MEMÓRIAS DE UMA FALSIFICADORA A PARTIR DO LIVRO DE
MARGARIDA TENGARRINHA
ENCENAÇÃO JOAQUIM HORTA
23-30 ABR 2022 TEATRO © Estelle Valente
M/12
teatrosaoluiz.pt
À CONVERSA COM JOAQUIM HORTA
Uma entrevista em dois tempos, com um ano exato de intervalo, a propósito de Memórias de uma Falsificadora, monólogo interpretado por Catarina Requeijo Como se cruzou com o livro Memórias de Uma Falsificadora – A Luta na Clandestinidade pela Liberdade em Portugal, de Margarida Tengarrinha? Cruzei-me com o livro por acaso, numa livraria. Aquele título atraiu a minha atenção e levei-o para casa. Estamos habituados a julgar o ato de falsificar como um ato moralmente condenável e usar esse termo no título de um livro pareceu-me claramente uma provocação, o que vim a comprovar, mais tarde, com a Margarida Tengarrinha, que me contou ter sido a pedido do seu editor que acrescentou “a Luta na Clandestinidade pela Liberdade em Portugal”.
Margarida Tengarrinha colaborou, de alguma forma, nesta adaptação do texto ao teatro? Não conhecia a Margarida Tengarrinha. Quando acabei de ler o livro, como tinha já a ideia de o adaptar, entrei em contacto com a editora e consegui chegar à Margarida. Combinei ir ter com ela a Portimão, onde vive, e almoçar com ela. Assim aconteceu, almoçámos e passámos a tarde a conversar. Falei-lhe da minha vontade de fazer um espetáculo a partir do seu livro e ela contou-me várias das suas histórias de vida. Ao fim do dia, enquanto fazia a viagem de regresso a Lisboa, era claro para mim que tinha de fazer este espetáculo.
Viu logo ali uma peça de teatro? Sim, durante a leitura do livro foi crescendo a minha vontade de transportar aquelas histórias para um palco. Senti que estas palavras tinham de ser ditas em voz alta. Precisavam de uma voz, de um corpo e de uma pla2
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teia. Ler um livro é um ato solitário... sim, podemos partilhar livros, sim, os livros tocam-nos, sim, os livros fazem-nos pensar... mas o confronto entre a plateia e o ator potencia tudo isso de outra forma.
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Este espetáculo faz parte de um ciclo iniciado em 2016, com Amorzinho, uma adaptação da correspondência entre um casal anónimo, de 1934 a 1943. O que o atrai nestas histórias do quotidiano? O que me atrai é o lado que fica na sombra, aquilo que é pouco falado, o quotidiano desprezado. A Margarida tem uma passagem no livro em que explica isto na perfeição: “Quando leio relatos de vários camaradas, que já foram publicados, constato que falam de factos políticos importantes, momentos altos e heroicos da luta, mas nunca abordam estas questões do quotidiano que nós mulheres, vivemos pacientemente.” No caso de Amorzinho, fiquei surpreendido com o facto de, na correspondência trocada por aquele casal, nunca haver uma referência à ditadura. O meu imaginário estava povoado de histórias de luta anti-fascista, mas é óbvio que para o regime se manter durante tanto tempo, era necessário que as pessoas seguissem com o seu dia-a-dia sem o questionar. A História faz-se de datas e nomes, mas também de muitos anónimos e de dias iguais numa rotina quotidiana. Gostava de um dia juntar estes dois espetáculos num só, são duas imagens de Portugal completamente distintas.
fez questão de me dizer que não queria que a sua história fosse um relato de sofrimento. Por momento nenhum duvidamos que a atriz Catarina Requeijo é Margarida Tengarrinha, mesmo que se apresente no início do espetáculo como Catarina. Como trabalharam esta personagem? Esta pergunta será mais para a Catarina Requeijo... A minha preocupação foi procurar um registo íntimo e próximo do espectador. No início da peça, fala-se também do nosso quotidiano durante estado de emergência em 2020 e há até paralelismos. De que forma é que a pandemia alterou este espetáculo? Eheheh! Acho que digo tudo no texto inicial do espetáculo... No início dos ensaios, já tinha uma primeira versão do texto, mas com a pandemia fomos forçados a interromper os ensaios logo no segundo dia. Houve momentos em que pensei que o espetáculo não ia acontecer. Durante o primeiro confinamento, liguei à Margarida Tengarrinha no seu aniversário e perguntei-lhe como estava. Ela respondeu, com o seu sentido de humor característico, que tinha uma grande experiência em estar confinada. Comecei a encontrar vários pontos em comum entre a situação que vivíamos e aquilo que a Margarida viveu. E fui trocando emails com a Margarida para saber a sua opinião, para saber, por exemplo, como comemorou o 25 de Abril, já tendo ideia de tentar integrar isso na peça.
Há muito sofrimento neste relato de Margarida Tengarrinha, mas há sobretudo muita força. O que mais o impressionou e o que quis transmitir em cena? Quando falei com a Margarida, fiquei impressionado com a sua força de viver e com a sua alegria. Ela própria 4
passado recente? O que nos traz esta peça para os dias de hoje? É óbvio que há a intenção de lembrar como o regime era autoritário, repressivo e violento e como foi importante a luta na clandestinidade para lhe colocar um fim. Lembrar é importante para não voltarmos atrás. Infelizmente, encontram-se muitos reflexos do que é dito no espetáculo nos dias de hoje. Escolher um texto e encená-lo é, sem dúvida, assumir uma posição e querer desempenhar um papel ativo no mundo em que vivemos.
Um dos momentos emotivos do espetáculo é quando se ouve a música de Zeca Afonso, dedicada a José Dias Coelho, A morte saiu à rua num dia assim. É importante dar nomes, rostos e histórias à História? Claro que sim. Sem isso, a História torna-se um passado morto, enterrado em livros, com o qual temos uma relação distante. São os nomes, os rostos e as histórias que nos comovem, com os quais sentimos empatia. Como tem sido trabalhar sobre este período da ditadura, uma época que não viveu? É uma época que não vivi, mas que é próxima o suficiente para a viver através das histórias de familiares e amigos. Quando criei o espetáculo Mais Um Dia, em 2015, sobre a minha passagem por Angola e a experiência do meu pai ali durante a guerra do ultramar, foi a primeira vez que me sentei a conversar com ele sobre o que tinha vivido. É um período próximo, mas corremos o risco que fique perdido na memória. Acredito que o teatro tem o poder de confrontar as pessoas com histórias passadas ou presentes, vividas ou não, e de as colocar a falar e a pensar sobre elas. O teatro tem o poder do encontro vivo. Trabalhar este período tem sido uma descoberta. Não descobri um novo Portugal, mas percebi que não o conhecia assim tão bem.
Tenho estado a fazer perguntas, mas este é um espetáculo que quase não precisa de mais palavras nem explicações... Fico contente por dizer isso, que não apetece explicar muito, porque é isso mesmo que sinto e aquilo que digo não acrescenta muito, pelo contrário... abril 2021 ... Passou um ano desde a nossa conversa. Em abril de 2021, o espetáculo não chegou a estar em sala no São Luiz, por causa do confinamento e do encerramento dos teatros, mas estreou em versão vídeo, que esteve disponível online. Como foi esse trabalho de adaptação para um formato diferente? No ano passado, muitos espetáculos tiveram de passar para o online nessa altura. Foi o recurso encontrado para fazer face à impossibilidade de haver espetáculos ao vivo. Penso, no entan-
Numa altura em que se volta a enaltecer o regime da ditadura que existiu em Portugal, de que forma é importante olhar para este 5
próximo está cada vez mais distante. Por isso, faz sentido ser lembrado para que as pessoas não se esqueçam e para que para aquelas que nunca o viveram tomem conhecimento. Para isso é necessário ouvir as pessoas que o viveram e que passaram por essa experiência. Penso que faz muito mais sentido ouvir as palavras da Margarida do que estar a acrescentar coisas ao texto.
to, que o teatro precisa do encontro e do confronto com o público e que os espetáculos filmados perdem muito. Quando se encontrou esta solução, não houve muito tempo nem grandes orçamentos para o fazer e, por isso, foi sem dúvida uma solução de recurso. Quando me foi proposto fazer uma versão online de Memórias de uma Falsificadora, pareceu-me que não fazia sentido filmar o espetáculo tal como ele era. Por isso, comecei a imaginar uma nova versão pensada de raiz para ser filmada e colocando a atriz noutros locais que não o palco, que pudessem, de alguma forma, ajudar ou trazer novas leituras para o texto. Foi um desafio interessante.
Começaram recentemente as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, que se completam em 2024. Sente que, meio século depois, ainda não é totalmente pacífico falar do que se passou em Portugal antes da Revolução? Penso que faz cada vez mais sentido falar sobre o que se passou antes do 25 de Abril e não sinto que seja difícil falar sobre isso. Temos a tendência de querer seguir em frente e apagar aquilo que que não nos agrada e, talvez nesse sentido, as pessoas não gostem de recordar esses tempos. É claro que estamos a falar de um passado recente e um passado do nosso país que irá sempre criar divisões, mas não sinto que seja difícil falar disso. O que sinto é que isso está a ficar cada vez mais longínquo. Foi um país que existiu, mas com o qual a maior parte das pessoas já não tem ou já não quer ter ligação.
Passado um ano e já depois do espetáculo ter sido apresentado no Museu do Aljube, temos finalmente a estreia no São Luiz. Este ano trouxe novos olhares à peça, tal como o primeiro confinamento trouxe às versões anteriores? Não fiz alterações ao texto. Embora o espetáculo tenha estreado no Museu do Aljube, foram feitas apenas cinco apresentações e acredito que ainda há muita gente que não o viu. Claro que, neste ano, houve muitas mudanças com as quais seria possível fazer paralelismos, mas também não queria que as palavras da Margarida, de repente, se perdessem no meio dessa minha tentativa de fazer correspondências com a atualidade. Este ano celebramos, mais uma vez, o 25 de Abril, mas, pela primeira vez, estamos há mais tempo em democracia do que em ditadura, o que significa também que este passado
Voltamos a esta peça num momento da História em que assistimos a uma guerra. O que pode o teatro? O que pode uma peça como esta? Sim, atualmente vivemos uma guerra e bem próxima de nós, o que a torna diferente das outras. Não sei se o tea6
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uma guerra destas. Esperemos que as palavras consigam ter a sua força e que se chegue a um acordo de paz e que esta guerra termine o mais rápido possível.
tro pode grande coisa… as palavras têm o seu poder, mas se ninguém as ouvir não vão, de certeza, fazer a diferença. No início do espetáculo, a Margarida fala das suas lutas estudantis e diz que escreviam e pintavam a palavra paz pelas paredes da cidade e que a palavra paz era uma palavra subversiva. Hoje, a palavra paz parece uma palavra distante e isto mudou no espaço de um mês. Há um mês, ninguém imaginava
abril 2022 Entrevista realizada por Gabriela Lourenço / Teatro São Luiz 7
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23 a 30 abril 2022 teatro
MEMÓRIAS DE UMA FALSIFICADORA MARGARIDA TENGARRINHA
A PARTIR DO LIVRO DE ADAPTAÇÃO E ENCENAÇÃO JOAQUIM HORTA PROGRAMA MAIS UM DIA Sala Mário Viegas segunda a sábado, 19h30; domingo, 16h M/12; €12 (com descontos)
A partir do livro de Margarida Tengarrinha; Direção e Adaptação: Joaquim Horta; Interpretação: Catarina Requeijo; Desenho de luz e vídeo: Miguel Manso Coprodução: Horta – produtos culturais, Truta, Museu do Aljube e São Luiz Teatro Municipal Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Mediação de Públicos Téo Pitella Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Andreia Luís, Catarina Ferreira, Marta Azenha, Tiago Antunes Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Cláudio Marto, Ricardo Campos, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Miguel Rocha, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Ricardo Fernandes, Rui Lopes Operação Vídeo João Van Zelst Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Camareira Rita Talina Bilheteira Diana Bento, João Reis, Pedro Xavier
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