OS FILHOS DO MAL 2021

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OS FILHOS

DO MAL

© Estelle Valente

HOTEL EUROPA

teatrosaoluiz.pt

ONLINE 24 MARÇO A 4 ABRIL 2021 TEATRO/ESTREIA

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Como foi o processo de escolha dos seis intérpretes, não atores, de Os Filhos do Mal? Este espetáculo é o segundo capítulo de um ciclo sobre a pós-memória. O primeiro foi Os Filhos do Colonialismo, apresentado na Culturgest, e aqui acabámos por seguir exatamente o mesmo modelo para a escolha dos intérpretes. Fizemos uma série de workshops gratuitos sobre teatro documental, para partilharmos o nosso trabalho, mas já focados nestas temáticas e já a pensar encontrar aí estas pessoas de ambos os lados da barricada: filhos de opositores ao regime e filhos de pessoas que apoiavam o regime. Estes workshops foram feitos em três meses diferentes e, no final de cada um, fizemos uma seleção de pessoas que depois juntámos num outro workshop-audição, onde acabámos por escolher estes seis intérpretes.

À CONVERSA COM ANDRÉ AMÁLIO

Mais do que a presença em palco, foram as histórias destas pessoas que pesaram nessa escolha? Sim, o mais importante foram as histórias. Não nos preocupámos tanto com o aspeto dramático ou com as capacidades teatrais de cada um. O que pensámos, depois de vermos a panóplia de pessoas, foi que histórias nos interessavam ter em cena. E foi fascinante perceber que as histórias de família destas pessoas faziam um retrato da nossa ditadura desde muito cedo. Para mim, era importante mostrar como esta ditadura foi longuíssima e aqui havia pessoas que já falavam dela desde os anos 30. Poder contar estas histórias desde essa altura até 1974 foi muito interessante. 2

Ao longo espetáculo, existem momentos de perguntas, a que todos respondem. Essas perguntas fizeram parte do processo de trabalho em workshops ou surgiram já nos ensaios? Surgiram no primeiro ou no segundo dia de ensaios. Comecei a lançar as perguntas e a questioná-los e foi interessante perceber como é que essas perguntas menos diretas acabavam por dar mais informação e por caracterizar essa pessoa e a sua família. Sem ter de perguntar se eram ou não apoiantes do regime, chegávamos lá com as respostas que davam a perguntas como “quantas casas tinham?” ou “quantos criados havia em casa?”. Bastava isso para começar a fazer um retrato daquela pessoa e a perceber qual foi a posição da sua família. A partir daí, achámos que as perguntas faziam sentido no espetáculo e deviam vir mais do que uma vez, numa forma de os questionar também enquanto pessoas. Até porque, para nós, é muito importante que se perceba que são pessoas reais que estão a falar das suas famílias e não atores a fazer personagens.

dizia “entretanto, falei com o meu pai e afinal não foi bem assim...” É outra instabilidade, o texto parece que nunca está definido... o que também me agrada. O posicionamento destes intérpretes, por estarem a trabalhar com um texto sobre a sua família, é sempre mais sensível. E, às vezes, há essa discussão comigo do “não sei se posso dizer isto”, “temos de ter cuidado com isto ou aquilo”... A mim pessoalmente agrada-me essa discussão com os intérpretes, os donos das histórias. A certa altura, no espetáculo, ouve-se a palavra “repugnância” aplicada ao que fez um familiar, não deve ser fácil dizê-lo em alta voz... é preciso pôr limites à exposição destas pessoas em palco? Isso é discutido e esses limites são encontrados em cada aspeto e em cada espetáculo. Ainda ontem, no ensaio, eles disseram: “Estávamos aqui a pensar que, depois deste espetáculo, os nossos familiares vão deixar de nos falar!” [risos] Esses medos vêm sempre à tona, mas acho que as famílias deles vão ter é muito orgulho neles. Há coisas que são colocadas para escrutínio público, digamos assim, para terceiros verem e interpretarem e as pessoas sobre quem são essas histórias podem ficar suscetíveis, mas acho que tudo é feito de forma a que ninguém saia beliscado. Há um certo cuidado meu, mas também deles, em defender as pessoas de quem falam.

Como é trabalhar com pessoas verdadeiras e com as suas histórias e sentimentos? É muito diferente de trabalhar com atores? Para a Hotel Europa, é mais interessante trabalhar com pessoas que trazem as suas próprias histórias. Obviamente que isso implica outras coisas. Por exemplo, muitas vezes as cenas iam-se alterando porque um deles

Os familiares que tiveram uma posição contrária à deles, 3


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sobretudo, podem sentir-se mais postos em causa. Obviamente que há aqui uma luta de gerações, porque existe um olhar crítico que estes intérpretes são capazes de lançar àquele tempo, que é uma capacidade que provavelmente os seus tios, avós ou bisavós não têm. Isso é um passo que estão a dar, mas pode ser um passo para o diálogo, uma conversa, e até para esses familiares pensarem sobre isso. São tudo convites a reflexões que cada um tem de fazer sobre a sua própria história e o seu próprio posicionamento. As pessoas que estão neste espetáculo foram capazes de responder a esse convite. Quando fizemos Os Filhos do Colonialismo, lembro-me que houve uma mãe e uma irmã que ficaram um pouco melindradas com algumas histórias familiares serem partilhadas em público, mas no espetáculo aquela pessoa em palco não tinha que falar por elas, tinha de falar de si, do que tinha vivido, do que tinha sentido, do que pensava sobre aquele passado. Penso que é isso que têm todos de fazer, é sentirem que estão a usar a sua voz, aquilo que pensam sobre o que falam – não é aquilo que os tios, os avós ou os pais pensam. E têm essa liberdade, esse poder de ser atores da sua própria história, do seu próprio presente. Isso ajuda a separar as águas. E aquela irmã, que tinha ficado com receio no início, adorou o espetáculo.

Sim, acho muito interessante pôr aqui as personagens secundárias, as pessoas que não ficaram nos livros, mas fizeram tudo aquilo acontecer. O avô da Ana Rita Ferreira, por exemplo, não foi o líder da LUAR, não foi o Palma Inácio, mas fez com que aquelas ações fossem possíveis. O tio da Marta Salazar Fernandes não é o Pavel, mas é a pessoa que faz com que ele saia de uma prisão de alta segurança como era, na altura, a Prisão do Aljube e que vá para a liberdade. Ou o tio do João Esteves, que não é o Salgueiro Maia nem o Otelo Saraiva de Carvalho, mas que lá está para que tudo aconteça. Ou o pai do Paulo Quedas, que não é o Zeca Afonso, mas é o Samuel. Em cena, há vitrines onde se expõem objetos e gavetas de arquivo que se abrem. É mostrar o que normalmente está escondido? É trabalhar essa ideia do arquivo. É como se a ação fosse o ir buscar coisas ao aquivo e depois a seleção que se faz do que se põe num outro arquivo-instalação. Como num álbum, em que não se mostram todas as fotografias e se selecionam duas ou três que são as mais importantes. Esse movimento acaba por acontecer durante todo o espetáculo. Eles estão sempre a ir buscar coisas, que mostram, mas nem todas ficam ali naquele mostruário. Isso também tem muito a ver com a nossa memória: vivemos muitas coisas, mas retemos só algumas, a que atribuímos determinada importância ou significado. Andámos muito à procura desse significado do que é a memória. Mesmo no movimento.

Aqui mostram-se personagens que foram secundárias na História, algumas mais desconhecidas do que outras, mas todas com uma importância grande. 6

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A peça começa com uma coreografia que parte de uma memória de infância de uma das intérpretes e se repete no espetáculo. Sim, a memória da Rita Tomé, que se lembra de ver o avô a fazer aquela coisa quase mágica de pegar numa lima incandescente e a colocar em água. Isso partiu muito da maneira como ela nos contava aquilo e dos movimentos que fazia. A Tereza Havlíčková [cocriadora do espetáculo] achou muito interessante e, a partir daí, construiu aquela coreografia sobre a memória. Também me interes-

sou muito, porque é o patrão que está a fazer aquele movimento de operário e há ali uma combinação de elementos que se pode ler de várias formas. Fazer este espetáculo aqui no São Luiz, paredes meias com o edifício onde funcionou a Pide, teve eco no vosso trabalho? Teve um significado, sim... este sítio e esta localização na cidade é muito significativa para aquilo de que estamos a falar. Temos histórias de dor, sofrimento, opressão, muitos dos familiares passaram pelas instalações da Pide, mas também temos a história 8

em dizer isso e em dizer que esse mal tem ramificações nas pessoas que viveram esse período, que lutaram contra esse regime e que também foram impregnadas desse “mal”. As mágoas não desaparecem. Foi muito interessante mostrar como este “mal” teve impacto nestas vidas todas, como as impregnou. E como continua, porque, desde logo, não foi reconhecido como “mal” e só a partir desse ponto tudo pode começar a ser falado e discutido. E isso é difícil. Este é um período bastante traumático na nossa História e tem de ser falado e discutido. E conhecido, através de espetáculos como este e de conversas em família. Aquilo que estas pessoas que estão em cena tiveram a capacidade de fazer junto dos seus familiares, quando conversaram e procuraram histórias, é um exemplo daquilo que nós devíamos todos fazer: ir para casa e ouvir as histórias dos nossos familiares que ainda estão vivos – porque muitos ainda o estão, isto foi há 50 anos. É muito importante que se faça isso, para, de repente, não chegar aqui alguém de um partido de extrema direita e fazer de conta que aquele tempo era fantástico. É só a partir de um desconhecimento de uma História, que não é discutida, e de uma falta de posicionamento do nosso Estado, que alguém pode chegar com essa ousadia e trazer uma série de chavões do período fascista, como os “portugueses de bem” e outros. Só assim se percebe que haja tanta gente a achar que alguma coisa nesse tempo foi boa. Porque não foi. Obviamente que as pessoas conseguiram encontrar o amor, ter famílias e amizades, ser felizes apesar de tudo,

da libertação que passou por aqui, pelo Largo do Carmo. É uma zona muito marcada por esta História. Isso é significante para nós, mas não o é menos que o edifício da Pide agora seja um condomínio de luxo... Isso também mostra como gostamos muito de fazer de conta que nada disto aconteceu, como os Estados estão constantemente a tentar branquear a História e só querem falar de heróis e de figuras míticas. E isso é muito chocante. Tudo o que ainda se diz sobre o regime ter sido brando não faz sentido, porque Portugal não foi assim tão melhor do que outros regimes fascistas: teve campos de concentração como outros, fez assassinatos políticos como outros, teve prisões políticas... e durou 48 anos. Isto é uma marca que não conseguimos sacudir assim tão facilmente. E, para mim, muitas das nossas questões vêm deste longo período ditatorial e colonial e muitos dos problemas que atravessam a nossa sociedade vêm de questões que nunca foram discutidas seriamente e de que não se fala e às quais nem se dá nome. Quase 47 anos depois, ainda parece haver receio de falar de algumas coisas... É demasiado cedo? Penso que não existe uma verdadeira consistência…Umas vezes não se quer, outras já se quer... mas acho que o poder político, em regra geral, tem tido sempre uma posição dúbia. Nunca houve, da parte do Estado português, uma vontade de chamar as coisas pelos nomes. Aqui dizemos que aquele período foi “o mal”, mas parece que o Estado tem muitas dificuldades 9


Aqui conseguiram juntar no mesmo palco descendentes de pessoas que estiveram em lados opostos na ditadura. Há esperança no futuro? Há esperança no futuro, há esperança de que possa haver uma partilha, há esperança de que possa haver um olhar crítico para a nossa História. Penso que isso é significante. É possível as pessoas dialogarem, discutirem, apresentarem as suas vivências. E isso tem um lado de esperança, sim.

no meio daquele período tenebroso – mas não houve nada de bom ali. Não se pode normalizar a desigualdade social que existia, nem tanto atropelo social. Quem acredita que o fascismo e o colonialismo eram normais está a fazer uma normalização absurda e perigosa e isso é assustador. Nesta altura, em que os perigos do fascismo e do racismo estão a ser desvalorizados, é ainda mais importante trazer estes espetáculos para o palco, não é? Claro que sim. O nosso ímpeto é trazer isto para a discussão pública, neste momento em que há uma polarização da sociedade e uma agressividade no discurso político. E acho importante clarificar as coisas, a mim choca-me imenso quando se coloca no mesmo prato racistas e antirracistas, há coisas que não se podem colocar no mesmo prato. E aqui neste espetáculo não o fazemos. Não se pode colocar no mesmo prato pessoas que andaram a lutar pela liberdade e pessoas que andavam a lutar para que a liberdade não existisse. Há pessoas que estão a contribuir para que o mundo seja melhor e outras que querem contribuir para que o mundo continue desigual e com alguma hegemonia para um grupo ou uma etnia. É importante separar as águas. Acho que esta pós-memória, este grupo que reunimos em cena, é capaz de fazer isso, uma coisa que talvez os seus pais, avós e bisavós não fossem capazes de fazer. Para nós, é interessante ver como o espetáculo pode ser um leitmotiv para esta transmissão de memórias.

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Sentem, como diz o título do seu doutoramento, que estão a reescrever a História através do teatro documental? Nós entendemos a História como algo muito complexo e não como aquela coisa certinha que é apresentada nos livros da escola. Vejo o nosso papel como o de mostrar que a História é múltipla. Neste espetáculo, mais uma vez, fiquei surpreendido com a variedade e a multiplicidade de experiências e de formas de estar nesta História, que descobri com estas seis pessoas. Isto ainda foi maior do que esperava. Acho que a reescrita da História deve passar muito por aí: por mostrar como tem tanta complexidade e é tão múltipla. Penso que é muito mais interessante se olhada desse ponto de vista. Entrevista realizada por Gabriela Lourenço / Teatro São Luiz, em março 2021

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24 março a 4 abril 2021 teatro online estreia

OS FILHOS DO MAL HOTEL EUROPA Sala Virtual do São Luiz - bol.pt Quarta a quarta, às 19h (disponível até às 24h) Duração: 1h35 aproximadamente; m/12 €3 Em todas as sessões escolas Por marcação, pelo e-mail maisnovos@teatrosaoluiz.pt Criação: André Amálio; Co-Criação e movimento: Tereza Havlíčková; Assistente de criação: Cheila Lima; Interpretação: Ana Rita Ferreira, Ana Sartóris, João Esteves, Marta Salazar Fernandes, Paulo Quedas e Rita Tomé; Cenografia: Sara Franqueira; Criação musical: Pedro Salvador; Desenho de luz e operação: Joaquim Madaíl; Produção: Hotel Europa; Produção executiva: Maria João Santos; Coprodução: São Luiz Teatro Municipal/Egeac; Agradecimentos: Rui Simões e a todos os familiares dos intérpretes deste espetáculo que generosamente partilharam a sua história A Hotel Europa é uma estrutura financiada pela Direção-Geral das Artes.

© Estelle Valente

O Teatro São Luiz/EGEAC é parceiro no Projeto Europeu Inclusive Theater(s) Rede de desenvolvimento de novos públicos através de ações inclusivas para pessoas com necessidades específicas

Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Mediação de Públicos Téo Pitella Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Andreia Luís, Catarina Ferreira, Tiago Antunes Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Ricardo Campos, Tiago Pedro, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Miguel Rocha, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Ricardo Fernandes, Rui Lopes Operação Vídeo João Van Zelst Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Bilheteira Cristina Santos, Diana Bento, Renato Botão

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