O diário de âncoras [TRECHO]

Page 1



O diArio de âncoras



Rodrigo Sérvulo

Primeira edição


Projeto gráfico Themis Lima Lucía Ruiz Ilustrações Aureliano Medeiros Fotografia Pedro Andrade Revisão Virgínia Fróes Catalogação da Publicação na Fonte (Cip). S491d

Sérvulo, Rodrigo.

O diário de âncoras. / Rodrigo Sérvulo. - Natal: Tribo, 2015. 108 p. : il. ISBN: 978-856778105-1 1. Poesia. 2. Cotidiano. I. Título. RN/TRIBO/HTLS

CDU 82(81)-1

Catalogação elaborada por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB 15/710. Todos os direitos reservados à Editora Tribo www.editoratribo.com.br


A folha em branco estĂĄ cheia de clichĂŞs, para ela.


PREFÁCIO


A primeira luz Sou esta paisagem: Sol e sal nos olhos.

A noite cede. O dia, como uma pequena luz, revela os contornos da cidade bruta. Memória e sonho se confundem, o futuro é opaco e treme. Esse mínimo sol machuca os olhos ainda anoitecidos: é tempo de espanto. Como em um nascimento que persiste, o corpo treme, se debate para receber o seu primeiro fôlego. A boca se abre, fala e falha, pois é incomunicável a violência de sua fome. A cidade que Rodrigo Sérvulo escreve é feita de matéria bruta: concreto, asfalto, muro. A dureza da matéria é contagiada de uma luminescência aguda. A palavra escrita perpassa as superfícies apenas brevemente reveladas, não esclarece e nem se deixa desvendar. No princípio havia o movimento e é aqui, onde nenhuma essência resiste, nenhum estado deixa de vacilar, nenhum monumento se mantém de pé, que o poema começa. Ergue-se uma cidade corpórea, feita de rumores, apetite, cansaço, suor. Cidade em que se habita com os olhos recém-chegados 9


da noite, com o corpo insone, cansado das bebedeiras, do encontros passionais, espantado dos crimes que presenciou ou pelos que praticou, maculado pelo excesso. O duro concreto: areia movediça para meus olhos. Paisagem-cidade em que o tempo está suspenso, é ainda o tempo improdutivo das madrugadas, não são as horas medidas pelo trabalho, mas aquelas enlouquecidas pelos hábitos noturnos, engendradas na lógica do acaso e da paixão. A noite é tempo de catar o lixo diurno, sonhar, gozar, embebedar-se, passar em claro, escrever. E é recém-chegado dessa noite que Rodrigo Sérvulo anuncia o dia, com as pálpebras pesadas e os olhos incrédulos, confundidos e desejantes. Ao escrever a cidade não nos dar a vê-la na grande luz do esclarecimento - essa luz do meio-dia, ansiada pelos que querem conhecer a forma exata das coisas -, mas iluminada de uma pequena luz, a que ainda tem parentesco com a obscuridade, que revela a vida em sua face trêmula, esfumaçada, prestes a desvanecer novamente em outra escuridão. Essa cidade, estejam prevenidos, nos engole. Nela, não há inocentes. Há o rumor de um fracasso, de gatilhos que esperam em prontidão, da derrota iminente. Cidade feita de desencontros, diferenças inconciliáveis, individualismos mordazes. É preciso resistir, armar-se de uma justa ferocidade, não ceder às lógicas produtivas, aos trajetos determinados, à apatia compulsória. É necessário resistir à própria casa, ao familiar e deixar-se arrebatar por uma luz que não se sabe de onde vem.

10


Rodrigo Sérvulo propõe um trajeto-deriva que vai da potência aniquilante de uma cidade opaca à possibilidade de ser tocado pela surpresa de um bom encontro. A perdição, como um dos nomes da paixão, se faz aqui antídoto para o tédio. Ser iluminado por algo que não se conhece oferece a possibilidade de sair de si e, enfim, fazer amor, esse potente exercício de dizer sim. A cidade, em suas contradições abismais, é também o cenário para a atualidade da paixão e seu anacronismo: a paixão nunca existe na hora certa, é sempre um contra fluxo, é a própria marcha na contramão. Aqui o corpo aprende que resistir é também ceder, deixar-se atravessar. Rir do mundo dentro de um umbigo. Abrir os olhos para essa luz menor é não se deixar achatar pela grande luz que tudo quer tocar e que sempre falha, porque abre mão da potência de desconhecer. Essa pequena luz, que ilumina e é irradiada pelos versos de Rodrigo Sérvulo, nos oferece uma saída para a apatia justo quando se compreende que a salvação possível é sempre singular e tem a ver com o descontrole porque é trabalho desejante. Assim o fazer amor na cidade e com a cidade se mostra como aquilo que, apesar de tudo, resta: se dá como a justa forma de resistência. Em seu Diário de Âncoras, Rodrigo Sérvulo parece apostar que o melhor é ainda dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contentar em descrever o não da luz que nos ofusca. Priscilla Menezes 11


12


“... E arranquei as páginas dos livros e a melodia das canções. Pelas ruas eu andei, colando minhas memórias.” [Colligere]

13


14

histerias em olhares perversĂľes sonoras um deus morto por segundo em cada esquina

sirenes anunciam partos em avenidas enquanto hienas buzinam para o movimento impossĂ­vel

em gole de cerveja engole pedras e fumaça

_edifĂ­cio escrever divagar quando a cidade te engole


15

por entre os edifícios.

é difícil não querer se perder para nunca mais se encontrar

é difícil escrever devagar quando alguém está atrás de você toc-toc no seu ombro


_esta cidade onde o ar tem asma e ninguĂŠm consegue dormir

16


me tira as palavras e me obriga a falar o que nunca quis que saĂ­sse de mim para nĂŁo sufocar-se com os sonhos

17


18


19


20


_metrôs e metros de gente nadar em um nada de entes a cidade se escreve com marcas de sapatos ninguém sabe o que se esconde debaixo de suas meias palavras chove e enquanto as pessoas guardam-a-chuva eu a deixo escorrer sobre minha face chove e não é deus que chora ele nos deixou antes da cidade nascer a chuva me ajuda a encobrir meus olhos recheio de lágrimas.

21


22


_na cidade hĂĄ ressaca de quem ama de quem arma tramas de esquinas e misturas esquecidas da noite anterior a ressaca do outro dia ĂŠ a moral da histĂłria que a gente vomita sem uma dose de arrependimento.

23


_placas de ____________ no precipício chamado cidade pessoas em ______________ nas avenidas vidas em _________________ nas noites desvairadas a ordem dos/das __________________ não alteram os/as _________________ e tudo não passa de variações de _____________ em um mesmo tema.

24


(trânsito(s); tråfego; transe(s); transa(s); tanto(s)).

25


26


_seja qualquer intenção de se fazer o exato com caneta, pedra, martelo, veneno ou pólvora seja ainda a diagramação de um ato com fitas métricas, prévios esboços ainda que tudo seja premeditado almejado ou estabelecido ainda que seja tudo o que exista rios com margens, oceanos mensuráveis que devires devem íris se observar prelúdios diante de tudo que não seja que não passem prismas nem reflitam espelhos que não tenham um nome que seja ou possa ser. 27


_fora das faixas de pedestres há sinais: atenção não pare siga os signos ouça os sinos da santa ignorância da sua indiferença. 28


_quando o efeito do gesto dita a indiferença da palavra o momento seguinte nunca Ê o que esperamos com o tempo a gente aprende a não esperar do tanto o que a palavra cala e o gesto fala. 29


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.