O ARRANCA-CORAÇÕES 2019

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SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL

14 A 17 FEVEREIRO 2019 A PARTIR DE BORIS VIAN

© Estelle Valente

DRAMATURGIA E ENCENAÇÃO NUNO NUNES


O jogo do teatro e a perplexidade de olharmos para dentro de nós

por uma relação direta com a cena. O trabalho dos atores, a relação com o vazio do espaço cénico, com a procura de recursos materiais para representar as cenas, põe-nos num plano irracional, instintivo, orgânico, espontâneo, tudo lógicas que são mais fortes do que um trabalho racional de estruturação de um texto. Tornou-se evidente que trabalhar sobre o romance tinha de ser num palco, numa sala de ensaios.

À conversa com Nuno Nunes, a propósito da encenação de O Arranca Corações

Leu O Arranca Corações, de Boris Vian, há muito tempo ou foi uma descoberta recente? Descobri-o recentemente. Não conhecia o livro, mas conhecia o imaginário de Boris Vian, as canções, o período histórico, Saint Germain-des-Prés… Esta peça foi uma proposta da atriz Sofias Dias, a ela tocou-lhe muito o tema da maternidade ligado à psicose, presente no livro. A mim o que me atraiu logo foi uma ideia de construção teatral, a forma como retrata a realidade a partir de um esqueleto, de um raio X onde conseguimos ver as fraturas da sociedade, mas onde aparecem também brincadeiras e provocações. Atraíram-me imenso as possibilidades de tratar teatralmente um texto não dramático, narrativo e muito descritivo.

Pegaram no livro e juntaram-se num ensaio, então? Fizemos duas residências artísticas para explorar o livro, partir pedra. Era necessário um tempo para termos todos o mesmo domínio do texto. Tivemos muitas conversas, fizemos muitas associações que o livro suscita, improvisámos com base nessas ideias. Fomos buscar histórias pessoais, referências de músicas… Há coisas no espetáculo que já nem sabemos muito bem de onde vêm. Parecia que nos afastávamos mas era sempre para voltar ao livro. Queria contar esta história encontrando na forma teatral uma gramática que fosse a expressão deste livro, aquilo que o faz ser diferente de outro qualquer, ser do imaginário do Boris Vian e não de outra pessoa. Não é só a narrativa, mas também encontrar a linguagem dentro daquilo que é o teatro.

Começou logo a ver ali uma peça de teatro? Imaginei que o podia transformar num espetáculo de teatro, mas percebi que não conseguia escrever essa peça de teatro. Se o fizesse, estaria a desvirtuar o que, para mim, é a identidade do livro: a representação do inconsciente e a reinvenção da realidade tornando visíveis coisas da ordem do pulsional. Adaptar o livro passou, assim,

Para que seja teatro e não literatura? São lógicas diferentes. 2

coração e sabia desde a adolescência que podia morrer a qualquer momento. A ideia da realidade ser perecível tirou-lhe os filtros e põe-nos numa situação de tudo ou nada. Na sua linguagem despudorada, é como se pudéssemos falar da realidade sem grandes filtros. E há uma perplexidade sobre isso, é isso que sente Tiagomorto. Essa perplexidade é sobre o nosso interior. Todas as coisas que, por sobrevivência, tendemos a manter dentro da caixa – os nossos medos, a nossa violência – e tudo o que são visões do horror, estão ali expostas. Isso dá uma atualidade enorme a esta obra. É a nossa perplexidade perante os acontecimentos do mundo. Os processos históricos, que pensávamos já estarem resolvidos, voltam. Como se não houvesse memória, como se nada tivesse acontecido. Neste livro não há memória, não há referentes. Parece que não há nada para lá daquela geografia onde eles estão. Isso passa uma mensagem muito interessante sobre a nossa realidade: de que forma é que nós, no nosso comportamento, na nossa vida, assumimos a responsabilidade do passado e da História? No livro, a culpa e a vergonha são despejadas num ribeiro. Se assumíssemos a responsabilidade por tudo aquilo que sabemos e fazemos, se não fingíssemos que não sabemos uma série de coisas, podíamos continuar a viver da mesma maneira? No livro, Tiagomorto não pode.

Sim. O jogo de criar uma realidade e ao mesmo tempo desmontá-la está no livro e é um artifício teatral que intuí quando li o texto pela primeira vez. É uma espécie de resistência à ideia de o teatro ser uma peça escrita. Como é que conduzimos o espectador para uma história que queremos contar sem recorrer a um narrador? Como é que, pela sugestão, conseguimos que o espectador faça o seu próprio texto? Esse foi o maior desafio: tornar o espectador numa espécie de escritor também. Pô-lo a preencher os vazios que momentaneamente se criam. O espectador não pode ser passivo aqui. Porque há toda uma lógica de nonsense que, às vezes, é só aparente. No plano da realidade, muitas vezes a nossa cabeça está noutro sítio, somos movidos por afetos, por sensações “mais de pele” do que pelo pensamento, sonhamos acordados. O que é estar no real? Isso é relativo… Este nonsense acaba por ser uma chamada de atenção para a nossa realidade que, muitas vezes, faz ainda menos sentido do que o que ali está escrito… Há um lado até imaturo, Boris Vian diz as coisas com desprendimento e, ao mesmo tempo, com um frenesim, uma intensidade, uma urgência. Tento sempre lembrar-me, até porque a peça se chama O Arranca Corações, como para ele a realidade era perecível – ele tinha um problema de 3


… e nós não poderíamos também. Eis o absurdo a tornar-se realidade. Para mim, isso é uma das coisas mais interessantes na obra. É até uma lição moral. E que se encaixa nos dias de hoje. É como se estivéssemos desprovidos de nós próprios para que tudo aquilo que acontece seja possível. No espetáculo algumas coisas acontecem sem contexto, não precisam de justificação. Porque a realidade às vezes é um estalo, é um absurdo.

crueza. Se sairmos do plano do descritivo ou ilustrativo e ficarmos com a materialidade pura das coisas, em que sítio é que isso nos põe, sem legendas nem contextualização fácil? Há o jogo do ator que cria sentidos. Colocamos logo à partida o espectador nesse sítio cru, em que as coisas são o que são e têm ecos diferentes em cada pessoa, em função do que é capaz de imaginar e de construir. É o plano da sugestão, como sabemos que o teatro é, que dialoga permanentemente com a abstração.

É sobre isso que fala este livro? Para mim, é sobre a perplexidade que podemos experimentar quando nos vemos por dentro. Foi escrito no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, onde se cometeram tantos absurdos… É difícil viver com isso depois. É o peso da culpa.

Tal como para ler o livro, é preciso ter capacidade de abstração para ver a peça? Isso é importante com um texto como este porque, no limite, é irrepresentável. No cinema haveria soluções para criar as imagens que a literatura veicula, mas o teatro tem outra lógica. Porque há um espaço de vazio que é um espaço de vibração, de tensão. Os atores têm de ter um grande rigor para darem ao objeto determinado sentido e não outro qualquer. Aquilo que se produz produz-se numa zona de limbo, entre o que o ator faz e o que o espectador vê, é nesse intervalo que está a acontecer qualquer coisa, algo intangível. Quanto mais abstrato mais esse rigor tem de existir.

E hoje parece que caminhamos para lá outra vez. E ficamos perplexos com isso, é essa perplexidade. Afinal, como é que a nossa identidade se reflete nos nossos gestos, na forma como vivemos? Quando parece que certas coisas estão resolvidas, os problemas parecem mais antigos ainda. Parece que estamos sempre a voltar para trás. É assustador. O que está no livro é a nossa realidade a cru. Optámos pela utilização de certos recursos materiais, como os bancos, as tábuas, os ferros, para nos relacionarmos com essa

Como trabalharam esse rigor? Fizemos um trabalho de articulação movimento-palavra, explorámos a manipulação de 4

inventar as lógicas adequadas ao que estamos a contar a cada momento. E a cada momento, uma realidade que está a ser oferecida pode desmoronar-se e, afinal, o que estávamos a ver era a face de uma outra realidade que se pode então revelar.

objetos e a caracterização do espaço cénico através do jogo do ator, jogámos com a ideia de escalas… O espaço é, às vezes, o espaço do palco, e outras, o espaço de um banco ou de uma mesa. Um jardim pode ser representado num tampo de uma mesa ou no espaço aberto do palco. Estamos, assim, a sugerir ao espectador um movimento parecido ao de uma câmara de filmar… São lógicas que reproduzem processos de recriação mental.

Por isso, em vez de um guião de texto, fizeram um esquema, que afixaram na parede da sala de ensaios? Foi uma forma de termos a dramaturgia projetada graficamente. Ali conseguimos ler as recorrências espaciais e os movimentos na história. Dividimos o livro em três partes e fizemos uma classificação das cenas que considerávamos mais ou menos obrigatórias para contar esta história. O espetáculo não pretende esgotar ou substituir a leitura do livro. Isto é outra coisa. É difícil desprendermo-nos do livro, porque a sua leitura é uma experiência muito forte, mas fizemos esse esforço porque o teatro faz sentido enquanto esforço de síntese e de sugestão. É interessante ver como, às vezes, soluções muito simples substituem páginas e páginas do livro. Isso é muito rico no trabalho de ator. Não vejo o teatro apenas como a representação de um texto, é uma criação de uma outra realidade que precisaria de milhares de palavras para ser representada e nunca seria a mesma coisa. A minha aspiração é poder representar sentimentos e ideias. O teatro é algo da ordem do

A crueza dos materiais em palco também nos transporta para o universo rude desta história e destes personagens. Sim. Tivemos uma grande incerteza sobre que materiais usar, mas houve dois critérios que os decidiram: a descrição no texto desta aldeia e os dois artesãos principais da história, o marceneiro e o ferreiro, que adquirem uma carga simbólica ligada à morte. Ferro e madeira passaram a ser dois elementos necessários. Depois, surgiu a pedra e a areia do caminho. São materiais brutos e que se podem manipular. Há aqui um espaço de jogo. Boris Vian faz isso com as palavras. Brinca, faz variações, não se sente preso a nenhum estilo, é uma literatura que pode ir inventando. Acho graça a isso do ponto de vista teatral: podemos criar uma cena com uma certa lógica e aquilo pode a qualquer momento ser outra coisa. Um dos desafios ao criar este espetáculo foi de não o transformar num espetáculo de um certo estilo. É, sobretudo, um trabalho de 5


frustrações de então como ator. Não me sentia realizado nas coisas que estava a fazer e precisava de pensar o teatro e o trabalho de ator, fazer experiências, desafiar-me a descobrir qualquer coisa. Preciso imenso de fazer trabalho de ator e vejo isto de forma complementar. O que me atrai na encenação não é a descoberta de textos, para mim isso não faz sentido. Quando penso em encenar, penso no jogo do ator, na forma como se usam os recursos em cena, como se trabalha sobre o espaço, ou com a música. Teatro não é só texto nem é só imagem, é sobre emoções provocadas por imagens associadas ou não a textos, é sobre o som, é sobre a duração das coisas, é sobre a forma como se geram ou se trabalham ideias, sobre a forma como flui o pensamento, como se altera a nossa perceção do real. O teatro pode ser todo o espaço vazio que se abre em cena. Uma das dificuldades que, às vezes, temos nesta peça é exatamente o momento em que se introduz o texto. As cenas foram criadas com base em temas, motivos ou propostas de jogo e quando se encontrava qualquer coisa especial entrava-se numa vibração de tipo “físico-químico”. Isso é mágico. E só é possível se os atores não estiverem agarrados ao texto, de papel na mão. Depois, fomos buscar frases e coisas ditas no texto que se relacionassem com o que estávamos a fazer nesse jogo. Foi um desafio. A construção da dramaturgia foi quase um caos em que se fizeram associações de coisas

intangível, é tornar visível o invisível, é encontrar as lógicas concretas na verdade do palco para conseguirmos aproximar-nos da essência das situações que queremos representar. E isso é fascinante. É esse desafio que o faz passar de ator a encenador? Nesta lógica de trabalho, seria impossível para mim ser ator e encenador ao mesmo tempo. Mas, na verdade, quando me proponho fazer uma encenação aquilo que conduz o meu trabalho é a minha curiosidade como ator. Penso muito no que acho mais estimulante em termos do que é representar, que tipo de experiência como ator gostaria de fazer em determinada cena. Porque, em cena, há um jogo que os atores têm mesmo de jogar, um jogo que produz tensão – não pode ser representado – para nos pôr numa determinada realidade cénica. É uma lógica que trabalha sobre um concreto que não se representa. Isso atrai-me imenso. Há sítios neste espetáculo que são propositadamente improvisados. Os atores estão instruídos sobre uma lógica e percebem o que o outro vai fazer, mas aquilo que se passa na relação com o tempo das ações é jogado naquele momento, não é uma mera repetição. Como ator, precisa destes projetos em que está fora do palco como encenador? A minha primeira encenação foi uma espécie de resposta às minhas 6

que, sentados à secretária, não faríamos. A visão de cada ator com a sua personagem, em confronto com o outro, cria qualquer coisa de autêntico.

é permanentemente a discussão à volta da religião, que vejo como um instrumento de poder e controlo da sociedade. A música ao vivo surgiu desde o início no projeto? A minha ideia foi, desde logo, convocar o imaginário de Boris Vian. Isso passa inevitavelmente pela música. O texto, pelo seu estilo e fluência, pelo jogo de palavras, pela construção-desconstrução, tem uma dimensão musical. Além disso, dentro desta proposta de ter as coisas como elas são, far-me-ia pouco sentido ter uma sonoplastia gravada. Toda esta possibilidade de escrever cenicamente com música interessa-me. Nas nossas residências, as improvisações tinham um motor extra, além das ideias e dos pensamentos, que era a música que ia sendo criada ao mesmo tempo que as coisas estavam a nascer. Trouxe qualquer coisa da ordem do inconsciente, da pulsão, uma motivação sensitiva. Isso foi fascinante. O Nico Tricot, músico, é como se fosse um ator em cena com uma linguagem própria. E encontrou soluções para a sonoplastia que são objetos do quotidiano: a caixa de cartão da coluna de som é um instrumento, outras coisas foram feitas no momento com fita cola, dentro dessa linguagem do cru, do essencial e do concreto. Não há nada a esconder no palco, está tudo ali. É assim esta peça.

Que temas foram descobrindo no texto que mais gostaram de trabalhar? A afetividade, por exemplo, a expressão do afeto. O que é gostar? É possuir? Absorver o outro? Que espaço de liberdade existe para o outro quando o nosso afeto é muito grande? E a sexualidade também. Achei muito redutor representar a sexualidade e tudo o que é descrito no livro. Não por pudor, mas tudo me parecia sair da lógica do que estávamos a fazer. O que quis procurar foi o que Boris Vian estava ali a dizer. Estaria a escarnecer dos bons costumes, estaria a falar de domínio? A representação visual daquilo não é tão importante, o efeito seria banal. Mas o que se representa? Foi um desafio interessante. E também a religião, claro. Reconhecemos imediatamente a lógica que o Padre do livro critica nos aldeões: a experiência religiosa de que natureza é? É um contrato com Deus? É uma troca? Acho fascinante o que diz o Padre porque é muito parecido com o universo da arte: a religião como uma experiência absoluta em si mesma e sem utilidade. Ele diz que é um luxo, é o sublime, é a realização máxima do belo. Totalmente desinteressada. E o Padre di-lo a uma plateia de “bestas”, como ele lhes chama. É a nossa realidade,

Entrevista realizada em janeiro de 2019, por Gabriela Lourenço / Teatro São Luiz

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© Estelle Valente

14 a 17 fevereiro

Dramaturgia e encenação: Nuno Nunes; Concepção plástica e figurinos: Patrícia Raposo; Desenho de luz: Cristóvão Cunha; Música e interpretação ao vivo: Nico Tricot; Interpretação: Ana Brandão, Emanuel Arada, Hugo Sovelas, Miguel Damião e Sofia Dias; Produção executiva: Diana Almeida; Parcerias: O Espaço do Tempo, Teatro O Bando, Causas Comuns, Teatro da Terra, Primeiros Sintomas e Chão de Oliva;

teatro estreia

O ARRANCA CORAÇÕES

Coprodução: Propositário Azul, FITEI e São Luiz Teatro Municipal Espetáculo financiado pela República Portuguesa – Cultura | DGARTES – Direção Geral das Artes

A PARTIR DE BORIS VIAN NUNO NUNES

Agradecimentos: Senhorinha Dias, André Marques, Margarida Caldeira, Rui M. Silva, Inês Melo, Vitorino Coragem, João Gonçalves, Raquel Ribeiro dos Santos e Ana Brandão

Quinta a sábado, 21h; domingo, 17h30 Sala Mário Viegas A classificar pela CCE €12 com descontos CONVERSA COM OS ARTISTAS

17 fevereiro, domingo

SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL

Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Joaquim René Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Programação Mais Novos Susana Duarte Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Produção Mafalda Santos (Diretora), Andreia Luís, Catarina Ferreira, Margarida Sousa Dias, Mónica Talina, Tiago Antunes Direção Técnica Hernâni Saúde (Diretor), João Nunes (Adjunto) Iluminação Carlos Tiago, Nuno Samora, Ricardo Campos, Sérgio Joaquim Maquinistas António Palma, Paulo Lopes, Paulo Mira, Vasco Ferreira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Ricardo Fernandes, Rui Lopes Vídeo João Van Zelst Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Direção de Cena Marta Pedroso (Coordenadora), Maria Tavora, Sara Garrinhas, Ana Cristina Lucas (Assistente), Rita Talina (Camareira) Direção de Comunicação Elsa Barão (Diretora), Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Bilheteira Cristina Santos, Diana Bento, Renato Botão

TEATROSAOLUIZ.PT

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