III
Vem dos vales a voz. Do poço. Dos penhascos. Vem funda e fria Amolecida e terna, anêmonas que vi: Corfu. No mar Egeu. Em Creta. Vem revestida às vezes de aspereza Vem com brilhos do dor de madrepérola Mas ressoa cruel e abjeta
Se me proponho ouvir. Vem do Nada. Dos vínculos desfeitos. Vem do Nada. Dos vínculos desfeitos. Vem dos ressentimentos.
E sibilante e lisa
Se faz paixão, serpente, e nos habita. Hilda Hilst
Manifesto ou poema, noite demasiado longa para não mudar o mundo, uma ver tigem, devaneio, loucura lúcida, uma pedrada no charco, carta, outro poema, uma voz que vem de dentro, alimento, uma voz que vai para fora, cartografia, o que é sermos mulheres se é isso que nos junta? sonho, um sonho, criação cole tiva, sementeira de futuros justos, um gesto ou uma partitura para dançar uma nova História, uma homenagem ou um ensaio, viagem, caderno aberto que pare literatura em sangue, dúvida, um grito, amor, amor comum, amor perfeito, amor em guerra, amor em pranto, amor avariado, pranto, um lamento, antologia, som, sopro, casa, casas, enciclopédia para não morrermos sem termos tentado mudar o mundo, à esquerda, um projeto político, reunião de vontades, raiz do esquecimento, convergência, oráculo, mapa astral, mapa literal, mapa oral. Leva a minha voz no bolso para que as palavras durmam no teu peito —- hás de ver amor como os poemas mergulham do coração para o sangue e não nos abando nam nunca mais —- teatro que finta o teatro, coisa eterna, vírus, febre, vontade que alastra e é feita de fogo ar e chão nuvens estrelas poeiras cósmicas espargos cardos e cogumelos, húmus galáctico, Cassiopeia de mulheres que o tempo foi tapando com o pó do desinteresse. Limpar o pó ou aspirar? Plantar palavras em vozes para ver renascer mulheres. Plantar ainda mais palavras em duas vozes para sentir renascer mil e uma mulheres.
mil e uma noites surge da necessidade de convocar mulheres a integrar a His tória. Surge porque, ainda hoje, poucas são as mulheres portuguesas estudadas nas escolas portuguesas, seja em que grau académico for. E surge porque a Lu zia, escritora portalegrense do início do século, continua a ser chamada ‘a Eça de Queirós’, e embora tenha editado em vida, não foi reeditada; surge porque a Isabel da Nóbrega é, aquando da sua morte, referida como a musa de Saramago; surge porque há muitas mulheres que nunca conseguiram publicar em vida; sur ge porque algumas tiveram que se esconder em pseudónimos para o fazer; surge porque quem queimou a obra da Judith Teixeira fê-lo para queimar o corpo e o amor daquela mulher, surge ainda porque muitas mais mulheres há que nem sabiam ler e que, ainda assim, escreveram ditando aos maridos ou às amigas. umcoletivo, enquanto estrutura implicada na construção de um mundo justo e informado, acredita que muitas destas mulheres permitem uma reflexão rica e necessária sobre o nosso país no século XX. Pela liberdade, formal e temática, com que muitas destas mulheres escreveram, são obras singulares as que par tilhamos convosco. Por isso, também, não resistimos a amassá-las com as nos sas vozes, os nossos corações, as nossas mãos, as nossas diferenças. De agora em diante, estas mil e uma mulheres constelarão em nós.
mulheres com quem começamos
Maria Regina Louro (Abrantes, 1948), Zulmira Oliva (Albufeira, 1930), Vitorina Agostinho (Portalegre, ?), Celina Pereira (Ilha da Boavista, 1940), Deolinda da Conceição (Macau, 1913), Matilde Rosa Araújo (Lisboa, 1921), Ivone Dias Lourenço (Vila Franca de Xira, 1937), Maria Luísa Costa Dias (Coimbra, 1916), Aida da Conceição Paula (Lisboa, 1918), Maria Alda Nogueira (Lisboa, 1923), Fernanda Paiva Tomás (Mortágua, 1928), Maria da Graça Varella Cid (Lisboa, 1933), Eduarda Chiote (Bragança, 1930), Beatriz Rodrigues Barbosa (?), Maria Helena Barreiro (?), Fiama Hasse Pais Brandão (Lisboa, 1938), Maria Teresa Horta (Lisboa, 1937), Judith Teixeira (Viseu, 1880), Maria Lamas (Torres Novas, 1893), Natércia Freire (Benavente, 1919), Maria Archer (Almodóvar, 1899), Fernanda de Castro (Lisboa, 1900), Maria Velho da Costa (Lisboa, 1938) e outras mulheres que, como a Avó Margarida (Elvas, 1928), cantaram e contaram histórias que ficaram escritas para sempre nas suas vozes.
Eu amo a mulher do povo e respeito-a, até na sua ignorância, de que ela se não apercebe, mas de que sofre as terríveis consequências, representa uma acusação contra a indiferença dos que vêem nela um ser unicamente destinado a todos os sofrimentos.
Ao escrever As Mulheres do Meu País não procuro glória literária, mas, sim, repito, contribuir para que o grave problema da dignificação da mulher, em todos os aspectos da sua vida, seja estudado e resolvido, como é indispensável para que a civilização que tanto apregoamos não seja, afinal, uma palavra sem sentido ou... com um sentido falso. Farei, pois, uma reportagem directa, verdadeira, colocando cada mulher no ambiente que lhe é próprio, com os seus usos e tradições, com o seu drama e pitoresco da sua vida sempre que ele exista.
maria lamas
MIL E UMA NOITES
um projeto UMCOLETIVO: Cátia Terrinca, David Costa, João P. Nunes, Mariana Bragada, Raquel Pedro e Ricardo Boléo, com contributos da Escola Artística António Arroio
PRÓXIMAS SESSÕES AO VIVO:
Março 2023 - Montemor o Novo (O Espaço do Tempo)
Março 2023 - Portalegre (CAEP) Abril 2023 - Figueira da Foz (TNDMII / Odisseia Nacional) www.ventriloquia.pt
Falar pelo ventre, para que a voz seja um rio de lava inundando as ruas - agora vermelhas. A liberdade.
13 a 17 dezembro 2022 teatro / estreia