TERRENO SELVAGEM 2 - 2022

Page 1

MIGUEL CASTRO CALDAS PEDRO GIL RAQUEL CASTRO © TNDM II, fot. Filipe Ferreira (2016) TERRENO SELVAGEM 2 26 OUT - 13 NOV
à conversa com MIGUEL CASTRO CALDAS, PEDRO GIL E RAQUEL CASTRO criadores de Terreno Selvagem 2 © Estelle Valente

Terreno Selvagem estreou em 2016 e falava de uma infância até aos cinco anos. Agora, neste Terreno Selvagem 2 essa criança cresceu e tem 10 anos e há mais uma filha. Quando este projeto nasceu já era suposto ser um díptico?

Pedro Gil (pg): Penso que começou por ser apenas uma vontade de querer, a partir da nossa experiência enquanto pai e mãe, inventar uma história com um pai, uma mãe e uma filha. Convi dámos o Miguel para se juntar a nós e essa experiência foi muito feliz. O futu ro impõe respeito, por isso penso que dizer que isso era um objetivo definido não seria dizer a verdade… o que não quer dizer que não existisse um dese jo de futuro. O que aconteceu é que o futuro aconteceu, tornou-se passado e achámos que, com o decorrer do tem po, tínhamos novas e diferentes ques tões que queríamos trabalhar em palco, ou questões que surgiam novamente, questões que esta idade da criança nos colocava. Achámos que, com o cresci mento dela e com o nascimento de uma segunda filha, tínhamos material para voltar a trabalhar artisticamente.

Quem tiver visto o primeiro espetáculo, há de perceber que este Terreno Selvagem 2 começa com a mesma cena do primeiro: um pequeno-almoço em que os pais tentam gerir a febre da filha…

pg: Por um lado, é uma boa cena para começar a contar esta história, também para quem não viu a primei ra parte. É uma boa cena para insta lar a linguagem do espetáculo. E, por

outro lado, achámos graça fazer esta revisitação. É a única cena que se re pete do primeiro espetáculo e pare ceu-nos natural, sendo um espetáculo cheio de rotinas do quotidiano, que se repetissem pequenos-almoços, lan ches, jantares e outros episódios que acontecem no dia-a-dia numa sala de uma casa. Soube-nos bem revisitar esta cena e, aí sim, quando o fizemos até começámos a pensar na ideia de, no futuro, podermos vir a fazer estes dois espetáculos juntos num só. Se isso acontecesse, seria engraçado o público poder ver a diferença entre essas duas primeiras cenas. É também uma for ma de mostrar como a criança cresceu com pequenas mudanças no texto.

Miguel Castro Caldas (mcc): Um dos primeiros exercícios que fizemos foi o de imaginar o que seria o mesmo espetáculo passados cinco anos. Num espetáculo sobre rotinas, faria sentido pensar o que são essas mesmas roti nas passado algum tempo, como seria fazer o mesmo espetáculo, com mais uma personagem e as outras perso nagens mais velhas. E desse exercício acabou por ficar essa primeira cena do pequeno-almoço, que é uma coisa que praticamente todas as pessoas fazem todos os dias. As outras cenas, de fac to, mudam, porque há rotinas novas e coisas diferentes que surgem com o crescimento da criança.

Raquel Castro (rc): Neste espetácu lo surgiram outras problemáticas que acabaram por trazer inevitavelmente cenas diferentes.

3

Que problemáticas foram essas que surgiram com o crescimento da criança?

rc: Há uma coisa muito evidente, que é a criança passar a viver mais tempo fora de casa, apesar do espetá culo se passar sempre dentro de casa. Antes, o mundo exterior chegava mais pela televisão ou através dos pais, ago ra a criança já traz ela própria esses outros universos e a sua própria expe riência para dentro da casa. Estes são os anos da escola primária, da aprendi zagem da leitura, do brincar como for ma de desbravar mundo, os namoros, o mundo transformado em disciplinas que se aprendem na escola, a amizade e a violência entre amigos, até a própria noção de fim da infância…

pg: Sim, o que é que isso é. O que muda na criança, se é uma infância que se perde e outra que começa, que coisa é essa que se perde e que coisa é essa que começa, uma adolescência que se pa rece adivinhar, não é? Parece que algo acontece, uma espécie de evasão, de autoconsciência, parece que a criança consegue olhar para a vida. Para vocês foi mais fácil tentar chegar a esta criança, por ela ser mais velha, do que à do primeiro espetáculo ou foi igualmente um mistério?

rc: À outra chamávamos-lhe a “ida de da caixa negra”, uma coisa à qual ainda é mais difícil aceder porque não nos lembramos sequer como foi ser pessoa nessa idade.

mcc: Há essa atitude da nossa parte de achar que aquilo que sabemos dos outros é sempre limitado, não é?

rc: Estamos sempre a falar de uma

personagem e isso é libertador. É a nossa visão de uma coisa que vivemos e que quisemos contar, mas sem pres cindirmos da liberdade da ficção.

pg: E usámos essa liberdade até onde deu. Por exemplo, atribuir as personagens das filhas a outros cor pos, a outras atrizes, parecia-nos mais mentira, se é que assim se pode dizer… uma vez que é de teatro que estamos a falar.

mcc: Parecia que se quebrava um vínculo, a matriz do espetáculo.

pg: O nosso desafio, a certa altura, tornou-se o de isto ser sempre sobre aquilo que a infância da criança nos dá, ela como espelho nosso. Tentámos fa lar apenas das coisas que vinham desta relação. Não impusemos temas, apa nhámos os que encontrámos. E tam bém por isso seguimos a cronologia temporal, a primeira parte passava-se em 2015 e esta passa-se em 2018.

Esta criança dos espetáculos é a vossa filha, Raquel e Pedro, ou recorreram também a experiências com outras crianças e a outras inspirações?

rc: Usámos muitos dos dados que já tínhamos como pais das nossas filhas, com os quais podemos jogar esta brin cadeira, mas não só esses.

pg: Apeteceu-nos inspirar-nos em coisas que vivemos para criar uma fic ção e mal começamos a improvisar as cenas – até logo na sugestão da impro visação que é acordada entre os três – a ficção começa logo a surgir.

mcc: Desconfio que foi por isso que o Pedro e a Raquel me convidaram para trabalhar com eles. Acredito que sou a garantia de que isto não é uma

4

autobiografia… Estou a brincar, não sou garantia de nada. Sou sobretudo dramaturgo e escrevo peças de teatro, mas acho que não é por isso que estou aqui: não me convidaram por eu escrever peças de teatro, até porque os dois também escrevem peças de teatro. Penso que o convite tem a ver com uma vontade de ter alguém de fora que venha, não trazer um olhar de fora, mas envolver-se com um material e uma vivência que já é intrínseca neles.

rc: Mais do que esses materiais, que

possam vir da nossa experiência como pais, o espetáculo constrói-se e ali menta-se das conversas entre os três.

pg: Porque podemos fazer uma improvisação inspirada numa coisa que tenha acontecido e, mal começamos a improvisar, a ficção começa logo a apa recer. E o Miguel, ao ver isso, já recebe tudo junto e a partir daí exponencia o que lhe passámos, independentemen te do que aconteceu ou não. Até por que muitas das coisas ele não sabe se aconteceram ou não e isso nem inte

5
© Estelle Valente

ressa. E, neste pingue-pongue, quando a bola vai a ele e volta, já estamos nou tro sítio e noutro patamar.

mcc: Para mim o que aconteceu foi a improvisação que eles fizeram. E de pois era trabalhar sobre isso. No sen tido contrário também. O que acon teceu podia ser uma proposta minha para eles improvisarem que eles trans formavam noutra coisa. No fim, a fic ção também é real.

O processo de trabalho para este espetáculo decorreu sempre nesse pingue-pongue?

mcc: Sim, isso foi a base do nos so trabalho. Eles improvisaram, eu “transcrevi”, tentando ir apanhando aquilo que conseguia – e essa atividade, tentar apanhar o que se pode, para mim, é muito importante – e depois reescrevia e devolvia, dando início a uma fase de discussão enorme, quase interminável, com a Raquel e o Pedro e isso, para mim, com estas pessoas é um privilégio. E há, ainda, um outro lado da escrita que não passou pelas improvisações: algumas cenas e tal vez um lado mais reflexivo, que teve muito a ver com as nossas discussões sobre o que eram as cenas, o que que ríamos e o que não queríamos que elas fossem.

rc: Quando estamos a improvisar, vamos descobrindo, com o Miguel, qual o interesse daquilo que estamos a fazer e a dizer. Que não tem de ser igual para os três como também não o é para todo o público.

pg: A verdade é que, se agora for ler a peça, as cenas não reproduzem a nos sa vida. Ou até há cenas que podem ser semelhantes, mas cuja forma as torna

irreconhecíveis. O que parece haver são sementes pequeninas de memória espalhadas por todo o lado.

O que vos atrai no trabalho artístico sobre as rotinas do quotidiano, que é recorrente no vosso trabalho, sobretudo no da Raquel?

rc: Eu, pessoalmente, gosto de tra balhar isso. E este espetáculo pede exatamente isso. Aqui tudo acontece dentro de casa e surgiu esta ideia do brincar como forma de trazer outras ficções e de nos transportar para fora de casa. É um pouco aquela ideia de que a arte pode ser o lugar onde damos a ver a realidade aumentada, como uma lupa, onde damos a ver o que as pessoas veem todos os dias, mas de outra forma, às vezes basta um zoom, ou outro ângulo. Este espetáculo tenta iluminar o quotidiano a ver o que dá…

mcc: … Dá-nos a ver o que não con seguimos ver no dia-a-dia, porque es tamos lá dentro. A arte faz isso: dá-nos a ver a vida de uma forma que normal mente não conseguimos ver porque estamos ocupados a viver.

pg: É como se estivéssemos dentro da vida e a arte permite-nos sair e ver a vida ali. E esse mecanismo torna-se ainda mais evidente quando falamos do quotidiano. Tem-nos dado gozo procurar o simbólico e o extraordiná rio dentro do ordinário.

mcc: Costuma-se dizer que é im portante dar valor às pequenas coisas, mas no dia-a-dia isso é quase impos sível de fazer, porque estamos ocupa dos a viver e não conseguimos ter esse olhar. A arte permite-nos fazer isso. É como se estivéssemos fora do tempo

6

– então, temos tempo para olhar para uma coisa insignificante.

pg: Logo no primeiro espetáculo, encontrámos um potencial teatral, artístico e poético nesta hiper-realidade, neste quotidiano. E neste segundo es petáculo continuamos esse caminho. É como se o filme continuasse. Achá mos que era um património que seria interessante continuar a trabalhar.

rc: Para isso foram muito impor tantes a Rita Lopes Alves na ceno grafia, o Daniel Worm na luz, o Pedro Costa no som e a Mariana Venes na produção, que constroem essa base de realidade de faz de conta que impul siona a linguagem do espetáculo.

mcc: Uma coisa de que gosto neste espetáculo tem a ver com essa ideia do olhar exterior enquanto se está den tro. Para mim, é importante o teatro refletir isso. Se uma pessoa está sem pre com um olhar exterior, sem per ceber que mesmo assim está implica do, está dentro de qualquer coisa, fica demasiado arrogante e didático; e se está sempre só com um olhar interior, sem perspetivar, torna-se demasiado fechado. Este sítio onde estamos aqui é muito interessante. Querer ter um olhar exterior, mas apercebermo-nos da problemática que isso é. Porque é sempre uma ilusão pensarmos que estamos a ver uma coisa de fora, por que, na verdade, estamos implicados naquilo que estamos a ver. Ter isso em teatro como uma questão, para mim, é muito interessante.

pg: É engraçado porque as crian ças brincam aos pais e às mães e nós, no espetáculo, brincamos às filhas. E esse lugar de brincar às filhas à frente de outras pessoas – que é o lugar do

teatro – já tem essa questão lá dentro, o próprio estar em cena já tem isso: o ato de representar, de contracenar, de fazer ficção.

E, apesar da passagem do tempo e da mudança de idade desta criança, isto continua a ser um Terreno Selvagem…

mcc: “Terreno selvagem” é aquilo que não podemos controlar, a parte da nossa vida que não temos a hipótese de controlar, a natureza.

rc: Pode ser o que não consegues controlar – até na forma como educas alguém, ou o crescimento como um processo de civilização do humano.

E este Terreno Selvagem é para continuar pela adolescência fora e mais além…?

pg: Uma coisa é o nosso desejo de futuro, outra coisa é o futuro impor respeito. Por isso, continuará se qui sermos que continue. Acima de tudo, alimenta-nos a possibilidade de não continuar e a possibilidade de conti nuar. Gostamos de não nos prendermos a essa necessidade, mas existir essa possibilidade é entusiasmante.

rc: Essa continuação precisaria sempre de tempo e esse tempo pode rá trazer outras coisas, não sabemos. O próximo seria a adolescência, não é? Se vier a existir o espetáculo, porque a adolescência já existe lá em casa [ri sos]. Temos de sobreviver à adolescên cia primeiro, para depois ter vontade de falar sobre isso.

Entrevista realizada em outubro 2022, por Gabriela Lourenço / Teatro São Luiz

7

TERRENO SELVAGEM

MIGUEL CASTRO CALDAS, PEDRO GIL E RAQUEL CASTRO

Sala Mário Viegas quarta a sábado, 19h30; domingo, 16h Duração: 1h15 (aprox.); M/12 €12 (com descontos)

13 novembro, domingo, 16h 11 e 13 novembro, sexta e domingo, 19h30 e 16h

Intérpretes: Sofia Rocha e Ana Silva Audiodescritoras: A.R. Produções

Criação e dramaturgia: Miguel Castro Caldas, Pedro Gil e Raquel Castro; Texto: Miguel Castro Caldas; Interpretação: Pedro Gil e Raquel Castro; Cenografia e Figurinos: Rita Lopes Alves; Construção de Cenário: Manuel Lobão; Assistente de Cenografia: Joana Sousa; Luz: Daniel Worm; Som: Pedro Costa; Registo Vídeo: João Gambino; Direção de Produção: Mariana Venes; Assistência de Produção e Comunicação: Bernardo Carreiras; Assistência de Encenação (estagiária): Marta Guimarães; Residência de Coprodução: O Espaço do Tempo

Coprodução: Razões Pessoais, Teatro Municipal do Porto e São Luiz Teatro Municipal

Agradecimentos: Ana Matoso, Artistas Unidos, Bárbara Rocha, Filipe Ferreira, Joa, Lina Santos, Loja Lisboa Cultura, Mó, Pedro Silva, Teatro Nacional Dona Maria II, e Famílias Castro, Martins, Candeias e Gil

Apoios: Boutique da Cultura / Livraria Solidária de Carnide, Coffeepaste, Companhia Olga Roriz, CRS Advogados, Lavandaria & Engomadoria Deixa o Amor Passar, Luís Lemos

Razões Pessoais é uma estrutura apoiada pela República Portuguesa – Cultura / Direção-Geral das Artes e residente no espaço da Companhia Olga Roriz

O Teatro São Luiz/EGEAC é parceiro no Projeto Europeu Inclusive Theater(s) Rede de desenvolvimento de novos públicos através de ações inclusivas para pessoas com necessidades específicas

Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Mediação de Públicos Téo Pitella Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Catarina Ferreira, Marta Azenha Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Cláudio Marto, Ricardo Campos, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Miguel Rocha, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Rui Lopes Operação Vídeo João Van Zelst Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Camareira Rita Talina Bilheteira Diana Bento, João Reis, Pedro Xavier

26 outubro a 13 novembro 2022 teatro / estreia
2
teatrosaoluiz.pt

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.