Terreno Selvagem estreou em 2016 e falava de uma infância até aos cinco anos. Agora, neste Terreno Selvagem 2 essa criança cresceu e tem 10 anos e há mais uma filha. Quando este projeto nasceu já era suposto ser um díptico?
Pedro Gil (pg): Penso que começou por ser apenas uma vontade de querer, a partir da nossa experiência enquanto pai e mãe, inventar uma história com um pai, uma mãe e uma filha. Convi dámos o Miguel para se juntar a nós e essa experiência foi muito feliz. O futu ro impõe respeito, por isso penso que dizer que isso era um objetivo definido não seria dizer a verdade… o que não quer dizer que não existisse um dese jo de futuro. O que aconteceu é que o futuro aconteceu, tornou-se passado e achámos que, com o decorrer do tem po, tínhamos novas e diferentes ques tões que queríamos trabalhar em palco, ou questões que surgiam novamente, questões que esta idade da criança nos colocava. Achámos que, com o cresci mento dela e com o nascimento de uma segunda filha, tínhamos material para voltar a trabalhar artisticamente.
Quem tiver visto o primeiro espetáculo, há de perceber que este Terreno Selvagem 2 começa com a mesma cena do primeiro: um pequeno-almoço em que os pais tentam gerir a febre da filha…
pg: Por um lado, é uma boa cena para começar a contar esta história, também para quem não viu a primei ra parte. É uma boa cena para insta lar a linguagem do espetáculo. E, por
outro lado, achámos graça fazer esta revisitação. É a única cena que se re pete do primeiro espetáculo e pare ceu-nos natural, sendo um espetáculo cheio de rotinas do quotidiano, que se repetissem pequenos-almoços, lan ches, jantares e outros episódios que acontecem no dia-a-dia numa sala de uma casa. Soube-nos bem revisitar esta cena e, aí sim, quando o fizemos até começámos a pensar na ideia de, no futuro, podermos vir a fazer estes dois espetáculos juntos num só. Se isso acontecesse, seria engraçado o público poder ver a diferença entre essas duas primeiras cenas. É também uma for ma de mostrar como a criança cresceu com pequenas mudanças no texto.
Miguel Castro Caldas (mcc): Um dos primeiros exercícios que fizemos foi o de imaginar o que seria o mesmo espetáculo passados cinco anos. Num espetáculo sobre rotinas, faria sentido pensar o que são essas mesmas roti nas passado algum tempo, como seria fazer o mesmo espetáculo, com mais uma personagem e as outras perso nagens mais velhas. E desse exercício acabou por ficar essa primeira cena do pequeno-almoço, que é uma coisa que praticamente todas as pessoas fazem todos os dias. As outras cenas, de fac to, mudam, porque há rotinas novas e coisas diferentes que surgem com o crescimento da criança.
Raquel Castro (rc): Neste espetácu lo surgiram outras problemáticas que acabaram por trazer inevitavelmente cenas diferentes.
Que problemáticas foram essas que surgiram com o crescimento da criança?
rc: Há uma coisa muito evidente, que é a criança passar a viver mais tempo fora de casa, apesar do espetá culo se passar sempre dentro de casa. Antes, o mundo exterior chegava mais pela televisão ou através dos pais, ago ra a criança já traz ela própria esses outros universos e a sua própria expe riência para dentro da casa. Estes são os anos da escola primária, da aprendi zagem da leitura, do brincar como for ma de desbravar mundo, os namoros, o mundo transformado em disciplinas que se aprendem na escola, a amizade e a violência entre amigos, até a própria noção de fim da infância…
pg: Sim, o que é que isso é. O que muda na criança, se é uma infância que se perde e outra que começa, que coisa é essa que se perde e que coisa é essa que começa, uma adolescência que se pa rece adivinhar, não é? Parece que algo acontece, uma espécie de evasão, de autoconsciência, parece que a criança consegue olhar para a vida. Para vocês foi mais fácil tentar chegar a esta criança, por ela ser mais velha, do que à do primeiro espetáculo ou foi igualmente um mistério?
rc: À outra chamávamos-lhe a “ida de da caixa negra”, uma coisa à qual ainda é mais difícil aceder porque não nos lembramos sequer como foi ser pessoa nessa idade.
mcc: Há essa atitude da nossa parte de achar que aquilo que sabemos dos outros é sempre limitado, não é?
rc: Estamos sempre a falar de uma
personagem e isso é libertador. É a nossa visão de uma coisa que vivemos e que quisemos contar, mas sem pres cindirmos da liberdade da ficção.
pg: E usámos essa liberdade até onde deu. Por exemplo, atribuir as personagens das filhas a outros cor pos, a outras atrizes, parecia-nos mais mentira, se é que assim se pode dizer… uma vez que é de teatro que estamos a falar.
mcc: Parecia que se quebrava um vínculo, a matriz do espetáculo.
pg: O nosso desafio, a certa altura, tornou-se o de isto ser sempre sobre aquilo que a infância da criança nos dá, ela como espelho nosso. Tentámos fa lar apenas das coisas que vinham desta relação. Não impusemos temas, apa nhámos os que encontrámos. E tam bém por isso seguimos a cronologia temporal, a primeira parte passava-se em 2015 e esta passa-se em 2018.
Esta criança dos espetáculos é a vossa filha, Raquel e Pedro, ou recorreram também a experiências com outras crianças e a outras inspirações?
rc: Usámos muitos dos dados que já tínhamos como pais das nossas filhas, com os quais podemos jogar esta brin cadeira, mas não só esses.
pg: Apeteceu-nos inspirar-nos em coisas que vivemos para criar uma fic ção e mal começamos a improvisar as cenas – até logo na sugestão da impro visação que é acordada entre os três – a ficção começa logo a surgir.
mcc: Desconfio que foi por isso que o Pedro e a Raquel me convidaram para trabalhar com eles. Acredito que sou a garantia de que isto não é uma
autobiografia… Estou a brincar, não sou garantia de nada. Sou sobretudo dramaturgo e escrevo peças de teatro, mas acho que não é por isso que estou aqui: não me convidaram por eu escrever peças de teatro, até porque os dois também escrevem peças de teatro. Penso que o convite tem a ver com uma vontade de ter alguém de fora que venha, não trazer um olhar de fora, mas envolver-se com um material e uma vivência que já é intrínseca neles.
rc: Mais do que esses materiais, que
possam vir da nossa experiência como pais, o espetáculo constrói-se e ali menta-se das conversas entre os três.
pg: Porque podemos fazer uma improvisação inspirada numa coisa que tenha acontecido e, mal começamos a improvisar, a ficção começa logo a apa recer. E o Miguel, ao ver isso, já recebe tudo junto e a partir daí exponencia o que lhe passámos, independentemen te do que aconteceu ou não. Até por que muitas das coisas ele não sabe se aconteceram ou não e isso nem inte
ressa. E, neste pingue-pongue, quando a bola vai a ele e volta, já estamos nou tro sítio e noutro patamar.
mcc: Para mim o que aconteceu foi a improvisação que eles fizeram. E de pois era trabalhar sobre isso. No sen tido contrário também. O que acon teceu podia ser uma proposta minha para eles improvisarem que eles trans formavam noutra coisa. No fim, a fic ção também é real.
O processo de trabalho para este espetáculo decorreu sempre nesse pingue-pongue?
mcc: Sim, isso foi a base do nos so trabalho. Eles improvisaram, eu “transcrevi”, tentando ir apanhando aquilo que conseguia – e essa atividade, tentar apanhar o que se pode, para mim, é muito importante – e depois reescrevia e devolvia, dando início a uma fase de discussão enorme, quase interminável, com a Raquel e o Pedro e isso, para mim, com estas pessoas é um privilégio. E há, ainda, um outro lado da escrita que não passou pelas improvisações: algumas cenas e tal vez um lado mais reflexivo, que teve muito a ver com as nossas discussões sobre o que eram as cenas, o que que ríamos e o que não queríamos que elas fossem.
rc: Quando estamos a improvisar, vamos descobrindo, com o Miguel, qual o interesse daquilo que estamos a fazer e a dizer. Que não tem de ser igual para os três como também não o é para todo o público.
pg: A verdade é que, se agora for ler a peça, as cenas não reproduzem a nos sa vida. Ou até há cenas que podem ser semelhantes, mas cuja forma as torna
irreconhecíveis. O que parece haver são sementes pequeninas de memória espalhadas por todo o lado.
O que vos atrai no trabalho artístico sobre as rotinas do quotidiano, que é recorrente no vosso trabalho, sobretudo no da Raquel?
rc: Eu, pessoalmente, gosto de tra balhar isso. E este espetáculo pede exatamente isso. Aqui tudo acontece dentro de casa e surgiu esta ideia do brincar como forma de trazer outras ficções e de nos transportar para fora de casa. É um pouco aquela ideia de que a arte pode ser o lugar onde damos a ver a realidade aumentada, como uma lupa, onde damos a ver o que as pessoas veem todos os dias, mas de outra forma, às vezes basta um zoom, ou outro ângulo. Este espetáculo tenta iluminar o quotidiano a ver o que dá…
mcc: … Dá-nos a ver o que não con seguimos ver no dia-a-dia, porque es tamos lá dentro. A arte faz isso: dá-nos a ver a vida de uma forma que normal mente não conseguimos ver porque estamos ocupados a viver.
pg: É como se estivéssemos dentro da vida e a arte permite-nos sair e ver a vida ali. E esse mecanismo torna-se ainda mais evidente quando falamos do quotidiano. Tem-nos dado gozo procurar o simbólico e o extraordiná rio dentro do ordinário.
mcc: Costuma-se dizer que é im portante dar valor às pequenas coisas, mas no dia-a-dia isso é quase impos sível de fazer, porque estamos ocupa dos a viver e não conseguimos ter esse olhar. A arte permite-nos fazer isso. É como se estivéssemos fora do tempo
– então, temos tempo para olhar para uma coisa insignificante.
pg: Logo no primeiro espetáculo, encontrámos um potencial teatral, artístico e poético nesta hiper-realidade, neste quotidiano. E neste segundo es petáculo continuamos esse caminho. É como se o filme continuasse. Achá mos que era um património que seria interessante continuar a trabalhar.
rc: Para isso foram muito impor tantes a Rita Lopes Alves na ceno grafia, o Daniel Worm na luz, o Pedro Costa no som e a Mariana Venes na produção, que constroem essa base de realidade de faz de conta que impul siona a linguagem do espetáculo.
mcc: Uma coisa de que gosto neste espetáculo tem a ver com essa ideia do olhar exterior enquanto se está den tro. Para mim, é importante o teatro refletir isso. Se uma pessoa está sem pre com um olhar exterior, sem per ceber que mesmo assim está implica do, está dentro de qualquer coisa, fica demasiado arrogante e didático; e se está sempre só com um olhar interior, sem perspetivar, torna-se demasiado fechado. Este sítio onde estamos aqui é muito interessante. Querer ter um olhar exterior, mas apercebermo-nos da problemática que isso é. Porque é sempre uma ilusão pensarmos que estamos a ver uma coisa de fora, por que, na verdade, estamos implicados naquilo que estamos a ver. Ter isso em teatro como uma questão, para mim, é muito interessante.
pg: É engraçado porque as crian ças brincam aos pais e às mães e nós, no espetáculo, brincamos às filhas. E esse lugar de brincar às filhas à frente de outras pessoas – que é o lugar do
teatro – já tem essa questão lá dentro, o próprio estar em cena já tem isso: o ato de representar, de contracenar, de fazer ficção.
E, apesar da passagem do tempo e da mudança de idade desta criança, isto continua a ser um Terreno Selvagem…
mcc: “Terreno selvagem” é aquilo que não podemos controlar, a parte da nossa vida que não temos a hipótese de controlar, a natureza.
rc: Pode ser o que não consegues controlar – até na forma como educas alguém, ou o crescimento como um processo de civilização do humano.
E este Terreno Selvagem é para continuar pela adolescência fora e mais além…?
pg: Uma coisa é o nosso desejo de futuro, outra coisa é o futuro impor respeito. Por isso, continuará se qui sermos que continue. Acima de tudo, alimenta-nos a possibilidade de não continuar e a possibilidade de conti nuar. Gostamos de não nos prendermos a essa necessidade, mas existir essa possibilidade é entusiasmante.
rc: Essa continuação precisaria sempre de tempo e esse tempo pode rá trazer outras coisas, não sabemos. O próximo seria a adolescência, não é? Se vier a existir o espetáculo, porque a adolescência já existe lá em casa [ri sos]. Temos de sobreviver à adolescên cia primeiro, para depois ter vontade de falar sobre isso.
Entrevista realizada em outubro 2022, por Gabriela Lourenço / Teatro São Luiz