Madame Xanadu [TRECHO]

Page 1



MADAME XANADU



Aureliano Medeiros

Madame Xanadu


Grafia atualizada segundo o atual Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Capa Aureliano Medeiros Luiza de Souza Projeto gráfico Themis Lima Revisão Virgínia Fróes

Ilustrações Aureliano Medeiros

Catalogação da Publicação na Fonte (CIP). Medeiros, Aureliano. Madame Xanadu / Aureliano Medeiros. - Natal, RN: Editora Tribo, 2015. 220 p. : il. ISBN 978-856778106-8

1. Romance brasileiro. I. Título.

RN/TRIBO/HTLS

CDU 821.134.3(81)-3

Todos os direitos reservador à Editora Tribo Rua Ismael Pereira da Silva, 1756 - 201A Capim Macio - Natal (RN) 59082-900 www.editoratribo.com.br


Para você e Débora



Em Xanadu, Cublai Cã Edificou um fausto palácio, À sombra de onde Alfeu, o santo rio, Corre entre abismos insondáveis ao homem, Para um mar aonde os sóis somem. Duas vezes cinco milhas de terras fecundas Foram assim de muralhas circundas. E eram os jardins vultosos, de regatos caprichosos, Onde floresceram troncos de incenso frondosos, E florestas antigas como as colinas, Abraçando o caminho soalheiro da folhagem. Samuel Taylor Coleridge


SUMÁRIO


Prefácio, 12

Capítulo XXII, 17 Capítulo I, 23 Capítulo II, 31 Capítulo III, 41 Capítulo IV, 49 Capítulo V, 59 Capítulo VI, 67 Capítulo VII, 77 Capítulo VIII, 85 Capítulo IX, 93 Capítulo X, 101 Capítulo XI, 111 Capítulo XII, 121 Capítulo XIII, 131 Capítulo XIV, 139 Capítulo XV, 149 Capítulo XVI, 159 Capítulo XVII, 169 Capítulo XVIII, 179 Capítulo XIX, 187 Capítulo XX, 195 Capítulo XXI, 203

Para Xanadu, obrigado por tudo, 212


PREFÁCIO


“Agulha e linha furando tecido, atravessando voltando, puxando firme... Até que criasse a vida”. Madame Xanadu consegue unir todos dentro de uma história que se forma na circulação da vida de todos nós e também de Jeferson, Rose, Bianca, Sharon, Pedro, Daniel e João. Círculo de vida que inclui também quem lê.

Madame Xanadu nos comove com sua doçura assertiva. Suas dores ganham evidência no grande palco do nosso coração. Falo de sua dor esplêndida e soberana, como obra de arte que impregna nos poros e ganha destaque na indumentária e no olhar de Madame Xanadu. Ela pode ser todos nós ao mesmo tempo, plasmados em sua alma movente.

Quando vemos os desenhos de Aureliano, nos vemos nele. Parece que ele consegue nos espiar pelo olho mágico da vida, e muitas vezes comento em suas publicações e digo: “Nossa me vejo em seus desenhos! Sinto o mesmo”! Agora ao ler seu livro vejo que consegue também transmutar não só em desenhos, mas em palavras autênticas o que é do ser humano.

Para realizar esta apresentação, li duas vezes. Na primeira, me deixei levar pela grandiosidade de cada história e muitas vezes me comovi. No segundo momento, observei a escrita, as conexões, todos os cenários e os mise en abyme literários, belos, crescentes e eternos.

Sim, eternos, pois estão impressos agora em livro. Eternos não como algo fixo, mas que se movem em cada nova leitura. Cada ponto final num descortinar de uma nova história que se une com todas. Novas ambiências onde a circularidade 13


recomeça. Como o símbolo do oroboro onde a serpente morde a própria cauda, fechando-se sobre o próprio ciclo, evoca a roda da existência. Imagem esta que rompe a evolução linear e marca sempre uma mudança, pelo que parece emergir num outro nível de existência, simbolizado pelo círculo.

Um círculo no bordado da alma que se espalha nos cenários, figurinos e objetos de cena. Muitas vezes a presença dos aromas e do brilho das roupas da Madame Xanadu estavam aqui muito próximos do meu sentir. Todo o enredo foi construído por Aureliano com rigor de um lapidador de diamantes.

Aureliano é um escritor que consegue sorver da vida o seu movimento mais genuíno, e nos comove. Um escritor que desenha seus personagens e com este movimento nos escreve e nos desenha também. Este livro, quando termina, convida a nos recriar. Ensina a deixar que a vida nos leve pelo fluir do movimento. Um movimento a mais, seguindo os lindos gestos da rainha Madame Xanadu. E logo à frente, em dois passos, já não somos mais os mesmos. Linda obra que me comove e que muito recomendo. Angela Pavan, junho de 2015.

14



16



XXII


“Você não sabe pelo que eu passei”, ela diria. “Você não tem ideia”. Antes de começar, devo deixar bem claro que essa não é a história da minha vida. Talvez eu seja nada mais que um coadjuvante nesse grande quebra-cabeças e apenas não quero acreditar que sou só isso. Naquela noite ela me ligou e foi doce. Ao mesmo tempo que mortificante, foi doce. Nela havia algo que mexia profundamente comigo. Aquela fragilidade de flor que se confundia com imponência e tudo aquilo mexia num lugar que nem eu mesmo sabia que existia. Era como ter uma rainha chorando em seus braços. Você nunca entenderá o quão terrível e fascinante é a sensação até que aconteça com você.

No fim das contas, não é mesmo uma história sobre mim. É apenas uma daquelas histórias dentro de outra história, que nos fazem tentar resgatar o que foi que realmente começamos a ler. Completamente sem sucesso. Talvez por ser maior que outras histórias. Talvez por ser tão triste que acaba tomando conta de tudo que vê pela frente. Eram seis da manhã de uma sexta-feira qualquer daquele agosto quando ela me ligou. E foi doce. Foi singelo e ao mesmo tempo terrível, porque ela não sabia andar sem arrastar desgraça para onde quer que fosse. Com aquela voz embargada - quem sabe quantos remédios já havia tomado naquela noite - não teve forças para dizer mais do que “me ajude”. Sempre fui apaixonado por histórias e a forma com que elas se desenrolam, mas aquela vez era demais, até pra mim. Levantei-me de supetão, puxei as chaves que descansavam penduradas no armador de redes, vesti a primeira 19


camisa que encontrei e saí o mais rápido que pude, batendo a porta enquanto sua doce e terrível frase ressoava repetidamente na minha cabeça. Assim como não é minha história, também não é de Jeferson, Rose ou Sharon. É apenas uma história aterradora sobre muitos fins e poucos começos. Uma história deveras triste, mas que precisa ser contada. E talvez, ao final, alguém venha abrir a boca para dizer que é uma história bonita. Afinal, uma história triste é sempre bonita quando acontece com as outras pessoas. Ignição.

20





I


— —

Como começa?

Começa com um cigarro.

Pausa. Barulho de isqueiro. Baforada.. — Começa comigo sentada na calçada do café-salão às quatro e quarenta e oito da manhã, fumando um cigarro. — Aqui? — —

É, bem aqui.

E quando é isso?

— Daqui a uns dias. Você vai saber. Vai receber uma ligação. — —

Começa do fim, então. É. Começa do fim.

Madame Xanadu sentou-se no degrau de entrada do café-salão. 4:48 da manhã. Gostava daquilo, daquela hora, daquele friozinho e da forma como o sol começava a dar sinais de nascer. Com longas unhas de longos dedos escuros puxou cigarro e isqueiro do bolso de sua jaqueta. Lentamente, pousou o bastonete em seus lábios e, como que refletisse cada segundo daquele momento, acionou a engrenagem e trouxe à vida uma pequena chama. Aproximou o fogo da ponta de seu cigarro até que se formasse uma pequena brasa. Enquanto seus verdes olhos fitavam o nada, sua boca tingida de neón consumia-se em uma vagarosa tragada, seguida por uma baforada quase que estáti25


ca, dessas que a fumaça vai se acumulando no ar em volta como coisa sólida, tangível. É isso. O começo do fim.

Madame observou tudo à sua volta, como se quisesse gravar aquele lugar, fotografar aquele momento. À sua frente, a avenida Duque de Caxias repleta de prédios comerciais deteriorados e postes longos, altos, de aparência bucólica. Uns três ou quatro bancos de madeira no canteiro modesto, ao centro da rua. Ao longe, a velha senhora que se parece com o Jimi Hendrix tenta agasalhar-se num pedaço de papelão. Um céu de poucas nuvens, querendo amanhecer. A lua cheia que se despede (e mesmo que não estivesse cheia, a Madame preferiria dessa forma). O momento não poderia ser mais perfeito, mais eterno, mais colossal do que aquilo. Uma lágrima que cai. Não se sabe se o mundo é pesado demais para Madame Xanadu ou se é a existência dela que pesa demais para o planeta. Só se sabe que acabou. Precisa acabar.

A porta vazada de ferro e vidro é aberta ao lado da Madame e, de dentro do café, apagando as últimas lâmpadas, sai uma senhora magra de cabelos ruivos e cacheados. Ela para de pé no vão da porta e observa a figura sentada nos frios degraus. Estica uma mão que pende sobre o ombro da Madame, que entende o sinal e entrega um cigarro nas mãos da mulher de olhos fundos e penetrantes. Ela o acende com rapidez e, enquanto desce os degraus, escaneia a rua em sua volta. — —

26

Vai querer carona?

Não, não. Estou bem.


A senhora olhou-a com aqueles olhos terríveis em um misto de ironia e tristeza. Aqueles belos olhos para os quais é impossível mentir. “Não, Madame, você não está nada, nada, nada bem”, Os olhos diziam. Madame baixou a vista e fitou a calçada, sabe-se lá por quanto tempo. Tempo suficiente para seu cigarro tornar-se todo em cinzas e cair por inteiro no chão, sem sinal de peso. Aqueles olhos. Nalva era o que Madame Xanadu tinha mais próximo de uma mãe, ou irmã. Nalva entendia, Nalva sabia. Não era preciso falar. Apagou o cigarro no chão e aproximou-se da Madame, afagando-lhe a peruca rosa choque. — Se você não vier trabalhar amanhã eu vou descontar do seu salário. - Era a forma dela de dizer que se preocupava - Prometa que vem. — Prometo.

Mas os olhos de Nalva sabiam que não era verdade. Acariciou levemente o rosto da Madame e puxou o queixo para cima, com o dedo indicador, para que os olhares se cruzassem. Estava ali. Dentro das olheiras e debaixo das sobrancelhas, perpassando por tudo que já havia visto na vida. O olhar dizia adeus. Virou-se rapidamente e saboreou um pouco a brisa da madrugada. — Aproveite a lua cheia, Madame. E não esqueça de passar no Miguel que a Coca-Cola tá acabando, ok?

Madame tornou a baixar a cabeça e ficou acompanhando os sapatos de Nalva dirigirem-se ao carro, sumindo primeiro um, depois o outro. Os pneus indo embora numa nuvem de fumaça, cortando de uma vez por todas o silêncio daquela hora. “Até mais ver, Nalva”, pensou “Até mais ver...”. Vaga27


rosamente, a claridade diurna começa a iluminar a ainda fria avenida, e uma chuva fininha, sem graça, começa a cair. Mais um agosto, mais um cigarro.

Aos poucos a rua começa a ganhar vida, com carros, ônibus, pessoas, e isso lhe incomoda um pouco. “Nada para de acontecer”, pensou. As ruas estão provavelmente aí pra isso, pra gente poder perceber a vida acontecendo e brotando e gritando pelos cantos. “Eu prometi e aqui estou, mas quando eu olho pela rua e reparo na constância, normalidade e continuidade das coisas é que eu acabo percebendo que eu não estou realmente aqui.” A brasa do cigarro que segura entre as mãos dá um pequeno chiado quando uma lágrima cai em sua ponta. Madame não sabe se está só pensando ou se está falando sozinha.

Ela também não sabe se é culpa de Daniel, ou se é ela que anda meio surtada, mas a cada momento desse agosto de trezentos e sessenta e tantos dias que se passa, sente como se ela própria andasse meio que desaprendendo a existir. “Meio que desaparecendo”. Um choro baixinho enxugado pelo braço da jaqueta. Com os dois polegares, Madame Xanadu retira a mancha negra debaixo dos olhos e dá um longo suspiro. Levanta de rompante e, como se nunca houvesse chorado na vida, começa um caminhar glamoroso pelas decadentes ruas do antigo bairro, em busca da farmácia 24 horas mais próxima. Não havia como ser outro dia, ladies and gentlemen. É isso. O começo do fim de Madame Xanadu.

28





II


Existe um punhado de coisas a serem ditas, um monte de palavras que eu preciso derramar. Existe algo dentro de mim que, se não sair, pode ser que acabe me destruindo por completo. Tá gravando, isso? Ótimo. Eu acredito que você não esteja com pressa, porque se estivesse não teria me chamado, a princípio. Não há como falar da lady sem falar de coisas que precedem o seu surgimento, sua aparição. E não existe forma de falar desses acontecimentos sem sentir as mesmas dores voltando. Mas é preciso. Vinte e sete de agosto foi quando Bianca me fez aquela ligação. Eu lembro porque sempre achei 27 um número bem improvável para um dia, um número alheio, esquisito. Não podia ter sido de outra forma. A voz hesitava um pouco, ao mesmo tempo que tentava demonstrar força. —

Te acordei?

Foi o Pedro. Ele morreu.

— Não - E não dava mesmo pra dormir antes das três da manhã em época de fechamento de coleção - Aconteceu alguma coisa? Um silêncio emergiu e tomou de conta de nós duas enquanto eu tentava digerir a notícia. Rose, desliga o telefone, desliga o telefone, desliga o telefone antes que você fale alguma besteira. ‘Se foi num carregamento de cocaína, direto pra Bolívia?’, era o que eu queria dizer, mas é claro que eu não ia dizer. Não por respeito àquele escroto, longe de mim, mas por tudo que Bianca representava pra mim. Ela esperava alguma reação, do outro lado da linha, enquanto eu tentava engolir todo meu sarcasmo e humor fúnebre e convertê-lo em algo minimamente aceitável. 33


Sinto muito, Bia.

E ela sabia que eu não sentia, mas aquilo já lhe era suficiente. Passou as coordenadas do cemitério e a hora do enterro, mas deixou claro que eu não precisaria ir pra lhe provar algo, ou qualquer coisa do tipo. O que Bianca talvez não entendesse é que eu precisava e queria sim ir. Se eu pudesse acompanhar cada minuto do velório eu também o faria, apenas para ter certeza que Pedro não iria levantar e sair à francesa para fazer qualquer outro estrago na vida de ninguém. Eu apertaria impiedosamente os parafusos do caixão e eu mesma colocaria cada pá de terra, só por garantia. Mas nada disso eu dizia. Naquele momento, Bianca só precisava saber que sua irmã ia estar ao seu lado, na manhã seguinte. E assim eu fiz.

A maioria das pessoas usa óculos escuros durante enterros e velórios para esconder as lágrimas e a maquiagem borrada. No meu caso, encaixei um Fendi no rosto pra tentar disfarçar pelo menos uma parte do meu contentamento e satisfação. Enrolei meus cabelos num coque alto e vesti uma blusinha violeta, porque eu sempre achei que violeta combinasse com cemitério. Enquanto eu retocava a minha maquiagem, de forma a parecer mais abatida, o táxi me conduzia pela cidade chegando enfim à rua da Saudade, que se estendia até o cemitério. Um pequeno sorriso lutava para aparecer em meu rosto. O taxista abriu-me a porta e eu desci tentando não sujar os saltos dos meus sapatos no chão enlameado. Passei pelo arco de entrada do cemitério que precisava de um retoque urgente em sua pintura e segui lentamente até o ajuntamento de pessoas, sempre de cabeça meio baixa e tentando não parecer tão feliz. 34


A verdade é que todo mundo já sabia que o pilantra ia morrer. Estava internado já tinha tempos, parece que pegou uma gripe e como já tava com a imunodeficiência fodida, por causa da Aids, acabou evoluindo pra algo muito maior e foi agregando outras mazelas até ele ficar amarelo e esquálido numa cama de hospital, esperando a hora de partir. Nos seus últimos dias, eu costumava aparecer no hospital onde o paciente Pedro Lima estava internado só para garantir que ele continuava definhando. Vez por outra eu via um amor perfeito no canto do quarto e sabia que Bianca o havia visitado, às escondidas.

A essa altura, você já deve acreditar que eu sou uma psicopata desalmada e sem coração, mas é porque você não teve o desprazer de conhecer o falecido. Antes de Pedro acabar com a própria vida, ele conseguiu estragar a de cada um de nós, com requintes de crueldade. Pedro era tão lindo como um homem pode ser e tão terrível quanto, também. Não havia nele nenhum sinal de preocupação ou respeito para com o próximo, por mais próximo que esse próximo fosse. Pedro só pensava em si. Sempre ele. Um gênio. Um poeta incompreendido. Um mártir nas mãos dessa sociedade moldadora de personalidades e comportamentos. O ícone de uma geração. O novo Jack Kerouac. O novo Ginsberg. O novo antropofagismo. A nova ideia do que é ser novo. Ele não falava nada disso pra ninguém, mas dava pra sentir a prepotência e a arrogância se espalhando pelo ar em cada olhar forçadamente blasé e milimetricamente perdido no espaço. Ainda assim, apesar de sua personalidade, era um rapaz encantador. Mas não existe beleza alguma no mundo capaz de encobrir as coisas que ele fez, envolto em sua soberba sem fim. 35


Um pouco afastados do coágulo humano estavam Sharon, você e o casal. Sharon, tão triste quanto podia demonstrar, com seu lencinho na mão, enxugava cada lágrima antes que ela viesse a fazer algum borrão na grande pintura renascentista que era seu rosto. Vestia um tubinho preto na altura da coxa e carregava uma tulipa branca na lapela. O figurino sóbrio destoava um pouco de sua cabeleira louríssima de Barbie oitentista, mas ninguém ao redor parecia se importar. Me cumprimentou com sorrisinho forçado e falso de boca fechada, daquele que os lábios se comprimem e tentam passar algum sentimento acompanhado de um menear de cabeça. Mas não havia muita coisa que pudesse criar alguma conexão entre eu e ela. Nunca nos bicamos, nem quando ela ainda era André.

O casal, era assim que a gente os chamava, desde quando eu consigo me lembrar, estava recostado num túmulo alto. Enquanto Daniel fumava um de seus Carltons vermelhos, Jeferson fazia voltas com o dedo no cabelo preto e solto de seu amado. Daniel era branco como uma visão e seus cabelos muito negros geralmente cobriam os olhos. Aquelas olheiras obscuras viraram-se para mim e me cumprimentaram placidamente, juntamente com uma baforada: “Oi Rose...”. Jeferson que ainda era Jeferson então virou-se para mim e me puxou para um longo abraço. Não era um abraço de pêsames nem nada do tipo. Era pura saudade. “Terrível que a gente more na mesma cidade e só se encontre numa circunstância dessas, né?” Ele disse. A gente se gostava, de verdade, mas o tempo era muito difícil para todo mundo e já não haviam as obrigações do dia-a-dia que nos mantinham unidos. Jeferson era um mulato de cabelos encaracolados meio castanhos e tinha os olhos mais expressivos que eu já 36


vi, de um verde escuro e sem fim. Ficamos ali nos olhando por um tempo. Eu gostava de Jeferson e de Daniel. Era uma das únicas coisas na vida que parecia ser certa. Que parecia que ia durar mesmo quando o resto do mundo começasse a ruir. Fiquei por ali e só te cumprimentei de longe, porque, bem, não havia muitos motivos para falar com você.

O caixão estava suspenso sobre uma estrutura metálica e um grupo de pouco mais de dez pessoas formavam um semi-círculo em volta do defunto, enquanto algum parente pronunciava uma mentira qualquer. Tirei da bolsa meu telefone e conferi como estava minha franja, pelo reflexo do visor. Sharon me presenteou com seu olhar periférico de reprovação, mas não me importei. Bianca destacou-se do círculo da hipocrisia e aproximou-se, para falar comigo. Estava linda... Na verdade, não é como se ela tivesse que se esforçar para tal, ela simplesmente era linda. Os cabelos cacheados entornavam um rosto moreno de traços suaves e sobrancelhas finas. Afaguei aquele rosto em meu ombro por um tempo e senti todas aquelas lágrimas que ela não iria derramar. ‘Tá tudo bem, agora. Ele não vai voltar, eu juro.’ Eu pensava. ‘Não precisa derramar lágrima nenhuma por esse babaca, ele teve o que mereceu.’ Respirou fundo e, depois de se recompor, me olhou nos olhos. — —

Obrigada por vir, gata.

Eu não poderia deixar você sozinha. - Sorrimos.

— Tô muito feia? - Perguntou, apontando para o rosto e cabelos. — Tá linda, Bia. - Abriu um pouco mais aquele sorriso que iluminaria até a catacumba mais profunda. 37


É por isso que eu te amo.

— Eu também. - Eu, eu... também. Bianca escapou como areia das minhas mãos e foi em sua direção. Você me olhava e eu te encarei de volta, com a expressão mais mal-encarada que eu conseguiria passar através dos meus óculos enormes. “Cuidado com ela”, eu pensei. Você entendeu. Sempre entendia. Eu tinha um certo receio com sua presença porque nunca parecia que você estava realmente ali. Você sempre foi mais como um observador, João, e era isso que me incomodava. Ela te abraçou e meus olhos se contraíram involuntariamente. Fingi enviar uma mensagem de texto. Por incrível que pareça, quando o caixão que carregava o que um dia foi Pedro tocou o chão e os coveiros começaram a cobrir a madeira escura com terra, ninguém no cemitério inteiro começou a cena de musical da Disney que eu havia roteirizado em minha cabeça para o momento. “Ide em paz”, o padre disse. Ide à merda, isso sim.

38


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.