com frivolidade, nem com soberba, é esse talvez o ponto, dizia, em que Tiago Correia se prova o melhor analista cénico dos dias da vida do Porto. Mais uma vez, provam-no as histórias de amor, cruzadas com factos sociais, que se podem ver nas suas peças. Estrada de Terra é um grande exemplo dessa busca (já que se trata também de um caminho artístico que só se faz caminhando). As relações pré-conjugais, pós-conjugais e contra -conjugais que são retratadas no texto, ora com pinceladas rápidas, ora com detalhe verista, revelam também as dúvidas e incertezas dos jovens artistas que constituem a geometria amorosa do enredo, face a um mer cado de trabalho que tudo engole, tritura e vomita. A peça mostra como a insatisfação num dos planos tem efeitos no outro, e vice-versa, criando um equilíbrio de contradições que mantém a narrativa em suspenso. As perguntas sucedem-se na mente dos leitores ou dos espectadores: — O que terá exatamente acontecido no passado? — O que farão eles aqui e agora, no presente? — O futuro repetirá necessariamente o passado ou poderá abrir perspectivas de uma outra coisa, eventualmente melhor?

5

Setembro de 2022

extremo rigor no manuseio das técnicas de interpretação. Dicção, rit mo, respiração, etc., tudo se conjuga para propiciar uma deslocação dos afetos, uma comoção que atinge tudo e todos. Ademais, Lamares contracena a maior parte do tempo consigo mesmo, visto que do lado de lá do auscultador do telefone só está ele mesmo. A peça é um exercício sobre a duplicidade do ser, feito pelo ator. Mesmo que na ficção as per sonagens sejam duas, na prática é o mesmo ator que faz de protagonista e antagonista.

É na voz de Lamares que reside um dos segredos do encanto desta ence nação. Materializando a voz autoral a que me referi no início, Lamares é como um anjo de Peter Handke, que tivesse descido do éter das figu ras imaginadas por dramaturgos, para dar início a um ritual cénico de resolução fictícia das contradições que o autor vê na vida. Encenada já depois de Tiago Correia ter iniciado o estudo do sistema de Stanislavs ki, tal como é transmitido pelos discípulos do mestre, vindos da Rússia mas não só, a abordagem ao próprio texto parte em busca da comunhão das verdades na vida e em cena que é característica do chamado teatro moderno, iniciado por Ibsen, Tchekhov e Strindberg.

6

A voz do autor dramático é um coro de ecos, reproduzindo outras vozes, sem perder a variedade e sem perder a singularidade. É o caso de Tiago Correia. Desde as vozes dos companheiros de aventuras teatrais, pas sando pelas vozes de amigos e familiares, por mais distantes que soem, e cruzando vozes de desconhecidos, tantas vezes as mais tonitruantes, até às vozes dos mestres da arte dramática, a formação de um autor faz -se na coleção dessas fontes de som e verbo. Paradoxalmente, a voz que mais dificilmente se integra é essa espécie de voz interior, uma anti-coi sa, que revela por contraste quem somos e quem queremos ser, e que é a voz da esfinge que se alberga, oculta, nas encruzilhadas no próprio ser. Talvez seja essa a razão de a solução formal da peça de Tiago Correia para a questão dessa dualidade ser um telefonema, desafio dos mais difíceis para qualquer intérprete. Estrada da Terra é, enfim, uma dessas encruzilhadas posta em cena, revelando as múltiplas figuras de Tiago Correia: Luís e Marco, Leonor, Paulo e a Criança.

SardinhaPedro©

Sala Mário Viegas quarta a sábado, 19h30; domingo, 16h Duração: 1h10; M/16 €12 (com descontos)

A Turma é uma estrutura financiada pela República Portuguesa / Ministério da Cultura – Direção Geral das Artes

teatrosaoluiz.pt

LoboFrancisco©

Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Mediação de Públicos Téo Pitella Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Catarina Ferreira, Marta Azenha, Tiago Antunes Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Cláudio Marto, Ricardo Campos, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Miguel Rocha, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Rui Lopes Operação Vídeo João Van Zelst Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Camareira Rita Talina Bilheteira Diana Bento, João Reis, Pedro Xavier

O Teatro São Luiz/EGEAC é parceiro no Projeto Europeu Inclusive Theater(s) Rede de desenvolvimento de novos públicos através de ações inclusivas para pessoas com necessidades específicas

A TURMA

21 sete mbro a 2 outubro 2022 teatro

TEXTO E ENCENAÇÃO TIAGO CORREIA

Coprodução: A Turma e São Luiz Teatro Municipal

2 outubro, domingo, 16h

Texto original e Encenação: Tiago Correia; Interpretação: André Júlio Teixeira, Inês Curado, Pedro Lamares e Sofia Vilariço; Cenografia: Ana Gormicho; Desenho de figurinos: Sara Miro; Desenho e Operação de luz: Pedro Nabais; Desenho de som: Vasco Rodrigues; Operação de som: Miguel Moreno; Música original: André Júlio Teixeira; Desenho de vídeo e Realização: Francisco Lobo; Parceiro editorial: Edições Húmus; Produção executiva: Beatriz Lobo e Diana Estrela (2022), Mafalda Bastos (2021); Apoio: Garantir Cultura

ESTRADA DE TERRA

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.