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Dr. Elmo Brandão aborda a temática da Doença de Crohn em Angola

ENTREVISTA “A GROSSO MODO, A PREVALÊNCIA DE DOENÇA DE CROHN EM ANGOLA É MUITO BAIXA”

A DOENÇA DE CROHN É UMA DAS DOENÇAS RARAS MAIS PREVALECENTES NO MUNDO. MAS, EM ANGOLA, A AUSÊNCIA DE PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS DIFICULTA AFERIR COM PRECISÃO QUAL A SUA PREVALÊNCIA, QUE SE ESTIMA SER MUITO RARA. O DR. ELMO BRANDÃO ABORDA DE QUE MODO É FEITO O SEU DIAGNÓSTICO, QUE OPÇÕES DE TRATAMENTO EXISTEM NO PAÍS E QUAIS AS COMPLICAÇÕES DA DOENÇA DE CROHN.

Dr. Elmo Brandão

Presidente do Colégio de Especialidade de Gastrenterologia da Ordem dos Médicos de Angola

Sendo considerada uma doença rara, como é realizado o diagnóstico da Doença de Crohn? Por se tratar de uma doença inflamatória do intestino, que se caracteriza por inflamação transmural, que pode envolver qualquer porção do tracto gastrointestinal, desde a cavidade oral até à região perianal, o diagnóstico é baseado nos aspectos clínicos, laboratoriais, imagiológicos, endoscópicos e histológicos. No que se refere aos aspectos clínicos, pacientes com Doença de Crohn (DC) podem apresentar sintomas por muitos anos, antes do diagnóstico, ou podem apresentarse de forma aguda. Os sintomas cardinais incluem dor abdominal, diarreia (com ou sem sangramento grave), fadiga e perda de peso. Alguns pacientes podem apresentar manifestações extraintestinais, como artrite das grandes articulações, artrite central ou axial, como sacroileíte ou espondilite anquilosante; manifestações oculares (uveíte, irite e episclerite); manifestações dermatológicas (eritema nodoso e pioderma gangrenoso) e manifestações hepatobiliares (colangite esclerosante primária). No que diz respeito aos aspectos laboratoriais, os exames de rotina podem ser normais ou revelar anemia, leucocitose, PCR elevada, alterações electrolíticas, deficiência de ferro, deficiência de vitamina B12 e deficiência de vitamina D. Os marcadores inflamatórios fecais (calprotectina fecal ou lactoferrina) podem estar elevados, devido à inflamação intestinal. O intestino delgado pode ser estudado por Ressonância Magnética por Enterografia (RME) e Tomografia Computorizada por Enterografia (TCE). Ambos os exames imagiológicos conseguem demonstrar o local afectado, evidenciando espessamento e realce da parede, linfonodos aumentados, envolvimento de gordura perivisceral, bem como a detecção de estenoses. Pacientes com suspeita de Doença de Crohn, que apresentem sintomas gastrointestinais superiores (por exemplo, epigastrialgias e vómitos), devem realizar Endoscopia Digestiva Alta. Os achados incluem nodularidade, friabilidade da mucosa, úlceras estreladas, lineares ou serpiginosas. Também ocorrem úlceras aftosas. A Colonoscopia é o estudo preferencial para avaliação do intestino grosso, pois permite obter biópsias dos segmentos colónicos. O padrão inflamatório da Doença de Crohn é tipicamente descontínuo (intermitente). Segmentos de inflamação podem estar adjacentes ao tecido normal, que resulta em lesões salteadas. As anormalidades da mucosa incluem eritema, friabilidade (menos frequente), ulcerações aftosas e serpiginosas, com presença ou não de pseudopólipos (que resultam de hiperplasia crónica da mucosa, devido a episódios repetidos de inflamação e ulceração que foram resolvidos). A Ecoendoscopia pode avaliar a espessura da parede intestinal do cólon sigmoide e do recto e a gravidade das alterações inflamatórias para ajudar a distinguir a inflamação transmural da mucosa. Finalmente, as características histológicas específicas que ajudam no diagnóstico da Doença de Crohn são presença de granulomas não caseosos, presentes em, aproximadamente, 5% a 25% das amostras de biópsia. Os achados histológicos tendem a ocorrer num padrão descontínuo (espacialmente intermitente), semelhante ao padrão dos achados da endoscopia digestiva alta e da colonoscopia.

Em termos de prevalência, como é que se encontra Angola em relação ao mundo? A ausência de publicações científicas relativamente à Doença de Crohn, no nosso meio, dificulta a resposta a esta questão. A grosso modo, a prevalência da Doença de Crohn em Angola é muito baixa (rara). Segundo informações da literatura, alguns países recémindustrializados de África começam a apresentar um aumento na incidência.

Quanto ao tratamento desta patologia, o que é que temos disponível? Quanto ao tratamento, podemos dizer que uma variedade de medicamentos está disponível e a escolha da medicação, geralmente, depende da localização anatómica da doença, da gravidade e se o objectivo do tratamento é induzir ou manter a remissão. Essas terapias podem ser agrupadas como terapias de indução (que têm um início de acção relativamente rápido) e terapias de manutenção (que são para uso a longo prazo). Nas opções para a terapia de indução, temos a destacar os glucocorticoides (prednisolona, metilprednisolona e

“A GROSSO MODO, A PREVALÊNCIA DA DOENÇA DE CROHN EM ANGOLA É MUITO BAIXA (RARA). SEGUNDO INFORMAÇÕES DA LITERATURA, ALGUNS PAÍSES RECÉMINDUSTRIALIZADOS DE ÁFRICA COMEÇAM A APRESENTAR UM AUMENTO NA INCIDÊNCIA”

budesonida) e aminossalicilatos (sulfasalazina e mesalasina). A prednisona e prednisolona são alternativas como terapia inicial para pacientes com Doença de Crohn leve, envolvendo o íleo e/ ou cólon proximal. A budesonida é eficaz para induzir a remissão em pacientes com Doença de Crohn ileal e ileocecal. O uso de 5-aminossalicilatos (5-ASA) é controverso e limita-se a pacientes com Doença de Crohn leve com envolvimento ileocolónico limitado, em que se quer evitar glucocorticoides. Neste caso, um agente oral de 5-ASA de libertação lenta é preferível, como a mesalasina. Por outro lado, a sulfassalazina (o pró-fármaco do 5-aminosalicilato) é menos útil para a ileíte, porque as bactérias colónicas clivam o fármaco para libertar a fracção activa do 5-ASA, por isso, é reservada para casos de colite. Nos medicamentos para a terapia de manutenção, temos os agentes biológicos de primeira linha, como infliximab e adalimumab, que são anticorpos monoclonais dirigidos contra o factor de necrose tumoral (TNF). Esses medicamentos são opções importantes para pacientes com Doença de Crohn moderada ou grave e tornam-se a base do tratamento de indução e de manutenção na América do Norte e na Europa, mas não estão disponíveis em Angola. Já os imunomoduladores (6-mercaptopurina [6-MP], azatioprina [AZA] e metotrexato [MXT]) são uma das várias opções para o tratamento de manutenção da Doença de Crohn moderada ou grave. A 6-MP ou a AZA podem exigir dois a quatro meses de tratamento para atingir o seu efeito máximo. Assim, a 6-MP e a AZA não são tidos como agentes de indução. Os anti-diarreicos são uma opção para pacientes que não respondem completamente à terapia de primeira linha e que apresentam doença leve e sem complicações, como estenoses. Sugere-se a loperamida em pequenas doses (dois a quatro miligramas), após um episódio de diarreia, devido à sua eficácia e segurança relativa em doses baixas. A colestiramina, ou outros sequestrantes biliares, é outra opção para pacientes com doença ileal não estenosante que apresentam diarreia aquosa crónica. Geralmente, não se usa antibióticos em pacientes com Doença de Crohn leve. Os dados referentes ao uso de antibióticos para o tratamento da Doença de Crohn luminal activa têm sido inconsistentes. Alguns estudos relatam benefícios modestos dos antibióticos para melhorar os sintomas clínicos em pacientes com doença activa. Os antibióticos mais utilizados incluem metronidazol ou ciprofloxacina.

A alimentação é fundamental para o controlo da patologia, especialmente nos períodos de diarreia. Na sua opinião, as pessoas respeitam a alimentação e os conselhos alimentares? O acompanhamento por um nutricionista deve ser tido em conta? Na minha opinião, a maioria dos pacientes respeita as orientações e conselhos nutricionais dados pelo seu médico. Dos relatos em consulta, apercebemo-nos sempre que existem alimentos que precipitam ou agravam a actividade da doença. Daí, a importância da multidisciplinaridade no acompanhamento por outro especialista, neste caso, por um nutricionista especializado em doenças inflamatórias, que orienta a melhor dieta em função da fase da doença (activa/remissão).

Relativamente às complicações, o que é que esta patologia pode trazer aos seus portadores? A Doença de Crohn pode causar complicações nos seus portadores. Nas complicações intestinais, temos fístulas que podem desenvolver-se entre o intestino doente e uma variedade de tecidos adjacentes, por exemplo, as fístulas enteroentéricas (entre diferentes segmentos do intestino), fístulas enterovesiculares (do intestino para a bexiga), fístulas enterogenitais (do intestino para a genitália) e fístulas enterocutâneas (do intestino para a pele). Nos casos de peritonite localizada, os pacientes podem apresentar febre, calafrios, leucocitose, náusea ou vómito e dor abdominal localizada, muitas vezes, no quadrante inferior direito, resultante de uma microperfuração. Se ocorrer uma complicação abdominal adjacente às alças intestinais activamente inflamadas, pode evoluir para uma fístula. Dependendo da localização e gravidade, pode causar obstrução intestinal parcial ou completa, apresentando-se com sintomas de náuseas, vómitos e dor abdominal. Finalmente, pode ocorrer envolvimento perianal leve (consistindo em pequenas marcas na pele ou fissuras anais) ou mais grave (abscessos e fístulas). Do conjunto de complicações fazem também parte a falha no crescimento, observada em 10% a 30% das crianças com Doença de Crohn, deficiências de vitaminas e minerais, nomeadamente, vitaminas A, D, E, zinco e vitamina B12 (esta última, mais comum em pacientes com Doença de Crohn ileal). Outras complicações envolvem osteopenia, litíase renal, cálculos biliares, pancreatite e cancro.

É possível prevenir a Doença de Crohn? Não é possível prevenir a Doença de Crohn. As doenças preveníveis são aquelas em que a etiologia é bem conhecida. No caso da Doença de Crohn, não se sabe ao certo quais os factores que determinam no surgimento da doença.

DOENÇAS RARAS AFECTAM MAIS DE 300 MILHÕES DE PESSOAS

TODAS AS SEMANAS, SÃO DESCOBERTAS NOVAS DOENÇAS RARAS. ESTIMA-SE QUE EXISTAM DE SEIS MIL A OITO MIL TIPOS DESTAS DOENÇAS, 80% DAS QUAIS COM ORIGEM GENÉTICA. 30% DOS PACIENTES MORRE ANTES DOS CINCO ANOS DE IDADE. NO ÚLTIMO DIA DE FEVEREIRO, É ASSINALADO O DIA MUNDIAL DAS DOENÇAS RARAS, COM O OBJECTIVO DE ALERTAR A POPULAÇÃO PARA A SUA EXISTÊNCIA E SENSIBILIZAR SOBRE AS DIFICULDADES QUE OS SEUS PORTADORES ENFRENTAM DIARIAMENTE. FOI ESTABELECIDO EM 2008, ESCOLHENDO-SE O DIA 29 DE FEVEREIRO POR SER UM “DIA RARO”. NOS ANOS NÃO BISSEXTOS, É ASSINALADO A 28 DE FEVEREIRO.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), é considerada uma Doença Rara a que afecta até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos, ou seja, 1,3 para cada duas mil pessoas. Embora, individualmente, a prevalência das Doenças Raras seja baixa, colectivamente, representam enormes encargos para a saúde pública, para as pessoas afectadas e para os países. Mais de 300 milhões de pessoas são acometidas por Doenças Raras, em todo o mundo. As doenças raras, geralmente, são crónicas, progressivas, degenerativas e, muitas vezes, com risco de morte. Não existe uma cura eficaz existente, mas há medicamentos para tratar os sintomas. Entre as várias Doenças Raras, constam duas abordadas nesta edição, a Hemofilia e a Doença de Crohn.

ONU aprova resolução Recentemente, e pela primeira vez, a Organização das Nações Unidas aprovou uma resolução que vem reconhecer os desafios dos pacientes de Doenças Raras, desde o acesso ao diagnóstico e tratamento, até ao preconceito e exclusão social. A resolução centra-se na importância da não discriminação e avança os principais pilares dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (ODS), incluindo o acesso à educação e ao trabalho digno, a redução da pobreza, o combate às desigualdades de género e o apoio à participação na sociedade. Proposta por Espanha, Brasil e Catar e copatrocinada por 54 países, foi aprovada por consenso com o apoio de todos os 193 Estados-Membros da Assembleia Geral da ONU. Representa uma grande mudança no panorama da política global, prometendo uma maior integração das Doenças Raras na agenda e nas prioridades das Nações Unidas. A resolução estimula os países a fortalecerem os seus sistemas de saúde, adotando estratégias, planos de acção e legislação que impulsionem o bem-estar destes doentes e das suas famílias. É também pedido que os países fomentem a criação de redes de profissionais e centros especializados em Doenças Raras.

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