1ª edição
Prefácio Emanoel Barreto
Ilustração Aureliano Medeiros
Grafia atualizada de acordo com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Capa e ilustração: Aureliano Medeiros Projeto gráfico: Themis Lima Revisão: Andressa Vieira Fotografias: Themis Lima
Catalogação da Publicação na Fonte Universidade Federal do Rio Grande do Norte Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Lima, Themis. Bandeira de trapos: o trágico e o belo costurados na trama diária da Latino-américa / Themis Lima. – Natal: [s.n.], 2013. 204 p. 1. Jornalismo – América Latina. 2. História – América Latina. I.Título. RN/BSE-CCHLA
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS A: Editora Tribo Rua Alexandre Câmara, 1884 Natal (RN) 59082-200
CDU 070(7/8)
A primeira condição para mudar a realidade consiste em conhecê-la. Eduardo Galeano
Prefácio Viagens, olhares, visões ............................................................ 13 Bandeira de Trapos Deixe a porta aberta ao sair .................................................... 29 Depois do sangue, vem o azeite de dendê ................................. 39 É proibido fumar .................................................................... 55 Que seus dias brilhem ............................................................. 73 O amor é para os valentes ........................................................ 91 O sal das lágrimas e a falta de internet ................................... 105 Como quem arranca um curativo .......................................... 127
Com tudo que havia na cozinha ........................................... 145 Entre o mĂŠdico e o carniceiro ................................................. 159 Sopa de nĂşmeros ................................................................... 181 A hora certa de voltar ........................................................... 193 Agradecimentos .................................................................... 201
VIAGENS, OLHARES, VISÕES É como se fossem contos...
Estranhos contos nascidos do enigma da vida – como aquare-
las escritas, gestos em palavras, narrativas em tons coloridos ou cinzentos, contos fazem uma representação imaginária de mundo, fragmentos dele.
Mas neste livro, não; parece, mas não são contos. Aqui serão en-
contradas histórias brotadas da vida mesma. Este livro, pode-se dizer, é uma forma de jornal; é o relato do que foi vivido em ruas
e estradas, calçadas e casas, ônibus e lugares – sons, incertezas e perplexidades.
Tudo isso e muito mais num longo, tortuoso passeio por cidades e vilarejos da América Latina. Um caminhar da autora ao mesmo
tempo exaustivo e epifânico, determinado e tenso: um processo de descoberta do mundo como circunstância de si e um encon-
tro consigo mesma; ela, frente a si na solidão da sua escolha: trilhar, sentir um labirinto privativo. Quem sabe, deparar-se com
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seu próprio minotauro. E talvez não ter um fio de Adriadne.
O livro de Themis Lima passeia por dramas e pessoas presas a
esses dramas. O estilo às vezes é sutil e delicado. Em outros momentos é duro, joga aos olhos do leitor um texto quase bruto de tanta objetividade, como quando diz na entrevista com um
açougueiro em Buenos Aires: “A variedade de facas – todas ensanguentadas – repousava sobre a tábua de madeira onde aquele amontoado de carne seria mutilado.”
Quanto à delicadeza, veja só: “Meus questionamentos variavam:
aos nove anos, teimava em discutir sobre as leis que impulsionavam o movimento dos girassóis.” No mais, o livro puxa a um
mesmo vértice os desafios de Themis em seu percurso e os reúne à lista de dramas que permeiam a narrativa. Houve, por as-
sim dizer, uma disciplinada convergência de conflitos. Fatos e
lembranças de fatos. Todos trazidos do mundo e administrados na paleta cinza da esmerada construção textual. O que veio do mundo de fora foi reunido ao mundo subjetivo da jornalista por
um vórtice feito de palavras que trituram e unem aquilo que foi referido e despontado da vida.
E o resultado foi este Bandeira de Trapos. Costurados à mão, cerzidos criteriosamente. Remendados na alquimia tonta que norteou a aventura em direção a um livro que de alguma maneira já habitava a repórter antes da partida.
Atenção para a história “O médico e o carniceiro”. Já partir do
título existe alusão a conflito feroz: uma família peronista puxada pela ditadura argentina para uma dança troncha, travada em 14
torno da desgraça que lhe chegou, truculenta, com o desaparecimento de um filho, preso político.
E segue a narrativa de outras histórias, trágicas ou esperançosas. Como se contá-las fosse um improviso de música; jam session em bar fumarento, as fotos de cada texto funcionado como cartazes que convidam a assistir ao show de tango no salão do
bar esfumaçado ou aliciam visita a um velho cine de bairro onde se projetam filmes antigos, meio sépia, biografias de anônimos, a princípio sem qualquer interesse. Mas fatos e imagens ganham força quando se apreende o seu sentido. Este é um livro que tem
ao mesmo tempo texto impresso, som e imagem. É forte. É fílmico. Arqueologia de um tempo cotidiano e incógnito.
Agora deixo você com Bandeira de trapos. Espero que tenha uma boa jam session e seja o último a sair do bar. Saia, mas deixe a porta aberta. Depois, volte.
É obra que merece ser relida...
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Passava das oito e meia da manhã e o sol cruzava o vidro da janela em direção ao meu travesseiro. Sentia a luz queimando o
lençol que me cobria o rosto. Não importava muito tanto alarde para avisar que era dia. Eu já tinha os olhos acesos: era o mais
acordado que alguém poderia estar. Esperava pacientemente por um sinal da minha amiga que dormia ao lado. Algo que me
dissesse que já era hora. Revirava-me de um canto para o outro, amassava e desamassava o lençol. O problema de dormir na casa
dos outros, quando se é criança, é que cada um tem seu tempo orgânico para despertar. É um costume, uma prática já estabele-
cida em termos firmes com sua própria cama. Isso faz com que uma das duas crianças, coitada, passe longas, intermináveis ho-
ras fitando o teto. Eu geralmente dormia até alguém se chatear com a indiferença do meu sono, mas naquele dia eu queria, precisava acordar.
A menina que dormia ao meu lado, naquele colchão rodeado de brinquedos e estendido na sala de estar, era uma grande sortuda. Tinha ganhado do pai um microscópio óptico, modelo para
crianças. Na tarde anterior havíamos caçado objetos de observação por horas: folhas, formigas mortas, grãos de areia e demais peripécias da natureza. Aquela aventura de desvendar as minúcias tinha me fascinado como nenhuma outra brincadeira.
Eu queria, precisava acordar. Havia lá fora ainda mais artefatos que descobriríamos. Alguma autoridade insana nos havia per-
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mitido fuçar na composição sagrada das coisas e eu certamente aproveitaria a oportunidade, antes que o meu pai passasse às seis em ponto para me buscar.
A curiosidade sempre me serviu como uma espécie de motor. Das coisas mais óbvias e praticamente inquestionáveis aos grandes mistérios que circundam a existência, sobre todos eles, eu
sempre tive dúvidas. Lembro que por muito tempo teimei em discutir sobre as leis que impulsionam o movimento dos girassóis e o porquê de certas pessoas nascerem com severas limitações físicas, enquanto outros bem-aventurados vinham ao
mundo perfeitamente sãos. Questionava os feitos dos heróis e as falhas dos suspeitos. Vasculhava as fotografias amareladas do ál-
bum de família buscando novos parentes e perguntava aos tios, sem qualquer constrangimento, o motivo de não estarem no jan-
tar de Natal. E confesso que até hoje não consegui desvendar o que acontece no anoitecer: você pode contemplar o firmamento
por horas, incansável e atento, mas é no instante em que seus olhos piscam que o céu muda de cor.
Confesso que nas minhas hipóteses sobre os mistérios inconclusivos eu sempre adicionava uma razoável porção de drama, ainda que não houvesse motivo aparente para ele estar por lá.
O pragmatismo das ciências antigas sempre me pareceu entediante, principalmente quando há um mar de possibilidades tão mais interessantes que a solução original. A relatividade e a
química quântica, por outro lado, são uma explicação mágica da realidade. Lembram-me de certa forma o novo jornalismo: é a verdade que permite um tom de fantasia. 32
Dentre as perguntas que não consegui responder está a mais atraente de todas; a dúvida que me faz observar o mundo com uma lupa insolente que estica as partículas para ver de perto
como funcionam. Mais que isso, é a única cuja resposta me gera
tanto interesse quanto a dúvida: de que são feitas as pessoas?
Não me refiro aos átomos de carbono ou aos hormônios que –
dizem os entendidos – são o código das emoções. Falo do que constitui a essência. Qual a história das pessoas e o que elas têm a ver com a história de todos nós?
Hipóteses são muitas, repletas de todo o drama que eu consigo
conceber. Mas o mais intrigante de todos os enigmas jamais po-
deria ser respondido pela contemplação estanque das situações e dos modelos. Do sofá de casa essas dúvidas não tinham chan-
ce alguma de serem sanadas. Teria de juntar o que coubesse na
mala e ver de perto, tão perto quanto permitissem as lentes dos meus óculos de grau, a história privada daquela gente. ***
Era uma terça-feira e a chuva caía forte. O som das gotas acareando a janela soava como um mantra e minha mente pairava tranquila sobre a ansiedade. Eu não assimilava com clareza
o que estava por vir. Evitava pensar sobre a profundidade do desafio em que lentamente mergulhava. Sentada sobre o chão, rodeada de tudo aquilo que não caberia na mala, eu ecoava na cabeça a melodia que se precipitava lá fora.
Faltavam dez horas para a viagem e eu tentava, meio dispersa, organizar o mar de pertences que deixaria para trás. Minha mãe
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me assistia e se queixava do meu critério:
— Como você sabe o que vai levar, se você nem sabe quando volta? - perguntava, com uma ponta de esperança de que eu reavaliasse a ideia.
Eu sabia que não lhe apetecia muito isso de eu sair de viagem, nem qualquer das outras aventuras a que eu me havia proposto.
Eu sempre compreendi a incompreensão dos outros, principalmente por eu ser a filha mais nova de um casal modelar, exímio
exemplo da família que venceu na vida. Irmã de advogada e médico, a ordem me empurrava, no mínimo, para engenharia. Resultado irônico foi que eu nunca soube muito bem de que me
ocuparia, à parte da verdadeira obsessão pelas histórias dos outros.
Minha vida inteira culminava naquela imagem: eu, rodeada de
mochilas, com uma só passagem em mãos. O sentimento que isso gerava em mim não tem nome: é uma receita meio absurda
de angústia e excitação, mesclada com desespero e confiança, uma pitada orgulho e um bom bocado de fé. Não via muita glória
naquilo. “Queria ter sua coragem!”, diziam. Para mim, não era ousadia, tampouco fuga. É que para alguns, a felicidade reside na
busca e a dita coragem, na verdade, está em ousar não se mover. Os minutos corriam e eu já começava a sentir a decolagem no
peito. Todos os conselhos e alertas que havia negado agora batiam à porta, quase sarcásticos. Já não conseguia mais ressoar a
chuva. O telefone celular vibrava – e incomodava – sobre a mesa de vidro, adulterando o sentido de “silencioso”: eram os amigos que queriam desejar boa viagem, mas por alguma razão, dessas 34
que nem a razão dá conta de compreender, eu não queria ouvir o adeus de ninguém.
Era um momento de solidão voluntária: deitada no sofá da sala,
observava analiticamente o teto branco-gelo; levantava de súbito, caminhava um par de passos e retornava à contemplação
incessante. Debatia comigo mesma sobre as roupas e as estações do ano. O celular seguia vibrando e dando voltas na mesma
mesa de vidro. A razão desconhecida continuava me impedindo de atendê-lo.
***
Faltavam agora duas horas para a partida. Eu já estava no aeroporto, esperando na fila do check-in. Sempre gostei de imaginar
para onde vão aquelas pessoas, e de onde vêm. Os diferentes tipos de passageiros, seus destinos e tudo o que levam consigo. Das malas às expectativas.
— Voo para São Paulo. Destino final é Buenos Aires, correto? –
perguntava a balconista. Tinha os olhos avermelhados e o rosto cansado denunciava o sono. — Isso.
— Aqui está o bilhete. 13 de junho de 2012, saída de Natal, Aeroporto Augusto Severo, às 6h15. Conexão no Rio de Janeiro, Aeroporto Internacional do Galeão, com espera de 5h15. Chegada a Buenos Aires, Aeroporto Jorge Newbery, prevista para 18h10.
Tinha em mãos a confirmação daquela loucura. A porta de um
caminho cujo fim eu não ousava supor. Até aquele instante, tudo
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poderia muito bem não ter passado de um longo e eloquente devaneio. Mas agora eu tinha a prova impressa em papel, como
nota fiscal, que as nossas decisões geram consequências. Trancaria a faculdade, perderia o emprego, me separaria de amigos
e da família, contra tantos conselhos e alertas, pelo mais puro
prazer de experimentar. Era o último momento para explodir
a pergunta que vinha fervendo como numa panela de pressão: você vai mesmo?
A voz meio fantasmagórica do aeroporto anunciava que a entrada para o voo já iria começar. Apressei-me rumo às portas
magnéticas que separam os dois espaços. Despedi-me dos meus pais com um beijo em cada rosto e parti. ***
Por um bom período de tempo eu não tive qualquer pretensão de relatar o que eu encontrava na viagem. Não tinha ideia que essa jornada resultaria nas próximas páginas. Só com o tempo
me dei conta que não havia sentido numa memória cheia de contos que não se contam.
Esse relato despretensioso parte, mais do que qualquer coisa, da vontade de provar uma hipótese sobre a minha grande pergunta
sem resposta: a de que as pessoas são feitas de história. Cada uma delas recria, no seu espaço íntimo e particular, uma versão da macro-história a que foram submetidas. Cada indivíduo conta
a seu modo um pedaço daquilo que os livros escolares sempre falharam em nos narrar. Todos nós sofremos os efeitos da história ao mesmo tempo em que a construímos. Os grandes feitos da 36
humanidade, aqueles divisores de água que modificam o rumo
da caminhada universal, foram realizados por pessoas de carne e osso, frágeis e mortais. Mais do que isso: são esses pequenos
feitos que se disfarçam de rotina os que movimentam o fluxo da correnteza.
Na tentativa de experimentar minha proposição eu dei de frente
com uma identidade que eu não sabia que também era minha. Encontrei um continente inteiro de vidas para contar. E é nesse mosaico humano que eu costuro, com a permissão de quem
lê, um pedaço das minhas impressões. As páginas que seguem,
aviso aos interessados, não pretendem conter qualquer verdade universal. Elas abrigam tão só versões particulares de uma história comum.
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O lugar era calmo e predominantemente vermelho. Pairava um
olor a preparativos de churrasco e um suave ruído de ventilador. As carnes expostas naquela enorme geladeira horizontal gera-
vam uma constante sensação de morbidade. Não é normal ver tanta vermelhidão junta. Tanta cor viva para tanta coisa morta.
A variedade de facas – todas ensanguentadas – repousava sobre
a tábua de madeira onde aquele amontoado de carne seria mu-
tilado. O metal arranhado brilhava escondido entre o colorido
fosco do sangue seco. Se não era possível cortar os pedaços com os cutelos, havia a máquina redonda que cortaria até mesmo dedos desatentos que passassem por ela. Quando ligada fazia um barulho estrondoso. Era quase o som de um grito indefeso. Um ranger de dentes.
Só depois de alguns tantos minutos é que me dei conta que havia um segundo som, meio esquisito, estéreo e disfarçado, que se mesclava no ronco da máquina de cortar ossos. Vinha do canto esquerdo da sala. De um rádio a pilhas quase escondido atrás da porta. “Hard rock latino”, anunciava o locutor, e aquela voz rouca, baixinha como quem não quer incomodar, combinava estranhamente bem com o tom do ambiente.
Os concertos eram simples: subia o chiar da porta, vinham um par de passos ocos. Vozes e cumprimento. Abre a geladeira, arame sacode. Guitarras arranhadas no rádio a pilhas não permi-
tem silêncio. Carne sobre madeira, faca sobre carne, sacola de
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plástico. Eventual riso solto. E fim. No meio daquela sinfonia metálica estava Tony, o açougueiro. Maestro de sua própria sonata.
Eu sentava num pequeno banco de madeira, ao lado da monstruosa máquina do ranger de dentes. Apoiada nos azulejos amarelos que ornavam a saleta, observava paciente o tecer daquela
música, tão honesta e crua. Esperava a hora de entender aquela história.
Pela porta ruidosa – que mostrava resquícios de um dia ter sido
azul – entrou o primeiro cliente da tarde. Aparentava ser jovem, passeando entre seus trinta e poucos anos, e entrava acompanhado de um labrador formoso e impaciente. O cachorro corria ao redor do dono, abanando a cauda, maravilhado. Hoje não era dia de ração.
— Como é que tá a vida, Tony? Hoje eu vou querer um quilo e meio ou dois de bife de chorizo, por favor.
Tony o cumprimentou com um aperto de mãos e em seguida abriu o mostruário de cortes. Puxou com um só braço o enorme
bocado da carne e o jogou sobre a tábua de madeira. Com a faca em mãos, perguntou:
— Você vai fazer o que com essa carne, Claudio?
— Churrasco para a família – retrucou sorridente o outro.
Com a autoridade de um apresentador de programa culinário, Tony se abriu a falar dos procedimentos de excelência para uma boa carne assada.
—Você vai fazer o seguinte: não precisa temperar muito o bife. 42
Ele já tem um sabor natural. Põe só um pouco de sal mesmo e azeite. Azeite de oliva. Pelo amor de Deus, não me venha com óleo de fritar batata.
O homem escutava atento, mas a sobrancelha sobressaltada denunciava uma surpresa e certa graça. Nem o riso do cliente nem a ansiedade do labrador detiam Tony de seguir com sua lição:
— Se você for fazer na chapa coloque o fogo baixinho para que
não grude com a superfície. Aí perde todo o gosto. Ninguém quer
carne com gosto de metal queimado, Claudio. Se você for usar o forno, deixe ele esquentar bastante antes de colocar a carne lá dentro. Corte a carne em dois lugares, da ponta até a metade, e
coloque um dente de alho em cada um dos buracos. Um pouquinho de orégano por cima e pronto.
O homem acatava as sugestões com parcimônia. Sorria complacente enquanto deixava o açougue, desviando suas sacolas do olfato de seu cachorro. Tony olhava a sua obra satisfeito. Havia
melhorado um jantar em família. Esfregava os dedos sobre o tecido e limpava no avental vermelho a faca que acabara de usar, enquanto checava o conteúdo da geladeira.
Um herói de carne e osso e sangue, que guardava na própria pele
as desavenças com a vida. As olheiras profundas já faziam mora-
da sob os olhos, mas era alguma coisa naquela barba de ontem que exalava cansaço. Só que havia ali uma alegria malandra, um
segredo, embebido na verborragia contagiante, que o transformava num confronto vivo e pulsante.
Era hora de descobrir o mistério. Tony lavou detidamente seu
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conjunto de facas, com esponja e sabão, como quem prepara um cenário. Pendurou-as, já secas, nos pregos junto à parede. Sacudiu as mãos molhadas, puxou um pequeno banco de madeira e se sentou junto a mim. Queria me contar sua história tanto quanto eu queria ouvi-la.
Tony nasceu em Tucumán, árido norte argentino. Filho bastardo, vivia com a mãe e mais seis irmãos – quatro deles de pais
diferentes – na favela de Tucumán, um lugar difícil de habitar. Vivenciou a pobreza no seu limite. Aos doze anos já levantava no
amanhecer para trabalhar: durante o dia era engraxate nas ruas
da cidade; à noite vendia jornais de esquerda em pleno 1976, ano em que começou a ditadura argentina.
— Muita gente pensa que na favela só existe marginal, pessoas
cometendo crimes para tirar qualquer vantagem. Isso não é verdade. A favela é oitenta por cento feita de gente frustrada porque não consegue sair da pobreza. O que sobra é a mesma maldade
que tem em qualquer outro lugar, entre os políticos principalmente.
Ele me serve um pouco de café preto num pequeno copo de isopor, sem preocupação de oferecer, e segue sua fala:
— Quando eu tinha quinze anos, vinha caminhando pela rua
com minha caixa de engraxate e dei de cara com um amigo que eu não via tinha muito tempo. E descobri que era porque tinha
acabado de sair da prisão – ele ri e passa a mão pelo rosto como
se lembrasse do exato momento do encontro – E ele me pergun-
tou: “Che, o que você acha de ir a Buenos Aires?”. Eu tinha uma 44
calça jeans, uma camisa e um par de sapatos. E fui.
Pensava que aquela vida miserável, acrescida de sete bocas para alimentar, nunca o deixaria ter qualquer oportunidade. Não pensara duas vezes – se o fizesse, desistiria. À meia-noite Tony e seu
amigo Hector, conhecido nas ruas como “El Turco”, fugiam com
seus corpos diminutos da vista dos vigilantes da estação. Pilar após pilar, chegavam mais perto do lugar ideal. Subiram de sorrate num meio-vagão, o menos empanturrado de todos, do Ferrocarril Central Córdoba. Este trem percorria quase todo o norte
e o nordeste do país transportando carvão, ferro e pedras para a construção civil. Escondidos entre aquele amontoado cinza e pe-
sado, viajaram quarenta e oito horas, vivendo da escassa comida e da pouca água que levavam consigo.
De Tucumán a Santiago Del Estero; a Frias, Recreo, Catamarca,
Chumbicha, Córdoba, Dean Funes, Córdoba Capial e Rosário.
Por fim, chegavam a Buenos Aires. Os dois garotos haviam se esquecido de um detalhe significativo: Tony, ainda com quinze anos, não tinha documentos. Na época, a República Argentina
concedia documentos, desses que o permitem viajar sozinho, aos dezesseis. Ainda na estação do bairro de La Boca, a viagem
encontrava seu primeiro obstáculo. Os vigilantes só liberaram os dois sob a promessa não cumprida de que voltariam a Tucumán no próximo trem.
— El Turco tinha um tipo de sangue muito raro. AB negativo,
se eu não me engano. Então o que a gente fazia era vender o sangue dele para poder comer. A cada quatro dias a gente ia
e ele tirava um pouco de sangue. Só o dele, porque eu não ti-
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nha documentos e não me deixavam. Hoje eu paro para pensar e isso não fazia muito sentido, porque ele tirava san-
gue para comer, mas ficava com uma fome terrível depois. Enquanto usavam dessa estratégia para sobreviver Tony e El Turco passavam a noite nos bancos da estação de trem de Constitución. A vida não estava nada mais fácil do que a que levavam em Tucumán, mas eles sentiam que algo estava por mudar.
Numa das madrugadas em que os garotos dormiam estirados no chão frio da estação, um grupo de policiais os despertou. A essa época dormir na rua ou em qualquer lugar público era delito. Coisa de vagabundo. Empurrados pelos injuriosos cassetetes, Tony e El Turco foram levados à delegacia sob voz de prisão e lá permaneceram pelo próximo par de dias. Ao deixarem a cela os garotos se sentiam perdidos. A experiência não tinha resultado em algo tão ruim: comida e teto de graça por um fim de semana, levando em troca nada mais que um ou dois leves hematomas. Agora olhavam para a rua e viam, de um lado, um enorme vazio que não se podia habitar; do outro, uma imensidão de coisas que não lhes pertencia. Onde dormiriam ainda era um mistério, mas precisavam calar a fome antes de pensar em armar algo como cama. Avistaram de longe uma padaria que fechava. Aproximaram-se sorrateiramente, para que ninguém se desse conta de que estavam ali. Se vissem dois jovens com aquelas roupas e caras imundas, os expulsariam a como cachorros sarnentos. El Turco, mais velho e mais confiante, avançou em direção à entrada e viu que não havia movimento. Agachou-se e esticou a mão para alcançar um dos pães que enchiam os caixotes. 46
— O que você está fazendo aí? – gritou uma mulher de dentro da loja.
Agachado no chão, curvado sob as grades de proteção, El Turco viu se aproximar um par de sapatos vermelhos, de couro falso e salto de madeira. Olhou para cima e viu um olhar inquisitor. — Eu estou com fome. Ia roubar um pão. — E por que você não trabalha?
— A senhora tem trabalho para mim?
Sua sinceridade era quase penosa, tão honesta quanto aquelas roupas sujas, e a senhora trocou o inquérito pelo tato.
— Eu sempre tenho trabalho para quem precisa. Venha amanhã às seis da manhã. Você também, rapaz – apontava o indicador a Tony, que observava de longe a cena.
Foi às portas da padaria que os dois dormiram, cobertos por pedaços velhos de jornais. No primeiro raiar da alvorada os sapa-
tos da mesma mulher do dia anterior batiam contra o chão para acordá-los. Já eram as seis da manhã.
O trabalho era penoso. Tony conta com certo rancor que aquela
padaria beirava a escravidão. A jornada chegava às vinte horas
diárias, mas o dinheiro, ainda que pouco, era suficiente para comer e dormir. Com a primeira semana de salário, Tony comprou sua segunda muda de roupa. Finalmente se livraria da mesma calça jeans que o acompanhava desde Tucumán.
Um ano de trabalho foi o suficiente para Tony juntar algum dinheiro e voltar ao norte para visitar a família. Sua mãe havia
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prestado queixa na polícia assim que percebeu o sumiço, mas
a essa altura já imaginava o pior. Chorou de emoção ao rever o filho e se encheu de esperanças de ter mais uma vez a sua ajuda
no dia-a-dia da família. Mas não era isso que Tony queria fazer. Avisou à mãe que voltaria, beijou cada um dos seus irmãos e rumou a Buenos Aires.
***
Ouvimos o rangido da velha porta do açougue abrindo e pausamos a conversa. Entra mais um freguês de longa data. Tony e o senhor de cabelos grisalhos se cumprimentam com veemência. Comentam de suas vidas por minutos antes de falarem qualquer
coisa sobre carne. O preço do leite, o imposto que subiu, a adolescência dos filhos. E só depois o pedido.
— Me dá meio quilo de fígado, então, Tony. É bom que é fácil de cozinhar.
Tony separa as fatias do produto e sua face demonstra aquela alegria que eu já tinha visto antes: estava prestes a salvar mais um jantar.
— Mas tem uma maneira especial de fazer fígado. Você sabe, né?
O cliente deixou escapar uma fagulha de curiosidade. Era é a gasolina de Tony. Mais um jantar em apuros. Sob o som perene e baixinho do rádio, ele começa:
— Você tempera o fígado com sal e um pouco de alho picado. Deixa um tempo para que o tempero pegue bem profundo na 48
carne. Enquanto isso corta umas rodelas de cebola. Depois, ami-
go, é só ligar a frigideira e deixar que esquente um pouco antes de colocar o óleo. Nem pense em fazer na chapa porque ele se
desmancha todo. Joga um pouco de alho, refoga com as rodelas
de cebola e coloca o fígado. É mais fácil que remar no doce de leite.
O senhor de cabelos grisalhos agradeceu os conselhos, risonho. Mandou um abraço saudoso à família e saiu. A essa hora havia
começado uma chuva fina que arranhava as telhas, e o cliente protegia a cabeça com sua sacola cheia de fígado. Tony ignorava as gotas: da calçada, satisfeito e orgulhoso, o via sair com uma
nova receita. Voltou-se a mim com um enorme sorriso, quase incontido, enquanto enxugava as mãos no seu avental vermelho.
— Onde paramos? – pergunta, acomodando-se no assento e servindo dois dedos mais de café.
— Você estava voltando de Tucumán a Buenos Aires.
Tony olha detidamente para os azulejos amarelos atrás de mim. Aperta os olhos, se concentra por alguns segundos, e lembra:
— Assim que cheguei de Tucumán, consegui trabalho num esta-
cionamento. Foi uma época maravilhosa porque eu podia dormir nos carros que ficavam lá a noite inteira e ninguém notava nada. Ficava na Rua Balcarce, a mesma da Casa Rosada. Muito próximo
de lá havia um quartel militar. Todo mundo morria de medo ou
de ódio dos militares, mas eu fiquei amigo de todos eles. Tenen-
tes, coronéis, todos me conheciam e gostavam de mim. Morei lá
dentro por dois anos. Tinha cama para dormir, lugar onde por
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minhas roupas, café da manhã, almoço e jantar.
Do ninho dos militares, conseguiu um trabalho de auxiliar num restaurante do bairro. Foi assim que começou o amor pela co-
zinha. Não tardou muito para que ele aprendesse o ofício e de
ajudante passasse a cozinheiro renomado. Restaurantes cinco estrelas, grandes artistas, palcos e pratos feitos por ele. Mas o
deslumbrante mundo que conheceu hoje não passa de um grande devaneio.
— Eu passei por muitos restaurantes, muitos bares. Trabalhei
no Open Plaza, no La Lecherísima, Pub La Boca, El Divino Buenos Aires. Só creme de la creme.
Tony apoia a cabeça sobre o punho direito enquanto mescla com uma colher de chá o açúcar que sobrou na xícara.
— Cozinhei para Eric Clapton, Bill Clinton e até uma princesa
que eu não sei dizer o nome. E hoje estou aqui. Aqui é o meu lugar.
Pela nostalgia que transborda os olhos, não é difícil imaginar que ele viveria ali, no seu lugar, com um sorriso no rosto e pelo
resto da vida. Mas há algo muito além das pupilas que o prende ao chão e que o finca profundo: Tony tem três filhas que idolatra.
Seu orgulho é maior que qualquer saudade que possa ter de um passado de glórias.
A mais nova delas é pintora e professora de belas artes. A do
meio é mais comerciante e menos artista, mas é uma excelente menina. A mais nova é cantora de blues e jazz, e é também a sua 50
pérola. Ele fala de Débora como quem descreve uma heroína.
Caminha até o esquecido canto esquerdo, onde está o rádio e o hard rock latino, e os desliga. Tira o celular do bolso, vasculha-o por alguns instantes. Chama-me com o braço e diz:
— Escuta só isso. É minha menina que tem essa voz!
O rangido da porta anuncia um cliente, mas Tony tarda em largar
o celular. Poderia falar da filha por horas, sem cansar. Mas havia um novo jantar a salvar.
Enquanto atendia à jovem, que vinha acompanhada de um filho pequeno, entrou uma família, e logo outra. A fila se amontoava
em frente à geladeira. Cortes e tipos de carne saíam divididos em sacolas de plástico, em doses homeopáticas, mas em escala quase industrial. Não sobrava tempo para receitas.
Eu já arrumava meus pertences quando ele me chamou. Disse que tinha uma coisa que queria me perguntar: — Você, que é brasileira, sabe fazer feijoada?
Respondi que sim (claro que sim!) com os braços tão abertos que ele quase entendeu que cozinhar feijão era um pré-requisito
para assumir a nacionalidade. Alegre com minha resposta, ele seguiu:
— Então eu tenho uma dica para você. Na próxima vez que você fizer feijoada derrame sem piedade azeite de dendê. Eu sei que geralmente se põe na moqueca de peixe, mas prove. Você deixa a
carne ficar mole e quando jogar a folha de louro abuse do dendê! 51
O sorriso não lhe saía do rosto, nem a faca das mãos. A força que
teve a vida inteira não cessara jamais, nem por um instante so-
litário. Tony é a cada minuto o lutador que foi desde o momento
em que nasceu. Renegado pelo pai, esquecido pela mãe; herói para os irmãos e fã das próprias filhas; viveu as consequências de uma história que não é só sua. Mas aquela doçura batia os
pés e insistia em ficar, mesmo quando o mundo o tratava com aspereza. Eu deixava o açougue pela porta dos fundos e ele ainda alertava:
— Se cuida e não se esquece do dendê! Mais uma vez, Tony salvava o jantar.
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